quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 1



Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras


AO LEITOR 

Este trabalho quer mostrar que os mitos e lendas hileanas não morreram, eles estão aí, escondidos nas sombras das cidades, esperando que a fantasia retorne numa noite qualquer, entre uma falta de energia elétrica e um conserto do aparelho de televisão.

O que apresento aqui, é o fruto de minhas horas de lazer e espero que seja, de algum modo, prazeroso também a você que o tem em mãos. Não é obra de um erudito ou esperto no assunto. Assim, se houver dados ou informações que queira corrigir ou acrescentar, use e abuse das margens deste volume e terei o máximo prazer em lhe dar um outro novo em troca do seu riscado. 

PREFÁCIO

Em outubro de 1987, realizou-se em Belém o VI Congresso Brasileiro de Parapsicologia e Psicotrônica, durante o qual foi apresentado uma espécie de painel de mitos e lendas da Amazônia. Colaborando na organização desse Congresso, coube-me pesquisar o folclore oral e o panteão mítico regional e, assim, nasceu o presente painel do lendário amazônico, porém, numa forma mais singela e resumida; bastante resumida para ser franco! Mas, apesar de nossos esforços, aquele livreto despretensioso não saiu do projeto, mas a idéia ficou se embalando na rede dos meus pensamentos, espicaçando-me de vez em quando, e a cada espicaçada eu comprava um livro sobre o assunto; recolhia material, pesquisava...

E com isso, aquele opúsculo humilde, quase cordel, foi-se lentamente encorpando; cevado pelo gosto à pesquisa iniciada e pelo xodó à cultura popular, ao nosso folclore. Esse xodó, no entanto, vem desde 1969, quando ingressei na equipe do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu, no Estado do Rio de Janeiro.

O IHGNI é uma entidade particular, sem fins lucrativos. Foi fundada e mantida por um pequeno grupo de amigos preocupados em preservar a memória cultural e histórica do município iguaçuano. Desde a sua fundação, no início dos anos 60, teve como seu presidente o Professor, Historiador e Arqueólogo WALDICK PEREIRA, que faleceu em 1984, quando assumiu a presidência outro fundador, o também Historiador, Arqueólogo, Professor e Advogado NEY ALBERTO GONÇALVES DE BARROS.

Pelas mãos desses dois grandes amigos fui levado a compreender, respeitar, valorizar e defender as demonstrações culturais de nosso povo e suas raízes.

A eles, então, devo este trabalho e minha eterna gratidão.

PRIMEIRA PARTE

FOLCLORE


É comum a confusão entre o que é mito e o que é lenda. E visto que os limites entre um e outro termo são praticamente inexistentes, procuramos uma definição adequada que estabelecesse a fronteira entre lenda e mito:
        
LENDA - Narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, no qual os fatos                                    históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação                                    poética.

MITO - (Mytho- gr = relato, fábula) Narrativa dos tempos fabulosos ou                              heróicos. Narrativas de significação simbólica, geralmente ligada à                              Cosmogonia e referente a deuses encarnadores das forças da natureza e                             (ou) de aspectos da condição humana. Representação dos fatos ou                             personagens reais, exageradas pela imaginação popular, pela tradição.

Como é fácil de perceber, a tarefa não foi coroada de êxito; ao contrário, acentuaram-se as semelhanças (mais adiante voltaremos a elas), o que nos permite agrupar as duas definições, fundindo-as numa expressão mais apropriada, um estilo de narrativa fantástica que visa transmitir uma lição, um ensinamento; explicar um fenômeno ou orientar uma decisão. Podemos chamá-la de "lendas mitológicas", afluente do vasto rio da cultura popular que denominamos Folclore.

Folclore, literalmente, significa "saber popular" (folk = povo e lore = saber); é um vocábulo de origem alemã criado por Willians J.Thons e surgiu em 1846 na revista The Atheneum (A). Para o eminente e erudito Luís da Câmara Cascudo, folclore "... é a mentalidade móbil e plástica, que torna tradicionais os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato".

O poeta e jornalista paraibano Orlando Tejo1, em seu memorável trabalho sobre o cantador e repentista Zé Limeira, apresenta um conceito para Folclore que parece mais holístico e menos erudito. Diz ele:

“A maquinária que faz surgir hábitos, costumes, alimentação, gestos, superstições, lirismo, sátiras, Indumentárias, tudo aquilo que os grupos sociais participantes assimilam, é folclore."
                                  
“Folclore é a cultura popular, feita normativa pela tradição natural, compreendendo utilitárias técnicas e processos que emocionalmente se ampliam e se valorizam."

O folclore, além do seu valor na ciência das tradições populares, é, como afirma Leite de Vasconcelos2, ”objeto de curiosidade para o povo, porque contém sua obra". E Carlos Brandão3 afirma que  “na cabeça de alguns, folclore é tudo o que o homem do povo faz e reproduz como tradição. [...] Na cabeça de uns, o domínio do que é folclore é tão grande quanto o que é cultura"

Para encerrarmos esse breve capítulo sobre folclore, recorramos a lira poética do grande Patativa do Assaré:4


"Você, caboclo, que cresce,                      
Sem instrução nem saber,
Escuta, mas não conhece
Folclore o que quer dizer,
Folclore é um pilão,
É um bodoque, um pião,
Garanto que também é
Uma grosseira gangalha
Aparelhada de palha
De palmeira catolé.
- Posso lhe afirmar também
Folclore é superstição
O medo que você tem
Do canto do corujão
Folclore é aquele instrumento
Para seu divertimento
Que chamamos berimbau
É também a brincadeira
Ritmada e prazenteira
Chamada Mineiro-pau.

O MITO, A MITOLOGIA E O SÍMBOLO

O obscuro fantasma criado pela poesia mitológica evaporou-se perante a luz brilhante de um conhecimento científico das leis naturais.
(Ernesto Haeckel)

A palavra mitologia não se aplica apenas às invenções imaginadas por um povo para tentar explicar um fato tido como inexplicável ou sobrenatural, mas, também identifica a disciplina que pesquisa e estuda esse fato, ou seja, mitologia é o estudo dos mitos.

Antigamente, apenas a grande novela dos deuses e heróis gregos e romanos, conhecida como Mitologia Clássica, merecia a distinção de verdadeiros mitos. Hoje o conceito de mito sofreu sensível mudança (B), se ampliou, e a palavra adquiriu uma condição de adjetivo pomposo aplicado geralmente às pessoas de grande notoriedade e fama, como é o caso, por exemplo, de Pelé, Charles Chapim, Marilyn Monroe, Picasso e outros.
Nesse "stricto sensu" podemos citar, também, outras conotações modernas, como o chamado "mito econômico", produzido pela febre da borracha, nos lustros de 1900, e que, segundo Eldorfe Moreira5, converteu a Amazônia numa "Califórnia" (sic.), numa alusão à corrida do ouro acontecida naquele estado norte-americano. Na verdade, sob esse prisma, há mitos para todos os gostos. É o que Víctor Jabouílle6 chama de "mitos do cotidiano"; símbolos de outros símbolos (C), resultante da amálgama cultural (moral, religião, filosofia, ciências e artes)  que  contextualiza  o  homem  contemporâneo;  e  também  da  natural e atávica tentativa de compreensão das coisas extraordinárias, das coisas que assumem um caráter fabuloso e que, ao correr do tempo, "criam e fazem durar esta mitificação".

Para Albert Goldman, famoso biógrafo de John Lennon e de Elvis Presley, "os líderes sociais são símbolos de nossa sociedade e não há melhores símbolos do que aqueles que a sociedade elege espontaneamente como seus heróis". Elvis e Lennon, para Mr. Goldman, "são arquétipos de nossa era".

Com ou sem exageros, o senhor Goldman nos mostra que toda sociedade carece de seus mitos porque são seus símbolos, suas mandalas; encarnam suas qualidades e atributos; servem de referencial à própria sociedade que os criou (ou recriou) e, de certa maneira, funcionam como elementos de ligação entre os membros dessa sociedade.

Claro está que mitos são símbolos, e como todo e qualquer símbolo, encerram uma mensagem ou uma informação codificada, inteligível apenas para os que conhecem o código, a decodificação. Alguns são universais, outros restringem-se a uma região, porém, todos são expressões da necessidade humana de registrar e transmitir uma descoberta, um conhecimento ou uma lição. Os mitos - diz-nos Ralph M. Lewis7, ex-imperador da Antiga e Mística Ordem Rosa Cruz (AMORC) -"... São criados espontaneamente ou assimilados. Nascem para suprir uma necessidade criativa individual ou de um grupo". Creio que os mitos constituem ou consolidam a cosmovisão ou cosmoconcepção que cada indivíduo possui.

A função social do mito apresenta-se bem delineada no capítulo 5 do livro "Mitos y Sociedad":8

"Cada sociedad ségun su modo de ser, concibe de una manera peculiar su unidad, y al expresarla toma conciencia de su existencia;... Ni um rey, ni una bandera, ni niguma otra cosa puede ser la encarnación de un grupo como le es el mito."

Ainda no mesmo parágrafo, o autor recorre a Nicholas Corte, um dos muitos autores citados na sua enciclopédica bibliografia, para explicar que "el mito fue el símbolo unificador del grupo social en cuyo seno fue elaborado. Satisfacia en ese grupo la necesidad intelectual de saber y de compreender, y servia de base a la religión. El mito mantenia de esta manera una especie de disciplina social".

O caos que a sociedade atual vivencia pode ser devido ao permanente processo mitogênico e mitofágico que o progresso provoca. O progresso é mitofágico, mas o ser social é mitogênico, porque é através do mito que ele procura estabelecer uma ordem, da mesma maneira que ele se utiliza de uma mandala para promover o equilíbrio em seu caos interior.

Felizmente o progresso, em sua voracidade, não atinge a todos os lugares ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Assim, ainda é possivel encontrar lugares que preservam suas raízes culturais quase intactas, quase inalteradas através dos séculos, apesar de tudo. Há, na Amazônia, regiões onde o progresso não penetrou de todo, onde mal se ouve um rádio, onde a maioria dos moradores não têm acesso a um aparelho de televisão, alguns sequer já viram um. São regiões cada vez mais reduzidas, pois, como previu Marshall McLuhan na década de 60, o mundo está se tornando, cada vez mais, uma "imensa aldeia global"; graças à televisão e à antena parabólica.

Lá, dentro das matas, à beira dos inúmeros lagos, rios, igarapés, furos, paranás, etc., ainda existem aqueles que acreditam nos deuses e demônios, nas histórias que falam de estranhas e incríveis metamorfoses de gente em bicho, histórias que falam de pessoas que possuem o poder de invocar os caruanas, que são as entidades protetoras e auxiliadoras dos pajés e feiticeiros amazônicos; enfim, lá nesses recantos esquecidos pelo consumismo, ainda é possível conversar com aqueles que acreditam no sobrenatural e naquilo que a imaginação cabocla cria.
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Notas:

1 TEJO, Orlando. Zé Limeira, poeta do absurdo. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1980. Coleção Machado de Assis, 38.0
2 LEITE DE VASCONCELOS apud BITENCOURT, Gastão de. O folclore no Brasil. Salvador: Livraria Progresso, 1987, p. 87.
3 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982~. p. 23. (Coleção Primeiros Passos).
4 PATATIVA DO ASSARÉ. Cante lá que eu canto cá. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
                   Patativa do Assaré é o pseudônimo do cearense Antonio Gonçalves da Silva, nascido em Assaré, em 1909.
5 MOREIRA, Eldorfe. Obras completas. v. VI, p. 26.
6 JABOUILLE, Victor. Iniciação à ciência dos mitos. Cadernos Culturais. Lisboa: Inquérito, Ltda,  1986.

(A)"As suas páginas mostraram amiúde o interesse que toma por tudo quanto chamamos, na Inglaterra, 'Antiguidades Populares', 'Literatura Popular', embora seja mais precisamente um saber popular que uma literatura, e que poderia ser mais propriamente designado com uma boa palavra anglo-saxônica, Folk-lore, o saber tradicional do povo)..." - Trecho da carta de W. J. Thons.

(B) NOTA DESTA EDIÇÃO: Em 1993 o pesquisador lusitano Victor Jabouille reuniu e publicou sob o título “Do Mythos ao Mito, uma introdução à problemática da mitologia” (Ed. Cosmos, Lisboa) algumas palestras que proferiu em 1989. Em 1997 o livro me chega às mãos e verifico, prazeirosamente, que esta minha observação, expressa de forma leiga e simples, tem ressonância no pensamento deste cientista. Em dado trecho da p. 16, lemos: “Hitler é um mito. Esta afirmação tem em conta a construção da imagem do político, a sua personalidade criada e explorada, bem como toda a construção narrativa enquadrante. Eusébio, ontem, ou Futre, hoje, também são por vezes classificados como mitos. Porque? Porque são capazes  de realizar grandes feitos...no futebol. A palavra mito vai-se abastardando, acabando por designar qualquer coisa de extraordinário,  o que parece ir além do razoável, o que não é real, qualquer coisa que não é verdadeira ou que não é lógica, algo exagerado ou, até, impossível. Mas, paralelamente, é nos nossos dias que o mito recupera credibilidade.”

(C) Symballein, gr = comparar

7 LEWIS, Ralph M. Introdução à simbologia. s. l.: AMORC, 1982.
8 SAGRERA, Martin. Mito y sociedad. Barcelona: Labor, 1967, p. 6~7O.

Cosmovisão ou cosmoconcepção é a compreensão que um indivíduo tem a respeito do Universo, do Homem e da História Humana. (N.A.)
-------------------
continua...

Ialmar Pio Schneider/RS (Monotonia Salutar)


Um casal de pardais se banha agora
na poça d’água rente da calçada...
O sol a pino... faz calor nesta hora...
É meio-dia e a tarde começada.

Vem do mar uma brisa que me agrada,
olho a paisagem nítida lá fora.
Estou à sombra e penso em quase nada:
assim minh’alma não sorri nem chora.

Ficar sentado aqui sem perspectiva,
ouvindo a voz das aves e o marulho,
nesta monotonia cansativa;

contudo salutar a quem deseja
fugir do turbilhão e do barulho
para buscar a calma benfazeja...


Praia do Pinhal - 14.2.84
Canoas, 10 de janeiro de 1985 - Página 10 - RADAR


Fonte:
http://ialmarpioschneider.blogspot.com/

Pedro Malasartes (Pedro se vinga do Fazendeiro)


Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este último era tão astucioso, vadio e inteligente que todos o chamavam de PEDRO MALASARTES. Como era gente pobre, o filho mais velho, João, saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacaria, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de serem compridos. João trabalhou quase um ano e voltou para casa quase morto. O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro, o Malasartes, ficou furioso e saiu para vingar o irmão. 

Procurou o mesmo fazendeiro e pediu trabalho. O fazendeiro disse que o empregava com duas condições: 

Primeiro, não enjeitar serviço e segundo, quem ficasse zangado primeiro tirava uma tira de couro do outro. 

Pedro não pensou duas vezes, de pronto aceitou as condições impostas pelo patrão. 

No primeiro dia foi trabalhar numa plantação de milho. O patrão mandou que uma cachorrinha o acompanhasse. E disse: Só pode voltar pra casa quando a cachorra voltar. 

Pedro meteu o braço no serviço até meio-dia. A cachorrinha deitada na sombra nem se mexia. Vendo que a cachorra era treinada e que aquilo era uma artimanha do Patrão, Malasartes deu uma grande paulada na cachorra que saiu ganindo e correndo até o alpendre da casa. O Malasartes, para surpresa do velho patrão, voltou e almoçou. A tarde ele nem precisou bater na cachorra, fez só o gesto e a cachorra com medo voou pelo caminho em direção a casa do fazendeiro. 

No outro dia o fazendeiro escolheu uma outra tarefa e o mandou limpar a roça de mandioca. Malasartes arrancou toda a plantação, deixando o terreno completamente limpo. Quando foi dizer ao patrão o que fizera este ficou com a cara feia e Malasartes perguntou: 

– Zangou-se, meu amo e senhor? 

O Patrão a contragosto pra não perder a aposta respondeu: 

– De jeito nenhum, meu caro. 

No terceiro dia o patrão acordou Malasartes bem cedinho e disse: 
– Pegue o carro de boi e me traga mil estacas de um pau liso, linheiro e sem nó. 

Malasartes não contou conversa, cortou todo o bananal, explicando ao patrão que bananeira era o pau que liso, linheiro e sem nó. O patrão fez uma careta de raiva e Malasartes perguntou: 

– Zangou-se, meu amo e senhor? 

O patrão, para não perder a aposta disse: 

– De jeito nenhum, meu caro. 

No dia sequinte, quarto dia de trabalho do Malazartes na Fazenda, o patrão mandou que ele levasse o carro e a junta de bois, para dentro de uma sala numa casinha bem perto, sem passar pela porta. E para atrapalhar ainda mais, fechou a porta e escondeu a chave. 

Malasartes agarrou um machado e fez o carro em pedaços, em seguida matou e esquartejou os bois e os sacudiu, carnes e madeiras, pela janela, para dentro da sala. O patrão quando viu fez uma careta de raiva e Malasartes perguntou: 

– Ficou com raiva, meu amo e senhor? 

O patrão, mais uma vez, para não perder a aposta respondeu: 

– De jeito nenhum, meu caro. 

A noite o patrão ficou pensando como pegar aquele cabra tão vivo. Levantou-se de supetão, foi até a rede onde Malasartes estava dormindo, o acordou, ordenando: 

– Você vai agora mesmo vender meus porcos lá na feira. 

Malasartes não contou duas vezes e levou mais de quinhentos porcos para vender na feira. Antes porém de fazer o grande negócio, cortou todos os rabos dos porcos. Vendeu os porcos bom um preço muito bom, além do preço que pagavam no mercado, dizendo ser aqueles porcos de uma raça muito especial. Voltando para casa, enterrou todos os rabos num lamaçal e chegou na casa do fazendeiro aos gritos de desespero dizendo que a porcada toda estava atolada no lameiro. O patrão desesperado correu para ver a desgraça. Malasartes sugeriu cavar com duas pás. Correu para a casa e pediu a mulher do fazendeiro para lhe entregar duas notas de dinheiro para comprar as pás. A velha, que também era tão ruim quanto o marido, não queria dar mas Malasartes para mostrar a ela que era verdade perguntava através de gestos ao patrão se devia levar uma ou duas pás, e o patrão aos gritos respondia: - Traga duas e entregue logo, velha rabugenta. 

Obedecendo as ordens a velha deu as duas notas para Malazartes que tratou de esconde-las nos bolsos que trazia dentro das calças escondidos. Voltou para o lameiro, reclamou da surdez da velha mulher do patrão que não lhe entregou as pás, entrou no lameiro e começou a puxar os rabos dos porcos que dizia estar enterrado, e ia ficando com todos nas mãos. O Patrão fez uma careta horrível de raiva e Malazartes perguntou: 

– Está zangado, meu amo e senhor? 

E o patrão, fulo de raiva, mas sem querer perder a aposta, respondia: – De jeito nenhum, meu caro, de jeito nenhum. 

De noite, sozinho, pensando no que estava ocorrendo e vendo que a cada dia aquele empregado o deixava mais pobre, o fazendeiro resolveu o matar o mais rápido possível, de um modo que ninguém desconfiasse e que ele não tivesse problemas com a justiça. Pensou, rolou na cama, e pronto, já tinha o golpe certo, tão certo que Malasartes nunca vai descobrir, pensou erradamente o patrão assassino. Levantou-se aos gritos chamando Malasartes e esse como um raio entrou pela porta e já estava bem na frente do patrão. 

– Pois não, meu amo e senhor. 

O patrão olhou bem para o seus olhos e disse: – Meu filho, como sei que você é muito eficiente e como estou muito satisfeito com o seu trabalho, vou lhe incumbir de uma tarefa muito difícil e árdua. 

Malasartes respondeu. 

– Diga logo, meu amo e senhor, estou pronto a lhe servir da melhor maneira possível, como sempre fiz. 

O patrão quase morreu com um acesso de tosses. Respirou e disse a Malasartes. 
– Ultimamente anda rondando a minha casa e me roubando um ladrão desconhecido. Tome aqui essa arma. Eu fico vigiando primeiro, já tô sem sono, quando for de madrugada, antes do galo cantar, você vem me render. 

A idéia do derrotado patrão, era atirar em Malasartes e dizer a polícia que tinha se enganado, pensando que era o ladrão. 

De madrugada, assim como tava combinado, Malasartes olhou pelo buraco da fechadura e viu encostado na cerca, armado até os dentes, o patrão. Deu volta pelo oitão da casa grande, entrou pela porta da cozinha, subiu para o quarto do velho e começou a acordar a velha, dizendo que o seu marido a esperava lá fora no curral, e que era melhor ela levar a espingarda dele, que tava bem carregada, pois se ela visse o ladrão podia plantar chumbo nele. 

A velha pegou a espingarda e saiu. Quando chegou bem perto da cerca do curral, o patrão pensando que era o Malasartes começou a atirar na velha, acertando um tiro bem no peito. Pensando que tinha matado o Malasartes e só para se certificar da conclusão do trabalho, foi chegando para perto para olhar. 

Qual não foi o seu espanto ao ver a sua velha mulher estatelada agonizando no chão. Naquela hora, Malazartes chegou por traz dele, chorando e o acusando de ter matado a mulher e dizendo: 

– Vou agora mesmo contar a polícia que o senhor é um assassino. O patrão num aperreio danado, não sabia se acudia a mulher ou se tentava convencer a Malasartes para não o denunciar. Malasartes, olhou pra ele e perguntou com uma cara chorosa e safada. 

– Tá com raiva, meu amo e senhor?

O patrão respondeu: 

– De forma alguma, meu caro, porém me diga logo quanto quer pra ficar calado e quanto quer pra sumir da minha fazenda e da minha vista? 

Malazartes cobrou muito caro, pegou muito dinheiro, deixou o fazendeiro liso e pobre e voltou rico, vingado e satisfeito para casa de seus pais, cantando: 
Sou mala sem ser maleiro
sou ferro sem ser ferreiro
sou nordestino e brasileiro, 
eternamente herdeiro
do meu passado estrangeiro. 

Nelson Malheiro (Saga do Rio Sorocaba)

Rio Sorocaba em 1954
(Redondilhas menores )                                    


                  1
Com estes meus versos 
que aos pouco me vêm 
leves inspirados
aos pingos pingados
qual água de um rio
que nasce da fonte
em veio escorrendo
aos poucos crescendo
depois em corrente
chorando nas pedras
cantando também
coleando outeiros
pondo-se às vezes 
no seio da terra
saindo além
eu quero contar
um pouco da saga 
do Rio Sorocaba!
             2
Este Rio que canto
assim não nasceu
brotando humilde
nem se enfurnou
no seio da terra
para bem distante
com seus tributários
fazer-se um rio!
             3
Porém estes versos
bem lá da nascente
do meu devaneio
assim deslizando
quais ondas também
também qual corrente
até sua foz
um sonho real
então se mostrando
poema parido
porém sem esforço
a história contando
do RIO SOROCABA 
que assim viveu
seu grande passado
e vive agora
à sua maneira  
seu himeneu
com nossa cidade
também já adulta
quais rios do globo
do globo terrestre
que assim o fizeram
dentre os famosos
o Lima lendário
lá em Portugal
imortalizado
por ser mitológico
e por Estrabão
chamado de Letes
do Esquecimento
o nosso Amazonas
o maior do mundo
com as amazonas 
lendárias mulheres
guerreiras temidas
qual aquele nosso
também conhecido
o sempre presente
bíblico Jordão
e todos por certo
que em sendo antigos
contam epopéias 
de si e dos seus
dos seus ribeirinhos
que se entrelaçam
em muitos abraços
formando a história
causando emoções
nem sempre amorosas 
da humanidade!
             4
Pois rios são partes
da história humana
das nossas cidades
fazendo- as bonitas 
com pontes diversas
como as de Recife
e esta tão nossa
daquela avenida
a nossa São Paulo
que as águas lhes vão 
passando por baixo
correndo ligeiras
às vezes nem tanto
qual líquida estrada
levando nos barcos
a eterna esperança
de sermos felizes!
              5
Do Rio Sorocaba
alguns bandeirantes
partiram chegando 
até sua foz
seguindo por terra 
ao Piracicaba
depois novamente
lá no Tietê
pelo Paraná 
por muitos caminhos
aos Andes chegando
e um deles foi
Raposo Tavares
também sendo Antonio
barrado no mar
que o fez voltar 
tecendo aventuras
nem sempre plausíveis
pois não só queria 
ouro encontrar
mas índios em tribos  
para os prear
e aqui vendê-los
aos outros senhores
da nossa nação!
Que belos senhores
sem amor ao próximo
sinal do cristão!
Em mil setecentos
tribos não se viam
às margens do rio
do Rio Sorocaba 
pois Cabral Camelo
navegando-o
da nascente à foz 
assim constatou
tal fuga em massa
por culpa de quem?
Pesquisa convém
desse algo fazer
nossa mocidade
da história real! 
            6
A ponte que foi
só feita de pedra
que embora modesta
mas tão sobranceira
primeira assim feita
em nossa província
do nosso Império
com Rei Soberano
D Pedro Segundo
a outra já velha
substituiu
projetada sendo
por João Bloem
doutor engenheiro
também diretor
da usina de ferro
que foi Ipanema! 
Que ponte bonita
ligando a hoje
alegre avenida
São Paulo tão viva
à praça cá encima
que é conhecida 
por ser do canhão
também do Tobias
nosso brigadeiro!
            7
E assim Sorocaba
primeiro nascendo
oficialmente
no Itavuvú
bem perto do rio
distância de grito
seu nome adotando
em terras mais altas
foi logo mudada
pras bandas de cá
por um bandeirante 
Baltazar Fernandes
mas sempre às margens
tão perto também
distância de grito
do Rio Sorocaba!
            8
À beira do rio
bem lá doutro lado
de quem de Itu vinha
e ainda se vem
passando a ponte
primeira de pedra
cresceu a cidade 
que foi abrigando
os que mais de longe 
buscavam por certo
prazeres negócios
além de algum peixe 
ali mesmo pescado
embaixo da ponte
ou pouco distante 
subindo a corrente
na Itupararanga!
           10
E ao dar passagem
segura a ponte
primeira de pedra
da nossa província
aos troles carroças
também aos tropeiros
com suas bombachas
e lenços vermelhos
montando solertes 
fogosos cavalos 
que vindo de longe
com tropas passavam 
de burros pagãos
ou burros cargueiros
e aos que transitavam
tranquilos descalços
além dos escravos
lá vindo da roça
bem pôde crescer
a nossa cidade!
            11     
Feira de muares
em nossa cidade
tão só foi possível
tendo a saudável 
aguada do rio
sempre a correr
com águas tão claras
aos banhos se dando
do povo humilde
e negros escravos
também dos cavalos
de pelos brilhantes
do seu coronel
o chefe tropeiro
com um chapeirão
guaiaca fornida
com muito dinheiro 
e lenço ao pescoço
somente vermelho 
lembrança por certo
da guerra sangrenta
a tal dos Farrapos
dez anos durando
no sulriograndense
da nossa Nação!
            12  
Bem longe dos lindes
do nosso torrão
na Vargem Paulista
e que se diz Grande
além de Cotia
também de São Roque
Mairinque Alumínio
e de Ibiuna
nasceram os rios:
Sorocamirim
Sorocabuçú!
Quase paralelos
não serpenteando
aqui acolá 
com alguns regatos
seus bons afluentes
chegaram fogosos
à grande bacia
aí tendo a foz
onde descansaram
e ainda descansam
suas águas doces
em parte seguras
formando um lago
que naturalmente
ali represado
foi logo chamado
de Itupararanga
que além das primeiras
já banhadas terras 
pequenas herdades
banhou Piedade 
e Votorantim!
            13
Um tempo passou
por certo bem pouco
até que um dia 
encheu-se a bacia!
A água tão livre
chegando dos rios
Sorocabuçú 
Sorocamirím
qual em gestação
de algo em silêncio
gerando o gigante
qual ser mitológico
de Netuno filho
não sendo contida
em sua vazão
tão grande o volume
mostrou sua força
rompendo os grilhões
que a seguravam
e solta no ar
em salto gigante
caindo nas pedras
fez se espetáculo
de espuma de prata
com luz e estrondo
rompendo o silêncio
no verde da mata
formando a cascata! 
              14  
Calixto o pintor 
também Benedito
exímio artista
do salto a beleza
de perto a vendo
um quadro pintou
de Itupararamga 
seu todo esplendor
que ao mundo mostrou!
A extensa represa
com certeza berço 
do Rio Sorocaba
não só alegria
deu aos pescadores
aos agricultores
regando-lhes terras
pois logo também
da Light abrigou
usina legal
de força e luz!
            15
O Rio Sorocaba
outrora piscoso
do pescador sério
e do mentiroso
o imaginário
e o samburá
encheu-os por certo
de historias também!
Na Estrada Rondon
há anos atrás
lá em Laranjal
Paulista a ponte
então de madeira
era ponto certo 
de alguns pescadores
ofertando peixes
dourados pintados
lambaris e bagres
aos viajantes
pois ali paravam
carros jardineiras...
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Além da areia 
às margens tiradas
do nosso bom rio
às vezes demais
que o assoriando 
à vista o vai
formando baixios 
nas várzeas extensas
argila macia
dá às olarias
quer artesanal
ou industriais;
ainda dá peixes
bagres e traíras 
e alguns lambaris
e muitos guarús
às garças branquinhas
com olhos de lince
ali de plantão
buscando o pão
bucolicamente
compondo a paisagem
às margens do rio
que dá muita água
a muitas manadas 
de bois vacarias
à irrigação... 
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Se o Egito é dom
das águas do Nilo
que o fez grandioso
pois de certa forma
também Sorocaba
o é do seu Rio!
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A Mesopotâmia 
berço da humanidade
com o seu Eufrates
e o Tigre também
é outro exemplo
de rios benfazejos
sendo-lhe estradas
também mitigando
dos seres viventes
a sede que temos
e a fome também
constantes na vida
sem contar o barro
famosa argila
dando corpo ao traço
do cuneiforme
da escrita início 
do saber as asas
do mundo moderno
lá na Babilônia!
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Na ponte onde fica
Laranjal Paulista
da qual já falamos
da feira de peixes
abaixo está
a Ajinomoto
empresa chinesa
ali bem plantada
às margens do rio
que utilizando
as várzeas tão férteis
com águas tão limpas
por certo propicias
a uns vegetais 
crescerem florirem
tempero produz
naturais saudáveis
prêmios alcançando
entre as Nações!
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Se aos seus passos dermos
o espaço preciso 
de cada cem metros
ao tempo constante 
de uns dez minutos
Sorocaba Rio
pondo-se a correr
fez-se muito jovem
do salto à foz
lá no Tietê!
Pois em natural 
trajeto vencido
por ele fogoso
em solo de mata
em si não tão seco
em terreno chão
contando duzentos 
e vinte e sete
quilômetros feitos
tão só levaria 
do salto a foz
setenta e três horas 
mais vinte e cinco
minutos exatos!
Assim também sendo
três dias três horas 
e mais vinte cinco
minutos completos!
Que bela jornada!
Do Rio Sorocaba!

SOROCABA, ÉDEN, 13/08/2010.

Fonte:
Boletim do Rol (Região On Line) 14 fev 2012