sábado, 29 de dezembro de 2012

Mitos e Lendas (O Carneiro Encantado)

No lugar Passagem de Santo Antonio, Maranhão, fronteira com o Piauí, margem do rio Parnaiba, os viajantes vêem um carneiro gigantesco com uma estrela resplandescente na testa... Às vezes o brilho da estrela parece extinguir-se, mas bruscamente se aviva com luminosidade deslumbrante.

Dizem que há muito tempo, os ladrões assassinaram um monge missionário que voltava ao convento carregado de esmolas.

Mataram e roubaram o frade.

Terminando o crime, tocados pelo remorso, resolveram sepultar o cadáver enterrando também as esmolas junto com o corpo.

De vez em quando o monge aparece durante a noite, transformado no grande carneiro branco e tendo na testa estrela deslumbrante símbolo da pureza enterrada.
Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (O Boi Barroso)

Meu bonito boi barroso
Que eu já contava perdido
Deixando o rastro na areia
 Foi logo reconhecido

Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora
E grite: aperta, gente
Que o meu boi se vai embora!

No cruzar de uma picada
Meu cavalo relinchou
Dei de rédea para a esquerda
E o meu boi me atropelou

Ajudai-me, companheiros
Não me deixem morrer só
Ali vem o boi barroso
Estralando o mocotó!

Nos tentos levava um laço
Com vinte e cinco rodilhas
Pra laçar meu boi barroso
Lá no alto das coxilhas

Mas no mato carrasquento
Onde o boi ‘stava embretado
Não quis usar o meu laço
Pra não vê-lo retalhado

E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré

E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga

E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia-cara

Estribilho
Meu boi barroso
Meu boi pitanga
O teu lugar
É lá na canga

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 - Ano XII - nº 140
Edição Especial de Aniversário

Adriana Abujamra Aith (Sozinha)

Sozinha, coitada.
Nunca estava acompanhada.
Pega-pega, sozinha não tinha.
Queimada, sozinha não dava.
Então, ela sentava a pensar.
Mas estava tão sozinha que nem pensamento vinha.
Se Sozinha assim estava,
mais sozinha ia ficar,
Porque o S da Sozinha resolveu se mandar.
Mal Ozinha se deu conta, o O aproveitou o embalo e saiu rolando.
Desolada, sentia-se uma zinha qualquer.
"Ô, Zinha", disse o Z.
E zapt, fugiu ligeiro, deixando Inha para trás.
"Inha, Inha, inhaaaá!"
Desandava a chorar.
Chorava, chorava até a lágrima secar.
E agora, o que fazer?
Olhou para um lado.
Olhou para o outro.
Para lá, para cá.
Até que seu pé se animou. Levantou a Inha e se pôs a sambar.
Ali de cima, os olhos de Inha observavam o seu pé,
que sacudia e sacudia.
E sacudindo contagiou o joelho,
que remexeu a coxa e fez o bumbum rebolar.
Do bumbum para a barriga foi um estalo.
Os ombros, que não são bobos, entraram logo no embalo.
Quando Inha percebeu, do pescoço para baixo estava um grande alvoroço.
Só faltava a cabeça. Então a boca disse: "Entre na dança." Êba! Vamos lá!
A alegria era tanta que atraiu muita gente. E todos os pés ali presentes convenceram seus donos a participar.
Inha estava contente, mas tão contente, que nem se lembrava mais do tempo em que tinha um S, um h e um Z,
que a deixavam Sozinha.
Deles queria distância. Mas não entendam mal. O S para um samba,
o O num oi e o Z para um ziriguidum seriam sempre bem-vindos.

Fonte:
Revista Nova Escola

Machado de Assis (Enéias Galvão: Miragens)


MEU CARO POETA, — este seu livro, com as lacunas próprias de um livro de estréia, tem as qualidades correspondentes, aquelas que são, a certo respeito, as melhores de toda a obra de um escritor. Com os anos adquire-se a firmeza, domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição que é a ambição e o dever de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas idéias e sensações. Mas há um aroma primitivo que se perde; há uma expansão ingênua, quase infantil, que o tempo limita e retrai. Compreendê-lo-á mais tarde, meu caro poeta, quando essa hora bendita houver passado, e com ela uma multidão de coisas que não voltam, posto desse lugar a outras que as compensam.

Por enquanto fiquemos na hora presente. É a das confidências pessoais, dos quadros íntimos, é a deste livro. Aos que lho argüirem, pode responder que sempre haverá tempo de alargar a vista a outros horizontes. Pode também advertir que é um pequeno livro, escolhido que não cansa, e eu acrescentarei, por minha conta, que se pode ler com prazer, e fechar com louvor.

Que há nele alguns leves descuidos, uma ou outra impropriedade, é certo; contudo vê-se que a composição do verso acha da sua parte a atenção que é hoje
indispensável na poesia, e uma vez que enriqueça o vocabulário, ele lhe sairá perfeito. Vê-se também que é sincero, que exprime os sentimentos próprios, que estes são bons, que há no poeta um homem, e no homem um coração. Ou eu me engano, ou tem aí com que tentar outros livros. 

Não restrinja então a matéria, lance os olhos além de si mesmo, sem prejuízo, contudo, do talento. Constrangê-lo é o maior pecado em arte. Anacreonte, se quisesse trocar a flauta pela tuba, ficaria sem tuba nem flauta; assim também Homero, se tentasse fazer de Anacreonte, não chegaria a dar-nos, a troco das suas imortais batalhas, uma das cantigas do poeta de Teos.

Desculpe a vulgaridade do conceito; ele é indispensável nos que começam. Outro que também me parece cabido é que, no esmero do verso não vá ao ponto de cercear a inspiração. Esta é a alma da poesia, e como toda a alma precisa de um corpo, força é dar-lho, e quanto mais belo, melhor; mas nem tudo deve ser corpo. A perfeição, neste caso, é a harmonia das partes.

Adeus, meu caro Poeta. Crer nas musas é ainda uma das coisas melhores da vida. Creia nelas e ame-as.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Teatro de Ontem e de Hoje (Estrada do Tabaco)


Segundo espetáculo do Teatro Popular de Arte, marca a estréia do diretor italiano Ruggero Jacobbi, no Brasil e é considerado por alguns críticos o primeiro espetáculo naturalista do teatro brasileiro.

Estrada do Tabaco, estreada com nome de Tobacco Road, de Erskine Caldwell e Jack Kirkland, é escolhida pelo empresário Sandro Polloni em virtude do sucesso da montagem na Broadway, onde atinge mais de 3 mil récitas. Depois de realizar Anjo Negro, enfrentando a baixa popularidade de Nelson Rodrigues, na época, o Teatro Popular de Arte - TPA convida para assumir o trabalho de direção Ruggero Jacobbi. No entanto, em depoimento à pesquisadora Tania Brandão, Sandro Polloni afirma, 30 anos depois, que quem dirigiu os atores foi Itália Fausta e que Ruggero Jacobbi "colaborou, porque trouxe idéias novas",1 o que explica a falta do crédito relativo à categoria direção no programa do espetáculo.

O texto mistura doses de hiper-realismo a um humor corrosivo. A história se passa no universo de uma família de famintos cuja única fonte de renda é a venda da madeira de um carvalho. As terras pertenciam ao avô, plantador de tabaco, até que a propriedade e a lavoura foram sendo gradativamente degradadas pelos herdeiros. Na primeira parte da peça, a ação apresenta os pequenos conflitos e as atividades rotineiras dos miseráveis. Subitamente, recebem o anúncio da visita do dono das terras e passam a acreditar que a vinda dele possa melhorar a vida do grupo.

O cenário de Laszlo Meitner procura unir realismo e síntese: o palco coberto de terra, barris com água e destroços reais de um velho automóvel. A direção, sem fugir do risco da monotonia, investe na lentidão do tempo naturalista, valorizando as pequenas ações e a ambientação. O crítico Henrique Oscar, ao comentar o espetáculo, faz referência ao pioneiro do naturalismo, André Antoine, e à sua companhia, o Théâtre Libre. A interpretação dos atores, no entanto, destoa da proposta geral, que se evidencia com precisão nos elementos visuais.

As apreciações críticas divergem quanto ao resultado final. Décio de Almeida Prado faz ressalvas à encenação que, segundo ele, transforma o realismo em caricatura e empobrece o texto. A interpretação cômica de Ziembinski para o velho Lester e o tom melodramático de Itália Fausta na cena final merecem reprovações, embora a atriz receba na maioria das críticas elogios à segurança e maestria de sua interpretação. Sergio Britto escreve, no Diário de Notícias, que o espetáculo resulta paradoxal: "é uma tragédia que se assiste rindo".2

Notas 

1. POLONNI, Sandro. Depoimento. In: SILVA, Tania Brandão da. Peripécias modernas: companhia Maria Della Costa. 1998. 398 p. Tese (Doutorado em História da Arte)-Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. p. 174.

2. BRITTO, Sergio. Citado em In: SILVA, Tania Brandão da. Peripécias modernas: companhia Maria Della Costa. 1998. 398 p. Tese (Doutorado em História da Arte)-Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. p. 177.

Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 769)



Uma Trova de Ademar  

A minha sogra, assanhada, 
no barracão da mangueira, 
foi muito mais apalpada 
do que laranja na feira!... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

É sovina a minha amiga:
se vai à feira gastar
não compra nem uma briga
sem primeiro pechinchar!
–Arlindo Tadeu Hagen/MG– 

Uma Trova Potiguar  

Tudo sobe!... A carestia
na feira já me derruba.
Só não sobe todo dia
o que eu preciso que suba!
–Clarindo Batista /RN– 

Uma Trova Premiada  

2008   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   FEIRA   -   1º Lugar 

Na feira, o “seu” Manuel:
– Não vendo nada... Pois, pois!
Mas se esgoela: – Olha o pastel,
pague três e leve dois!
–Lizete Johnson/RS– 

...E Suas Trovas Ficaram  

A minha sogra endiabrada, 
– onça que o diabo me deu, 
devia estar “empalhada” 
na vitrine de um museu! 
–P. de Petrus/RJ– 

U m a P o e s i a  

Minha mulher tem ciúme, 
roga praga e se maldiz; 
desconfia da vizinha, 
tem raiva da meretriz, 
mas, quando eu tiro o pijama, 
esquece tudo o que eu fiz! 
–Domingos Tomás/RN– 

Soneto do Dia  

REFORMA DO ENSINO. 
–Bastos Tigre/PE– 

Mal o Congresso arranja uma reforma 
da Instrução malsinada e miseranda, 
outra já se prepara; e desta forma 
ela de Herodes a Pilatos anda. 

Da mania reinante segue a norma 
(pois que da glória os píncaros demanda) 
e de um grande projeto o esboço forma 
o fecundo doutor Passos Miranda. 

A nova lei ordena que os pequenos 
trilhem com aplicação e com cuidado 
seis anos de científicos terrenos. 

Um parágrafo seja acrescentado: 
— O saber ler é obrigatório; a menos 
que o rapaz se destine a deputado...

Hildeberto Barbosa Filho (Escritor Paraibano Constrói Panorama do Nordeste Literário)


Publicado em 5 de janeiro de 2006

Às voltas com a materialização simultânea de diversos projetos, o escritor paraibano Hildeberto Barbosa Filho fez uma rápida pausa na preparação de seus dois novos livros, para cumprir, na capital maranhense, mais uma etapa de sua peregrinação pelo Brasil. Ele esteve durante três dias em São Luís, no final do mês de maio passado, para vir apresentar, de corpo presente, a obra do poeta maranhense Nauro Machado. Além de autografar o livro Literatura na Ilha (poetas e prosadores maranhenses), Barbosa Filho acompanhou o lançamento do novo tomo da coleção Melhores Poemas, da Global Editora, dedicado à obra de Nauro Machado.

Aos 51 anos, Hildeberto Barbosa Filho vem saboreando uma experiência com a qual sonhava há muito tempo: compor um panorama da produção literária dos Estados do Nordeste brasileiro. Este mapeamento já resultou em vários títulos, entre os quais Letras Cearenses; Os Labirintos do Discurso, painel da literatura paraibana; e O galo da torre, sobre as expressões literárias do Rio Grande do Norte. O autor acaba de concluir Pelo Rio das Imagens, livro sobre a literatura pernambucana, a ser publicado no próximo mês de outubro, por ocasião da Bienal do Livro, em Recife. Estes livros são fruto de uma intensa atividade de crítica militante do autor, sobretudo em jornais e revistas, num período que já compreende mais de 20 anos. Com a seleção e a triagem dos artigos que considera mais sólidos, dentre os publicados na imprensa, Barbosa Filho vem reunindo em livros tudo o que já conseguiu garimpar com seus ensaios e suas pesquisas. Ele explica que sua pretensão é a de dar uma visibilidade à produção literária nordestina, não só entre os próprios nordestinos. 

Curiosamente, do ponto de vista sociológico, nós, nordestinos, nos desconhecemos muito, apesar de morarmos em Estados relativamente próximos, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. Da mesma forma, no Maranhão, no Piauí e no Pará existe um desconhecimento mútuo do que se faz nestas regiões. Então a minha preocupação é no sentido de tornar visível, para nós mesmos, o que fazemos, na medida em que lançamos estes livros nos diversos Estados, com isso criando uma espécie de intercâmbio, afirma Hildeberto Barbosa Filho.

Perseverante e abnegado, o escritor vem percorrendo o Brasil com esse propósito de dar visibilidade ao Nordeste literário também no eixo Rio-São Paulo. Tenho feito incursões nas regiões economicamente mais desenvolvidas do país, porque existe uma atitude preconcebida por parte da indústria editorial, com relação às regiões periféricas: o Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste. É uma forma também de se dar a conhecer o que se faz aqui dentro desse plano mais amplo da nacionalidade. É uma forma de dizer que a literatura nordestina existe, é muito rica, muito sugestiva e não deve se envergonhar em relação ao que se faz no eixo Rio-São Paulo. Ao lançar em São Luís o livro A Literatura na Ilha (poetas e prosadores maranhenses), o autor explicou que a obra faz parte de uma arrojada iniciativa. É um projeto meu, particular, que visa mapear a produção literária nordestina mais contemporânea, dos anos 50 para cá. 

Literatura na Ilha enfoca alguns dos autores mais representativos da literatura maranhense contemporânea. Como venho realizando um trabalho de crítica de literatura no Nordeste, esse livro acabou nascendo. Ele não foi planejado. Reuni alguns ensaios, contemplando poema e prosa e isso acabou gerando o livro, assim como aconteceu nos Estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, informou o professor. Os escolhidos, além de Nauro Machado, são Luís Augusto Cassas, José Chagas, Salgado Maranhão, Ferreira Gullar, Lago Burnett, Laura Amélia Damous, Sebastião Moreira Duarte, Weliton Carvalho, Arlete Nogueira da Cruz e Lino Raposo Moreira. A intenção do livro é também dar visibilidade à literatura produzida hoje no Nordeste. Quero mostrar também os trabalhos feitos fora do eixo Rio-São Paulo, onde há um monopólio editorial, voltado exclusivamente para o lucro econômico. Quero mostrar esses trabalhos realizados no Nordeste e que são menos conhecidos, destacou.

A SAGA DE DOIS BRASIS

Autor de 32 obras, entre coletânea de poemas e livros de crítica e ensaios teóricos, o escritor paraibano constata que a literatura nordestina, em certos aspectos, chega a apresentar uma qualidade até mesmo mais robusta. Mas os críticos e os colunistas dos grandes jornais e das grandes revistas fazem questão, por um complexo de superioridade, que é tão grave quanto o complexo de inferioridade, de se manterem indiferentes e com isso quem perde na verdade são eles. Porque nós, como temos o complexo de inferioridade, também negativo, mas que termina sendo bom, nos obrigamos a conhecer tudo o que eles fazem. E acaba acontecendo muito o seguinte: nós conhecemos o que fazemos e o que eles fazem. Eles só conhecem o que fazem; não conhecem o que fazemos. Então eles perdem no debate. O escritor confessa que já teve a oportunidade de demonstrar várias vezes, em palestras e seminários e, recentemente, por ocasião do Prêmio Portugal Telecom, do qual integrou o júri nacional, que há uma ignorância nababesca em relação ao Nordeste literário. Eu pude perceber, nas discussões dos colegas do Sul, que são muito capazes e competentes, que eles desconhecem, de forma principesca, a nossa realidade literária, cultural e, às vezes, até a realidade política e econômica. Isto, a meu ver, é uma coisa secular, é uma reprodução do colonialismo por que passou o país ao longo da nossa História. 

Paraibano de Aroeiras, Hildeberto Barbosa Filho mora há mais de 30 anos em João Pessoa. Ele bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba; tem curso de Licenciatura em Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB); Especialização em Direito Penal, pela USP e Mestrado em Literatura Brasileira, pela UFPB, com dissertação intitulada Sanhauá: poesia e modernidade. Logo cedo, iniciou sua vida de professor, lecionando Língua Portuguesa e Literatura Brasileira em colégios públicos e particulares. Ingressou no ensino superior, através de concurso público, sendo, atualmente, professor da Universidade Federal da Paraíba (Literatura Brasileira, Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa), no Curso de Letras, ministrando aulas, também, no Curso de Comunicação Social, e ao mesmo tempo prepara-se para concluir o curso de doutorado em Literatura Paraibana. 

Algumas das publicações de Barbosa Filho marcaram época como A Caligrafia das Léguas, O Ofertório dos bens naturais, A Ira de Viver, A geometria da paixão; O livro da agonia e outros poemas; São teus estes boleros; O exílio dos dias; Desolado lobo; A comarca das pedras;. Crítica literária e ensaios: Aspectos de Augusto dos Anjos; A convivência crítica: ensaios sobre a produção literária da Paraíba; Ascendino Leite: a paixão de ver e sentir; Osias Gomes: a plenitude humana e literária; Sanhauá: uma ponte para a modernidade; A impressão da palavra: literatura e jornalismo cultural; Os desenredos da criação: livros e autores paraibanos; e Namoro com a doce banalidade.

Além de professor universitário, Barbosa Filho é crítico literário, escritor, poeta e jornalista. Mantém uma coluna no jornal O Norte, escrevendo sobre literatura. Colabora nos jornais A União, Correio da Paraíba, O Momento, Correio das Artes; Jornal do Comércio e Diário de Pernambuco (PE); O Galo (RN), O Pão (CE); D.O. Leitura (SP); Suplemento Literário de Minas Gerais (MG) e a Revista Cultura Vozes (RJ). Coordenou o Projeto LER e editou a revista Ler. Constantemente, é convidado para participar de simpósios, congressos e seminários como palestrante e conferencista. Assumiu a Cadeira nº 6 da Academia Paraibana de Letras, em 10 de setembro de 1999, recepcionado pelo acadêmico José Octávio de Arruda Mello.

Fonte:
Edição 108. 5 de janeiro de 2006

José de Alencar (Ao Correr da Pena)Rio, 24 de junho: A Botafogo

A Botafogo!...

Acompanhemos essa linha de carros que desfila pela Glória e pelo Catete; sigamos esse numeroso concurso que vai pouco a  pouco se estendendo pela praia, ao longo do parapeito.

O sol já descambou além dos montes; e as últimas claridades de um dia turvo e anuviado, foram se extinguindo entre as sombras do crepúsculo.

Daí a pouco fechou-se a noite; e no meio da escuridão e das trevas sobressaía uma multidão de luzes, refletindo-se sobre as águas do mar.

Ranchos de moças a passearem, bandas de música tocando nos coretos, senhoras elegantes debruçadas nas janelas iluminadas, muita concorrência, muita alegria e muita animação; tudo isto tornava a festa encantadora.

Quanto ao fogo, queimou-se às oito horas; dele só restam as cinzas no fundo do mar. Não estranhem, portanto, que o respeite como manda a máxima cristã. Parcis sepultis.

Às dez horas, pouco mais ou menos, tudo estava acabado. A praia ficara deserta; e nas águas tranqüilas da baía, apenas as nereidas murmuravam, conversando baixinho sobre o acontecimento extraordinário que viera perturbar os seus calmos domínios.

Não é preciso dizer-vos que isto se passava domingo, no começo de uma semana que prometia tantas coisas bonitas, e que afinal logrou-nos em grande parte.

Tivemos algumas boas noites de teatro italiano, e ouvimos o Trovador e o Barbeiro de Sevilha, com uma linda ária do Dominó noir, que foi muito aplaudida.

Se é verdade o que nos contaram, brevemente teremos o prazer de ouvir toda essa graciosa ópera, em benefício da Sociedade de Beneficência Francesa. A lembrança é feliz, e pode realizar-se perfeitamente com o concurso dos artistas franceses que possui atualmente o nosso Teatro Lírico.

A diretoria decerto não se oporá a uma representação, que, além do auxílio poderoso que deve dar a um estabelecimento de beneficência, não pode deixar de fazer bem aos seus artistas, fazendo-os conhecer num gênero de música diverso, e no qual é muito natural que se excedam.

Quem sabe mesmo se, depois deste primeiro ensaio, a empresa não julgará conveniente, para a variedade dos espetáculos e para excitar a concorrência, dar de vez em quando uma pequena representação francesa?

Sei que a música italiana é a mais apreciada no nosso país; porém lembro-me ainda do entusiasmo e do prazer com que foram sempre ouvidas em nossas cenas a Nongaret, a Duval e mesmo a Preti.

Já que não podemos ter ao mesmo  tempo uma companhia italiana e uma francesa, não vejo porque não se hão de aproveitar os atores que atualmente possuímos, e, contratando mais um ou dois, deram-nos algumas óperas francesas, que estou certo haviam ser mui bem aceitas.

Se não há algum obstáculo, que ignoramos, é de crer que  a diretoria pense em fazer valer este meio de tornar o Teatro Lírico mais interessante e mais variado.

As óperas francesas têm grande vantagem de não fatigarem tanto os atores como a música italiana; e por conseguinte se faria um benefício aos artistas, reservando os meses da força do verão para esse gênero de cantoria.

Assim, podiam-se das as representações italianas com maior intervalo, e não se sacrificaria a voz de alguns cantores, obrigando-os a executar música de Verdi duas ou três vezes por semana.

Fui-me deixando levar pelo gosto de advogar os vossos interesses, minhas belas leitoras, e esquecia-me contar-vos uma cena terna que teve lugar sexta-feira no teatro, quando se representava o segundo ato do Trovador.

Uns bravos e umas palmas fora de propósito acolheram a entrada em cena da Casaloni, e continuaram enquanto ela cantava e seu romance da Cigana.

A princípio a artista procurou resistir à emoção que de certo lhe causava essa zombaria imerecida; mas afinal o soluço cortou-lhe a voz e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

Lágrimas de mulher... Quem pode resistir a elas?

Depois de alguns momentos de confusão, em que a cena ficou deserta e a música em silêncio, a Casaloni entrou novamente em cena com os olhos rasos de pranto e a voz trêmula.

Neste momento é que eu reconheci bem o nosso público, e senti o coração generoso que animava todo esse concurso de espectadores que enchia o salão.

Ninguém disse uma palavra; mas uma salva continuada de aplausos percorreu todos os bancos de ponta à ponta: tudo que tinha um pouco de generosidade no coração e um pouco de sentimento no fundo d’alma protestava contra aquela amarga zombaria, contra aquela ofensa sem causa.

A mulher ofendida que chora é uma coisa sagrada e que se deve respeitar. Dizem que a lágrima é o símbolo da fraqueza; entretanto quantas armas, quantos braços fortes não se têm curvado ao peso dessa gota de linfa que não umedeceria sequer uma folha de rosa?

Deixemos aqui este episódio da semana, que não tem outro interesse senão o de mostrar o efeito de uma imprudência, e de provar a delicadeza do público que sabe preferir uma cantora, sem por isso ofender e maltratar a outras.

O Ginásio Dramático também teve esta semana uma noite feliz, honrada com a presença de SS. MM., que se dignaram estender sobre ele sua benéfica e augusta proteção.

Representavam-se nessa noite duas comédias, cujos papéis foram muito bem desempenhados pelo artista da pequena companhia, que parece se esmerou em dar provas dos progressos sensíveis que tem feito.

O Episódio do Reinado de Jaques I é uma comédia histórica e de muito espírito; tem algumas cenas de uma singeleza e de uma naturalidade encantadoras.

É um idílio de amor aos quinze anos, começado nos muros de uma prisão, à leitura da Bíblia, e entre as flores de clematites, - que de repente se vê oprimido nos salões de um palácio suntuoso, no meio das etiquetas da Corte.

O idílio esteve quase a transformar-se em drama ou tragédia; mas felizmente achou refúgio num coração de rei, coração cheio de bondade e de virtude, e aí continuou a sorrir em segredo até que...

Até que caiu o pano.

Todos os personagens estavam bem caracterizados e vestidos com bastante luxo e riqueza para os recursos da pequena empresa, que não se poupa a sacrifícios sempre que se trata de promover um melhoramento.

Suas Majestades prometeram voltar ao Ginásio esta semana. Neste fato devem os meus leitores ver a prova a mais evidente dos serviços que este teatro vai prestando à arte dramática do nosso país.

Animado por tão alta proteção, acolhido pela boa sociedade desta corte, o Ginásio poderá brevemente estabelecer-se em um salão mais espaçoso e mais elegante, e aí abrir-nos as portas ao prazer, à alegria, a um inocente e agradável passatempo.

No resto das noites, em que os teatros estiverem fechados, muita moça e muita família passeou pela Rua do Ouvidor para ver o modelo de casamento da Imperatriz Eugênia, que se achava exposto na vidraça do Beaumely.

As moças admiravam mais o vestido de cetim branco e o penteado, que dizem ser de um gosto chic; os homens, porém, admiravam mais as moças que o vestido, de quem tinham ciúme, porque lhes roubavam os olhares, a que supunham talvez ter direitos.

É incompreensível este costume que têm certos homens que gostam de uma mulher de se julgarem com direito exclusivo aos seus olhares, sem que ela lhes tenha feito a menor promessa.

Parece que o olhar de uma mulher bonita é como uma vaga de senador. Ninguém tem direito a ela, o que quer dizer que todos o têm.

Assim um fashionable apaixona-se por uma bonita mulher, e, sem que ela lhe tenha dito uma palavra, sem mesmo consulta-la, atravessa-se diante dos seus olhares, segue-a por toda parte como a sombra do seu corpo, julga-se enfim com direito a ser amada por ela. Se a moça de todo não lhe presta atenção e não se importa com a perseguição sistemática, o apaixonado toma uma grande resolução, e despreza a mulher bonita de que ele realmente não faz caso.

O mesmo sucede com a vaga de senador.

Um homem qualquer que tem quarenta anos, seja ou não filho de uma província, tenha ou não a afeição dos povos de certas localidades, sem consultar os votantes, apresenta-se candidato, enche o correio de cartas.

Se a província mostra não se importar com a sua candidatura, o homem de quarenta anos toma igualmente uma resolução, renuncia à eleição a que tinha direito.

Ora, eu não sei como se chama o homem de quarenta anos que renuncia à vaga de senador; mas o apaixonado que despreza a mulher bonita é conhecido entre certa roda pelo título de comendador da Ordem dos Verdes.

Esta ordem é a mais antiga do mundo; é anterior mesmo à época da cavalaria e da mesa redonda. Data dos tempos em que os animais falavam, e deve a sua origem a uma raposa espirituosa, que numa circunstância memorável soltou esta palavra célebre: Estão verdes.

Muito tempo depois Eduardo III, apanhando a liga da Condessa de Salisbury, disse também uma palavra, que é pouco mais ou menos a tradução daquela: Honny soit qui mal y pense.

Assim como desta palavra se criou a jarreteira, estabeleceu-se muito antes a Ordem dos Verdes, na qual são comendadores do número os namorados que desprezam as mulheres bonitas, os ministros que recusam pastas, os patriotas que renunciam a candidatura, os empregados que pedem demissão, e muitos outros que seria longo enumerar.

A insígnia da ordem é uma folha de parreira, que outrora foi o símbolo da modéstia e do pudor.

A cor é o verde, como emblema da esperança; porque o estatuto da ordem embora imponha a abnegação e o sacrifício de uma honra ou de um bem, não inibe que se trabalhe por alcançar coisa melhor.

Os membros desta ordem gozam de grandes honras, privilégios e isenções, e especialmente da graça de obterem tudo quanto desejarem. Para isso são obrigados apenas a uma insignificante formalidade, que é não desejarem senão o que puderem obter.

Concluiria aqui esta revista, se não tivesse dois deveres a cumprir.

O primeiro é a respeito de uma questão que tem ocupado a imprensa desta corte, e que atualmente se acha entregue aos tribunais do país.

Falo de abalroação da Indiana, simples fato comercial, a que a imprensa tem querido dar o caráter de uma questão de classe e de brios nacionais.

Um estrangeiro que perde o seu navio não poderá defender os interesses do seu proprietário e dos carregadores, somente porque semelhante defesa vai ofender a tripulação de um vapor brasileiro?

Ninguém mais do que eu sabe respeitar o espírito de classe, e apreciar a generosa fraternidade que prende os homens de uma mesma profissão; porém confesso que essa maneira de identificar o homem com a classe, de julgar do fato pelo mérito pessoal, não é a mais acertada para a questão.

O comandante do vapor Tocantins pode ser um excelente oficial, a sua  tripulação pode ser a melhor, e entretanto ter-se dado um descuido que ocasionasse o sinistro.

Felizmente hoje a questão vai ser perfeitamente esclarecida por testemunhas imparciais e dignas de todo o sinistro.

O Tocantins foi encontrado na mesma noite de 11, meia hora antes do sinistro, por um navio cujo capitão já atestou que o vapor trazia apenas uma luz ordinária, e não tinha sobre as rodas os faróis verde e encarnado.

Como este, existem muitos outros depoimentos importantes que aparecerão em tempo competente, e que mostrarão de que parte está a verdade e o direito.

O segundo ponto sobre que tenho de falar é a respeito dos espetáculos líricos no Teatro de S. Pedro de Alcântara, dos quais tratei na revista passada.

Um correspondente do Jornal do Comércio contesta a possibilidade desses espetáculos em virtude de um privilégio dado à atual empresa lírica. 

Entretanto semelhante privilégio não pode existir; se o governo o concedeu, praticou um ato que não estava nas suas atribuições, um ato nulo, porque é inconstitucional.

Não é monopolizando uma indústria já conhecida no país, não é destruindo a concorrência que se promove a utilidade pública.

A própria diretoria do Teatro Lírico deverá desejar esta concorrência; porque se, como ela supõe a nova empresa não levar avante, dando-lhe nova força e novo prestígio.

Ainda voltarei a esta questão, que na minha opinião interessa muito ao futuro da arte nesta corte.

Por hoje faço-vos as minhas despedidas.

Vamos ver as fogueiras de São João, brincar ao relento, e recordar as poéticas e encantadoras tradições de nossos pais.

P.S. – À última hora recebo a minha carta prometida para quinta-feira; desta vez reservo para mim a carta, e dou-vos unicamente os versos.

O pronome (em falta do nome) persiste em ser lido em francês, e não em português; porém agora afianço-vos que estou convencido do contrário.

Podeis crer-me. 

Rio de Janeiro, 1855.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Fernando Pessoa (Autopsicografia)



Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão II)


A velha São Luís – antes cantada em verso e prosa por seus largos, espaçosos, e por suas ruas, estreitas e íngremes – não ostenta mais apenas aquele verde luxuriante do capim e das ervas daninhas que se encontram no relato de cronistas do século XIX. Hoje a cidade, em pleno século XXI, tem uma vida complexa – como um prisma de mil faces, refletindo e coruscando todas as cores, simultaneamente, misturadas, mas não tão bem arrumadinhas, uma por vez, como no arco-íris. Essa maneira cromática e dinâmica de ver e sentir São Luís talvez seja a mais abrangente, a que melhor ilustre a percepção que a São Luís quase quatrocentona inspira a quem aqui chega ou aos que refletem sobre sua cidade. Bernardo Coelho de Almeida (1927-1996) foi quem, através de suas crônicas, mostrou muitas dessas cores e seus contrastes: o cinza-chumbo do desânimo causado nos são-luisenses, principalmente em função da miséria e do desemprego; o marrom do medo da violência, predominante entre os mais pobres; o púrpura da irritação com os engarrafamentos no trânsito; o verde-escuro do temor das doenças causadas pela sujeira e pelo risco de a Ilha vir a ser tomada pela poluição de grandes empreendimentos industriais.

As crônicas de Bernardo Coelho de Almeida, reunidas no livro Éramos felizes e não sabíamos, são autênticas memórias do passado de São Luís, cidade muito amada, onde o autor viveu, durante 69 anos, como estudante, boêmio, poeta, romancista, radialista, jornalista e homem público.

Éramos felizes e não sabíamos é um livro interessante, rico em reminiscências, capaz de registrar momentos memoráveis do passado de um homem sensível e preso aos encantos de uma cidade que, ainda hoje, não quer perder a fama de Atenas Brasileira. No livro são relembrados os bares, os cabarés, os folguedos populares, os acontecimentos políticos, a vida intelectual, as velhas amizades, os tipos inesquecíveis, enfim, os flagrantes de um tempo feliz, e aqueles que foram protagonistas do romance desse tempo, na parceria de nossos destinos. Destinos que foram traçados nas ruas, nas praças e nos logradouros minuciosamente catalogados pelo escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981), no livro Breve História das Ruas de São Luís, publicado no ano de 1962. Nesta obra, construída com impressionante paciência e obstinação, o autor, que foi, entre outras funções, diretor da Biblioteca Pública Benedito Leite e presidente da antiga Fundação Cultural do Maranhão, aponta, como caminhos iniciais da cidade, a Rua Formosa, a Rua do Egito e a Rua dos Remédios, “mandada abrir por Joaquim de Melo e Póvoas no meio dos matos e que conduzia à ermida dessa invocação construída na ribanceira que deita para o Jenipapeiro”. 

Domingos Vieira Filho faz referência a caminhos grandes, como a própria Rua Grande, a Rua da Paz e a Rua das Violas (ou Rua dos Afogados). 

Ele recorda que, na São Luís daqueles velhos tempos, as ruas eram antes simples linhas de comunicação do que vias de transportes. Por isso podiam ser estreitas, uma vez que por elas não transitavam carros. Imperavam a cadeirinha, a rede, acolhedora, sensual, leito de prazer ou de dor, carro e esquife, a serpentina, o palanque, aparelhos esses que dispensavam rodas e eram conduzidos nos ombros de robustos escravos.

No mesmo patamar que Domingos Vieira Filho e Bernardo Coelho de Almeida, um outro escritor renomado, Erasmo Dias, cantou São Luís em prosa, de forma magistral. Em seu mais novo livro – São Luís em PreAmar: ainda assim, há um Azul! –, o jornalista e poeta Herbert de Jesus Santos também abre uma janela lúcida e criativa sobre São Luís, retratando-a nos nossos dias. 

Com cinco livros publicados, Herbert de Jesus Santos produz uma obra cada vez mais amadurecida, convencido de que São Luís está no detalhe e por isso mesmo ainda se mostra inesgotável como veio poético. Nas páginas deste seu recém-lançado livro de poesia São Luís em PreAmar: ainda assim, há um Azul!, o escritor Herbert de Jesus Santos, que também é cronista, contista e novelista, faz uma contundente declaração de amor a São Luís, pois voltou para ela todos os poemas, com características lírica e social, sem esconder as feridas da cidade, seus maiores valores, entre riqueza de espírito, tipos populares, humanistas, poetas e prosadores beneméritos, o ser e o estar maranhense, a decadência em todos os campos, mas a esperança de um amanhecer com melhor horizonte para o Maranhão, por abrangência, e sua gente. 

O texto apreciativo ficou a cargo do jornalista e poeta Cunha Santos Filho. Na obra ousou ter como prefácio um poema de Luís Augusto Cassas, como apresentação, um poema de Nauro Machado, posfácio de Erasmo Dias (trecho de uma crônica), e epígrafes com soneto de Alex Brasil, poema de Bandeira Tribuzi e fragmentos de poemas de José Maria Nascimento e de Luís Alfredo Neto Guterres, todos relativos a São Luís.

Erasmo Dias ressurge na página final do novo livro de Herbert Santos, com uma de suas crônicas sobre o espírito da terra natal. Enfocando a alma romântica da Cidade dos Bardos e dos Rapsodos, assim escreve Erasmo Dias: 

“As cidades não valem simplesmente pelo seu aspecto material. Como os homens, elas, também, possuem uma alma. A alma das cidades é a soma de todas as vibrações dos seus habitantes, que se misturam e confundem, numa grande e única vibração. 

Quando se pretende retratar com palavras uma cidade, mister se faz que, antes da descrição das suas ruas e das suas praças, se compreenda a sua alma. 

São Luís tem a sua alma: alma de Cidade Romântica, onde dezenas de grandes poetas cantaram, nos ritmos claros da poesia excelsa, todo o esplendor da natureza tropical. 

São Luís é a Cidade da Inteligência e sobre os seus destinos vela impávida, serena e eterna, Atenas Palas Minerva. Gerações e gerações de gigantes do pensamento aqui se formaram, forma e formarão, sempre, escutando os cantares rústicos que se escapam dos bairros pobres, onde Xangô e Afefé recebem o seu culto, ou a prosa castiça e erudita das rodas intelectuais, que se sucedem, gloriosas, numa ciranda abençoada, pelos anos afora”.

No canto destes grandes poetas de que fala Erasmo Dias, ganha realce – entre inúmeros autores – a figura do poeta Ferreira Gullar, que celebra São Luís em muitos de seus poemas, inclusive em Poema Sujo que é, sem dúvida nenhuma, uma das obras mais importantes surgidas no panorama poético brasileiro do século XX. Opinião que é corroborada por intelectuais do porte de Nelson Werneck Sodré, Antonio Callado e Otto Maria Carpeaux, entre outros. E é fácil concordar com isso ao se ler o poema, que é tão forte, comovente e evocativo, que chega mesmo a incomodar, a excitar, a aguçar a sensibilidade. Trata-se de obra que exprime autenticamente a verdade típica da poesia, ou seja, “a verdade que comove”, para usar um conceito do próprio poeta. 

Poema Sujo fala de São Luís, retrata, com a particularidade do reflexo estético, a experiência de vida do poeta nesta cidade, até os 21 anos de idade. Mas, na verdade, o poema é muito mais do que isso: é um retrato de corpo (e alma) inteiro de Gullar, que abarca sua vida, suas idéias políticas e filosóficas, sua saudade de exilado e suas perplexidades. 

Ao falar de São Luis, Gullar fala do Brasil. E falando do Brasil, fala da condição humana. Ele parte do homem mesmo, deste “ser que responde” a situações historicamente dadas, parte de suas experiências vitais, das contradições sociais que o determinam e são por ele determinadas. E isto é o que ele trata de esteticamente (poeticamente) refletir. O homem maranhense, o próprio Gullar: este o ponto de partida, a fonte do Poema Sujo: este, também o elemento que faz a poesia chegar ao universal, o “alimento” do artista. Gullar com ele opera como só os grandes poetas sabem e podem fazer, transformando o real em algo mais real, o mais simples no mais belo e significativo, reconstruindo o mundo, nas ruas e becos de sua infância:

Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
na Rua do Carmo berro
na Rua da Direita erro
e na Aurora adormeço.
–––––––––-
Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
http://www.guesaerrante.com.br/2006/1/20/Pagina653.htm. Edição 115. 20 de janeiro de 2006

Sávio Soares de Sousa (Trova: Tempo & Espaço)


em XXIX Jogos Florais de Niterói, 1999 

É fato sabido e consabido que os tempos mudam e, com os tempos, mudamos nós. Isto ensinava um ditado medieval citado na Description of England, de Harrison (1517) e no Euphues de John Lyly (1579). Tempora mutantur... 

Mudam os hábitos, mudam os gostos, as manias mudam, mudam as filosofias, alternam-se os regimes políticos e econômicos. Também a linguagem humana evolui. Há palavras que se arcaízam, envelhecem, morrem. Outras ressuscitam, animadas por significados novos, ao sopro de novas realidades. Com o surgimento do Trovismo ou Trovadorismo Brasileiro, há cerca de quarenta anos, as palavras “Trova” e “Trovador”, por exemplo, experimentaram vida nova e acepção específica. Digam o que disserem, a tese é perfeitamente explicável. 

Antigamente, considerava-se trova qualquer composição lírica ligeira e de caráter mais ou menos popular, não importando qual fosse a estrutura das estrofes, ou o número de seus versos, ou a disposição das rimas. É o que se lê nos dicionários tradicionais. 

Depois, o termo passou a designar, de modo menos genérico, algumas cantigas ou canções de estrutura regular, também do gosto do povo, dada a sua simplicidade. E, enfim, começou a caracterizar a quadra ou a quadrinha popular, quase sempre destinada a ser cantada, com ou sem estribilho. 

Em sua conceituação atual, que corre entre nós, a trova é um poema de forma fixa, regular, com quatro versos (ou linhas) de sete sílabas (redondilha maior), de rimas cruzadas, isto é: o primeiro verso rimando com o terceiro, e o segundo rimando com o quarto. 

Quanto ao assunto ou tema (questão de fundo ou conteúdo), assim se podem classificar as trovas: lírica (sentimental, amorosa, romântica, intimista); filosófica (conceituosa, reflexiva, sintetizando um pensamento moral ou religioso ou estético); humorística (jocosa, brincalhona, maliciosa); didática (instrutiva, pedagógica, doutrinária, biográfica); descritiva (aquarela em miniatura, retrato sintético, instantâneo fotográfico), etc. Conviria exemplificar. 

TROVAS LÍRICAS 

À distância, se ela passa 
é maior o meu tormento: 
para a saudade, a vidraça 
é sempre um vidro de aumento. 
Cícero Rocha 

Nossa casa é pequenina, 
mas tem a graça de Deus: 
de dia o sol a ilumina, 
e de noite – os olhos teus. 
Augusto Rubião 

TROVAS FILOSÓFICAS 

O filho do Carpinteiro 
foi um artista profundo: 
com três cravos e um madeiro, 
fez a reforma do mundo. 
Raul Pederneiras 

A gente paga o que deve, 
sem recurso ou petição: 
sentença que Deus escreve 
não tem mais apelação! 
Paulo Nunes Batista 

TROVAS HUMORÍSTICAS 

Papai manda, se é solteira... 
Marido, quando casada... 
Manda a vizinhança inteira 
se é viúva ou desquitada... 
Eny do Couto 

Quando a mulher quer, eu acho 
que nem Deus a desanima: 
– é água de morro abaixo 
ou fogo de morro acima!... 
Belmiro Braga 

TROVAS DESCRITIVAS 

A flor do sol, no horizonte, 
fecha as pétalas vermelhas... 
Pelo pescoço do monte 
se deita um colar de ovelhas! 
Félix Aires 

Pelas planuras desertas, 
nas frondes verdes, as comas 
mostram corolas abertas 
num desperdício de aromas. 
Eliézer Benevides 

Como poema autônomo, forçoso é que o sentido da trova fique completo dentro dessas quatro linhas – requisito indispensável. 

E que é um Trovador? 

Trovador era o nome dado, geralmente, na Idade Média, ao poeta lírico, em verdade um compositor musical, que fazia versos e os cantava, ao som da viola, do alaúde, da flauta e do pandeiro. Compunha e instrumentava as próprias canções – escrevia a letra e a música. E, quando não se sentia em condições de, ele mesmo, cantá-las, incumbia de fazê-lo um cantor profissional, que era o jogral ou menestrel. 

Na prática, nem sempre era fácil distinguir o trovador do jogral, e isto criava situações até ridículas. Houve o caso do trovador Guiraut Riquier, que ficou agastado quando o confundiram com um jogral. E protestou, alegando que a confusão era humilhante para os trovadores, que tinham formação intelectual e artística, enquanto os jograis ou menestréis, de nível social inferior, não gozavam de boa reputação, inclusive por serem freqüentadores de tavernas e prostíbulos... 

Historicamente, Guilherme de Poitiers, na França, é o mais antigo trovador conhecido. 

A Literatura Portuguesa começa, a bem dizer, no século XII, com uma cantiga de amor-e-escárnio dedicada pelo trovador Paio Soares de Taveiros, a uma dama chamada A Ribeirinha, que outra não era senão Maria Pais Ribeiro, favorita do rei Dom Sancho I, de Portugal. Aliás, Portugal, celeiro de notáveis trovadores, ostenta, em sua galeria de reis ilustres, a fidalga e luminosa efígie de Dom Dinis (1261/1325), protetor dos poetas, fundador da Universidade de Lisboa e – título que nos fraterniza com Sua Majestade – exímio trovador, cujas cantigas estão registradas nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional, obras-primas do gênero. 

Hoje, a meu ver, o termo trovador deve restringir-se àqueles poetas que fazem trova, isto é, quadras setissilábicas-cas rimadas, porque o uso – neste século da especialização – assim o consagrou, pelo menos nos países de fala portuguesa. 

Os trovadores de Aquém e de Além-Mar contam-se, em nossos tempos pela casa dos milhares. E a trova é cultivada, com êxito, por pessoas das mais diversas classes sociais e ofícios, conforme se apura dos resultados dos Jogos Florais promovidos, em todo o País, pela União Brasileira de Trovadores, a nossa UBT. Poetas há muitos. Mas nem todo poeta é trovador. E não se pode entender trovador que não seja poeta – isto é: talento criador, servido por especial sensibilidade e senhor da técnica da feitura do verso. 

O Trovismo ou Trovadorismo Brasileiro tem suas raízes na tradição popular ibérica, na própria alma ingênua do povo. Mas, como movimento literário, de características bem delineadas, principiou na década de 50, quando o poeta Luiz Otávio (pseudônimo do Dr. Gilson de Castro) começou a reunir, aos sábados, na intimidade de sua residência, no bairro carioca de Vila Isabel, um pequeno grupo de cultores da trova, para tertúlias literárias, informais, entremeadas de “salgadinhos, biscoitos e refrigerantes”, segundo conta Aparício Fernandes, que nelas passou a tomar parte em 1958. Na opinião de Aparício, o Movimento Trovadoresco tem como ponto de partida a publicação, em 1956, por iniciativa de Luiz Otávio, da coletânea “Meus irmãos, os Trovadores” (“A Trova no Brasil”, 1972). 

Em 1959, fundou-se na Bahia um Grêmio Brasileiro de Trovadores (GBT), que reunia, sob essa designação, além dos cultores da quadra setissilábica, vários cantadores, violeiros e autores de literatura de cordel. Quando o Grêmio realizou um Congresso de Trovadores, na cidade de São Paulo, Luiz Otávio foi convidado a representar a entidade na região sul do País, melhor dizendo no Rio de Janeiro. E aceitou o convite. Mas, no Rio de Janeiro, o Grêmio cresceu, ganhando invejável projeção, e esse fato gerou uma dissidência com os seus dirigentes no Nordeste. Então, Luiz Otávio, com o apoio unânime dos trovadores filiados às seções da região sul centro-oeste, propôs a criação da União Brasileira de Trovadores, que se instalou no Rio em 8 de janeiro de 1967. Vitoriosa desde então, a UBT é uma associação de âmbito nacional, que se destina especificamente ao estudo e à divulgação da trova, como instrumento de propagação da cultura, tendo sido Luiz Otávio, por um questão de justiça, seu primeiro presidente nacional. Com organização própria, um presidente nacional, delegacias e seções estaduais e municipais, as quais gozam de relativa autonomia, a UBT promove, anualmente, os Jogos Florais, que habitualmente se inserem nos festejos comemorativos do aniversário dos Municípios onde têm sede suas atividades. 

E que são os Jogos Florais? Com antecedentes que parecem remontar às festas populares realizadas na Antiga Roma em homenagem à deusa Flora, os Jogos Florais eram um certame periódico, instituído em Toulouse, na França, no ano de 1323, por poetas desejosos de manter as tradições e o lirismo da poesia palaciana. O prêmio principal era uma violeta de ouro, havendo também menções honrosas configuradas numa rosa e num malmequer, ambos de prata. Daí por diante, realizaram-se na França, em diversas épocas, novos certames do gênero, contando-se entre seus vencedores figuras do porte de Voltaire, Chateau-briand, Victor Hugo e Lamartine... 

Em Portugal, a Emissora Nacional promoveu também os seus Jogos Florais, inclusive com a finalidade de eleger, a cada ano, o Príncipe dos Poetas Portugueses. Ademais, em terras portuguesas, são famosos os Jogos Florais de Coimbra, do Porto, de Figueira da Foz, de Almada, assim como os das antigas províncias africanas, sobretudo Angola. Há notícias de Jogos Florais realizados no Brasil, nos anos de 1914, 1915 e 1916, pelo Liceu Feminino, da cidade paulista de Santos. 

Atualmente, em nosso País, os Jogos Florais são concursos anuais de trovas, instituídos pelas seções municipais de União Brasileira de Trovadores, abertos a participantes de todos os estados e cidades do território brasileiro, bem como dos demais países de língua portuguesa, segundo um regulamento padrão, comum a todas as seções, com ligeiras variantes de caráter local. As trovas, obrigatoriamente inéditas, sob pena de desclassificação, versando tema preestabelecido, assinadas com pseudônimo, para assegurar a imparcialidade do julgamento, são apreciadas por uma comissão formada por trovadores de diferentes seções da UBT; estes as classificam, mediante a  de uma nota (atribuição de valor subjetivo), e as devolvem à seção de origem, onde, só então, se tornam conhecidos os nomes verdadeiros dos concorrentes. Quase sempre, os prêmios são entregues em solenidade pública, em festivo ambiente de confraternização, sendo que, nos Jogos Florais de Niterói, esses prêmios são representados por troféus alusivos ao tema do concurso. 

É justo recordar que os Jogos Florais do Movimento Trovadoresco tiveram seu berço na cidade serrana de Nova Friburgo, em 1958, sendo vencedores do primeiro concurso os trovadores Rodrigues Crespo, Anis Murad, Colbert Rangel Coelho, Jesy Barbosa, Raul Serrano, Octávio Babo Filho, Walter Waeny, Leila Ribeiro Ferreira e Paulo Fénder. O tema era amor e a trova vitoriosa, da autoria de Rodrigues Crespo, era esta: 

“Não me chames de senhor; 
eu não sou tão velho assim. 
E, ao teu lado, meu amor, 
não sou senhor nem de mim.” 

Ao fim de tudo, a animadora verdade é que o número de excelentes trovadores tem crescido consideravelmente, com a revelação de inumeráveis trovas antológicas. E os Jogos Florais constituem uma gratíssima oportunidade de aproximação fraterna entre poetas de todos os rincões deste continental Brasil, que, em tempos remotos, chegou a ser descrito como um imenso arquipélago cultural. 

A trova, deste modo, cumpre maravilhosamente sua missão, que já estava nos sonhos iniciais de Luiz Otávio – unir o Brasil. 

E viva a Trova! 

Fonte:
Seleções em Folha. Ano 4. N.1 – janeiro 2000. São Paulo/SP