quarta-feira, 25 de abril de 2012

Eça de Queiróz (A Ilustre Casa de Ramires)


Análise da obra

O romance simbólico, A Ilustre Casa de Ramires, é fruto da maturidade intelectual de Eça de Oueirós, revela o reencontro do autor com os temas e aspirações nacionais. A aproximação entre o protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, e Portugal é explicitada no final, na comparação do amigo João Gouveia, que esboça com nitidez, no retrato que faz de Gonçalo, o caráter nacional português. Leia nas palavras de João Gouveia a síntese de um modo de ser português que o romance ilustrou fartamente:

     "- Pois eu tenho estudado muito o nono amigo Gonçalo Mondes. E sabem vocês, sabe o senhor Padre Soeiro quem ele me lembra?

     - Quem?

    - Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o senhor Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia. A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, sentimentos de multa honra, uns escrúpulos quase pueris, não verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre alento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão pairador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?

    -  Quem?...

    -  Portugal.

    Os três amigos retornaram o caminho de Vila-Clara. No céu branco uma estrelinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquede. E Padre Soeiro, com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu à torre vagarosamente, no silêncio e doçura da tarde, rezando as suas ave-marias, e pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras".

O caráter paradoxal do protagonista, volúvel e persistente; desleixado e escrupuloso; sonhador e pragmático; vaidoso e despojado; melancólico e falador; medroso e afoito; covarde e heróico; apegado ao passado, mas que, num arroubo visionário, arremete-se à aventura africana; bom e mau; — todo esse jogo de contradições impõe a antítese como o elemento estrutural do romance, a partir da engenhosa solução de embutir no romance realista do sáculo XIX uma novela histórica, ambientada no sáculo XIII, e de entrelaçá­las como um jogo de antíteses, em torno do eixo fundamental: presente (a decadência) x passado (o heroismo, a glória).

Essa estrutura antitética permitiu a Eça exprimir sua dúbia natureza: a do observador crítico do seu mundo e de lírico visionário, através da composição de duas histórias distintas e contudo integradas, vazadas em dois estilos literários, o realista e o romântico, que dialogam incessantemente, em contraponto, constituindo uma unidade coerente, complexa e artisticamente bem realizada.

A construção e a fusão da história principal de Gonçalo e da novela inserida de Tructesindo exemplificam a mestria do escritor. Ao comparar as duas versões da obra, a publicada em folhetins, na Revista Moderna (1897 / 1898), e a definitiva, ampliada, editada em livro, no ano da morte de Eça, em 1900, Álvaro Lins. observa que, se ao escrever a novela histórica sobre Tructesindo Metidas Ramires, Eça pretendeu satirizar o gênero que consagrou Alexandre Herculano, Garrett e Rebelo da Silva, fazendo um “pastiche”, ou um paródia irônica, acabou por construir uma pequena obra-prima da história portuguesa, uma reabilitação do romance histórico.

Horneni Cidade observa que: “Nenhum romance histórico, de meu conhecimento, é, como este, adequado à demonstração da eficácia, do gênero para a ressurreição de uma alma amortecida, por insinuação das energias evocadas de antepassados históricos. Pode, talvez, admitir-se como possível de Eça a tese da ineficiência da novela histórica no fortalecimento das energias coletivas. Mas seria bem estranho que, para provar tal ineficiência, se pusesse tão poderosamente evidente a transformação, por uma novela, duma vida individual.” (Colóquio-Letras, nº 23, Janeiro de 1975)

Ao analisar o romance, João Medina destaca uma passagem na qual os vizinhos e amigos do fidalgo, sabendo do rasgo de Gonçalo ao castigar o valentia que o desrespeitara, "sorriam para a velha Torre, escura e rígida, na doce claridade da tarde de Setembro, como saudando, depois do herói, o secular fundamento de seu heroísmo”.

Para esse crítico, “todo o romance se condensa nesta frase simbólica: para Gonçalo, confesso retrato-símbolo do país, a questão é, como para Hamlet no palácio pestilencial de Elsenor, a do resgate da comunidade: conto agir? como quebrar o circulo do mal e nele inserir uma ação justa e libertadora? Como salvar-se e, ao fazê-lo, salvar a Dinamarca inteira? A resposta parece ser uma só: pelo recurso aos fundamentos mesmos da nacionalidade, ou seja, reacordando as forças da uma nação prostrada, mas ainda capaz de grandeza e vida." (Colóquio-Letras, nº 14, julho de 1973)

O domínio que o autor exerce sobre o leitor é mais forte na versão do livro por causa do seu emprego maia vasto da narração e da descrição subjetivas, assim como da maior quantidade de diálogos dramáticos. Os ângulos ambíguos da narrativa e do diálogo unem mais o autor, o narrador, a personagem e o leitor na mesma projeção física e emocional. Muitas vezes o leitor não é capaz de dizer quem é que está a conduzir o fio da narrativa, ou quem está a falar em estilo indireto-livre, se é a personagem ou o narrador subjetivo. Essa ambigüidade do ângulo da narrativa e a mudança constante da narração objetiva para a subjetiva fazem parte da visão impressionista que Eça tinha da composição literária. Uma confusão ainda maior do foco narrativo é causada pelos múltiplos planos literários da ficção em A ilustre Casa da Ramires. A história principal (o romance realista-impressionista A Ilustre Casa de Ramires); a história inserida (a novela histórica romântica, ambientada na Idade Média, A Torre de D. Ramires, poemeto épico do tio Duarte, O Castelo de Santa lrinéia e o Fado dos Ramires, trovado pelo violeiro Videirinha; alternam no foco da narrativa e confundem ainda mais o leitor.

Foco narrativo / Tempo

Narrado em terceira pessoa, por narrador onisciente, que não se identifica na trama, o romance realista, ambientado na segunda metade do século XIX, tem a duração cronológica de cinco anos; do início da escritura da novela histórica, A Torre dos Ramires, em junho de, presumivelmente, 1696, até a conclusão da novela e quatro anos após, o regresso de Gonçalo de sua bem-sucedida aventura africana. Assim, o período em que o protagonista Gonçalo escreve a sua novela sobre o avoengo Tructesindo é o mesmo em que Eça escreve o romance realista, que tem como centro exatamente o Gonçalo, narrador de A Torre de Ramires. É o que se pode concluir do seguinte fato: Gonçalo, ao escrever a sua novela histórica, aclimatada no século XIII, tem como fonte um poemeto épico, O Castelo de Santa Irinéia, escrito pelo tio materno Duarte, em 1846. Gonçalo supõe que o poerneto do tio já tivesse sido esquecido, e que seria fácil transpor as formas fluídas do Romantismo de 1846 para a sua prosa máscula (como confessava o Pinheiro), de uma densidade de mármore (maneira lapidária de Salambô".

Ao apontar a dois períodos literários que seriam comparados (o Romantismo de Tio Duarte, ou de Herculano, Garrett e Rebelo da Silva, e o Realismo de Gustavo Flaubert, autor de Salambô, Eça situa claramente a história no seu tempo, cerca de cinqüenta anos depois de 1846, ou seja, em 1896. Quanto à idade do protagonista, quando Gonçalo inicia seu empreendimento literário, pode ser determinada a partir de informações que constam do flash back inicial: Gonçalo encontrou Pinheiro, no Rossio, no mês anterior ao do começo da história - em julho, e isto aconteceu um ano depois de Gonçalo ter se formado em Coimbra. O pai do fidalgo morrera quando ele cursava, com 22 anos, o 3º ano da faculdade. Assim, 22 anos + 2 anos até a formatura + 1 ano depois de formado = 25 anos, quando o romance começa.

Enredo

No primeiro capítulo, o fidalgo aparece trabalhando o seu projeto literário, na livraria do solar de Santa Irinéia, tendo vista para a inspiradora de sua novela, a antiquíssima Torre dos Ramires, que remontava ao século X.

Depois de determinar o tempo imediato e o lugar da história, Eça recua no tempo para narrar a origem e evoluçãoda nobre linha dos Mendes Ramires, a começar com o casamento de Ordonho Mendes, em 987, com Dona Elduara, filha de Bermudo, o Gotoso, rei de Leão. Isto é feito, primeiro imediatamente, por intermédio da voz narrativa do genealogista dos Ramires, em estilo indireto livre: Gonçalo Mandes Rentes (como confessava esse severo genealogista, o barão de S. Prudêncio) era, talvez, o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal.

Desde os tempos de D. Ordonho Mendes que a família Ramires se notabilizara pelos seus feitos heróicos: “E assim, em cada lance da história de Portugal se encontra um Mendes Ramires." O genealogista dá-nos, deste modo, a história dos Ramires, até o presente real. As intenções satíricasde Eça começam a transparecer através de um véu de semi-seriedade. Lourenço Ramires toma parte da batalha de Ourique e testemunha o aparecimento de Jesus Cristo;  Martim Ramires toma parte do cerco de Tavira; Egas Ramires recusa-se a deixar entrar Dona Leonor Teles na torre; Diogo Ramires mostra sua coragem em Aljubarrota; Fernão Ramiree e seu filho ganham fama em Alcácova; Baltazar Ramires deixa-se deliberadamente afundar com seu navio; Paulo RamiIres sacrifica-se em Alcácer-Quibir; Vicente Ramires ajuda na restauração de D. João IV na batalha contra o domínio espanhol.

O Ultimato Britânico de 1890, que exigia a retirada das forças portuguesas de uma de suas possessões africanas, que o governo humilhantemente acatou, e a virtual bancarrota que se seguiu ao duro abalo da ameaça inglesa acenderam os brios nacionais. Foi o que aconteceu também a Gonçalo: depois de ter chicoteado o valentão de suiças loiras, superando suas dúvidas e sua covardia, o fidalgo confessa: “Foi talvez que, depois da desordem, me senti remoçado, com um sangue novo, e me julguei no tempo em que desejávamos urna guerra em Portugal, e nós, cercados na torre, sob o nosso pendão, o nosso terço atirando bombardas aos espanhóis.

O passado imediato do pai de Gonçalo é narrado pela voz do narrador original, onisciente, que substitui o genealogista. O pai do protagonista é descrito como oscilando de partido em partido ora regenerador, ora histórico, vivendo constantemente endividado em Lisboa, até ser nomeado Governador Civil de Oliveira pelo Ministro, cuja amante ele costumava, respeitosameente, acompanhar a S. Carlos. Neste mesmo ano Gonçalo é reprovado no 3º ano de Coimbra. O fracasso do protagonista, na linha do tempo, é colocado em paralelo com as manobrar políticas do pai (semelhantes às que o filho protagonizará mais tarde). O narrador prepara o leitor para o modus operandi de Gonçalo.

O problema central de Gonçalo é a falta de dinheiro. Deve ainda seiscentos mil-réis do último ano da faculdade. O arrendamento de suas terras mal dá para manter o solar, com o Bento, velho criado, e Rosa, a cozinheira. Assim, a política pareceu o caminho mais fácil para a reabilitação econômica e social. Mas havia dois obstáculos: os históricos estavam no poder, e Gonçalo era do Partido Regenerador, e a cadeira de deputado, representante da sua circunscrição eleitoral, estava preenchida pelo velho e poderoso Sanches de Lucena, marido do D. Ana de Lucena, mulher formosa e mal-falada, vulgar, que, mais tarde, já viúva, será incorporada aos planos (frustrados) do fidalgo de arranjar-se economicamente.

Assim, a curto prazo, seus projetos políticos são inviáveis e resta a Gonçalo semear o seu nome através da glória literária, explorando o passado heróico dos ancestrais e associando as glórias dos Ramires à sua própria imagem. É o  que se chamaria hoje de um golpe de “marketing eleitoral".

Não lhe faltava alguma experiência literária. Nos tempos de estudante havia publicado uma novela histórica, Dona Guiomar, no semanário A Pátria, dirigido pelo amigo José Lúcio Castanheiro. Essa mosmo Castanheiro, patriota assumido, tinha agora um projeto mais ambicioso: a edição dos Annaes de Literatura e de História, visando à “ressurreição do sentimento português”. Num encontro casual com Gonçalo, em Lisboa, Castanheiro cobrou o antigo projeto do ex-colega de escrever uma novela histórica, A Torre dos Ramires, acerca de Tructesindo Ramires, um antepassado dos tempos dos primeiros reis de Portugal, os Borgonhas, dos séculos XII e XIII. Gonçalo compreendeu que era a ocasião de implementar o seu projeto, esperando capitalizar algum dividendo eleitoral e social.

Com esses propósitos, na sua livraria, cercado da bibliografia necessária, em sua cadeira de couro, contemplando o grande símbolo de sua estirpe, a torre, principia o seu trabalho de escritor. Tem como base um poema heróico, escrito cinqüenta anos antes, por Tio Duarte - O Castelo de Santa Irinéia, de escassa repercussão na época, e agora certamente desconhecido. Assim, a matéria histórica e mesmo sugestões literárias poderiam ser livremente manipuladas, sem o risco de acusação de plágio. Urgia apenas refazer a linguagem heróica, enfática e romântica dos versos de Tio Duarte, colocando­os em prosa, ao gosto de sua época, o Realismo, e adaptar algumas situações, a principiar dos primeiros versos.

A partir da Restauração, em 1640, inicia-se a narração do declínio da linhagem histórica: Já, porém, como a nação, a raça forte enfraquece. Aqui Eça estabelece um contraste deliberado com o passado glorioso e o elemento humorístico toma-se predominate, à medida que o plano histérico e o contemporâneo convergem para mostrar a degenerescência da nação e da nobre linhagem. Álvaro Ramires, favorito de D. Pedro II, foge para Sevilha com a mulher de um inspetor de finanças que mandara açoitar até a morte, por escravos. E, nesta veia irônica e humorista, continua a enumerar a deterioração de cada menbro da família Ramires, até chegar ao avó de Gonçalo, Damião Ramires, doutor liberal, dado às musas, que desembarca com D. Pedro no Mindelo; compõe as empoladas proclamações do partido, funda um jornal, o Antifrade, e depois das guerras civis arrasta uma existência reumática em Santa Irinéia, embrulhado no seu capotão de briche, traduzindo para o vernáculo, com um léxicon e um pacote de simonte, as obras de Valério Flaco.

Mas as obrigações de proprietário rural desviam as atenções do fidalgo para o cotidiano. Manuel Relho, arrendatário da quinta, por oitocentos mil­réis, numa de suas bebedeiras habituais, começou a atirar pedras contra o solar de Gonçalo, atingindo a livraria. Acovardado, tranca-se no quarto, defendendo a porta com uma cômoda arrastada às pressas. No dia seguinte, vai ao regedor dar queixa do arrendatário, e obtém justa causa para despedi-lo, com a família. Um outro lavrador, José Casco, interessou-se pelo arrendamento e, após algumas negociações, aceita pagar novecentos e cinqüenta mil-réis ao fidalgo. Um aperto de mão sela o compromisso entre ambos, era o que bastava nos antigos códigos de honra.

Retoma a escritura das primeiras linhas da novela A Torre dos Ramires, mas encalacra logo no inicio. Adormece, entediado.

No capitulo segundo o fidalgo recebe a visita do Titó (Antônio Vilalobos), amigo velho, admirado por sua franqueza, pela força física, pela independência, e por una especialização no estudo das bastardias e crimes das famílias nobres de Portugal. Vinha convidar o Ramires para um jantar, no Gago, em companhia de dois outros amigos, o violeiro Videirinha e o João Gouveia. Gonçalo aceita o convite, e dispensa o caldo de galinha que Rosa preparava num rasgo de generosidade, manda levar a canja a uma viúva pobre, a Críspola, adoentada e cheia de filhos. Manda também dar algum dinheiro à viúva, além das suas recomendações. A atitude do fidalgo oscila entre a generosidade, o paternalismo e o populismo eleitoreiro que já se insinua. Atitude idêntica toma, por ocasião de sua visita ao deputado Sanches de Lucena, ao ceder sua montaria ao camponês Manuel Solha, que mal podia andar, ajudando o pobre a subir na sua égua, ainda que tivesse de sujar as luvas impecáveis para erguer o camponês. Sanches de Lucena ironizou Gonçalo a conduzir o trabalhador, comparando o fidalgo ao Bom Samaritano, da tradição bíblica.

André Cavaleiro, que funciona corno antagonista de Gonçalo, é apresentado ao leitor no fiash back expositivo de narrador onisciente, quando ele se detém no quinto ano do protagonista em Coimbra. Inimigo de André, que acabara de ser nomeado Governador Civil de Olveira, o narrador só mais tarde revelará as razões da inimizade do fidalgo. Alude, inicialmente, aos dois artigos ofensivos ao novo Governador Civil, que Gonçalo escrevera na Gazeta do Povo, sob o pseudônimo de Juvenal. Simbolizado pelos bigodes, André Cavaleiro seria atirado abaixo de seu cavalo, diz Gonçalo, fazendo um trocadilho óbvio. Só mais tarde, depois do jantar na estalagem do Gago, é que, através do discurso indireto livre o leitor fica sabendo da razão real do ódio que o fidalgo devotava a André Cavaleiro. Nos tempos de estudante, o agora Governador Civil cortejara Gracinha, irmã de Gonçalo, e freqüentara o solar dos Ramires, estimulado pela tolerância de Miss Rodhes, a governanta inglesa, e do próprio pai. Mas, sem explicação, ao entrar na política, abandonou a Irmã de Gonçalo. Graça acabou se consolando; casou-se com um ricaço apaixonado por ela, o ingênuo José Barrolo, apelidado o Bacoco (= tolo, ignorante, presunçoso), que desconhecia o antigo namoro, não de todo debelado. A proximidade de André, tido como mulherengo, era um perigo que Gonçalo temia, e que se tomou iminente, quando o Governador Civil começou a pavonear-se em frente à Casa dos Cunhaes, palacete em que viviam José Barrolo e Graça; daí o artigo de Gonçalo contra André, com o título apelativo de Monstruoso Atentado.

Vários motivos prenderam o fidalgo em Oliveira: o aniversário da irmã e a escritura de arrendamento da quinta a um outro pretendente, Manuel Pereira, ao preço acertado de um mil e cinqüenta réis, ou um conto e cinqüenta, como se dizia então. O fidalgo rompia, dessa forma, o acordo anterior com José Casco, apalavrado e formalizado com um aperto de mão. Mas as necessidades financeiras do fidalgo eram, momentaneamente, mais fortes que os resíduos de  sua fidalguia.

A essa altura, Gonçalo havia concluído o capitulo segundo da novela histórica A Torre dos Ramires. A escritura da novela e seu desenrolar são entremeados ao dia-a-dia do fidalgo, funcionando como uma espécie de contraponto heróico às contingências tão mesquinhas de seu narrador. No século XIII, Tructesindo, protagonista da novela histórica, assume os riscos de se opor ao novo rei de Portugal, D. Afonso II, por um juramento que fez ao seu pai, D. Sancho, de que seria o protetor de sua filha, D. Sancha. Vai à guerra em desvantagem, pela palavra empenhada. No século XIX, Gonçalo muda de partido, do Regenerador para o Histórico por simples oportunismo eleitoral (como também o fizera seu pai); rompe o compromisso assumido com José Casco, por alguma vantagem financeira, e acovarda-se diante das ameaças dos camponeses. O narrador onisciente diverte-se com o jogo de oposições passado x presente e com o emaranhado de ações e personagens.

Somando-se o romance à novela contabilizam-se noventa e quatro personagem atuantes, que são vistas” em ação; cento e cinqüenta personagens referidas, em diversas circunstância, pelas personagens atuantes; além de trinta e quatro mencionadas na árvore genealógica dos Ramires e da monarquia lusitana, sob a Dinastia de Borgonha (reis, heróis, guerreiros etc.).

José Casco dos Bravaes, enfurecido com a falta de palavra de Gonçalo quanto ao arrendamento das terras, põe o fidalgo a correr, com ameaças. Escoltado por empregados, vai a Vila Clara dar queixa do camponês. Aí as coisas começam a mudar de direção: em Vila Clara, o administrador e amigo, João Gouveia, dá noticia de Sanches de Lucena, o deputado da região: estava morto. Com isso, ficava aberta uma cadeira na Assembléia e ficava disponível a viúva. D. Ana, mulher bonita, rica e vulgar. Superando dois obstáculos: o fato de pertencer à oposição e ter de mudar de partido e, o mais grave, ter de se reconciliar com o inimigo, André Cavaleiro, de quem dependia a indicação partidária, Gonçalo, por sugestão de Gouveia, vale-se do episódio de José Casco para se reaproximar do Governador Civil, dando a ele queixa do camponês.

A reaproximação se concretizou, mesmo pondo em risco a honrada irmã do fidalgo, que ficaria exposta ao assédio de André Cavaleiro. O narrador onisciente, através do discurso indireto livre, reproduz o drama de consciência de Gonçalo, entre a ambição política e a honra familiar. Prevaleceu a ambição e, racionalizando cinicamente, o fidalgo supõe que Graça, volúvel e fútil como toda a mulher queirosiana, saberia defender sua própria honra.

Obtém a nomeação; marca um jantar de confratemização com André no palacete de Barrolo e Graça; participa aos amigos a candidatura; retoma sua novela histórica; ampara a mulher e o filho de José Casco (preso por ordem de André e solto, mais tarde, por pedido de Gonçalo); inicia a campanha política e, auxiliado pela “prima” Maria Mendonça, começa a se aproximar da víúva, D. Ana de Lucena e dos duzentos contos de sua herança, que falavam mais forte que as conhecidas origens da pretendida: filha de um açougueiro e irmã de um criminoso. Tudo parece correr bem para o fidalgo, apesar de alguns contratempos: Gonçalo recebe uma carta anônima insinuando que ele facilitara a aproximação de André e Graça e, numa vendinha de beira de estrada, foi Insultado por um valentão e fugiu, rapidinho, sem reagir: era o Ernesto de Nacejas.

A novela histórica prosperava, já que o José Lúcio Castanheiro, diretor dos Annaes de Literatura e de História, começava a pressionar o fidalgo quanto aos prazos para a publicação de A Torre dos Ramires. Concluído o terceiro capitulo, Gonçalo vai a Oliveira mostrar sua obra literária à irmã e ao Padre Soeiro, espécie de arquivista dos feitos dos Ramires do presente e do passado. De saída para Oliveira, recebe o apoio político do Visconde de Rio-Manso.

Na seqüência, deu-se o previsível. Chegando ao palacete não encontra o cunhado, mas, passeando pelo jardim, surpreende, sem ser visto, um diálogo amoroso (um pouco mais que isso) entre André Cavaleiro e Graça. Volta para Santa Irinéia arrasado, amargando a má consciência de ter facilitado o adultério, e um ódio difuso de todos: Graça, André, Barrolo e de si mesmo. Na verdade, o que temia era a repercussão do escândalo na sua campanha política.

Vive, a seguir, uma fase de profunda depressão. Sem dinheiro, com dívidas vencidas, ausentes os amigos de sempre (Videirinha, Titó e Gouvela), entrega-se ao capitulo final da novela e à projetada união com Dona Ana de Lucena,  com a diligente intermediação da onipresente “prima" Maria Mendonça. Após várias manobras de aproximação, o fidalgo desiste da viúva, quando Titó revela que D. Ana Lucena tinha a um amante (presumivelmente ele mesmo, Titó), além de lazer objeções à conduta da viúva Lucena.

Gonçalo passa a noite a remoer seus insucessos, sente-se medroso, dependente, fraco e exala “um suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem socorro". Adormece sonhando com os antigos Ramires. Escuta dos avoengos exortações como — “Neto, doce neto, toma minha lança nunca partida!..." — “oh neto, toma as nossas armas e vence a sorte inimiga..." Mas Gonçalo, mergulhado nos seus fracassos, responde: — “Oh avós, de que me servem as vossas armas — se me falta a vossa alma?..."

Estamos já no décimo capitulo, no qual se opera uma mudança no rumo dos acontecimentos. Aqui começa a redenção de Gonçalo e dos valores que simboliza. A descoberta, pelo velho criado Bento, de um antiqüíssimo Chicote, com o castão de prata, perdido no sótão do solar, e que o fidalgo instituiu como seu chicote de guerra, antecipa a retomada das virtudes viris da família. Após o pesadelo com os antepassados, após suas exortações, Gonçalo acordou excepcionalmente implicante. Começou por libertar-se da tutela que Bento vinha exercendo, sorrateiramente, sobre sua vida, tratando o criado com rispidez. Armou-se do chicote de cavalo-marinho e saiu pela estrada, montado na sua égua. Pretendia visitar o Visconde de Rio-Manso, na quinta da Varandinha. Ao interpelar um rapaz, pedindo a indicação do melhor caminho para a Varandinha, Gonçalo topou pela terceira vez com o valentão que o injuriou novamente: — “oh Manuel, que estás tu aí a ensinar o caminho, homem! Este caminho aqui não é para os asnos!” O fidalgo reagiu e o valentão, Emesto de Nacejas, saiu-se com outro insulto: — "...E para diante é que vocêjá não passa, seu Ramires de Merd..."

E começou a redenção: o fidalgo investiu furioso sobre o valentão, a golpes de chicotadas, prostrando-o no chão, quase morto. Arremeteu-se aos berros contra o rapaz, que, em defesa do valentão, atirara de espingarda contra Gonçalo, errando o alvo. O chicote arrancou sangue do pescoço do Jovem Manuel, que caiu inerte, dando com a cabeça num pilar. O pai do rapaz quis interferir para salvar o filho, mas Gonçalo dominou-o e fê-lo correr diante de sua montaria, apesar das súplicas do velho. Sentia-se um verdadeiro Ramires, enfim, era um homem! A noticia da valentia do fidalgo propagou­se rapidamente.

A redenção da honra familiar dá-se na seqüência: Barrolo recebera uma carta anônima. insinuando irônica e maldosamente a relação entre Gracinha e André Cavaleiro, e fora mostrá-la ao fidalgo. Gonçalo guardou a carta e tranqüilizou o cunhado, atribuindo a denúncia às Lousadas, conhecidas maledicentes. Barrolo acatou a idéia de Gonçalo e desconsiderou as insinuações. O fidalgo, em seguida, exibe a carta à irmã e exige dela que ponha fim à relação com André. Obtém mais uma vitória, agora no front interno, na trincheira familiar.

Os jornais da capital noticiaram o feito de Gonçalo, Videirinha compôs mais duas trovas do seu Fado dos Ramires, alusivas à bravura do amigo: 

“Os Ramires doutras eras

venciam com grandes lanças,

este vence com um chicote, 

vede que estranhas mudanças!

É que os Ramires famosos,

da passada geração,

tinham a força nas armas

e este a tem no coração!”

Em meio a cartas de felicitações e homenagens, Gonçalo concluiu sua novela. A campanha eleitoral ia de vento em popa. O rei, por sugestão de André, outorga a Gonçalo o título de Marquês de Treixedo. Títulos de nobreza não faltavam a Gonçalo, fina-flor da nobiliarquia portuguesa. A comenda não o comoveu.

A eleição de Gonçalo deu-se por esmagadora maioria. Finalmente, era deputado. O sucesso literário não foi menos retumbante: a novela A Torre dos Ramires, publicada no primeiro número dos Annaes de Literatura e de História, foi um êxito completo, de critica e de público.

Em janeiro, por ocasião do início do ano legislativo, o fidalgo instala-se como deputado em Lisboa. Freqüenta com desenvoltura a alta roda, e torna-se conhecido na capital.

Mas eis que surge nova reviravolta. Quatro meses depois de instalado em Lisboa, Gonçalo consegue uma concessão de terra em Macheque, na Zambézia, possessão portuguesa na África. Hipoteca suas terras para obter capital e, em junho, acompanhado por Bento, parte para sua aventura africana, embarcado no paquete sugestivamente chamado Portugal. Já no segundo capítulo Gonçalo tivera um sonho em que se viu sobre as selvas profundas de África, debaixo de coqueiros sussurrantes..." No quarto capítulo confessara à sua irmã que andava com a idéia de ir para a África, romântica e ingênua idéia que extraiu da leitura do romance As Minas do Rei Salomão (do qual Eça fizera uma ‘tradução’ para a língua portuguesa).

Quatro anos depois, tendo plantado dois mil coqueiros, muito cacau e muita borracha, Gonçalo regressa a Portugal já abastado, a saúde revigorada e o moral retemperado. O último capitulo ocupa-se dos preparativos para o seu regresso triunfal à Santa Irinéa. Em carta à Graça, Maria Mendonça, a "prima" que se avistara como fidalgo em Lisboa, informa de seu estado de saúde e de espírito, e antecipa a notícia de seu casamento, em breve, com a Rosa, a neta do Visconde do Rio-Manso.

O livro termina com o paralelo entre Gonçalo e Portugal, transcrito e comentado no segundo parágrafo desta análise.

A novela histórica A Torre dos Ramires

Inserido na história principal, a novela escrita por Gonçalo sobre seus antepassados do século XII, sobre Tructesindo Mendes Ramires, pode ser lida em três planos:

1. No plano histórico, focaliza o estabelecimento do território português a consolidação da autoridade real durante o período do século XII. São referidas as figura históricas de D. Afonso Henriques, D. Tereza, D. Sancho I, D. Afonso II e os Infantes. As disputas incluem não só as discórdia entre a família afonsina, mas também a rivalidade entre a nobreza e o clero. A lealdade ao rei é disputada pelas Infantas, que são apoiadas pelas classes superiores do clero, incluindo o Papa. A questão da luta pelo poder - o rei, os nobres e o clero - passa também pela disputa dos direitos de propriedade, dentro da ordem feudal.

A questão da vassalagem e da lealdade, fundamental na Idade Média, a desencadeadora da novela. Tructesindo Mendes Ramires havia jurado lealdade a D. Sancho I, comprometendo-se a servir e proteger a sua filha D. Sancha. Morto o rei, assume o trono o primogênito, Afonso II, que entra em desavença com os irmãos sobre o testamento. Os infantes D. Pedro e D. Fernando, esbulhados, andavam pela França e pelo Reino de Leão. D. Sancha, através do Alcaide de Aveiras (disfarçado em beduíno), pede o auxílio de Tructesindo. Eis o nó da questão: a quem se deve primeiro lealdade? Ao novo rei, D. Afonso II? A D. Sancho I e ao juramento anterior? Ao Papa o aos chefes da Igreja? Para Tructesindo a lealdade ao juramento transforma-se numa questão de honra, mesmo contra o novo rei, contra os conselhos do genro, Mendo Paes e contra os interesses mais imediatos.

"De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e comigo!" sentencia Tructesindo.

O sistema medieval de resolver as disputas era a guerra, e o protagonista da novela despacha seu filho Lourenço, com quinze cavaleiros e noventa homens de infantaria, para socorrer as infantas D. Sancha e D. Teresa. Em todos os passos da ação de Tructesindo, Lourenço e do antagonista, Lopo de Baião, se fazem presentes os códigos da cavalaria medieval, que admitia armadilhas, espionagem, ataques imprevistos e até a morte infamante, por vingança.

2. No plano humano, estão presentes os temas relacionados à grandeza e virilidade dos bárbaros cristianizados do século XII, especialmente o da vingança. A fortaleza de Tructesindo, na vingança da morte do filho o no cumprimento da palavra, a coragem diante da morto, o orgulho acima do amor, a superação de medo são temas que se entrelaçam na exaltação das virtudes do pai e do filho.

A autoridade de Tructesindo sobre sua família e seus vassalos é incontrastável: ele decide o destino de Lourenço e da filha Violante sem qualquer contestação.

3. No plano literário, que se sobrepõe a qualquer outro na novela inserida, Gonçalo comenta freqüentemente a sua narrativa e as suas personagem, na tentativa de fazer reviver a ficção histórica à maneira realista de Gustavo Flaubert, emSalambô. Seu objetivo é evocar os tempos medievais de maneira lapidar e não no tom melancólico e brando dos românticos. Para isso ele desenha suas personagens de acordo com o rígido código guerreiro, numa linguagem que lembra esses tempos rudes e primitivos. À medida que sua própria história progride, Gonçalo comenta seu estilo, pondo-o em contraste os seus métodos e técnicas com os do poema de Tio Duarte. O tema da oposição entre a ficção histórica romântica e a ficção histórica realista revela, na insistência com que é projetado, o gosto de Eça pela narrativa fantasista, na forma e nos moldes em que, como autor realista, admitia e admirava: “um manto diáfano de fantasia”.

Os elementos simbólicos harmonizam-se com os propósitos do romance e da novela. A torre é o principal símbolo de ligação entre Gonçalo e Tructesindo, no tempo e no espaço. Representando Portugal - passado, presente e futuro - através de Gonçalo e de seus antepassados que nela viveram, a torre é a figura dominante do passado coletivo de Portugal, assim como de seu futuro não realizado.

O brasão dos Ramires, o escudo de Tructesindo e a sua espada, herdada dos antepassados godos, sugerem a imagem de força e violência, das qualidades sublimes e bárbaras do mundo feudal do século XII, em contraste com o mundo de Gonçalo: Portugal do século XIX.

No capítulo cinco do romance, Gonçalo insere a batalha do Canta-Pedra, primeiro cometimento heróico da novela. Lourenço, mandado pelo pai em socorro às infantas, é interceptado pela forças do Lopo de Baião, o bastardo, que se aliara ao rei. Lopo havia sido recusado por Tructesindo corno pretendente à mão de D. Violante, filha mais nova do cavaleiro de Santa Irinéia. Havia entre ambos também uma questão familiar. Lourenço foi capturado e conduzido prisioneiro por Lopo de Baião, que pretendia trocar a liberdade e a vida do filho de Tructesindo pela mão da filha: D. Violanle. O filho, antes do pai, recusa a proposta. Lopo ameaça matar Lourenço com o punhal e Tructesindo atira sua espada no bastardo para que seu filho não fosse morto pelo vil punhal de Baião, mas pela sua nobre espada. O Bastardo se enfurece e enterra o punhal na garganta de Lourenço, abandona o corpo do morto e foge. Tructesindo vocifera seu juramento de vingança: — Muros de Santa Irinéia, não vos torne eu a ver, se em três dias, de sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de Baião!

Na perseguição do Bastardo, Tructesindo conta com um estrategista, D. Garcia de Viegas, que, prevendo os passos do inimigo, planeja sua captura. D. Pedro de Castro, também aliado, acolhe os cavaleiros de Santa Irinéia e oferece reforços a Tructesindo.

Surpreendidos, os cavaleIros de Lopo de Baião são massacrados e o Bastardo é feito prisioneiro e condenado à morte vil. 

Desnudado, amarrado a um poste, com o corpo imerso na água até a virilha, as sanguessugas começam a cobrir o corpo do condenado. Tructesindo saboreia, impávido, sua vingança, vendo o suplício do assassino de seu filho. Morto, depois de lenta agonia, Baião é apedrejado pelos cavaleiros de Santa Irinéia e tem seu rosto recoberto de estrume. Estava concluída a vingança e a novela, com a vitória do protagonista, nas armas, e de seu descendente, o narrador, nas letras.


Fonte:

terça-feira, 24 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Ceará

Bartolomeu Campos Queirós (Onde tem bruxa tem fada...)


Ela foi para o azul.

Fez nuvem com seu vestido, colou sua estrela perto das que lá brilhavam.

Seu chapéu, ela deu de presente para menino que por ali passeava... (só em sonho) E virou idéia.

Isso faz tantos anos!...

Um dia, Maria do Céu cansou de ser idéia.

Com as nuvens, costurou um vestido.

Pediu emprestados os sapatos de um anjo.

Arrancou sua estrela e colou na ponta de um pedaço de raio de Sol.

Com retalhos de papel de seda - resto de papagaio solto de linha - construiu seu chapéu.

E Maria, idéia no céu, virou fada!

Isso faz poucos dias...

Maria do Céu escorregou pelo brilho da Lua até a Terra.

Era um momento em que todos dormiam - até as ruas.

Ninguém, nem mesmo as folhas ou os ventos, viu a fada chegar.

Pela manhã, Maria do Céu acordou com o Sol. Saiu só e cedo para saber em que cidade estava. Percorreu ruas e praças entre o povo.

Maria confundia a todos.

Uns diziam:

é bailarina
é artista de circo que anda em arame
é moça de novela
é visita de outras terras.

Outros teimavam que ela era resto de Carnaval garota-propaganda cigana que tira a sorte.

"O mundo mudou", pensou Maria, idéia vinda do céu. "Nem mesmo os meninos conhecem as fadas e seus poderes."

Maria do Céu, agora fada sem trabalho na Terra, passeando pelas calçadas, pensava em coisas simples de fazer:

sorvete de sonho
algodão-doce de nuvem
sapo virar príncipe
vestido com finos fios de ouro e prata
carruagem de abóbora
bicicleta para passeios aéreos
jardins com flores e falas.

Mas Maria do Céu, que tudo podia, nada fazia. É que as fadas só realizam encantamentos quando pedimos. E ninguém pedia coisa alguma...

Maria era uma fada que olhava e gostava de saber das coisas. Assim, escutando, ela descobriu que outros mágicos tinham invadido a Terra e faziam coisas incríveis:

bicicleta com trote de cavalo
chicletes com vitaminas do super-homem
refrigerantes com sabor de vitória
televisão com poeira de guerra
petróleo com gosto de sangue
míssil mais feroz que a ambição.

Eles diziam onde as pessoas deveriam guardar seu dinheiro. Então o dinheiro crescia, crescia, crescia e ficava tão forte que os homens podiam comprar tudo: casa, carro, viagem, roupa, voto, poder, glória "sem entrada e sem mais nada".

A fada do céu sentiu que não tinha tamanhos poderes. Seus encantamentos só eram coisas de alegrar coração...

Maria, fada na Terra, adormeceu pensando em retornar ao azul e ser novamente idéia. Ela estava segura de que na Terra não havia mais lugar para fada especializada em produzir alegrias.

Os mágicos - prometendo o céu na Terra - davam tantas tarefas aos homens que eles não tinham tempo para saber que faltava tempo para a alegria nascer.

Maria do Céu, triste como o poente, amanheceu pronta para partir no último raio de Sol, ao entardecer.

Mas justo nesse dia ela encontrou um amigo. Menino que lhe pediu para aprender a ler e escrever sem ir à escola. Coisa muito fácil para uma fada vinda do azul.

Com um gesto breve e leve, Maria encostou uma ponta da estrela na cabeça do menino.

A alegria do menino foi tão grande que aprendeu ainda geografia, história, astronomia e política.

Maria do Céu não partiu no pôr-da-noite. "Ficarei mais um dia", pensou ela, "para usar mais a minha vara de condão."

Acordou pela manhã, feliz como aluno em recreio, e saiu só, sem rumo, rua adiante. E ao primeiro menino ofereceu os seus poderes.

- Não - disse o menino. - Quero aprender a ler e a escrever na escola. Ontem - continuou ele - um colega aprendeu sozinho e foi levado pelos doutores para tratamento em hospital. Eles disseram que ele sabia mais do que devia. Não sei o que farão com ele! Talvez tome injeção de esquecimento. Com isso, eu fiquei com medo de saber.

O coração da fada disparou e só à noite conseguiu organizar esta idéia:

- Menino só pode saber das coisas que já foram testadas pelos adultos. Na Terra não se pode aprender nada pelo coração. Ah!, os mágicos! - exclamou Maria.

Maria não gostou de seu pensamento. Ela tinha certeza de que todos podemos saber muitas coisas só olhando o mundo. E menino aprende muito mais. Menino tem olhos novos e coração descansado.

Naquela noite, o silêncio não deixou Maria dormir. Com o pensamento livre, ela pensou o mundo secretamente. Pensou e viu que só se pode ser fada na Terra. Ser idéia no céu não adianta nada. É como ser homem sem corpo na Terra.

O silêncio de Maria pensou ainda sobre os mágicos que moravam na Terra. Eles só fabricavam magias convenientes para eles. E, para facilitar a produção, eles enchiam o coração dos meninos de esperanças. Quando uma esperança começava a morrer, eles fabricavam uma nova.

A esperança passou a ser uma certa doçura que sossegava a todos.

Assim, Maria do Céu resolveu morar na Terra e se fazer fada definitivamente.

Maria, sabendo agora das manhas dos mágicos, tinha no rosto um riso quase de raiva.

Desceu para a praça, lugar onde o povo parava para pensar a esperança, vendo nas vitrines desejos de todas as cores, reuniu em roda os meninos e disse:

- Sou fada. Vivi antigamente na Terra, fazendo virar verdade todos os sonhos dos homens. Teci cobertores com cantos de passarinho, para menino dormir um sono de floresta. Construí cidade de doce. Eram ruas cobertas de chocolates e casa de amor-em-pedaços. Dos chuveiros caíam fios-de-ovos ou eram cheias de mel as piscinas. Viajei com amigos para o fundo do mar, escutando canto de sereias ou montando em cavalo-marinho. Dei poderes aos sapateiros para costurarem botas-de-sete-léguas para menino correr o mundo. Casei príncipes e princesas em casas de anões ou em palácios reais. Um dia, saí da Terra para um repouso. Hoje voltei e posso atender a qualquer pedido. Peçam!

Mas menino algum abriu a boca.

Eles estavam misturados - assustados e encantados com os poderes da fada Maria do Céu.

De repente, um gritou:

- Quanto custa, quanto?

- Nada - respondeu a fada.

- De graça? - perguntou outro.

- Sim, falou a fada. - Eu trabalho pelo prazer de trabalhar. Enquanto trabalho e vocês ficam contentes vou aumentando a minha alegria. Alegria ninguém seqüestra. Eu durmo tranqüila e sem guarda para vigiar a minha casa. Alegria só aumenta e nem precisa depositar. Ela rende juros no coração.

Os meninos estavam gostando da fada, mas não sabiam o que pedir. Viviam tão acostumados a ter só esperança que a idéia de ter uma coisa de verdade fazia o coração ficar aflito.

Mas a fada não desanimava. Ela sabia que menino tem tanto desejo adormecido!

E continuava:

- Peçam viagens ao centro das sementes para ver a árvore antes de nascer. Peçam ruas cobertas de música para o caminho ser canção. Ou, quem sabe, livros com folhas brancas para os olhos inventarem as histórias! Peçam passarinho ensinado que dorme na palma da mão... Peçam luz de luar com gosto de suspiro para que se tenha sonho doce...

Enquanto falava, a fada lia paisagens nos olhos dos meninos.

De repente, uma voz de menina murmurou com medo:

- Eu quero uma cama para dormir. Sem cama não posso pedir sonhos.

Os meninos calaram...

A fada, assustada, olhou no coração da menina e viu a esperança balançando.

Com gesto preciso, fez surgir, no centro da praça, uma cama de madeira polida e mais um colchão de algodão macio.

- É sua - disse a fada.

A menina, olhando de longe e com medo daquela verdade, respondeu:

- Não quero mais. Não tenho casa para guardar a cama.

A fada, sem vacilar, continuou seu trabalho, fazendo nascer, no meio da praça, uma casa, com janelas para os quatro cantos do mundo! E, dentro da casa, a cama.

A alegria engoliu os meninos, que dançavam roda em volta da casa, olhavam pelas janelas, subiam no telhado, fingiam sono sobre a cama.

"A alegria é também uma maneira de menino organizar o coração", pensou a fada.

No meio da brincadeira que os meninos viviam, na praça, foram aparecendo magicamente o banqueiro o industrial o economista o arquiteto o deputado o professor o padre o delegado.

Sem reparar na alegria dos meninos, o prefeito discursou:

- Senhores, a praça foi feita para o povo pensar a esperança. Não posso deixar esta casa plantada no meio dela. Como representante legítimo do povo, mandarei destruí-la.

O banqueiro perguntou ao industrial:

- Como a casa foi construída, se ninguém me pediu dinheiro emprestado?

O industrial respondeu:

- Seu material de construção não foi comprado na minha indústria. É contrabando.

O economista disse:

- Não fui consultado sobre os preços da construção.

O político discursou:

- Minha gente, eu não usei minhas Medidas Provisórias.

O arquiteto contou que não recebeu nenhuma encomenda do projeto e o professor lamentou a falta de cultura do povo.

O padre apenas rezou:

- Santo Deus!

E o delegado, que tudo ouviu, apenas ordenou aos soldados:

- Prendam imediatamente a pessoa que desobedeceu à lei.

O grito do delegado fez a tristeza visitar a cara dos meninos. Então Maria, fada presa na Terra, falou com os olhos um segredo no pensamento de cada um deles.

Eles entenderam tão bem que o sorriso tomou conta do corpo inteiro deles, menos do ódio dos soldados. Mas a fada olhou para todos, na praça, de maneira tão desarmada que desarmou até os guardas.

Ela partiu rua acima, carregando um coração muito livre mais um policial de cada lado.

Maria, deixada numa cela com janela quadriculada, passou em revista o mundo. Um pensamento quadrado entrou pelas grades:

"O mundo pertence agora aos mágicos e só eles pensam poder modificá-lo."

A fada compreendeu por que era importante, para os mágicos, os meninos terem esperança. A esperança é uma coisa que sempre espera e nada faz.

Enquanto Maria pensava, os meninos dormiam e sonhavam verdades que só eles e a fada podem sonhar. Nem o barulho das máquinas derrubando a casa da praça incomodava o sono.

No outro dia, os meninos acordaram mais donos do segredo. Saíram cedo para os seus deveres, evitando passar pela praça. Não era mais preciso pensar a esperança nem ver a casa destruída.

Maria foi levada para a sala de interrogatório. Assentou-se diante do delegado e ouviu a seguinte sentença:

- Fada não é nome nem sobrenome. Entrou na cidade sem passaporte, sem carteira de identidade, sem carteira profissional, sem título de eleitor, sem cartão de crédito e CPF. Não tem endereço de residência nem CEP e diz ter como profissão realizar desejos. Não é filiada a nenhum sindicato e ensinou menino a ler e escrever sem técnica de professor. Construiu casa sem empréstimo, avalista e projeto, em lugar proibido. Falou mal da esperança. Contou segredo no coração dos meninos. Sorriu no momento da prisão, desrespeitando as autoridades. Com certeza não foi informada de que vivemos em uma democracia. Por tudo, Maria do Céu é culpada e permanecerá presa até que se prove o contrário.

A fada não entendeu nada. Era a primeira vez que escutava um adulto. Apenas pensou: "São mágicos e ainda falam uma outra língua".

Maria, idéia condenada, usou, naquela noite, os seus poderes de fada. Virou vagalume. Passou pelas grades e sobrevoou a cidade. Visitou cada menino e entrou em seu sonho. Viu que todos sonhavam com cidades onde a fantasia era possível e necessária. Cidades onde as fadas moravam sem causar medo. Lugares onde a esperança não durava mais que meio-dia. Cidades sem mágicos e magias, mas cheias de encantamentos.

O sonho dos meninos alegrou a fada-madrinha, que naquela madrugada partiu para outra parte do mundo. Se exilou, talvez, em outras terras.

O certo é que Maria do Céu passou pela Terra em forma de fada e vestida de anjo, mas só alguns viram. Passou breve, deixando com os meninos uma idéia que trouxe do azul. Chegou como um arco-íris, sem aviso.

Desde a manhã do dia seguinte até hoje, todos da cidade procuram a fada. Alguns acreditam que ela trocou de nome, vestiu-se com outros panos e vive na cidade. Outros afirmam que ela virou professora e ensina às crianças como se defender dos mágicos.

Mas as crianças, que sabem do segredo, reparam na procura dos adultos e sorriem. Quando alguém, impaciente e ameaçado com o desaparecimento da fada, pergunta a um menino qual é o segredo que ela soprou, ele responde:

- Amanhã eu falo. Amanhã eu falo.

Eu penso que Maria do Céu poderá voltar a qualquer momento, sem aviso, e que só os mais atentos a verão. Mas os meninos não confirmam a minha idéia.

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)

J. G. de Araújo Jorge (Montanhas de Friburgo)


I
Gosto destas montanhas verdes, revestidas
com o tapete felpudo das matas fechadas,
estampadas no roxo e amarelo, estampadas
de acácias e quaresmas, em buquês, floridas.

Gosto destas montanhas azuis, musicadas
pelas águas que rolam frias, esquecidas,
sussurrando cantigas infantis, perdidas
por entre os tinhorões e as sombras das ramadas.

Montanhas que parecem grandes ametistas
ou ondas gigantescas de um estranho oceano
espumantes e mais puro... e mais perto dos céus!

II
Diante destas montanhas, fiel, eu me prosterno,
sacerdote que sou da "Ordem da Natureza",
deslumbrado e submisso ante tanta beleza
na humildade do efêmero aos pés do que é eterno.

Diante delas me sinto insignificante e pequeno
como o córrego humilde a sangrar nas encostas
e a minha alma, impregnada de poeira e veneno
leve e pura se ajoelha, a rezar, de mãos postas.

São meu altar de fé, de amor, de sonho e paz,
modelando no espaço órgãos e castiçais
nos seus gestos de pedra e nas altas arestas

e sobre elas, o céu azul, descomunal,
é a cúpula sem fim de imensa catedral
onde Deus pontifica em luz e canta em festas!

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge."Canto à Friburgo", 1961.

Esopo (Fábula 2: A Gralha e os Pavões)


Era uma gralha muito orgulhosa e vaidosa que, como estava descontente com a vida, apanhou umas penas de pavão que tinham caído no chão. Espetou-as no meio das suas próprias penas e foi ter com os pavões. Mas em breve as penas começaram a cair, e os pavões atacaram-na com os seus bicos aguçados.

Muito triste, a gralha procurou as suas antigas companheiras, desejosa de tornar a viver com elas. Mas as outras gralhas, lembrando-se do modo como ela se comportara, ignoraram-na.

"Amiga", disseram-lhe, "podias ter ficado conosco e estar contente, mas preferiste trocar-nos por uma companhia mais brilhante. Nessa altura não precisaste de nós, agora somos nós que não precisamos de ti."

Moral da história

Nós roubamo-nos uns aos outros de muitas formas e por muitas razões, mas o orgulho e a ignorância só tornam as pessoas ridículas.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Brasília

Esopo (Fábula 1: O galo e a jóia)


Um galo novo, junto dumas galinhas, esgravetava o chão perto duma quinta, quando desenterrou um diamante. É claro que sabia o que aquilo era, porque brilhava á luz do sol. Olhou duvidoso para a bela pedra, pôs a cabeça á banda e disse:

"És mesmo bonita! Se aqui estivesse um joalheiro para te ver, ficaria muito feliz, mas para mim, não vales nada. Na verdade preferia um grão de cevada a todas as jóias deste mundo!"

Moral da história

Quem sabe o que realmente quer encontrará sempre satisfação. Sábio é aquele que prefere as coisas necessárias aos enfeites cintilantes, que só servem o orgulho e a vaidade.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

Esopo e suas Fábulas


Pensa-se que o presumível autor destas fábulas, Esopo, viveu entre 620 a.C. e 560 a.C., mas não há a certeza quanto ao local onde nasceu. Não se sabe se veio da Trácia, da Frígia, da Etiópia, de Samos, Atenas ou Sárdis, mas dizem antigos autores que ele era escravo de um cidadão chamado Idamon, em Samos, na atual Grécia.

Segundo Heródoto, que escreveu cerca de duzentos anos mais tarde, Esopo teve morte violenta, tendo sido lançado num precípicio pelo povo de Delfos. Desconhece-se contudo a ofensa que teria praticado. Um autor diz que foi o sarcasmo mordaz das fábulas, outro conta que ele se apropriou de dinheiros que o rei Creso, da Lídia, lhe confiara; diz ainda outra versão que Esopo roubou uma taça de prata.

Esopo foi indubitavelmente, libertado pelo seu senhor, Idamon, porque veio a viver na corte do rei Creso, onde conheceu o grande estadista e sábio ateniense Sólon. Pisístrato, governador de Atenas, era parente de Sólon, e Esopo visitou a sua corte, na qual conseguiu convencer os cidadãos a permitirem que o seu governador conservasse o trono. Fê-lo contando-lhe a fábula "As rãs que queriam ter um rei" (fábula 16), e tão grande era a eloquência de Esopo que Pisístrato conseguiu manter-se como ditador.

Alguns escritores negam a existência de Esopo, e a verdade é que possuímos poucos pormenores da sua vida e do seu trabalho. Até o seu aspecto físico é discutível. Segundo um monge de Constantinopla, Máximo Planudes, que escreveu no século XIV, Esopo era um anão feio e disforme, e é assim que a famosa estátua de mármore da Villa Albani, em Roma, o representa. Mas Plutarco, escrevendo cerca de mil e trezentos anos antes, não nos diz nada acerca do seu aspecto físico. Consta que os Atenienses erigiram uma magnífica estátua em honra de Esopo.

Atualmente considera-se que, embora Esopo tivesse existido, ele não foi o autor das famosas fábulas que lhe são atribuídas. Eram-lhe familiares, mas não escreveu nenhuma, limitando-se a contar as histórias aos outros.

Na Grécia as fábulas eram populares, como em todo o mundo antigo. Foram-no, certamente, centenas de anos antes do tempo de Esopo.

De fato veio a provar-se que muitas das fábulas são muito antigas. "O leão e o rato" (fábula 13), por exemplo, foi encontrada num antigo papiro egípcio com milhares de anos e a fábula "O rato do campo e o rato da cidade" (fábula 9) encontra-se nas Sátiras de Horácio.

Certos estudiosos crêem que todas as fábulas são de origem indiana, árabe ou persa e que Esopo se limitava a espalhar as fábulas que ouvira contar ou que conhecia há muito tempo. Nenhuma das fábulas foi descoberta em grego original e só passadas algumas centenas de anos foram compiladas. Demétrio de Falerno publicou um conjunto de fábulas nos finais do século IV a.C., que veio a perder-se.

Se houvéssemos de atribuir a autoria das fábulas a alguém, seria talvez a Bábrio, que viveu durante o século III d.C., na Síria, que então fazia parte do Império Romano. Bábrio escreveu em Grego, mas a sua obra só foi conhecida através de citações de outros escritores até 1842. Nesse ano descobriram-se num convento no monte Atos fragmentos de papiros contendo mais de duzentas fábulas, a maior parte das quais, certamente, da sua autoria. Mais tarde, descobriram-se outras seis num manuscrito existente no Vaticano.

Cerca de cem fábulas também foram escritas em latim por um escravo macedonico chamado Fedro, trazido para Roma no tempo de Augusto, o primeiro imperador romano. Ao chegar a Roma, Fedro foi libertado pelo imperador, mas não usou a sua liberdade com sabedoria. Numa fábula ridicularizou o grande soldado romano Sejano e foi condenado á prisão. Também cometeu erros nas suas narrativas. Por exemplo, na fábula "O cão e a sombra" (fábula 6), o original contava que o cão via o seu reflexo ao passar numa ponte; Fedro fê-lo ver o seu reflexo enquanto 'nadava na água.

Tanto Fedro como Bábrio inspiraram-se largamente nas histórias Jataka da literatura budista, originais da Índia durante o século IV a.C. ou mesmo antes. Estas e outras fábulas sânscritas tinham-se espalhado da Índia á China, ao Tibete, á Pérsia e à Arábia, tendo chegado á Grécia em tempos remotos e incertos.

Na Idade Média existiam três coletâneas das chamadas "Fábulas de Esopo"; uma compilada pelo monge Máximo Planudes no século XIV, outra publicada em Heidelberga em 1610 e um manuscrito descoberto em Florença, datando provavelmente do século XIII. A coletânea grega de Máximo Planudes foi publicada em Milão em 1840, com uma tradução latina de um estudioso italiano chamado Ranuzio.

Atualmente, as fábulas de Esopo podem ser lidas em mais de duzentas e cinquenta línguas.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

domingo, 22 de abril de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Bahia

Benedetto Caetani (Livro de Sonetos)


Benedetto Caetani, é o nome literário de Renato Sakate, de Botucatu/SP

O Cego Oriente

Distante paisagem, meu cego oriente
procuro teu ar nos cortantes lábios,
vendo meu soldo a favor de teus gládios
e busco meu abrigo ao sabor do vento.

Tira-me deste inconseqüente páreo,
tira-me deste previsto acidente!
Luto contra a rendição decadente
e a indução que enche meu cálice diário.

Mas perduro entre as grades deste templo
nas dores inúteis de meu salário,
nas obras miseráveis que sustento

para fugir deste parco cenário
onde reina o servo-mor do dinheiro,
onde vem do amor um mal necessário.

O Bem, o Mal e o Impasse

Suave paisagem de meus sonhos lindos
em ti selei o meu destino ideal
em ti sonhei ser verdadeiro o irreal
e assim guardei o que era lindo em mim.

Ah! Infortúnio que me tem por leal
sob o seu manto encerrei meus vestígios
sob o seu mando vesti-me em silício
e assim paguei, porque não quis ser mau.

Mas quando o céu estiver sob a terra
e a minha ruína fundar teu palácio,
o meu suplício em ti será duas férias.

Porque não quis o que seria tão fácil,
temi teu suor e a nossa própria guerra...
Busquei a paz e encontrei só, impasse.

Soneto da Desventura

Ah, desventura que me traz ventura...
O olhar castanho, tal mercúrio em ouro,
é esta razão que se desnuda em louros
neste meu fel que turva a mente impura.

Ah, negro véu de meus instintos loucos!
Já sinto dores onde havia ternura,
pressinto viés onde prescindia a cura
E nada enxergo... E nada sei, nada ouço.

Parta de mim, flor inocente e bela!
Teu doce caule me deprime a tarde
e o teu perfume me desfoca a tela!

Mas sei tão bem que tudo vêm desta arte
que, numa vez, faz chover aquarelas
e noutras tantas me faz doer de enfarte.

Soneto da Esperança

Como amar-te, mulher que não existe?
Como seguir teus passos? Não há sombra...
És qual mar que se afoga, um cais sem onda
Um bramido funesto, um berço triste.

Como amar-te, donzela de meus sonhos?
Como saber o que achas? Sem palpites...
Sou qual vivaz bandeira sem limites
Um trôpego ladrão, um vão risonho.

Ademais, como sofro por manter-te
em sonhos meus, só meus! Sonhos idosos...
E como dói sofrer por não sofrer.

Vê que sou andarilho em trilhos novos
Vê que sou alambrado a ti, mulher...
Lê... Pois se num dia a vi, a perdi noutro.

O arredio e os ufanos

Detentor das sabedorias do mundo
tudo sabe, do seu universo o inverso
Quantas letras, se caberão em meu verso
(que também é cego e de resto é mudo).

No palácio do desconforto imerso
cheiro o cinza e vejo o cinzeiro imundo
nado em poças de água salobra, é absurdo
que as pessoas sintam mais prazer que adverso.

Mas voltando a falar do Pai celeste,
das antigas lendas do Oriente Médio,
me recordo em cada sorriso humano

quanto o Sol, que desponta quente ao leste,
nos remiu no colo paterno o assédio
que reclama e clama o arredio e os ufanos.

Quem o coração te move

Pavio que explode e implode. Explode... e implode...
Este amor frio aos teus olhos quase queima
Não! Não consigo negar o que teima
em me voltar e partir de trégua e ódio.

Sofro distante, demais quando um imã
se faz em nossas almas e, nessa ordem,
não posso tê-la... então que me discordem
que encerra a dama os ais tal como rima...

E as repetidas palavras se anulam
nesta semente que a si mesma come
e se alimenta aumentando a sua gula.

Mas até quando, se isto me consome
os teus olhares que hoje me desnudam...
Se não sou Quem o coração te move?!

Nos olhos que vêem dentro

Bem sinto que nas horas mais escuras
tão claro quanto o véu e os teus ideais
se nesta vida pálida são irreais
na túnica dos sonhos que me curas...

Unidas nossas almas não têm de ais
o tanto que em distância, em desventuras
nos forçam novamente à esta aventura:
amor nos teus e meus encontros diários.

Se Deus nos tornou gêmeos no momento
da vida, se as feridas desferidas
são breves, que infinito sentimento!

Ah! Te amo tanto adocicada vida
alegre sou nos olhos que vêem dentro
tão dentro que não há medo, se é vivida!

Nesta nau de palha

Eterno quis de algo que não mais terno
tal brilho lúcido ante a vil morada...
Ah que pensei, que imortal namorada!
Que nem Moraes ousaria de pôr termo.

Tanto que a amava fora demorada
a dança trêmula como se inverno
fosse o verão, o outono e as três primaveras
últimas; qual pastagem devorada.

Mas se de culpas levo meu cesto oco
também de amores a inspiração falha
e de tormentos o coração troco...

Ah se não fosse Aquele que me calha
se não fosse Este a me salvar, tampouco
valeria a chama nesta nau de palha.

Oferendas

A humanidade se mantém repleta
de meias verdades, de melancolias...
A frondosa árvore onde se colhia
hoje é matéria póstuma e incompleta!

Quantos Davids se tornaram Golias?
E quando os véus ocultaram mazelas?
Parte extinguiu-se à luz, funesta cela,
numa negra era tal como se lia...

E na pesada tarefa terrena
(onde o machado é a vil palavra viva)
sobrevivemos por entre estas sendas?

Mas vencer como, se a voz nunca é ouvida,
se o nosso sangue é usado em oferendas...
Se a nossa carne nos transforma em Midas?

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=18&x=23&y=5

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 543)

O nosso irmão Ademar comunica que terá que fazer um repouso após a cirurgia, afinal, ele merece, se até Deus descansou no 7. dia. Enquanto ele estiver convalescente, terão que "suportar" meus devaneios poéticos.
Que este guerreiro retorne com toda sua energia como sempre.
J.Feldman


Uma Trova de Ademar

Quem pôs o brilho e as cores
nesses olhos que são meus,
não foi nenhum dos doutores,
foi a santa mão de Deus!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


A tua volta eu aguardo
sem censuras, satisfeita,
como quem carrega o fardo
na fartura da colheita.
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–

Uma Trova Potiguar


Cada tropeço me ensina
que a vida é eterno sonhar.
Na vida nada termina,
muda de forma e lugar.
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada


2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema: RECADO - 3º Lugar


Em meu olhar recatado,
teu olhar viu, mas não leu,
a ternura de um recado
que o meu amor escreveu.
–MARINA BRUNA/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


Gostaria que os teus olhos,
entrassem nos olhos meus,
- quero enfrentar os abrolhos,
com a “luz” dos olhos teus!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

U m a P o e s i a


Poeta repouse bem
Após essa cirurgia
Para que retorne logo
A nos dá essa alegria,
De amanhecermos felizes
Nos lumes da poesia.
Que Deus com sua magia
Esteja segurando a mão
Guiando e orientando
Aquele cirurgião,
Pra que seja só sucesso
Essa sua operação.
Meu poeta, meu irmão,
Encare de fronte erguida,
Essas coisas fazem parte
Da trajetória da vida;
E pra que tudo dê certo
Estaremos na torcida.
–CARLOS AIRES/PE–

Soneto do Dia

Voltando a Casa
–PE. ANTÔNIO TOMÁS/CE–


Passei um mês, um mês inteiro, fora
do meu lar, sem ouvir meus passarinhos,
sem ver o louro bando de amiguinhos
que aí deixei! Cruel, longa demora!

Mas, afinal, eis-me de volta agora,
e na ânsia de ver os coitadinhos,
que suspiram talvez por meus carinhos,
fustigo o meu corcel, que o chão devora.

Avisto a casa além, dobro a tortura
que dela me separa... Oh! que ventura
eu sinto na alma ao ir-me aproximando!

Chego ao portal, puxo o ferrolho e entro,
e me recebem pela sala a dentro
crianças rindo e pássaros cantando.

Eva Furnari (Lolo Barnabé)


No tempo em que as pessoas moravam em cavernas, existiu um homem muito criativo e inteligente chamado Lolo Barnabé.

Aos vinte anos, Lolo casou-se com Brisa. Ela também era como ele, criativa e inteligente. Casaram-se por amor. Muito amor.

Depois da lua-de-mel, escolheram a melhor caverna da região para morar e, logo no primeiro ano de casamento, tiveram um filho, o Finfo Barnabé, também criativo e inteligente.

Todos os dias, Lolo saía para caçar e colher frutas.

À noite, sentavam-se todos em volta da fogueira, assavam a carne, cantavam canções e agradeciam a Deus pela beleza da vida.

Eram muito felizes.

Eram muito felizes... mas nem tanto.

A caverna era úmida.

Por essa razão, Lolo e Brisa acharam melhor construir uma casa no alto do morro.

Teriam mais conforto e poderiam viver melhor.

Lolo, que era muito habilidoso, fez uma casa linda, e a família, animada, mudou-se para lá. Brisa queria que a casa fosse amarela e Lolo, que amava a esposa e lhe fazia todas as vontades, pintou a casa de amarelo.

O tempo passou e eles estavam felizes... mas nem tanto.

Brisa não gostava de vestir aquela pele de animal. Sentia frio.

Então eles tiveram a idéia de fazer roupas mais adequadas. E, como ela também era muito habilidosa, inventou o vestido.

Ficou animada e, em seguida, inventou o sutiã, a calcinha, a cueca, a camisa, a calça, a bermuda e o pijama. E Lolo inventou sapatos que combinassem.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Brisa achou que faltava uma coisa e falou para Lolo:

- Amor, não podemos deixar nossas belas roupas pelo chão. Você não acha que poderíamos fazer assim uma espécie de móvel para guardar a roupa?

Lolo achou que era uma excelente idéia, tudo ia ficar mais limpo, e inventou o guarda-roupa. Como era muito habilidoso, fez um grande armário de cerejeira, cheio de gavetas, portas e puxadores cromados.

Finfo adorou, já tinha um lugar para se esconder quando brincasse de esconde-esconde com o pai.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lolo tinha feito uma bagunça danada para construir o armário e Brisa ficou irritada.

Lolo, então, para acalmar a mulher, inventou a vassoura e achou que era melhor já fazer uma oficina longe de casa para não atrapalhar a felicidade do lar. E fez.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

No lar havia problemas. Finfo acordava sempre com o pijama sujo depois de dormir no chão.

Brisa discutiu a questão com Lolo e eles acharam que podiam construir uma espécie de coisa assim, de madeira, com quatro pés, macia por cima. Ia ser muito mais confortável e a vida deles ia melhorar.

Lolo pensou bastante, trabalhou muito e inventou a cama. Como todos sabem, Lolo era caprichoso, e já inventou a cama com colchão, lençol, cobertor e travesseiro.

Brisa ficou encantada, principalmente com o travesseiro, que era a coisa mais macia do mundo.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Como eles almoçavam e jantavam em cima da coisa macia, a cama, estavam sujando muito os lençóis.

Lolo, então, inventou a mesa.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Acharam muito desconfortável comer em pé.

Lolo trabalhou bastante e inventou a cadeira. Muito confortável, muito confortável mesmo, bem melhor que comer em pé. Aproveitou para ficar sentado por mais de uma hora, pois ele estava cansado de tanto inventar e construir coisas, além de caçar e colher frutas, é claro.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lolo e Brisa estavam achando que cozinhar na fogueira dava muito trabalho e eles não queriam trabalhar tanto. Se inventassem algo mais prático, teriam mais tempo para ficar juntos, se divertir e descansar. Inventaram, então, o fogão a gás.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lavar a roupa lá no rio também era coisa dura. Brisa e Lolo queriam facilitar essa tarefa. Pensaram muito e inventaram a água encanada e o tanque. E, já que tinham inventado a água encanada, inventaram logo o banheiro para não ter que ir no mato, à noite, no frio.

Deu trabalho, Lolo já trabalhava oito horas por dia, inventando e construindo coisas e, apesar do cansaço, o resultado compensava.

O banheiro ficou maravilhoso.

Fizeram uma festa com o sabonete, o xampu, o condicionador, o creme hidratante, a esponja de banho, o talco, o papel higiênico, o perfume, o mercurocromo, o algodão, a gaze, o esparadrapo, o cotonete, etc.

Lolo adorou o creme, a lâmina de barbear, a loção pós-barba, o barbeador elétrico, o desodorante, etc.

Ficaram encantados com a escova de dentes, o creme dental, o protetor solar, o colírio, etc.

Divertiram-se muito com o pente, a escova, o grampo, o secador de cabelo, etc.

E enlouqueceram de alegria com o espelho.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Lolo tinha tanto trabalho e passava tantas horas por dia fora de casa, inventando coisas para dar conforto e facilitar a vida, que ficava estressado e com saudades do filho, que sempre estava dormindo quando ele chegava. Então Lolo inventou o telefone, para que eles pudessem se falar diversas vezes por dia.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Pelo telefone não dava para abraçar, nem beijar. Então tiveram a idéia de Brisa ajudá-lo na oficina, assim Lolo poderia chegar mais cedo do trabalho para abraçar e beijar o filho.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Brisa e Lolo, à noite, quando chegavam do trabalho, depois de abraçar e beijar o filho Finfo, ainda tinham que lavar a louça, a roupa, fazer o jantar, passar pano no chão e ficavam cansados, irritados, briguentos e enjoados de fazer todos os dias aquilo tudo. Naquele tempo ainda não tinham inventado a pizza “delivery”.

Acharam que a solução era facilitar as tarefas. Pensaram tanto que quase fritaram o cérebro quando inventaram, de uma só vez:

O liquidificador, a batedeira, a centrífuga, a cafeteira, o espremedor, a garrafa térmica, etc.

O microondas, a torradeira, a sanduicheira, etc.

A máquina de lavar roupa, o sabão em pó, o detergente, o amaciante, o alvejante, o desinfetante, etc.

A geladeira, o “freezer”, a despensa, etc.

A máquina de lavar louça, a secadora, o balde, o esfregão, a lata de lixo, etc.

O carpete, o aspirador de pó, o tira-manchas, etc. E, finalmente, inventaram o fim de semana, que ninguém é de ferro.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Sempre tinha algum aparelho que encrencava e isso era uma dor de cabeça danada.

Eles tinham que levar para a oficina para consertar e, como já estavam acostumados com o conforto, ficavam extremamente irritados e impacientes de fazer as coisas na mão. Coisinhas como lavar a louça, a roupa, bater ovos...

Além do mais, a família Barnabé, agora, era chique.

Lolo, Brisa e Finfo passaram a achar importante estarem sempre bonitos e elegantes. Não queriam mais andar de qualquer jeito, com a roupa amarrotada.

Não ficava bem.

Lolo inventou, então, o ferro de passar.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Dava um trabalho danado passar a roupa. E Brisa não tinha mais tempo, afinal ela trabalhava fora.

E Lolo, dessa vez, não se sabe por quê, não conseguiu inventar uma máquina de passar roupa. Deve ter dado um “tilt” nas idéias dele.

Mas é compreensível, porque, afinal, ele também era humano e às vezes falhava.

Lolo ficou muito deprimido e pensativo, mas a mulher foi compreensiva e arranjou uma solução: chamou sua prima para vir todos os dias passar a roupa.

Era uma ótima idéia, porque ela poderia fazer também as outras tarefas da casa. Assim Brisa teria tempo para inventar e fazer coisas na oficina.

A prima queria alguma recompensa por trabalhar na casa e então eles inventaram o dinheiro e deram para ela um salário. Como era pouquinho, chamaram de "salário mínimo".

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Finfo ficava sozinho o dia inteiro sem a mãe nem o pai por perto. Sentia-se infeliz, não tinha com quem brincar, já que a prima de Brisa também só ficava cuidando da casa.

Então Lolo e Brisa inventaram a televisão, o sofá e o controle remoto.

Todos ficaram felizes... mas nem tanto.

Eles chegavam à noite tão cansados do trabalho e o Finfo querendo brincar e eles querendo descansar que acabavam brigando. Depois, também, cansados de brigar, sentavam-se todos na frente da televisão e ficavam hipnotizados e mudos como sacos de batata.

A família Barnabé sentia que aquilo não estava bom. Havia alguma coisa errada naquela história, mas era difícil, bem difícil, entender o que é que estava errado. A situação parecia um grande nó.

Lolo e Brisa pensaram logo em inventar mais alguma coisa, mas pela primeira vez não sabiam o que fazer. E, na verdade, pela primeira vez também perceberam que não era o caso de inventar mais nada.

Então eles foram para o quintal, acenderam uma fogueira e sentaram-se em volta dela, muito tristes, buscando uma saída.

Olhando para o fogo, entenderam que eles mesmos tinham criado aquela situação.

Era como uma armadilha.

Ficaram muito infelizes... mas nem tanto.

Lolo contou uma história e Finfo contou outra. Brisa entoou uma canção e lembrou-se de fazer algo que havia muito tempo não fazia: agradecer a Deus pela beleza da vida.

Finalmente entenderam que, se eles mesmos tinham feito aquela armadilha, eles mesmos poderiam desfazê-la.

Eles eram bem criativos e inteligentes.

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)