segunda-feira, 4 de junho de 2012

Monteiro Lobato (O Drama da Geada)


Junho.

Manhã de neblina. Vegetação entanguida de frio. Em todas as folhas o recamo de diamantes com que as adereça o orvalho.

Passam colonos para a roça, retrancidos, deitando fumaça pela boca.

Frio. Frio de geada, desses que matam passarinhos e nos põem sorvete dentro dos ossos.

Saímos cedo a ver cafezais, e ali paramos, no viso do espigão, ponto mais alto da fazenda. Dobrando o joelho sobre a cabeça do socado, o major voltou o corpo para o mar de café aberto ante nossos olhos e disse num gesto amplo:

- Tudo obra minha, veja!

Vi. vi e compreendi-lhe o orgulho, sentindo-me orgulhoso também de tal patrício. Aquele desbravador de sertões era uma força criadora, dessas que enobrecem a raça humana.

- Quando adquiri estar gleba – disse ele - , tudo era mata virgem, de ponta a ponta. Rocei, derrubei, queimei, abri caminhos, rasguei valos, estiquei arame, construí pontes, ergui casas, arrumei pastos, plantei café – fiz tudo. Trabalhei como negro cativo durante quatro anos. Mas venci. A fazenda está formada, veja.

Vi. vi o mar de café ondulado pelos seios da terra, disciplinado em fileiras de absoluta regularidade. Nem uma falha! Era um exército em pé de guerra. Mas bisonho ainda. Só no ano vindouro entraria em campanha. Até ali, os primeiros frutos não passavam de escaramuças de colheita. E o major, chefe supremo do verde exército por ele criado, disciplinado, preparado para a batalha decisiva da primeira safra grande, q que liberta o fazendeiro dos ônus da formação, tinha o olhar orgulhoso dum pai diante de filhos que não mentem à estirpe.

O fazendeiro paulista é alguma coisa no mundo. Cada fazenda é uma vitória sobre a fereza retrátil dos elementos brutos, coligados na defesa da virgindade agredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas, mas muita epopéia há por aí que não vale a destes heróis do trabalho silencioso. Tirar uma fazenda do nada é façanha formidável. Alterar a ordem da natureza, vencê-la, impor-lhe uma vontade, canalizar-lhe uma vontade, canalizar-lhe as forças de acordo com um plano preestabelecido, dominar a réplica eterna do mato daninho, disciplinar os homens da lida, quebrar a força das pragas...
– batalha sem tréguas, sem fim, sem momento de repouso e. o que é pior, sem certeza plena da vitória. Colhe-a muitas vezes o credor, um onzeneiro que adiantou um capital caríssimo e ficou a seu salvo na cidade, de cócoras num título de hipoteca, espiando o momento oportuno para cair sobre a presa, como um gavião.

- Realmente, major, isto é de enfunar o peito! É diante de espetáculos destes que vejo a mesquinharia dos que lá fora, comodamente, parasitam o trabalho do agricultor.

- Diz bem. Fiz tudo, mas o lucro maior não é meu. Tenho um sócio voraz que me lambe, ele só, um quarto da produção: o governo. Sangram-na depois as estradas de ferro – mas destas não me queixo porque dão muita coisa em troca. Já não digo o mesmo dos tubarões do comércio, esse cardume de intermediários que começa ali em Santos, no zangão, e vai numa até ao torrador americano. Mas não importa! O café da para todos, até para a besta do produtor... concluiu, pilheriando.

Tocamos os animais a passo a passo, com os olhos sempre presos ao cafezal intérmino. Sem um defeito de formação, as paralelas de verdura ondeavam, acompanhando o relevo do solo, até se confundirem ao longe em massa uniforme. Verdadeira obra d’arte em que, sobrepondo-se à natureza, o homem lhe impunha o ritmo da simetria.

- No entanto – continuou o major - , a batalha ainda não está ganha. Contraí dívidas; a fazenda está hipotecada a judeus franceses. Não venham colheitas fartas e serei mais um vencido pela fatalidade das coisas. A natureza depois de subjugada é mãe; mas o credor é sempre carrasco...

A espaços, perdidas na onda verde, perobeiras sobreviventes erguiam fustes contorcidos, como galvanizadas pelo fogo numa convulsão de dor. Pobres árvores! Que destino triste verem-se um dia arrancadas à vida em comum e insuladas na verdura rastejante do café, como rainhas prisioneiras à cola de um carro de triunfo.

Órfãs da mata nativa, como não hão de chorar o conchego de outrora? Vende-as. Não têm o desgarre, o frondoso de copa das que nascem em campo aberto. Seu engalhamento, feito para a vida apertada da floresta, parece agora grotesco; sua altura desmesurada, em desproporção com a fronde, provoca o riso. São mulheres despidas em público, hirtas de vergonha, não sabendo que parte do corpo esconder. O excesso de ar as atordoa, o excesso de luz as martiriza – afeitas que estavam ao espaço confinado e à penumbra sonolenta do habitat.

Fazendeiros desalmados – não deixeis nunca árvores pelo cafezal... cortai-as todas, que nada mais pungente do que forçar uma árvore a ser grotesca.

- Aquela perobeira ali – disse o major – ficou para assinalar o ponto de partida deste talhão. Chama-se a peroba do Ludgero, um baiano valente que morreu ao pé dela estrepado numa juçara...

Tive a visão do livro aberto que seriam para o fazendeiro aquelas paragens.

- Como tudo aqui há de falar à memória, major!

- É isso mesmo. Tudo me fala à recordação. Cada toco de pau, cada pedreira, cada volta de caminho tem uma história que sei, trágica às vezes, como essa da peroba, às vezes cômica – pitoresca sempre. Ali... – está vendo aquele toco de jerivá? Foi por uma tempestade de fevereiro. Eu abrigara-me num rancho coberto de sapé, e lá em silêncio esperávamos, eu e a turma, o fim do dilúvio, quando estalou um raio quase em cima das nossas cabeças.

- “Fim do mundo, patrão!” – lembrou-me que disse, numa careta de pavor, o defunto Zé Coivara... E parecia!... Mas foi apenas o fim de um velho coqueiro, do qual resta hoje – sic transit... esse pobre toco... cessada a chuva, encontramo-lo desfeito em ripas.

Mais adiante abria-se a terra em boçoroca vermelha, esbarronada em coleios até morrer no córrego. O major apontou-a, dizendo:

- Cenário do primeiro crime cometido na fazenda. Rabo-de-saia, já se sabe. Nas cidades e na roça, pinga e saia são o móvel de todos os crimes. Esfaquearam-se aqui dois cearenses.

Um acabou no lugar; outro cumpre pena na correição. E a saia, muito contente da vida, mora com o tertius. A historia de sempre.

E assim, de evocação em evocação, às sugestões que pelo caminho iam surgindo, chegamos à casa de moradia, onde nos esperava o almoço.

Almoçamos, e não sei se por boa disposição criada pelo passeio matutino ou por mérito excepcional da cozinheira, o almoço desse dia ficou-me na memória gravado para sempre. Não sou poeta, mas se Apolo algum dia me der na cabeça o estalo do padre Vieira, juro que antes de cantar Lauras e Natércias hei de fazer uma beleza de ode à lingüiça com angu de fubá vermelho desse almoço sem par, única saudade gustativa com que descerei ao túmulo...

Em seguida, enquanto o major atendia à correspondência, saí a espairecer pelo terreiro, onde me pus de conversa com o administrador.

Soube por ele da hipoteca que pesava sobre a fazenda e da possibilidade de outro, não o major, vir a colher o fruto do penoso trabalho.

- Mas isso – esclareceu o homem – só no caso de muito azar – chuva de pedra ou geada, daquelas que não vêm mais.

- Que não vêm mais, por quê? - porque a última geada grande foi em 1895. Daí para cá as coisas endireitaram. O mundo, com a idade, muda, como agente. As geadas, por exemplo, vão-se acabando.

Antigamente ninguém plantava café onde o plantamos hoje. Era só de meio morro acima. Agora, não. Viu aquele cafezal do meio? Terra bem baixa; no entanto, se bate geada ali é sempre coisinha – um tostado leve. De modo que o patrão, com uma ou duas colheitas, apaga a dívida e fica o fazendeiro mais “prepotente” do município.

- Assim seja, que grandemente o merece – rematei.

Deixei-o. dei uma voltas, fui ao pomar, estive no chiqueiro vendo brincar os leitõezinhos e depois subi. Estava um preto danado nas venezianas da casa a última demão de tinta. Porque será que as pintam sempre de verde? Incapaz por mim de solver o problema, interpelei o preto, que não se embaraçou e respondeu sorrindo:

- Pois veneziana é verde como o céu e azul. É da natureza dela...

Aceitei a teoria e entrei.

À mesa a conversa girou em torno da geada.

- É o mês perigoso este – disse o major. – O mês da aflição. Por maior firmeza que tenha um homem, treme nesta época. A geada é um eterno pesadelo. Felizmente a geada não é mais o que era dantes. Já nos permite aproveitar muita terra baixa em que os antigos, nem por sombras, plantavam um só pé de café.

Mas, apesar disso, um que facilitou, como eu, está sempre com a pulga atrás da orelha. Virá? Não virá? Deus sabe!...

Seu olhar mergulhou pela janela, numa sondagem profunda ao céu límpido.

- Hoje, por exemplo, está com jeito. Este frio fino, este ar parado...

- Não vale a pena pensar nisto. O que tem de ser está gravado no livro do destino.

- Livra-te dos ares!... – objetei.

- Cristo não entendia de lavoura – replicou o fazendeiro sorrindo.

E a geada veio! Não geadinha mansa de todos os anos, mas calamitosa, geada cíclica, trazida em ondas do sul.

O sol da tarde. Mortiço, dera uma luz sem luminosidade, e raios sem calor nenhum. Sol boreal, tiritante. E a noite caíra sem preâmbulos.

Deitei-me cedo, batendo o queixo, e na cama, apesar de enleado em dois cobertores, permaneci entanguido uma boa hora antes que ferrasse no sono.

Acordou-me o sino da fazenda, pela madrugada. Sentindo-me enregelado, com os pés a doerem, ergui-me para um exercício violento. Fui para o terreiro.

O relento estava de cortar as carnes – mas que maravilhoso espetáculo! Brancuras por toda parte. Chão, árvores, gramados e pastos eram, de ponta a ponta, um só atoalhado branco. As árvores imóveis, inteiriçadas de frio, pareciam emersas dum banho de cal. Rebrilhos de gelo pelo chão. Águas envidradas. as roupas dos varais, tesas, como endurecidas em goma forte. As palhas do terreiro. Os sabugos ao pé do cocho, a telha dos muros, o topo dos mourões, a vara das cercas o rebordo das tábuas – tudo polvilhado de brancuras, lactescentes, como chovido por um saco de farinha. Maravilhoso quadro! Invariável que é a nossa paisagem, sempre nos mansos tons do ano inteiro, encantava sobremodo vê-la súbito mudar, vestir-se dum esplendoroso véu de noiva – noiva da morte, ai!...

Por algum tempo caminhei a esmo, arrastado pelo esplendor da cena. O maravilhoso quadro de sonho breve morreria, apagado pela esponja de ouro do sol. Já pelos topes e faces de batedeira andavam-lhe os raios na faina de restaurar a verdura. Abriam manchas no branco da geada, dilatavam-nas, entremostrando nesgas do verde submerso.

Só nas baixadas, encostas noruegas ou sítios sombreados pelas árvores, é que a brancura persistia ainda, contrastando sua nítida frialdade com os tons quentes ressurretos. Vencera a vida, guiada pelo sol. Mas a intervenção do fogoso Febo, apressada demais, transformara em desastre horroroso a nevada daquele ano – a maior de quantas deixaram marca nas embaubeiras de São Paulo.

A ressureição do verde fora aparente. Estava morta a vegetação, dias depois, por toda parte, a vestimenta do solo seria um bureli imenso, com sépia a mostrar a gama inteira dos seus tons ressecos, pontilhá-lo-ia apenas, cá e lá; o verde-negro das laranjas e o esmeraldino sem-vergonha da vassourinha.

Quando regressei, sol já alto, estava a casa retrancida do pavor das grandes catástrofes. Só então me acudiu que o belo espetáculo, que eu até ali só encarara pela prisma estético, tinha um reverso trágico: a ruína do heróico fazendeiro. E procurei-o ansioso.

Tinha sumido. Passara a noite em claro, disse-me a mulher: de manhã, mal chegara, fora para a janela e lá permanecera imóvel, observando o céu através dos vidros. Depois saíra, sem ao menos pedir o café, como de costume. Andava a examinar a lavoura, provavelmente.

Devia ser isso mas como retardasse a voltar – onze horas e nada – a família entrou-se de apreensões.

Meio-dia. Uma hora, duas, três e nada.

O administrador, que a mandado da mulher saíra a procurá-lo, voltou à tarde sem notícias.

- Bati tudo e nem rasto. Estou com medo dalguma coisa... vou espalhar gente por aí, à cata.

D. Ana, inquieta, de mãos enclavinhadas, só dizia uma coisa:

- Que será de nós, santo Deus! Quincas é capaz duma loucura...

Pus-me em campo também, em companhia do capataz. Corremos todos os caminhos, varejamos grotas em todas as direções – inutilmente.

Caiu a tarde, caiu a noite – a noite mais lúgubre de minha vida -, noite de desgraça a aflição.

Não dormi. Impossível conciliar o sono naquele ambiente de dor, sacudido de choro e soluços. Certa hora os cães latiram no terreiro, mas silenciaram logo.

Rompeu a manhã, glacial como a da véspera. Tudo apareceu geado novamente.

Veio o sol. Repetiu-se a mutação da cena. Esvaiu-se a alvura, e o verde morto da vegetação envolveu a paisagem num sudário de desalento.

Em casa repetiu-se o corre-corre do dia anterior – o mesmo vaivém, o mesmo “quem sabe?”, as mesmas pesquisas inúteis.

À tarde, porém – três horas -, um camarada apareceu esbaforido, gritando de longe, no terreiro:

- Encontrei! Está perto da boçoroca!...

- Vivo? – perguntou o capataz.

Vivo, sim, mas..

D. Ana surgira à porta e ao ouvir a boa nova exclamou, chorando e sorrindo:

- Bendito sejas, meu Deus!...

Minutos depois partimos todos de rumo à boçoroca e, a cem passos dela, avistamos um vulto às voltas com os cafeeiros requeimados. Aproximamo-nos.

Era o major. Mas em que estado! Roupa em tiras, cabelos sujos de terra, olhos vítreos e desvairados. Tinha nas mãos uma lata de tinta e uma broxa – broxa do pintor que andava a olear as venezianas. Compreendi o latido dos cães à noite...

O major não se deu conta da nossa chegada. Não interrompeu o serviço: continuou a pintar, uma a uma, do risonho verde esmeraldino das venezianas, as folhas requeimadas do cafezal morto...

D. Ana, estarrecida, entreparou atônita. Depois, compreendendo a tragédia, rompeu em choro convulso.

Fonte: 
Portal São Francisco

Ellis Avery (A Casa de Chá)


Artigo por Ana Lucia Santana

A saborosa obra A Casa de Chá revela o olhar de uma mulher estrangeira, que adota a identidade japonesa aos nove anos, sobre o Japão do século XIX. Aqui se revela a visão de uma alteridade que não se assume enquanto tal, de uma exilada que antecipa a condição pós-moderna.

Aurelia Bernard, filha de uma francesa, nascida em Nova York, ainda menina sozinha no Japão, não tem mais lar ou pátria; ela vive o dilema da busca ansiosa de uma definição sobre si mesma, pois se esforça para nem mesmo se lembrar que um dia foi uma estrangeira em território japonês, mas, ao mesmo tempo, não pode impedir que o olhar do outro sobre ela a represente, pouco a pouco, como uma forasteira.

O leitor, página após página, vê a história do Japão deste período se desenrolar justamente através da percepção deste ser sem raízes, que disseca sem complacência o implacável processo de ocidentalização deste país. Quando a menina, órfã de mãe, segue para as terras japonesas, que recentemente haviam discretamente aberto as portas para o Ocidente, ao lado de seu tio Charles, padre aspirante a missionário, esta nação ainda estava mergulhada no regime feudal, sob o comando do Xogum. Era uma terra considerada selvagem, e seus habitantes deveriam ser compulsoriamente convertidos ao Cristianismo.

Assediada pelo tio, Aurelia foge e, após um incêndio que destroi a casa de Charles e boa parte do bairro da cidade de Kyoto, quando ainda era conhecida como Miyako, ela se refugia na casa de chá Baishian e dá início a uma metamorfose interior quando é aceita, finalmente, pela família de Yukako. Neste instante ela ganha inclusive um novo nome, Urako, que marca sua transformação e a profunda assimilação do universo cultural japonês.

A partir de então, os caminhos destas duas mulheres seguem, por muito tempo, linhas convergentes, que se cruzam constantemente com o Chado ou Caminho do Chá, cerimônia tradicional perpetuada há séculos pela família Shin, a quem Urako irá servir por muito tempo. Desta forma ela acompanha os desenvolvimentos paralelos do Temae – ritual do Chá  praticado milenarmente por este grupo familiar, que se confunde com a própria história do clã – e do próprio Japão.

O patriarca dos Shin, intitulado como Montanha pela garota adotada para ser a dama de companhia de Yukako, é o mestre de chá mais importante de sua terra. Filho de samurais, ele mesmo foi acolhido pelos Shin quando o antigo chefe da família, pertencente à casta dos comerciantes, ficou sem herdeiros.

Aos poucos, Urako se apega cada vez mais a Yukako, que a considera, por sua vez, como sua irmã caçula. Com o tempo, porém, ela desenvolve por sua senhora uma paixão proibida, a qual não pode de forma alguma ser saciada. A jovem sublima este sentimento com uma dedicação cada vez maior a sua amada, de quem se torna aliada na luta pela preservação da cerimônia do chá e pela afirmação feminina no interior deste ritual em uma cultura ainda fechada, que reserva as decisões mais importantes ao mundo masculino.

A cumplicidade entre as duas mulheres se intensifica à medida que o Xogunato é substituído pelo crescente poder do Imperador, o que culmina na instauração da Era Meiji. Este novo regime permite a crescente ocidentalização do Japão, a tradição e o novo se chocam, e Yukako e Urako se unem para não permitir que este processo, aparentemente irreversível, destrua o Caminho do Chá.

Ao mesmo tempo, a chegada dos estrangeiros no Japão, anteriormente conhecidos apenas por ilustrações distorcidas em alguns livros, abala a identidade de Urako, pois desta forma, contraposta aos novos seres que invadem o território japonês, sua alteridade se acentua, e o olhar dos japoneses sobre ela, nunca totalmente desprovido de cautela e preconceito, se transforma radicalmente, definindo-a cada vez mais como não-japonesa.

A discriminação se intensifica, despertando novamente em Urako a sombra de Aurelia, sua antiga identidade. Mais que nunca emerge sua condição de exilada, ameaçadora e voraz. Embora o Japão acolha cada vez mais o Ocidente em sua sociedade já não mais tão fechada, instaura-se o antigo paradoxo. Eles precisam dos estrangeiros, mas não os desejam. Resta saber o quanto este processo transformador refletirá sobre a antiga relação entre Urako e Yukako.

A autora, Ellis Avery, pesquisou durante cinco anos o Caminho do Chá em Nova York e em Kyoto. Ela escreveu diversos artigos para o Publishers Weekly, o The Village Voice e o Kyoto Journal. Algumas de suas histórias foram adaptadas para o teatro no New York’s Expanded Arts Theater. Ela reside, hoje, em Nova York.

Fontes:
Avery, Ellis. A Casa de Chá. Editora Record, Rio de Janeiro, 2010, 488 pp.
Artigo disponível em Infoescola http://www.infoescola.com/livros/a-casa-de-cha/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 568)


Uma Trova de Ademar  

Com insônia... Apaixonado,
sinto-me feliz porque...
Passando a noite acordado
eu penso mais em você!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional  

Feliz de quem, neste mundo,
faz de uma mágoa alegria,
pois faz milagre fecundo
mudando a dor em poesia.

Uma Trova Potiguar  

Qualquer inveja revela 
uma doença infinita, 
que deixa a maior sequela 
nos corações onde habita.

–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada  

2010 > Bragança Paulista/SP
Tema > CAMINHADA > Venc.

Não condeno a caminhada,
culpo sim, meus passos falhos.
Bem larga era a minha estrada,
fui eu quem buscou atalhos.
–RITA MOURÃO/SP–

...E Suas Trovas Ficaram  

Na longa jornada estranha
onde os espinhos são tantos,
sinto que alguém me acompanha,
buscando enxugar meus prantos.
–VASQUES FILHO/PI–

Uma Poesia  

Só temos uma esperança
para que essa “coisa” mude,
leia mais, reflita, estude,
se você busca mudança.
Deus te outorgou confiança
e um Livre-Arbítrio a tomar,
você precisa aceitar
este poder tão profundo;
se queres mudar o mundo
você precisa mudar!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia  

Meu Conselho
–GILSON FAUSTINO MAIA/RJ–

Eu não gostei, amigo, do seu vício.
É fumaça demais na atmosfera.
Deixe o tempo correr, é primavera,
não lance o seu futuro em precipício.

Não use, em sua vida, um artifício
para matar o tempo enquanto espera
o fechar da cortina e da quimera
que envolve o nosso mundo, desde o início.

Viva a paz, viva o amor, a natureza!
Seja o seu corpo rocha, fortaleza,
dê, então, ao seu vício longas férias.

Com saúde não faça brincadeira.
Para que entupir, dessa maneira,
o caminho do sangue nas artérias?

Ruth Rocha (Atrás da Porta)


A casa do Carlinhos era uma casa antiga, pegada à Escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra.

Antigamente, quando a avó do Carlinhos estava viva, ela ocupava as duas casas, que eram uma só.

Depois que a Dona Carlota morreu, a família separou o casarão em dois.

Uma parte foi doada para a escola. E, na outra, ficou morando a família do Carlinhos.

Carlinhos gostava muito da avó, então vivia brincando no quarto que tinha sido dela.

Dona Carlotinha era aquele tipo de avó que todo mundo quer ter. Brincava com os netos de teatrinho, de acampamento no quintal, de amarelinha, tocava violão, cantava e contava histórias.

E que histórias! Dava a impressão de que ela sabia todas as histórias do mundo.

De fadas, de lobos ferozes, de meninos e meninas que desobedeciam aos pais (era dessas histórias que Carlinhos mais gostava), de reis, de piratas e de marinheiros.

O quarto de D. Carlotinha era todo forrado de madeira. E ainda tinham ficado nele alguns livros, muitas fotografias antigas, objetos estranhos, caixinhas de música, caleidoscópios, tinha um jogo engraçado com uma bola e um espeque, que a mãe do menino chamava de bilboquê.

Carlos se lembrava de uns livros grandes, com muitas figuras, que D. Carlota lia para ele, mas eles tinham sumido. Assim como um retrato da avó, muito mais moça, com um vestido bonito de cetim, com flores e bordados.

A mãe e o pai de Carlinhos viviam atrás dele, insistindo que ele precisava ler mais.

Mas os livros que davam para ele, do mesmo jeito que os livros que a professora mandava ler, eram muito sem graça, para quem tinha conhecido as histórias de D. Carlotinha.

Carlinhos, nas horas vagas, ficava mexendo em tudo que tinha no quarto da avó. E tanto escarafunchou dentro das gavetas, no fundo dos armários, nas molduras e nos bordados que enfeitavam as paredes, que um dia, ele rodou uma rosa entalhada num friso, a rosa estalou, a madeira se moveu e abriu-se uma porta na parede.

Era de noite. E do outro lado estava escuríssimo. Mas, embora Carlinhos tenha ficado com um pouco de medo, foi buscar uma vela e entrou pela porta, que ele já estava chamando de misteriosa.

A luz da vela tremia muito e levou algum tempo para que Carlinhos enxergasse o que estava lá dentro.

Então o coração do menino começou a bater forte, porque ele estava numa sala enorme, toda forrada de estantes de livros e no fundo, pendurado na parede, estava o retrato de sua avó, tão bonita, moça, num lindo vestido comprido, com um livro na mão.

Para Carlinhos, aquela era uma coisa mágica, era como se fosse um sonho, um espaço desconhecido.

Depois que passou a primeira emoção, o menino começou a olhar os livros nas estantes. Tinha livros de todos os tamanhos, de capas de todas as cores.

De repente Carlinhos encontrou um daqueles livrões que sua avó costumava mostrar a ele.

O menino abriu o livro com o coração batendo. Lá estava a história do Trenzinho do Nariz Frio; a do Marinheiro Tatuado; a dos Patos que Cantavam o Hino Nacional. E tinha a história da Menina que não Gostava de Nada, da Torre de Babel e uma, muito engraçada, que se chamava Enquanto eles Dormem no Japão.

Carlinhos chegou a ler uma ou duas, mas percebeu, de repente, que estava amanhecendo.

Ele não sabia bem por que, mas não queria que descobrissem o seu segredo.

Então botou o livro no lugar e voltou para o quarto da avó. Dormiu um bocadinho e sonhou com aqueles livros todos e sonhou com sua avó, tão alegre, tão engraçada, tão querida!

O menino ficou com muito sono o dia todo, até tirou uma soneca depois do almoço, o que espantou muito sua mãe.

E à noite, depois que todos foram dormir, lá foi ele outra vez para a sala misteriosa, que Carilinhos não entendia bem onde ficava. Ele achava que aquela sala era um milagre que sua avó tinha preparado só para ele.

E leu bastante, riu muito de umas gravuras e cartões-postais engraçados que descobriu, encontrou um teatro de bonecos com que brincava no tempo da avó.

No dia seguinte, o menino não pôde resistir e contou sobre a sala ao seu melhor amigo, o João.

À noite, depois que todos foram dormir, Carlinhos desceu as escadas bem devagarinho e abriu a porta da frente.

Lá estava o João, que tinha trazido a irmã, a Tuca. Os dois estavam loucos para conhecer a sala misteriosa.

E a Tuca também não pôde resistir.

No dia seguinte ela trouxe a prima, a Julinha. E a Julinha trouxe o Marcelo e o Marcelo trouxe o Cláudio, o Cláudio trouxe o Miguel e o Miguel...

Cada um trazia sua própria vela para poder ver os livros, ler à vontade e brincar com as mil coisas interessantes que todos os dias eles iam descobrindo.

Então aconteceu uma coisa engraçada.

Começou a correr pela cidade um boato que a escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra estava cheia de fantasmas.

As pessoas juravam umas para as outras que tinham visto luzes... Luzes que andavam atrás das janelas. Luzes que tremiam...

O vigia, seu Virgolino, que na verdade dormia a noite inteira, jurava que eram mentiras, "onde é que já se viu?".

Mas muitas pessoas afirmavam que tinham visto pessoalmente as tais luzes.

Dona Gertrudes Afonseca e Silva, que morava do outro lado da praça e ficava vigiando na janela a noite toda, confirmava:

- São fantasmas, sim senhor! Já vi cada sombra enorme lá dentro. Cruz credo!

E o seu Benício de Carvalho Pinto, que sofria de insônia e andava pela cidade a noite toda, confirmava:

- Fantasmas! Dos bons! Eu é que não passo mais pela pracinha!

Os pais do Carlinhos, dona Joana e seu Antonio, ouviram falar dos tais fantasmas, mas, como eles não acreditavam nessas coisas, não ligaram muito.

Até que um dia, a Joana levantou à noite para beber água e levou o maior susto com aquela fila de crianças de pijama, que entravam pela porta da frente, subiam as escadas e entravam no quarto de dona Carlotinha.

Então ela chamou o Antonio e os dois foram atrás da criançada.

Atravessaram o quarto e entraram pela porta secreta.

Uma porção de crianças estavam sentadas às mesas, deitadas nos tapetes, recostadas nas poltronas, com suas pequenas velas acesas, lendo!

- Ora essa! - o Antonio exclamou.

- Que ótima surpresa, essa criançada toda lendo!

Mas Joana não estava entendendo:

- Ué! Por que é que vocês não vêm ler de dia? Carlinhos respondeu por todos:

- A gente pode?

- Claro que pode - Joana respondeu.

- Para isso são as bibliotecas. Ainda mais as bibliotecas das escolas!

- Mas aqui não é a biblioteca da escola! - o João falou.

- É sim - disse Joana. - Ninguém sabia desta passagem, mas aqui é a biblioteca da escola. Vocês não conheciam?

- Nós nunca entramos aqui! - disse a Tuca. - A biblioteca está sempre fechada!

O pai e a mãe de Carlinhos se olharam!

- Ora essa! - disse Antonio. - Pra que serve uma biblioteca fechada?

No dia seguinte, Joana e Antonio foram falar com a diretora da Escola, dona Babete Ventura.

Não sei o que foi que eles conversaram. Mas na semana seguinte apareceu na frente da escola uma faixa que dizia:
..............................
Festa da biblioteca,
não percam!
Última semana de outubro!
..............................

A festa na Biblioteca foi ótima!

Vieram crianças de todas as escolas da redondeza.

Teve uma surpresa muito grande para o Carlinhos.

Com essa história toda, Antonio descobriu que os livrões de que Carlinhos tanto gostava tinham sido escritos a mão por dona Carlotinha.

Ele então mandou para a Editora Salamandra, e dona Regina, que é a editora lá deles, gostou muito e resolveu editar as histórias todas.

Então ela fez uma coleção bárbara, ilustrada pelo Walter Ono, pela Eva Furnari, pelo Ziraldo, pelo Carlos de Brito, pela Helena Alexandrino, pelo Ivan Zigg e por mais uma porção de ilustradores incríveis e eles todos vieram para a festa.

Teve o lançamento dos livros e a Ana Maria Machado e a Sylvia Ortoff e o João Marinho e a Anna Flora e a Edy Lima vieram e assinaram muitos autógrafos nos livros deles.

Eu fui também e ganhei das crianças o Prêmio Jacaré, que era um prêmio que elas inventaram.

E as crianças podiam andar pela biblioteca toda e ver todos os livros, e sentar às mesinhas para ler o que elas quisessem.

E, daí em diante, a biblioteca passou a ficar aberta, não só o dia inteiro, mas nos sábados e domingos e, em alguns dias, até à noite.

E a cidade inteira podia ser sócia e levar livros para casa e teve uma porção de pessoas que deram mais livros para a biblioteca, todos ótimos, que ninguém ia dar livros-porcaria para uma biblioteca tão boa.

E até tiveram que ocupar outra sala da escola, para os livros todos caberem.

E agora, quando o Carlinhos fica com muita saudade da vovó, ele vai até a biblioteca e fica lendo os livros dela: do Trenzinho que Tinha o Nariz Frio, do Marinheiro Tatuado, dos Patos que Cantavam o Hino Nacional...

Fonte:
Historinhas pescadas. Vol.2. Editora Moderna.