domingo, 2 de setembro de 2012

Monteiro Lobato (Uma História de Mil Anos)

–Hu... hu...
É como nos ínvios da mata soluça a juriti.
Doishus – um que sobe, outro que desce.

O destino dou!. .. Veludo verde-negro transmutado em som – voz das tristezas sombrias. Os aborígenes, maravilhosos denominadores das coisas, possuíam o senso impressionista da onomatopéia. Urutau, uru, urutu, inambu – que sons definirão melhor essas criaturinhas solitárias, amigas da penumbra e dos recessos?
A juriti, pombinha eternamente magoada, é todaus. Não canta, geme emu – geme um gemido aveludado, lilás, sonorização dolente da saudade.
O caçador passarinheiro sabe como ela morre sem luta ao mínimo ferimento. Morre em u...
Já o sanhaço é todoas. Ferido, debate-se, desfere bicadas, pia lancinante.

A juriti apaga-se como chama de algodão. Frágil torrão de vida, extingue-se como se extingue a vida do torrão de açúcar ao simples contato com a água. Umu que se funde. Como vivem e morrem juritis, assim viveu e morreu Vidinha, a linda criança afinada emu. E como não seria assim, se era Vidinha uma juriti humana – meiguice feita menina-e-moça, begônia sensível dos grotões?
Que amiga dos contrastes é a natureza!

Ali naquele barraco crescem no árido as samambaias. Rijas, ásperas, corajosas, resistem aos ventos, aos enxurros, ao cargueiro que as esbarra, ao viandante distraído que as chicoteia. Batidas, reerguem-se. Cortadas, rebrotam. Esmagadas, reviçam. Cínicas!
Mais adiante, na grota fria onde tudo é sombra e cerração, ergue-se a espaços, em meio dos caetés valentes e dos fetos rendados, a solitária begônia.
Tímida e frágil, o menor contato a magoa. Toda ela – caule, folhas, flores – é a mesma carne tenra de criança.
Sempre os contrastes.
Os eleitos de sensibilidade, os mártires da dor – e os fortes. A juriti e o sanhaço. A begônia e a samambaia.
Vidinha, a inocente criança, era juriti e begônia.
O Destino, como os sábios, também faz suas experiências. Permite vidas a título de experiência, na tentativa de aclimar na terra seres que não são da terra.
Vingará Vidinha, solta no mundo em meio da alcatéia humana?
Janeiro. Dia de mormaço a envolver o mundo sob a curva do céu imensamente azul.
A casa onde mora Vidinha é a única das cercanias – garça pousada no oceano verde-sujo das samambaias e sapezeiros.

Que terra! Ondula em mamelões verdolengos até encontrar o céu, longe, no horizonte. Hispidez, aridez – terra outrora bendita, que o homem, senhor do fogo, transfez em deserto maldito.
Os olhos pervagam: cá e lá, ’té aos confins, sempre o chamalote verde-oliva da samambaia áspera – esse musgo da esterilidade.
Entristece, aquilo. Cansa a vista o sem-fim da morraria nua de árvores – e o consolo é pousar os olhos na pombinha branca da casinhola.

Como a cal das paredes cintila ao sol! E como nos enleva a alma sua pequenina moldura de árvores domésticas! Aquele pá de espirradeira todo florido, o cercado de taquara; a horta, o canteirinho de flores, o poleiro das aves nos fundos sob a fronde da guabirobeira...

Vidinha é a manhã da casa. Vive entre duas estações: a mãe – um outono, e o pai – inverno em começos. Ali nasceu e cresceu. Ali morrerá. Inocente e ingênua, do mundo só conhece o centímetro quadrado de mundo que é o pequeno sítio paterno. Imagina as coisas – não as sabe. O homem: seu pai. Quantos homens haja, todos serão assim: bons e pais.
A mulher: sua mãe – um tudo.

Bichos?
O gato, o cão, o galo índio que canta pela alvorada, as galinhas suras. Sabe por ouvir dizer de outros muitos: da onça, – gatão feroz; da anta – bicho enorme ; da capivara – porco dos rios; da sucuri – cobra "desta" grossura! Veados e pacas já viu diversos mortos nas caçadas.

Longe do ermo onde está o sítio, é o mundo. Há nele cidades – casas e mais casas, pequenas e grandes em linha, com estradas pelo meio a que chamam de rua. Nunca as viu, sonha-as. Sabe que nelas moram os ricos, seres de outra raça, poderosos que compram fazendas, plantam cafezais e mandam em tudo.
As ideias que povoam sua cabecinha bebeu-as ali na conversa caseira dos pais.
Um Deus no céu, bom, imenso, tudo vê e ouve, até o que a boca não diz. Ao lado dele, Nossa senhora, tão boa, resplandecente, rodeada de anjos...
Os anjos! Crianças de asas e longas túnicas esvoaçantes. No oratório da casa há o retrato de um.
Seus prazeres: a vida da casa, os incidentes do terreiro.
– Venha ver, mamãe, depressa!
– Alguma bobagem...
– ... o pintinho sura trepado nas costas do capão peva, tenteando-se nas asinhas!

Venha ver que galanteza. Ei... ei, caiu!
Ou:
Brinquinho quer por força pegar a cauda. Está que parece um pião, corropiando.

É bonita? Vidinha o ignora. Não se conhece, não faz de si nenhuma idéia. Se nem espelho possui... É, no entanto, linda, dessa lindeza das telas raras que jazem fora de moldoura nos desvãos ignorados.
Vestida à maneira dos pobrezinhos, vale o que não está vestido: o corado das faces, a expressão de inocência, o olhar de criança, as mãos irrequietas. Tem a beleza das begônias silvestres. Dêem-lhe um vaso de porcelana e cintilará.
Cinderela, a eterna história...

O pai vive na luta silenciosa contra a aridez do solo, disputando às formigas, às geadas, à esterilidade, uma colheitinhas curtas. Não importa. Vive contente. A mãe moureja o dia inteiro nos trabalhos da casa. Cose, arruma, remenda, varre.

E Vidinha, entre eles, orquídea que floriu em trnco rude, brinca e sorri. Brinca e sorri com seus amigos: o cão, o gato, os pintos, as rolas que descem ao terreiro. Em noites escuras vêm visitá-la, cirandando em torno à casa, seus amiguinhos luminosos – os vagalumes.
Os anos passam. Os botões se fazem flor.
Um dia Vidinha entrou em sentir vagas perturbações de alma. Fugia aos brinquedos e cismava. A mãe notou a mudança.
– Em que está pensando, menina?
– Não sei. Em nada... e suspirou.
A mãe observou-a ainda uns tempos e disse ao marido:
– É lado de casar Vidinha. Está moça. Já não sabe o que quer.

Mas, casá-la, como? Com quem? Não havia ali vizinho naquele deserto, e a criança corria o risco de estiolar-se como flor estéril sem que olhos de homem casadouro pusessem reparo em seus encantos.
Não será assim, todavia. O destino levará por diante mais uma cruel experiência.
O lobo fareja de longe a menina da capinha vermelha.
A begônia daquele deserto, filha das selvas, será caça. Será caçada por um caçador...
Está na idade do sacrifício.
O caçador não tardará.
Vem perto, piando em inambu, com a espingarda nas mãos. Trocará de bom grado, vão ver, os inambus perseguidos pela inocente juriti incauta.
– Ó de casa!
–??
– Venho de longe. Perdi-me nestes carrascais, coisa de dois dias, e não posso comigo de canseira e fome. Venho pedir pousada.
Os ermitões do samambaial acolhem de braços abertos o transviado gentil.
Bonito moço da cidade. Bem-falante, maneiroso – uma sedução!
Como são belos os gaviões caçadores de inocências...
Deixou-se ficar a semana inteira. Contava coisas maravilhosas. O pai esquecia a roça para ouvi-lo, e a mãe desleixava a casa. Que sereia!
No pomar, sob o dossel das laranjeiras abotoadas:
– Nunca pensou em sair daqui, Vidinha?
– Sair? Aqui tenho casa, pai, mãe – tudo...
– Acha muito isso? Oh, lá fora é que é lindo! Que maravilha é lá fora! O mundo! As cidades! Aqui é o deserto, prisão horrível, aridez, melancolia...
E ia cantando contos das Mil e Uma Noites sobre a vida das cidades. Dizia do luxo, da magnificência, das festas, das pedrarias que cintilam, das sedas que acariciam o corpo, dos teatros, da música inebriante.
– Mas isso é um sonho...
O príncipe confirmava.
– A vida lá fora é um sonho.
E desfiava rosários inteiros de sonhos.
Vidinha, num deslumbramento, murmurava:
– É lindo! Mas tudo só para ricos.
– Para os ricos e para a beleza. Beleza vale mais que riqueza – e Vidinha é bela!
–Eu?
O espanto da criança...
– Bela, sim – e riquíssima, se o quiser. Vidinha é diamante a lapidar. É Cinderela, hoje no borralho, amanhã, princesa. Seus olhos são estrelas de veludo.
– Que ideia...
– Sua boca, ninho de colibri feito para o beijo...
– !...

A iniciação começa. E tudo na alma de Vidinha se aclara. As idéias vagas se definem. Os hieróglifos do coração se decifram.
Compreende a vida enfim. Sua inquietação era amor, em casulo ainda, a agitar-se nas trevas. Amor sem objeto, perfume sem destino.
O amor é febre da idade, e Vidinha chegara à idade da febre sem o saber. Sentia-lhe o queimar no coração, mas ignorava. E sonhava.
Tinha agora a chave de tudo. O príncipe encantado viera afinal. Estava ali ele, o grande mago de palavras maravilhosas, senhor do Abre-te Sésamo da Felicidade.
E o casulo do amor rompeu-se – e a crisálida do amor, ébria de luz, fez-se ardente borboleta de amor...
O gavião da cidade, fino de faro, havia descido no momento oportuno. Dizia-se doente e ia ficando. Sua doença chamava-se – desejo. Desejo de caçador. Ânsia de caçador por mais uma perdiz.
E a perdiz veio-lhe para as garras, fascinada pela estonteante miragem do amor.
O primeiro beijo...
A florada maravilhosa dos beijos...
O último beijo, à noite...
Pela manhã do décimo dia:
– Que é do caçador?
Fugira...
Já não recendem os manacás. São negras as flores do jardim. Não brilham as estrelas do céu. Não cantam os passarinhos. Não luzem os vagalumes. O sol não alumia. A noite só traz pesadelos.
Uma coisa só não mudou: ohu, hu magoado da juriti, lá no recesso das grotas.
Os dias de Vidinha são agora vagueios agitados pelo campo. Detém-se às vezes ante uma flor, de olhos parados, como recrescidos no rosto. E monologa mentalmente:
– Vermelha? Mentira. Cheirosa? Mentira. Tudo mentira, mentira, mentira...
Mas Vidinha é juriti, corpo e alma afinados emu. Não desespera, não luta, não explode. Chora por dentro e definha. Begônia silvestre que o passante brutal chicoteou, dobra no hastil quebrado, pende para a terra e murcha. Chama de algodão... Torrão de açúcar...
Estava concluída a experiência do Destino. Mais uma vez provava-se que não vive na terra o que não é da terra.
Uma cruz...
E dali por diante, se alguém falava em Vidinha, o velho pai murmurava:
– Era a nossa luz de alegria. Apagou-se...
E a mãe, lacrimejante:
– Não me sai da memória a última palavra dela: "Agora um beijo, mamãe, um beijo seu..."
Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 656)


Uma Trova de Ademar 

Nessa ausência tão sofrida
que a separação impôs;
vejo o grande mal que a vida
fez na vida de nós dois.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Potiguar 


Morre a flor na flor da idade,
padece a planta de dor;
a ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
–Prof. Garcia/RN–

Uma Trova Premiada 


2000 > Pouso Alegre/MG
Tema > PASSADO > M/E


A saudade, na insistência
em devolver-me o passado,
faz a dor de tua ausência
tomar forma... do meu lado!
–Ivone Taglialegna Prado/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Aérea, fluída, de gase,
corpo volátil de essência...
sua presença era quase
como se fosse uma ausência...
–João Rangel Coelho/RJ–

U m a   P o e s i a 


Com certeza, lá no céu
a vida é somente amor;
necessidades, não há;
dinheiro não tem valor,
e a felicidade eterna
supõe ausência de dor.
–José Lucas de Barros/RN–

Soneto do Dia 

ROGATIVA.
–Thalma Tavares/SP–


Senhor, que olhas os antros, as vielas,
os homens sem trabalho, o lar sem pão,
que a minha fé não morra como as velas
que ao mais leve soprar se apagarão.

Ante a ganância atroz, cujas mazelas
nos põem em sobressalto o coração,
eu venho Te pedir pelas favelas
que ora clamam por paz e proteção.

O pobre, da miséria anda cansado
e pensa, em sofrimentos mergulhado,
que Tu, ó meu Senhor, lhe deste as costas.

E é tanta, neste mundo, a violência
que não querendo crer na Tua ausência
eu ando pela vida de mãos postas.

Francisco Miguel de Moura (A Mulher que não Ri)

Francisco Miguel de Moura
Encontrei-a na rua.

É bonita mas não chega a ser nenhuma miss. Nem ex-miss. Pelos olhos, pelo rosto, pelos cabelos, acredito que não freqüenta salões de beleza.

Ia andando de pé, pela cidade, e encontrei-a. É que ainda sinto prazer em andar e andar, sem propósito, sem preocupação, pelas ruas da cidade onde habito, apesar de todos os pesares. E nas minhas andanças, poucas vezes em busca de resolver meus quefazeres e tantas outras nas minhas caminhadas matinais e vespertinas, tenho observado hábitos e comportamentos. As diferenças me aprazem.

Como as criaturas são estranhas!

Há pessoas que, mesmo em se lhe dando bom dia, ou boa tarde, conforme a hora não se abrem, não dizem nada em resposta, às vezes nem olham, ou viram a cara. Raras são aquelas que, sem serem conhecidas, respondem à saudação dos passantes ou lhes dirigem a palavra junto com um sorriso prazenteiro.

Verdade que existe o medo dos estranhos, da perversidade dos ladrões, dos seqüestradores, dos assassinos, dos que só buscam fazer o mal. Mas também é certo que pessoas outras não se parecem nada com gente daquele naipe, no físico, nas feições. São comuns, nem precisam ter letreiro na testa. Ainda mais se entraram já na casa dos sessenta, com os cabelos pintados do branco permanente da velhice.

E foi por causa da idade que me vem chegando, talvez, que observei aquela moça especial, desde muito tempo na minha presença - quando a vejo e quando a deixo de vê-la, a que tomo agora por minha “persona”. Não é caminhante como eu e sim empregada de uma loja cujo nome não vai dito aqui porque seria uma propaganda gratuita, e mais, por resguardo da identidade daquela de quem falo ao meu leitor.

Ela, minha personagem, nunca ri. Fala pouco, só o necessário, embora seja expedita no atendimento dos que procuram comprar alguma mercadoria ou pedir informações, esclarecimentos. Mas não ri, não ri nunca. Está sempre ocupada, trabalhando. Seria por causa disto? Já a encontrei na rua outras vezes, além da primeira de que me lembro. É o mesmo comportar-se: o rosto não contraído, mas não ri; e tem poucas palavras para com as pessoas que a cercam, por exemplo uma companheira de trabalho com quem chega na loja. Daquela vez dei-lhe o meu bom dia e não ouvi resposta, ou então era muito baixa sua voz. Conheço-a de três anos a mais. Sabe, leitor, o que ela me falou até agora na loja? Apenas isto:

- Já foi atendido, senhor?

Outras colegas suas já me atenderam e soltaram seus meio-sorrisos, ou falaram alguma coisa mais que o referente ao simples ato comercial.

Minto. No ano passado, quando publiquei minha crônica costumeira de dezembro, ela me dirigiu duas palavras, em meio a seu serviço de vendedora. A provocação partiu de mim.

- Já leu meu conto de Natal deste ano? Eu sou escritor – apresentei-me.

- Como é seu nome? – ela perguntou.

Eu balbuciei meu nome, depois criei coragem e o disse completo.

- Meu nome literário!

E ainda acrescentei onde havia saído - o nome do jornal.

- Ah, sim! Li e gostei. É por ali mesmo.

Agradeci por ter a simpatia de tão agradável leitora e fiquei esperando seu sorriso.

Qual nada!

Por isto fico me perguntando como acontecem tais coisas, como as pessoas são assim, cada uma diferente. E todas iguais no comer, no dormir, no trabalhar, na pratica da vida diária.

Por que, meu Deus?

No ano seguinte, nova crônica de Natal no mesmo jornal, e fico na escuta dos leitores que se manifestam. Uns o fazem agradando, outros não. Pior os que esquecem. Ou não leram.

Continuei a passar por onde minha “persona” atende profissionalmente. E continuo freguês do estabelecimento. Esperando sua reação, lógico. Mas até hoje não me falou nada.

Esse é um dos enigmas que tento desvendar, talvez o mais difícil. Não me parece pessoa infeliz Nem doente. Ao contrario tem uma aparência agradável. Também não pode ser considerada feia de feição, muito menos de corpo. Não faz muito que a vi fora do balcão, mostrava toda a sua estatura, suas formas dentro de uma veste comum, de trabalho. Mulher atraente. Mas como milhares de outras por aí. Convenci-me de que não eram suas formas que me atraíam, nem seu olhar, nem seus cabelos. Era o enigma. Que faz de sua vida a moça que não tem o prazer do riso? Todos os seres humanos se enfeitam com o sorriso, a mulher então!...

Já pensava em quebrar mais um pouco de minha timidez, na próxima passagem por ali, coisa que não seria difícil porque minha andança em redor se tornara mais constante. Era só perguntar-lhe o nome. Depois emendava com outras perguntinhas à-toas. O nome é coisa importante para todo o mundo. É a partir dele que nascem outras palavras. E das palavras, uma história, o comentário de um fato, uma confissão mesmo diminuta. De seqüência em seqüência estaria lhe declarando amor nem que fosse para quebrar a cara. Quebrar a cara seria conhecê-la mais, até então o meu obsessivo propósito.

Qual não foi a minha surpresa quando, no dia seguinte, ela não voltou. Nem no outro, nem no outro. Uma semana inteira. E nenhuma de suas colegas quis dar-me seu endereço.

Pode ser que eu tenha sido o seu constrangimento e onde esteja agora sorria como qualquer criatura.

Fonte:
www.quemtemsedevenha.com.br/20contos/mulher_que_nao_ri.htm (site desativado)

Alberto Caeiro (Poemas Avulsos)

Alberto Caeiro da Silva foi uma personagem ficcional (heterónimo) criada por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingénuo dos restantes heterónimos (Álvaro de Campos e Ricardo Reis) e do seu próprio autor, apesar da apenas ter tido instrução primária.

“A ESPANTOSA…”
A espantosa realidade das coisas
 É a minha descoberta de todos os dias.
 Cada coisa é o que é,
 E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
 E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
 Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
 Cada poema meu diz isto,
 E todos os meus poemas são diferentes,
 Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
 Não me ponho a pensar se ela sente.
 Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
 Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
 Gosto dela porque ela não sente nada.
 Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
 E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
 Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
 Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
 Porque o penso sem pensamentos
 Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
 E eu admirei-me, porque não julgava
 Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
 Eu nem sequer sou poeta: vejo.
 Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
 O valor está ali, nos meus versos.
 Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

“BOLAS DE SABÃO”

As bolas de sabão que esta criança
 Se entretém a largar de uma palhinha
 São translucidamente uma filosofia toda.
 Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
 Amigas dos olhos como as coisas,
 São aquilo que são
 Com uma precisão redondinha e aérea,
 E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
 Pretende aue elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
 São como a brisa que passa e mal toca nas flores
 E que só sabemos que passa
 Porque qualquer coisa se aligeira em nós
 E aceita tudo mais nitidamente.

“MENINO JESUS”

Num meio-dia de fim de Primavera
 Tive um sonho como uma fotografia.
 Vi Jesus Cristo descer à terra.
 Veio pela encosta de um monte
 Tornado outra vez menino,
 A correr e a rolar-se pela erva
 E a arrancar flores para as deitar fora
 E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
 Era nosso demais para fingir
 De segunda pessoa da Trindade.
 No céu tudo era falso, tudo em desacordo
 Com flores e árvores e pedras.
 No céu tinha que estar sempre sério
 E de vez em quando de se tornar outra vez homem
 E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
 Com uma coroa toda à roda de espinhos
 E os pés espetados por um prego com cabeça,
 E até com um trapo à roda da cintura
 Como os pretos nas ilustrações.
 Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
 Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas -
 Um velho chamado José, que era carpinteiro,
 E que não era pai dele;
 E o outro pai era uma pomba estúpida,
 A única pomba feia do mundo
 Porque nem era do mundo nem era pomba.
 E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
 Não era mulher: era uma mala
 Em que ele tinha vindo do céu.
 E queriam que ele, que só nascera da mãe,
 E que nunca tivera pai para amar com respeito,
 Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
 E o Espírito Santo andava a voar,
 Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
 Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
 Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
 Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
 E deixou-o pregado na cruz que há no céu
 E serve de modelo às outras.
 Depois fugiu para o Sol
 E desceu no primeiro raio que apanhou.
 Hoje vive na minha aldeia comigo.
 É uma criança bonita de riso e natural.
 Limpa o nariz ao braço direito,
 Chapinha nas poças de água,
 Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
 Atira pedras aos burros,
 Rouba a fruta dos pomares
 E foge a chorar e a gritar dos cães.
 E, porque sabe que elas não gostam
 E que toda a gente acha graça,
 Corre atrás das raparigas
 Que vão em ranchos pelas estradas
 Com as bilhas às cabeças
 E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
 Ensinou-me a olhar para as coisas.
 Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
 Mostra-me como as pedras são engraçadas
 Quando a gente as tem na mão
 E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
 Diz que ele é um velho estúpido e doente,
 Sempre a escarrar para o chão
 E a dizer indecências.
 A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
 E o Espírito Santo coça-se com o bico
 E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
 Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
 Das coisas que criou -
 “Se é que ele as criou, do que duvido.” -
 “Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
 Mas os seres não cantam nada.
 Se cantassem seriam cantores.
 Os seres existem e mais nada,
 E por isso se chamam seres.”
 E depois, cansado de dizer mal de Deus,
 O Menino Jesus adormece nos meus braços
 E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
 Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
 Ele é o humano que é natural.
 Ele é o divino que sorri e que brinca.
 E por isso é que eu sei com toda a certeza
 Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
 É esta minha quotidiana vida de poeta,
 E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
 E que o meu mínimo olhar
 Me enche de sensação,
 E o mais pequeno som, seja do que for,
 Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
 Dá-me uma mão a mim
 E outra a tudo que existe
 E assim vamos os três pelo caminho que houver,
 Saltando e cantando e rindo
 E gozando o nosso segredo comum
 Que é saber por toda a parte
 Que não há mistério no mundo
 E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
 A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
 O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
 São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
 Na companhia de tudo
 Que nunca pensamos um no outro,
 Mas vivemos juntos e dois
 Com um acordo íntimo
 Como a mão direita e a esquerda.

QUANDO VIER A PRIMAVERA

Quando vier a Primavera,
 Se eu já estiver morto,
 As flores florirão da mesma maneira
 E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
 A realidade não precisa de mim.
 Sinto uma alegria enorme
 Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
 Se soubesse que amanhã morria
 E a Primavera era depois de amanhã,
 Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
 Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
 Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
 E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
 Por isso, se morrer agora, morro contente,
 Porque tudo é real e tudo está certo.
 Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
 Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
 Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. 
 O que for, quando for, é que será o que é.

“ASSIM COMO FALHAM AS PALAVRAS”
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
 Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer
 realidade.
 Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,
 Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
 Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
 O resto é uma espécie de sono que temos,
 Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

“GUARDADOR DE REBANHOS”

Eu nunca guardei rebanhos,
 Mas é como se os guardasse.
 Minha alma é como um pastor,
 Conhece o vento e o sol
 E anda pela mão das Estações
 A seguir e a olhar.
 Toda a paz da Natureza sem gente
 Vem sentar-se a meu lado.
 Mas eu fico triste como um pôr de sol
 Para a nossa imaginação,
 Quando esfria no fundo da planície
 E se sente a noite entrada
 Como uma borboleta pela janela.
 Mas a minha tristeza é sossego
 Porque é natural e justa
 E é o que deve estar na alma
 Quando já pensa que existe
 E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
 Como um ruído de chocalhos
 Para além da curva da estrada,
 Os meus pensamentos são contentes.
 Só tenho pena de saber que eles são contentes,
 Porque, se o não soubesse,
 Em vez de serem contentes e tristes,
 Seriam alegres e contentes.
 Pensar incomoda como andar à chuva
 Quando o vento cresce e parece que chove mais.
 Não tenho ambições nem desejos.
 Ser poeta não é uma ambição minha,
 É a minha maneira de estar sozinho.
 E se desejo às vezes
 Por imaginar, ser cordeirinho
 (Ou ser o rebanho todo
 Para andar espalhado por toda a encosta
 A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
 É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
 Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
 E corre um silêncio pela erva fora.
 Quando me sento a escrever versos
 Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
 Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
 Sinto um cajado nas mãos
 E vejo um recorte de mim
 No cimo dum outeiro,
 Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
 Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
 E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se
 diz E quer fingir que compreende.
 Saúdo todos os que me lerem,
 Tirando-lhes o chapéu largo
 Quando me vêem à minha porta
 Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
 Saúdo-os e desejo-lhes sol,
 E chuva, quando a chuva é precisa,
 E que as suas casas tenham
 Ao pé duma janela aberta
 Uma cadeira predileta
 Onde se sentem, lendo os meus versos.
 E ao lerem os meus versos pensem
 Que sou qualquer coisa natural -
 Por exemplo, a árvore antiga
 A sombra da qual quando crianças
 Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
 E limpavam o suor da testa quente
 Com a manga do bibe riscado.

“É NOITE”
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
 Brilha a luz duma janela.
 Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
 É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
 Atrai-me só por essa luz vista de longe.
 Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
 Mas agora só me importa a luz da janela dele.
 Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
 A luz é a realidade imediata para mim.
 Eu nunca passo para além da realidade imediata.
 Para além da realidade imediata não há nada.
 Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
 Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
 O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
 Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
 A luz apagou-se.
 Que me importa que o homem continue a existir?

Fonte:
Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos, Vol. I , Obras Completas, de Fernando Pessoa.

Folclore Português (A Águia, a Gata e a Porca)

 D. Águia fizera a sua casa na ramaria mais alta de um carvalho.

 Mais tarde, D. Gata Brava foi também habitar na mesma árvore, mas a meio dos troncos, e algum tempo depois foi a Sr.ª Porca que veio morar para a mesma árvore, instalando-se nas raízes, que cavou fundo, abrindo uma galeria.

 D. Águia teve filhos, D. Gata também e as três famílias viviam satisfeitas e em paz no mesmo carvalho.

 Um dia, porém, D. Gata Brava teve desejo de ser má e trepando pelos troncos chegou ao ponto mais alto da árvore onde morava a D. Águia e disse-lhe:

 - Ó vizinha, eu não gosto de falar mal de ninguém, mas também não posso saber que está para acontecer mal a qualquer e não avisar.

 - Mas diga, D. Gata – convidou a Águia.

 - Sei que a Porca se instalou aqui na árvore com a ideia de ir roendo as raízes até que tudo venha abaixo, para depois assaltar as nossas casas e se banquetear com os nossos filhos. Venho avisar a D. Águia para se acautelar.

 - Que marota, vizinha! Agora, já nem saio de casa, para defender os pequenos.

 Mas, de casa da D. Águia, a Gata desceu a casa da Sr.” Porca.

 - Ó vizinha!

 - Que é, D. Gata?

 - Ouvi agora uma conversa que me arrepiou e venho avisá-la.

 - Então que há?

 - A D. Águia, há bocado, estava a dizer aos filhos que os seus meninos são tão gordinhos e desenxovalhadinhos que se fazia com eles um bom jantar. Diz que logo que a senhora saia de casa…

 - Ah! não me diga isso, D. Gata! Que horror!

 - Pois é verdade, Srª Porca, acautele-se.

 - Valha-me Deus! Nem eu saio de casa, para tomar conta dos miúdos…

 - Eu vou fazer o mesmo com os meus filhos, vizinha, porque com gente desta na vizinhança não podemos estar sossegadas. Até logo!

 - Até logo, D. Gata, e obrigado!

 A Gata foi-se embora e a Porca ficou em casa, aflita, a pensar nas más intenções da Águia. Esta, por sua vez, ficou desesperada com a maldade da Porca, e, as duas, temendo-se uma à outra, nunca mais saíram de casa, para tomarem conta dos filhos.

 Assim, não mais foram procurar comida e não mais puderam alimentar os filhos. Foram enfraquecendo todos até não se poderem mexer e, quando os apanhou assim, a Gata foi primeiro a casa de uma e depois a casa de outra e comeu a mãe e os filhos.

 E, assim, a pobre D. Águia e a pobre Srª Porca foram vítimas da maldade da D. Gata, por terem acreditado nas suas mentiras.

 Não há pior do que uma mentira!

Fonte:
Luís Gaspar. Estúdio Raposa
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

Peter Burke (A Escola dos Annales)

A obra A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia é a primeira publicação que narra a história do movimento surgido na França, agrupado em torno da revista Annales. Ao dar estatuto de objeto de análise histórica a dimensões da vida privada, o livro abriu uma terceira via ao estudo da História, distanciando-se tanto da historiografia marxista quanto da história factual-biográfica. Peter Burke, o autor, esclarece as coordenadas dessa refundação do método histórico analisando seus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, passando ainda por Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Le Roy Ladurie.

 O subtítulo da obra, A Revolução Francesa na Historiografia, é um indicativo da importância deste movimento liderado por Marc Bloch e Lucien Febvre ainda na década de 1920. Tentando incorporar as novas ciências e com a necessidade de ampliar a visão sobre o seu próprio tempo, estes historiadores propunham inovações metodológicas e temáticas.

 Traduzido no Brasil apenas em 1997, ressalta que apenas quando se aprofundar os estudos sobre “os rascunhos manuscritos de Marc Bloch ou as cartas não publicadas de Febvre e Braudel” é que se terá uma compreensão melhor definida sobre a história do movimento. E, acrescenta, que para tanto será preciso “um conhecimento especializado da história da historiografia, quanto da história da França do século XX”.

 O livro traz um estudo do movimento dos Annales, tenta compreender o mundo francês, explicar desde a década de 20, até as gerações posteriores, a teoria e a prática do historiador para outros cientistas sociais. De acordo com a obra de Burke, os Annales foi um movimento dividido em três fases, a saber

 1. A primeira parte apresenta a guerra radical contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos.

 2. Na segunda parte, o movimento aproxima-se verdadeiramente de uma “escola”, com conceitos (estrutura e conjuntura) e novos métodos (história serial das mudanças na longa duração) dominada, prevalentemente, pela presença de Fernand Braudel (46-69).

 3. A terceira parte traz uma fase marcada pela fragmentação e por exercer grande influência sobre a historiografia e sobre o público leitor, em abordagens que comumente chamamos de Nova História ou História Cultural.

 Nos cinco capítulos que integram a obra, o autor proporciona uma viagem através da “história da história”, seus principais escritores, métodos e finalidades de sua escrita, partindo da contribuição antiga até chegarao século XX. Trata-se da História da Historiografia na sua longa duração. Considera o autor que, a partir da “Revolução Copernicana” na história, com Leopold Von Ranke, a história sócio-cultural foi remarginalizada. Foi dada ênfase nas fontes dos arquivos, numa época em que os historiadores buscavam se profissionalizar e a história não política foi excluída. O século XIX ouviu vozes discordantes entre historiadores, a exemplo de Michelet e Burckhardt que propuseram uma visão mais ampla da história.

 Outros exemplos podem ser citados, como Fustel de Coulanges e Marx que ofereciam um paradigma histórico alternativo ao de Ranke. Historiadores econômicos foram os opositores mais bem organizados da história política. Os fundadores da Sociologia - Comte, Spencer e Durkheim - expressavam pontos de vista semelhantes.

 No início do novo século, um movimento lançado por James Harvey Robinson sob a bandeira da “Nova História” defendeu que a história incluia qualquer traço ou vestígio das coisas que o homem fez ou pensou, desde o seu surgimento sobre a terra. Na França, a natureza da história tornou-se objeto de intenso debate e alguns historiadores políticos tinham concepções históricas mais abrangentes, a exemplo de Ernest Lavisse, portanto, é inexato pensar que os historiadores profissionais desse período estivessem exclusivamente envolvidos com a narrativa dos acontecimentos políticos, como, por exemplo, François Simiand, um economista seguidor de Durkheim, que promoveu um ataque a Charles Seignobos, símbolo de tudo a que os reformadores se opunham. Tratava-se, na verdade, de um ataque aos três ídolos da tribo dos historiadores: político, individual e cronológico. Ao mesmo tempo Henri Berr, um grande empreendedor intelectual, lançou o ideal de uma psicologia construída com a cooperação interdisciplinar, o que teve ressonância em Febvree Bloch.

 De acordo com Burke, no final da Primeira Guerra, Febvre idealizou uma revista internacional dedicada à história econômica, mas o projeto foi abandonado. Em 1928, Bloch tomou a iniciativa de ressuscitar os planos da revista, agora francesa, com sucesso. Originalmente chamada "Annales d'histoire économique et sociali", pretendia ser a difusora de uma abordagem nova e interdisciplinar da história, exercer uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica, e preocupava-se com o problema do método no campo das ciências sociais. Os Annales começou como uma revista de seita herética, depois da guerra, se tornou oficial. Aos poucos se converteu no centro de uma escola histórica que foi transmitida para escolas e universidades.

 A segunda geração dos Annales foi protagonizada por Fernand Braudel que sucedeu Febvre como diretor efetivo da revista. Para Braudel, a contribuição especial do historiador às ciências sociais é a consciência de que todas as “estruturas” estão sujeitas a mudanças, mesmo que lentas. Ele desejava ver as coisas em sua inteireza, por isso era impaciente com fronteiras, separassem elas regiões ou ciências. Quando prisioneiro, durante a Segunda Guerra, Braudel teve a oportunidade de escrever sua tese. Seus rascunhos eram remetidos para Febvre, de quem recebeu forte influência que o direcionaram para a geo-história. A obra com o título o Mediterrâneo e Felipe II, degrande dimensão, era dividida em três partes, cada uma exemplificando uma diferente forma de abordagem do passado: primeiro, uma história “quase sem tempo” da relaçãoentre o “homem” e o ambiente; segundo, a história mutante da estrutura econômica, social e política e, terceiro, a trepidante história dos acontecimentos (a parte mais tradicional), corresponderia à idéia original de uma tese sobre a política exterior de Felipe II.

 O Mar é o herói do épico braudeliano. Ele divide o tempo histórico em: geográfico, social e individual, realçando a longa duração. Nesse período a história das mentalidades foi marginalizada, tanto por Braudel não ter interesse por ela, quanto porque um número de historiadores franceses acreditava que a história social e econômica era mais importante do que outros aspectos do passado, também porque a nova abordagem quantitativa não encontrava no estudo das mentalidades a mesma sustentação oferecida pela estrutura sócio-econômica.

 Ainda conforme o texto de Burke, a terceira geração dos Annales foi marcada por mudanças intelectuais. O policentrismo (o centro do pensamento histórico estava em vários locais) permitiu a abertura para idéias vindas do exterior e a inclusão de novas temáticas. A ausência de um domínio temático fez com que alguns comentadores falassem numa fragmentação. Burke abordou três temas maiores: a redescoberta da história das mentalidades, a tentativa de empregar métodos quantitativos na história cultural e a reação contrária a tais métodos (quer tomem a forma de uma antropologia histórica, um retorno à política ou o ressurgimento da narrativa). A mudança de interesses dos intelectuais dos Annales, da base econômica para a “superestrutura” cultural – reação contra Braudel e contra qualquer determinismo - foi intitulada por Burke como um movimento “do porão ao sótão”.

 No interior do grupo dos Annales alguns historiadores sempre estiveram envolvidos com os fenômenos culturais e com a mentalidade. A nova abordagem quantitativa (ou serial) não encontrava no estudo das mentalidades a mesma sustentação oferecida pela estrutura sócio-econômica. Um artigo de Lucien Febvre (1941) mostra a importância doestudo das séries de documentos na longa duração, a fim de mapear mudanças. Também Gabriel Le Bras, Vovelle, Le Bras, interessaram-se por mensurar processos históricos.

 Nos anos 70 surgiu uma reação contrária à abordagem quantitativa, ao domínio da história estrutural e social, defendida pelos Annales, o que resultou na mudança antropológica, no retorno à política e no ressurgimento da narrativa.

 A conhecida crítica aos Annales é a sua pressuposta negligência ao tema "política", mas ela não procedeu em relação a todos os componentes do grupo. A volta à política estava também ligada ao ressurgimento do interesse pela narrativa dos eventos: história dos eventos e narrativa histórica. Sobre os Annales muito são os trabalhos escritos, pelos críticos que defendem eaqueles que refutavam sua proposta metodológica e seu objeto, de maneira que o tema pode parecer bastante explorado, porém, o livro de Peter Burke tem o mérito de apresentar sinteticamente e de maneira satisfatória a imensurável elaboração e contribuição das gerações dos Annales, numa só obra, servindo de partida indispensável para historiadores e historiadores da educação, que se ampararam em teorias advindas da História Cultural.

Fonte:
Edileusa Santos Oliveira (Historiadora, Especialista em Educação, Cultura e Memória; participante do Grupo de Pesquisa em Fundamentos da Educação do Museu Pedagógico da UESB)
Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro (Coordenadora do Grupo Fundamentos da Educação do Museu Pedagógico da UESB)
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_escola_dos_annales

Concurso Internacional de Microcontos 'Conto Minguante'- Quaderni Ibero Americani (Resultado Final)

1º LUGAR:
"Espanhola"
Marcela Aparecida Ribeiro Ferreira (Poetisa Errante)

2º LUGAR:
"Peixe Podre"
Therlanderson Gley Alves (Alonso Quijano)

3º LUGAR:
"Kindengarten"
Gabriela Cordaro (Francesca Rimini)

Fonte:
http://microcontosqiapor.blogspot.com.br/2012/07/os-diretores-da-quaderni-ibero.html