quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Machado de Assis (Carlos Jansen: Contos Seletos das Mil e Uma Noites)

O SR. CARLOS JANSEN tomou a si dar à mocidade brasileira uma escolha daqueles famosos contos árabes das Mil e Uma Noites, adotando o plano do educacionista alemão Franz Hoffmann. Esta escolha é conveniente; a mocidade terá assim uma amostra interessante e apurada das fantasias tascas daquele livro, alguns dos seus melhores contos, que estão aqui, não como nas noites de Sheherazade, ligados por uma fábula própria do Oriente, mas em forma de um repositório de cousas alegres e sãs.

Para os nossos jovens patrícios creio que é isto novidade completa. Outrora conhecia-se, entre nós, esse maravilhoso livro, tão peculiar e variado, tão cintilante de pedrarias, de olhos belos, tão opulentos de sequins, tão povoado de vizires e sultanas, de idéias morais e lições graciosas. Era popular; e, conquanto não se lesse então muito, liam-se e reliam-se as Mil e Uma Noites. A outra geração tinha, é verdade, a boa fé precisa, uma certa ingenuidade, não para crer tudo, porque a mesma princesa narradora avisava a gente das suas invenções, mas para achar nestas um recreio, um gozo, um embevecimento, que ia de par com as lágrimas, que então arrancavam algumas obras romanescas, hoje insípidas. E nisto se mostra o valor das Mil e Uma Noites: porque os anos passaram, o gosto mudou, poderá voltar e perder-se outra vez, como é próprio das correntes públicas, mas o mérito do livro é o mesmo. Essa galeria de contos, que Macaulay citava algumas vezes, com prazer, é ainda interessante e bela, ao passo que outras histórias do Ocidente, que encantavam a geração passada, com ela desapareceram.

Os melhores daqueles, ou alguns dos melhores, estão encerrados, estão encerados neste livro do Sr. Carlos Jansen. As figuras de Sindbad, Ali-Babá, Harum al Raschid, o Aladim da lâmpada misteriosa, passam aqui, ao fundo azul do Oriente, a que a linha curva do camelo e a fachada árabe dos palácios dão o tom pitoresco e mágico daqueles outros contos de fadas da nossa infância. Algumas dessas figuras andam até vulgarizadas em peças mágicas de teatro, pois aconteceu às Mil e Uma Noites o que se deu com muitas outras invenções: foram exploradas e saqueadas para a cena. Era inevitável, como por outro lado era inevitável que os compositores pegassem das criações mais pessoais e sublimes dos poetas para amoldá-las à sua inspiração, que é por certo fecunda, elevada e grande, mas não deixa de ser parasita. Nem Shakespeare escapou, o divino Shakespeare, como se Macbeth precisasse do comentário de nenhuma outra arte, ou fosse em presa fácil traduzir musicalmente a alma de Hamlet. Não obstante, a vulgarização pela mágica de algumas daquelas figuras árabes, elas aí estão com o cunho primitivo, esse que dá o silêncio do livro, ajudado da imaginação do leitor.

Este, se ao cabo de poucas páginas vier a espantar-se de que o Sr. Carlos Jansen, brasileiro de adoção, seja alemão de nascimento, e escreva de um modo tão correntio a nossa língua, não provará outra cousa mais do que negligência da sua parte. A imprensa tem recebido muitas confidências literárias do Sr. Carlos Jansen; a Revista Brasileira (para citar somente esta minha saudade) tem nas sua páginas um romance do nosso autor. E conhecer e escrever uma língua, como a nossa, não é tarefa de pouca monta, ainda para um homem de talento e aplicação. O Sr. Carlos Jansen maneja-a com muita precisão e facilidade, e dispõe de um vocabulário numeroso. Esse livro é uma prova disso, embora a crítica lhe possa notar uma ou outra locução substituível, uma ou outra frase melhorável.  São minúcias que não diminuem o valor do todo.

Esquecia-me que o livro é para adolescentes, e que estes pedem-lhe, antes de tudo, interesse e novidades. Digo-lhes que os acharão aqui. Um descendente de teutões contalhes pela língua de Alencar e Garrett umas histórias mouriscas: com aquele operário, esse instrumento e esta matéria, dá-lhes o Sr. Laemmert, velho editor incansável, um brinquedo graciosíssimo, com que podem entreter algumas horas dos seus anos em flor. Sobra-lhes para isso a ingenuidade necessária; e a ingenuidade não é mais do que a primeira porção do ungüento misterioso, cuja história é contada nestas mesmas páginas. Esfregado na pálpebra esquerda de Abdallah, deu-lhe o espetáculo de todas as riquezas da terra; mas o pobre - diabo era ambicioso, e, para possuir o que via, pediu ao derviche que lhe ungisse também a pálpebra direita, com o que cegou de todo. Creio que esta outra porção do ungüento é a experiência.

Depressa, moços, enquanto o derviche não unge a outra pálpebra!

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Soares de Passos (Agar)

De Bersabé nos areais ardentes
O desmaiado sol ia esconder-se,
E Agar, a expulsa Agar, gemendo aflita,
Unia ao peito o moribundo filho.
O vaso d'água que lhe dera o esposo
Esgotara-se em breve, e no deserto
Com seu pobre Ismael não descobrira,
Desde o romper do dia, a ansiada fonte.
O dia declinava: eis que o infante,
Que pela mão a acompanhava exausto,
Ardendo em sede lhe sucumbe às plantas.
Ela vê-o cair, ela estremece,
E, os olhos turvos em redor lançando,
Aqui e ali correndo busca ainda,
Mas debalde, um frescor. Enfim, cansada,
Ela mesma também, eis volve ao filho,
Prostra-se, abraça-o, com maternos beijos
Tenta ansiosa prolongar-lhe a vida.

«Filho, meu filho – murmurava a triste –
«À sede vais morrer! Oh! se o pudesse
«Adivinhar teu pai, cruel não fora;
«E Sara, a própria Sara, enternecida
«Emudecera seus fatais ciúmes.
«Oh! não gemas, não gemas, que debalde
«Invocas tua mãe. Ela te escuta,
«Mas não pode salvar-te: dentro em pouco
«Em seu regaço exalarás a vida.
«E hei-de eu ver-te expirar? ver nesses olhos
«Sumir-se a luz do dia? e nessas faces,
«Que tantas vezes me sorriram ledas,
«Ver as ânsias da morte? Oh! não, não posso
«Ver morrer o meu filho». Disse, e ao tronco
Duma árvore vizinha o recostava;
Depois, com tristes, vagarosos passos,
Foi noutros sítios aguardar a morte.
Ali, ao ver o sol que esmorecia,
Desatou a chorar, e estes queixumes
Em voz convulsa murmurou ainda:

«Sol do deserto, que o meu pobre filho
«Vês expirando na soidão além,
«Com teu suave, derradeiro brilho
«Beijar-lhe a face carinhoso vem!
«Oh! vem, que eu triste nessa face pura
«Materno beijo nunca mais darei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Quando o teu facho ressurgir do oriente,
«Tudo na terra sentirá prazer;
« E lá nos campos de Mambré virente
«Mais bela a rosa te verá nascer:
«Só ele em sombras duma noite escura
«Adormecido ficará, bem sei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Por mim não choro, que infeliz escrava
«Meus tristes dias findarei aqui:
«Ai! choro aquele que no mundo amava,
«Choro meu filho, que expirando vi.
«Maternos mimos, filial ternura,
«Lembrai-me os tempos que feliz gozei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Oh! quem dissera nos passados dias
«Em que ao meu colo te cerquei d'amor,
«Oh! quem dissera que a morrer virias
«Neste deserto sem achar frescor?
«Emurcheceste, já não tens verdura,
«Mimoso arbusto que gentil criei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Tantas esp'ranças, que o Senhor gerara
«Na escrava humilde, findarão assim.
«Foi mais feliz a geração de Sara:
«Cruel destino só me coube a mim.
«Em vão, em vão me prometeu futura
«Longa progénie: sem ninguém fiquei,
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Aves agrestes que me ouvis as queixas,
«Com tristes vozes o seu fim chorai!
«Brisas do ermo, suspirai-lhe endeixas!
«Astros da noite, seu dormir velai!
«Velai-o todos, que a final ventura
«Que vos reservo nem sequer terei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

Mas Deus! que via ela,
Que um ai desprendeu?
Que pomba tão bela
No manto do céu!
Que penas de prata,
D'azul, d'escarlata,
O espaço retrata
Sereno, sem véu!

É anjo voando!
Que brilho que tem!
Que véus ondulando
De pura cecém!
Que anéis de cabelo
Nos ombros de gelo,
No colo tão belo
Caindo ao desdém!

Descendo, descendo,
Já perto chegou;
E a pobre tremendo
Calada ficou;
E o anjo sorria
Com doce magia,
E à terra descia,
Na terra pousou.

E em roda mil lumes
De brilho sem fim
Lançava, e perfumes
De nardo e jasmim;
E a voz argentina,
Suave, divina,
Soltou peregrina
Falando-lhe assim:

«O que fazes, Agar, porque choras?
«Nada temas, não tens que temer;
«Se o teu filho perdido deploras,
«Esses prantos converte em prazer.

«Do deserto chegou seu gemido
«Às alturas que habita o Senhor:
«Surge, surge, e teu filho querido
«Vai ao longe buscar sem temor!

«Surge, surge, recobra a esperança
«Que as promessas cumpridas serão!
«O teu filho, o Senhor to afiança,
«Será pai duma grande nação.
 
«Glória a Deus, que no céu ouve as mágoas
«De quem sofre na terra a carpir!
«Eis um jorro de límpidas águas:
«Ide nelas a sede extinguir!»

E, assim dizendo, lhe mostrava perto
Uma fonte escondida entre verduras,
Como nunca se vira no deserto,
De tão grato frescor, d'águas tão puras.

Depois, batendo as esmaltadas penas,
Deixou na terra um luminoso traço;
E, agitando seu manto d'açucenas,
Sumiu-se ao longe na amplidão do espaço.

Erguendo aos céus a radiosa fronte,
A pobre mãe ao Senhor Deus louvava;
E, enchendo o vaso no cristal da fonte,
Com ele ao filho a salvação levava.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Rosane Pamplona (A Bolsa, a Bolsinha e a Bolsona)

Ia o menino para a cidade grande pela primeira vez. O pai recomendou:

— Filho, tome o dinheiro para o trem, mas guarde-o sempre nesta bolsinha. Só tire da bolsinha as notas que precisar e nunca a deixe aberta!

O menino guardou bem aquelas palavras e foi se despedir da mãe. A mãe achou que a bolsinha não era segura. Pegou outra, maior, e ensinou ao garoto:

— Meu filho, leve a bolsinha de dinheiro sempre dentro desta bolsa. E nunca a deixe aberta!

O menino foi se despedir da avó. A avó, mais precavida, achou melhor lhe dar uma bolsa maior ainda. E explicou:

— Meu neto, ponha sempre a bolsa com a bolsinha dentro desta bolsona. E nunca a deixe aberta!

O menino ouviu tudo com atenção e foi embora pegar o trem. Chegando ao guichê, abriu a bolsona e tirou dela a bolsa. Fechou a bolsona e abriu a bolsa. Tirou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona. Então, abriu a bolsinha, tirou uma nota de dez e fechou a bolsinha. Abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, guardou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona. Só então deu o dinheiro para o funcionário do guichê. Mas este não quis dar o bilhete.

— O preço é 12, rapazinho.

O menino, então, abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, tirou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsinha, tirou mais uma nota de dez, fechou a bolsinha. Daí abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, guardou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa e fechou a bolsona. Deu a outra nota para o funcionário, que lhe devolveu o troco.

Para guardar o troco, o menino abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, tirou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsinha, guardou o dinheiro, fechou a bolsinha, abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, porém, antes que ele guardasse a bolsinha na bolsa, fechasse a bolsa, abrisse a bolsona, guardasse a bolsa na bolsona e fechasse a bolsona, o trem passou e ele... perdeu o trem!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte V, final

Pode-se dizer que, em O Guesa, o eu-poético opera uma desagregação da imagem do poeta romântico. Dotada de uma visão racional diante do cânone romântico tradicional, a poética sousandradina poderia ser vista como uma crítica à máscara externa implícita no seio do romantismo conservador:
(Alviçareiras no areial:)
– Aos céus sobem estrellas,
Tupan-Caramurú!
É Lindoya, Moema,
Coema,
É a Paraguassú;
– Sobem céus as estrellas,
Do festim rosicler!

Idalinas, Verbenas
De Athenas,
Corações de mulher;
– Moreninhas, Consuelos,
Olho-azul Marabás,
Pallidez Juvenilias,
Marilias
Sem Gonzaga Thomaz!
(O Guesa. Canto II, p. 32.)

Nesses versos, fica patente a crítica imposta por Sousândrade ao cânone dominante. O desfilar de musas como “Lindoya, Moema, Paraguassú e Marilia” denuncia uma crítica à formação européia predominante em nossa literatura que, por muitas vezes, confecciona o interno a partir de uma espécie de molde externo. “Tupan-Caramuru” pode ser entendido como a concretização da artificialidade na expressão dos elementos de nossa cultura, pois um Deus tipicamente indígena, “Tupan”, aparece contaminado pela figura do branco colonizador, Diogo Álvares Correia.

Os versos “Olho-azul Marabás/ Pallidez, Juvenilias” corroboram a crítica à “europeização” do traço nacional pelo externo. Essa crítica se estende ao próprio movimento romântico na referência a “Moreninhas, Consuelos” e “Marabá”, personagens tipicamente românticas que podem sintetizar a artificialidade do discurso romântico epigonal. “Coema” poderia ser entendido como uma alegoria da artificialidade desse discurso.

Dessa forma, a visão lúcida diante da artificialidade romântica “epigonal” leva a uma metalinguagem de cunho satírico. Nesse percurso, o discurso sousandradino apropria-se da tradição para redimensioná-la em uma atitude marcadamente de vanguarda modernista:

 (Arraia-miuda, nas malhas; AGASSIZ-UYARA)

– Que violentam-se ellipses,
Ora, na ode infernal!
== Venias... dias d’entrudo...
            Mais crudo
Foi do Templo o mangoal.
– Nús, desformes, quebrados,
Neos, rijos, sem dó!
== Venias... gyra, Baníua,
            A Caríua
Doce mócóróró.
(O Guesa. Canto II, p. 33)

(Discussão entre mestres de fôrmas e fórmas:)

– Redondilhas menores...
== Per Guilherme e Nassáu!
Res, non verba, senhores
                            Doctores,
             Quer d’estados a nau!
(O Guesa. Canto II, p. 34)

            (NEPTUNOS:)

– Os poetas plagiam,
            Desde rei Salomão:
            Se Deus crea – procream,
                            Transcream –
            Mafamed e Sultão.
(O Guesa. Canto II, p. 35)

Nos versos acima, o poeta introduz comicamente figuras da tradição, metaforizadas jocosamente nos “mestres de fôrmas e fórmas”, na figura mítica de “Netuno” e na dança pandemônio do “Tatuturema”. “AGASSIZ-UYARA” indicaria uma ironia em relação à erudição própria do discurso tradicional, caracterizado como “Arraia-miuda” lançada “nas malhas”. Nessa linha de leitura, o “plágio” dos poetas apontaria para uma ridicularização do próprio fazer literário, verificada nos versos “ – Nús, deformes, quebrados,/ Neos, rijos, sem dó!”. Nesses versos, o termo “Neos”, investido de uma visão pejorativa, é envolvido caoticamente pelos termos “desformes, quebrados” e associado a elementos como “Baíua”, “Caríua” e à onomatopéia “mócóróró”, produzindo a deflagração da distância expressiva entre os termos eruditos face aos traços naturais. Em tom de galhofa, Sousândrade aponta para sua estrutura distinta, ou seja, o “violentam-se elipses” indica a metalinguagem imanente ao poema.

Nesse ponto, temos o poeta como um visionário, um Deus ao molde do Vate romântico na medida em que inverte a criação divina ao aludir a construção racional de seus versos, metaforizada no transcriar expresso no excerto citado há pouco.

Ora, O Guesa que sempre se sentia
            Revestido do signo, e sem do insano
            Zeno ser filho, então lhe acontecia
            Deixar o manto ethereo e ser humano”
(O Guesa. Canto II, p. 24)

Nesse processo racional, a humanização do poeta/Guesa, observável no fragmento acima, corrobora para a concretização do veio crítico comentado nesse artigo. O revestir-se em “signo” remonta à tradição romântica de vislumbrar através da criação literária um mundo idealizado que, muitas vezes, transfigura a própria realidade. No entanto, o deixar o “manto ethereo e ser humano” aponta para a tomada de consciência em relação a esse processo. Sendo assim, o impulso criativo humanizado traz para o texto o teor racional, remetendo à lucidez do poeta face à realidade que o cerca.

Vista por esse prisma, a figura feminina de Virjanura, musa inspiradora do personagem Guesa, pode ser entendida como uma crítica ao comportamento romântico tradicional no que se refere à construção da personagem feminina:

 “...Nas mãos tinha-a, mirava-a, possuia” [...].
 Quão taciturno agora! Qual se os beijos
Esse altar profanassem dos desejos
—Uma aza negra esvoa na alegria....”
(O Guesa. Canto IV, p. 81)

O ato de possuir a amada descaracteriza a visão romântica, na qual a musa é tida como algo inatingível e, portanto, como elemento a ser adorado. A tristeza, após a consumação da posse, indica a consciência da degradação da musa. A “aza negra que esvoa na alegria” é a constatação da dessacralização da figura feminina que, vista a partir de uma ótica realista, aparece destituída de sua aura de pureza e castidade.

“Virjanûra” sintetiza, assim, a sátira à falsidade do olhar romântico em relação ao espaço brasileiro, podendo ser entendida como um prolongamento da inquietação apresentada por Gonçalves Dias na composição de “Marabá”. A diferença reside no fato de que Virjanüra aparece projetada para além da mera idealização romântica, uma vez que o eu-poético não a renega e, sim, toma-a como musa, dessacralizando-a.

Podemos observar que, em O Guesa, a pureza do espaço natural, quando mencionada, é relegada a um passado remoto:

“Ou quando a que nasceu para ser nossa
Vemos em braços d’outrem delirando:
Ou meiga patria, esperançosa e môça,
Do seu tumulo ás bordas soluçando.”
(O Guesa. Canto II, p. 20)

Uma das formas de perceber o teor puro, atribuído ao traço nacional, é a fusão desse traço à figura da musa. Tal procedimento remete a uma personificação do espaço natural que, por muitas vezes, pode ser confundido com a própria musa. A inquietação do eu-poético em relação à posse do espaço natural, que é visto nos “braços d’outrem delirando”, aponta para a conscientização de que a “meiga pátria, esperançosa e môça” perde sua plenitude, aparecendo soluçante às bordas do seu túmulo.

3 Considerações finais

De nosso ponto de vista, acreditamos que, embora fortemente marcado pela visão romântica, Sousândrade opera uma racionalização do impulso emotivo primário presente na vertente canonizada no Romantismo Brasileiro. Tal postura pode ser verificada pela lucidez com que o poeta apresenta o espaço interno corrompido pelo traço externo. Ao se apropriar criticamente do canône tradicional, por meio da adoção de um Romantismo titânico, Sousândrade revela uma noção de brasilidade distinta do ufanismo romântico, fato que faz dele um ícone para a modernidade brasileira.

Pode-se dizer, então, que a poética sousandradina não busca a expressão do interno moldado pelo prisma europeu, como o fez em larga medida José de Alencar; pelo contrário, critica essa submissão, encarando-a como ponto de descaracterização de nossa cultura. Daí termos, no romantismo sousandradino, uma sátira à “originalidade” pretendida pelo Romantismo.

Sousândrade, portanto, proporcionou a emergência de um nacionalismo racional e, com isso, mostrou um olhar inovador, o que aponta para a constatação de que a literatura brasileira seria efetivamente fundada a partir da síntese da matriz nativa com as interferências externas.

Nas considerações feitas até o momento, procuramos enfatizar que o poeta maranhense apresenta uma maior lucidez em relação à “rotina incorporada”, presente no discurso romântico conservador canonizado no Brasil. Tal postura confere à poética do maranhense um redimensionamento da harmonia romântica, levando à expressão de um Romantismo, mais lúcido e racional, próximo da vertente romântica alemã.

O poeta maranhense não fica na mera reprodução de valores alheios a nossa cultura, mas tenta deflagrar a tensão existente entre eles no seio de nossa cultura. Na valorização da “cor local”, Sousândrade deixa transparecer um anseio nacionalista. A utilização de elementos da língua tupi como “urarí” (veneno), “urucari” (palmeira), “potyras” (flor), “cáe-á-ré” (rio de água branca na língua dos índios Barés) e “jacaré”, além da constante alusão à cultura indígena, figuram como uma possibilidade de saída diante da dependência romântica ao elemento externo.

Por esse prisma, a valorização da “cor local” é fator de ironia na inusitada poética sousandradina, pois no interno sobrevive o “sonho” de uma plenitude futura que, no entanto, não se realiza. No clamor pela valorização da “cor local”, o poeta de O Guesa não vê o nativo como mero prolongamento do europeu civilizado – Jurupari equiparado a Satanás, ou O Guesa comparado a Jesus –, mas como expressão das matrizes nativas enquanto detentoras do cerne da brasilidade. É justamente por essa posição intrinsecamente nacionalista que Sousândrade pode ser relacionado à modernidade.

Como vimos, a postura lúcida perante a matriz nacional aproxima a poética de Sousândrade ao Romantismo titânico ou racional. Sua preocupação em expressar a situação degradada do homem nativo (vítima da ação colonizadora) confere ao poema um engajamento político-social concretizado na figura utópica da República. Expressando a realidade histórica e social da segunda metade do século XIX, Sousândrade busca uma visão mais ampla da dependência econômica imposta pela ação do estrangeiro colonizador, evidenciando, com isto, o aprisionamento cultural do colonizado, que passa a construir sua visão de mundo pelo prisma do outro e, nesse processo, perpetua a dependência.

O poeta maranhense foi um dos primeiros poetas brasileiros a apontar para a nova perspectiva sócio-econômica que se materializava: o capitalismo. O despontar dessa nova estrutura social modifica o olhar sousandradino face às particularidades nacionais, deflagrando o pessimismo e a amargura diante da situação dos povos colonizados.

Essa visão negativa, crivada de racionalidade, aparece de forma sintética nos versos que seguem:

Tupan! vampiro em volta da candeia!
Dissolução do inferno em movimento!
(O Guesa, Canto II. p.41)

O Deus “Tupan” caracterizado como um vampiro, denota o racionalismo imanente ao poetar sousandradino, uma vez que retira do mito indígena toda a carga positiva para, a partir daí, decretar a decadência da nação que se expande comparada a um inferno.

Esse procedimento aponta para aquilo que Vizzioli (1993) chama de conciliação entre a razão e o sentimento no romantismo racional ou titânico. Assim como Hölderlin, Sousândrade impôs a sua poética o mesmo posicionamento crítico, questionando a pura emotividade romântica para, racionalmente, expor uma poética lúcida em relação à realidade de sua época.

É justamente por esse olhar crítico perante a matriz nativa que o poeta distancia-se da mesmice de seus contemporâneos. Tal postura implica uma manipulação consciente da tradição literária, permitindo a compreensão da modernidade sousandradina como resultado de uma visão romântica, privilegiada pela lucidez diante de seu tempo. Como salienta Williams (1976), a obra de Joaquim de Sousândrade possui características modernas, mas só pode ser compreendida em sua plenitude se encarada necessariamente como uma obra romântica.

De nosso ponto de vista, Sousândrade pode ser entendido como um poeta romântico, pois mesmo demonstrando uma consciência crítica diante da degeneração moral e ética da sociedade do século XIX, continua preso ao olhar utópico característico do discurso romântico.

Referências

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Notas 

[i] Caberiam a Augusto e Haroldo de Campos (1964) os louros pela reavaliação da obra do maranhense, a quem chamariam de “terremoto clandestino”, atribuindo-lhe uma posição de destaque dentre os poetas brasileiros, não como perpetuador de uma tradição, mas como um poeta que soube redimensionar essa tradição.

[ii] No presente trabalho, no tocante à produção de Gonçalves Dias, tomaremos como referência Poesias completas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1957

[iii] Será resguardada a ortografia original do poema, mesmo que, em alguns momentos, esta apresente algumas incorreções aos olhos da norma culta vigente. O texto fonte será sempre: SOUSÂNDRADE, O Guesa. Edição Fac-similar. Org. Jomar de Morais. São Luís/MA: SIOGE, 1979.


Fonte:   
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004. Disponivel em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0402/07.htm

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 9. A Roupa e o Gesto


Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se vêem caras. 

Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são, e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa traição delicada, pelas costas, -o que, como fineza, tem na sua independência um especialíssimo sabor. -Por fim, pode-se fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, por que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência de não haver outro depois do último. 

Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais. 

Apesar de preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro, e fiz toda a viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto o fato de eu envergar o meu novo terno cinzento e de estrear uma comburente gravata de listras amarelas e filetes encarnados. 

Não. Detesto exibições. E não distingo entre exibições, sejam de roupas, sejam de talentos ou virtudes, sejam de vícios ou maroteiras. Propendo até a perdoar mais facilmente a exibição de roupas, que não é assim tão idiota como inculcam os que não a podem pagar. 

Ter vaidade de uma farpela bonita é geralmente uma falta venial e, por assim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres da alma; ao passo que a vaidade intelectual envenena e turba as próprias fontes do pensamento, e a vaidade da boa ação destrói exatamente essa misteriosa e fragílima levedura de heroísmo, que é o seu único valor, -o imponderável que a análise não pode reduzir e ante o qual o escalpelo se detém, enquanto faísca no olho implacável do operador uma centelha de humana emoção. 

É a vaidade exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial de piedade e de energias profundas. Aparentemente frívola, ela é na realidade mais forte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas e fitas, as suas exterioridades espumosas e florais de criatura espetacular, são na realidade umas couraças, uns adarves, umas muralhas, -são tranqueiras e circunvalações defensivas que a mulher estende em redor de si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva lá dentro, na intimidade da cidadela sacra, o seu tesouro e o seu altar. 

Não, a indumentária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me, luxuosamente, como a coisa designada) a indumentária não me influiu na resolução de ir para o primeiro banco. Predispôs-me bem, quando muito deu-me um calorzinho de otimismo e de simpatia difusa. Isto, sim. -De onde infiro que devíamos usar mais freqüentemente de roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuar o efeito pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente de roupa nova. 

Se todos vivêssemos enfiados em estojos de boa fazenda e bom corte, de certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilidade e o concerto das relações entre os homens. Um indivíduo rudemente estrafegado pela vida, mas sempre cingido em ternos corretos e confortáveis, suporta com outra filosofia e outra elegância os baldões da fortuna. Principalmente, é claro, quando a roupa está paga. 

Homens há que são relembórios por teima, por descaso, por sistematização inconsciente das sugestões da preguiça, da somiticaria ou da falta de gosto. Querem fazer crer que são assim por vontade e que vão executando um programa bem meditado. Dão-se ares de desprezar profundamente essas materialidades ineptas. E a verdade é que são às vezes sinceros. Mas como se iludem! 

O indivíduo mais sinceramente lavado de vaidades decorativas não pode, quando menos, quando menos, deixar de sentir a cada instante a discrepância em que se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua atitude interior de dissidência, não pode evitar a necessidade de pensar nisso, de fazer reflexões que deixam forçosamente um sedimento amargo, sobretudo quando reagem contra atitudes e atos depreciativos com que esbarrou. Sendo assim, onde está a liberdade interior que ele pretende prezar acima de tudo? A liberdade perfeita e bela seria a que implicasse no mesmo desprezo profundo e sereno as materialidades exteriores e todas as suas conseqüências -a liberdade de Diógenes ou de Francisco de Assis. Sem isso não é liberdade: é um simulacro, um escamoteio, um sofisma em ação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua, como a sua própria sombra. 

Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria e mantém o hábito das posições perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por um esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a uma disciplina retificadora e a uma continuada economia de força. Excelente esporte para a alma, que se modela à feição do corpo. -As atitudes e movimentos da alma são atitudes e movimentos corporais: a alma põe-se de pé, acocora-se, desliza, descai, ajoelha-se, caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma todas as posições de luta, desde a de um calmo e melódico guerreiro de Fídias até à de um torpe moleque agachado e sinuoso, com a navalha empalmada e o pé igualmente pronto para a rasteira ou para a fuga. 

Nas aulas de educação moral e cívica devia-se ensinar, antes de mais, a selecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que aprendeu uma simples maneira nova de segurar o cigarro, de puxar e soltar a fumaça, de arremessar o coto, uma certa maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta de realizar todos esses pequenos movimentos, adquiriu alguma coisa que positivamente lhe modifica a personalidade, por via de ressonâncias que se vão convertendo em movimentos interiores habituais. -Inversamente, para convencer uma menina de que ela deve ser boazinha, não há como convencê-la de que assim se torna mais bonita. Há muito menina grande que faz toda a força do seu domínio interior com a simples preocupação de não ter cara de espeloteada ou de evitar a inflamação das pálpebras. Chamfort conta de uma dama que assim se justificava de assistir com olhos secos a uma comovedora representação teatral: "Eu choraria; mas é que tenho de cear na cidade". 

Compreende-se bem a confusão que de ordinário se faz entre o gesto significativo e a coisa significada, entre o valor da virtude e suas aparências externas. Este pratica uma ação honrada, não por esta ou aquela razão abstrata, mas para poder andar "de cabeça erguida"; aquele, para poder "dar uma...", isto é, fazer um gesto violento e desaforado aos seus detratores. Conheci um homem que, dando uma grossa esmola a uma igreja, dizia: "Não é lá tanto pela religião, porque enfim eu vivo a fazer por ela o que posso; mas é cá por uma birra, - é um couce que eu prego ao Alvarenga, aquele idiota, que deu um conto de réis e disso se pavoneia." 

A metáfora é mais do que um artifício pitural, é a gesticulação das almas. 

Somos bonecos à procura de gestos. Estes preexistem e persistem fora de nós, e nós passamos por eles como a água passa pelos vasos e canais que a contêm e lhe dão forma, como a água passa pelos acidentes da própria correnteza e do próprio caminho, pelas suas rugas, pelas suas cintilações e sombras, pelas suas espumas e cachões. 

Tomamo-los no lar, desde o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro, no cinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na própria música, que espontaneamente se resolve em desenhos cinéticos de uma aérea e fulmínea expressividade. 

Os gestos de dignidade serena, de compostura discreta e elegante estão, em parte, incorporados às roupas distintas, como um forro invisível. O alfaiate corta pelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por uma tela espiritual, fabricada por duas tecelãs incansáveis, a Humanidade e a Natureza. 

Dizem que o hábito não faz o monge. Imagine-se o que seria um frade de São Francisco sem o seu hábito! O hábito só não faz o monge quando esse está de tal maneira conformado pela vestimenta, que já pode impunemente despi-la, sem de fato arrancá-la toda do corpo. 

A toga foi talvez a mais importante das invenções romanas. De certo contribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar o caráter daquela gente estrepitosa e derramada. 

Por uma razão semelhante, as estátuas clássicas (isto me parece que foi dito por Alam) são formas imperecíveis de idealidade ética, formas que precedem e sobrevivem ao conteúdo ideal que nelas vão sucessivamente vazando as gerações. 

A roupa é muita coisa, porque a expressão é tudo. Tudo quanto em nós representa idéia, pensamento, espirito, são expressões que se refletiram para dentro e puseram um pouco de luz e de ordem no caos de que brotaram -como esses deuses barbáricos e frustes que nasceram da pedra informe, das águas indeterminadas, dos elementos brutos e confusos, para individuar as coisas e esboçar uma organização do mundo. 

Fonte:
Domínio Público

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia VII)


Eros e Psique

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Obs.: Publicado pela primeira vez in Presença, números 41-42, Coimbra, maio de 1934. Acerca da epígrafe que encabeça este poema diz o próprio autor a uma interrogação levantada pelo crítico A. Casais Monteiro, em carta a este último:

A citação, epígrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente - o que é fato - que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho [In VO/II.]

ESQUEÇO-ME DAS HORAS TRANSVIADAS

Esqueço-me das horas transviadas
O Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco...  Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...

ESTA ESPÉCIE DE LOUCURA

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há

FELIZ DIA PARA QUEM É

Feliz dia para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia !

Azul do céu faz pena a quem 
Não pode ser
Na alma um azul do céu também 
Com que viver

Ah, e se o verde com que estão 
Os montes quedos
Pudesse haver no coração 
E em seus segredos !

Mas vejo quem devia estar 
Igual do dia
Insciente e sem querer passar. 
Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu 
Tão belo ser
Quem de si sente que perdeu 
A alma p’ra os ter !

FLOR QUE NÃO DURA

Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento 
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi 
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi

Onde não sou senão a terra e o céu.

FOI UM MOMENTO

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.

Senti ou não ?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste

A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve !...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando 
A tua mão
Senti pousando 
'Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco, 
No coração,
Não houve um ritmo 
Novo no espaço ? 
Como se tu,

Sem o querer, 
Em mim tocasses 
Para dizer 
Qualquer mistério, 
Súbito e etéreo,

Que nem soubesses 
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

FOSSE EU APENAS, NÃO SEI ONDE OU COMO

Fosse eu apenas, não sei onde ou como, 
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....

Fada maliciosa ou incerto gnomo 
Fadado houvesse de não pertencer 
Meu intuito gloríola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente 
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e , num crepúsculo de espadas, 
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...

FRESTA

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

FÚRIA NAS TREVAS O VENTO

Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
Não há no meu pensamento
Senão não poder parar.

Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, 
sem identificação do autor.

Simone Pedersen (Obsessão)


Depois que romperam, todos os dias o telefone tocou exatamente à meia-noite.

Ela sabia quem era. Conhecia a respiração ofegante. Ficava a escutá-lo por infindáveis minutos, somente para a consciência permitir-lhe dormir em seguida. O motivo ela nem sabia mais qual fora. Ciúme doentio, agressões verbais, humilhações públicas. Talvez, a culpa fosse do destino, como lhe dizia a cartomante. 

Morar no interior seria a última tentativa. Precisava se livrar da obsessão dele. Não desse certo, já havia se decidido a resolver a situação, ingerindo pastilhas de veneno para ratos. 

Foi de madrugada para não ser vista. Quando entrou na estrada, viu pelo retrovisor que um carro se aproximava, ao mesmo tempo em que o celular tocava insistentemente, mostrando o nome dele no visor. Descontrolada, entrou num posto de gasolina a procura de ajuda. Saiu do carro aos gritos e foi acudida pelos frentistas que não conseguiam entender o que ela balbuciava. 

Esclareceram que nunca haviam visto o carro que a perseguia, quando a polícia chegou. No celular, não havia registros de chamadas há treze dias. E treze foi o número de pílulas que ela ingeriu sem que ninguém percebesse enquanto abriam o porta-malas, para nele encontrar um corpo esfaqueado em estado de decomposição.

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51b.html

Lourenço do Rosário (O Coelho e a Hiena)


O coelho e a hiena eram amigos.

Um dia, a hiena que estava a passear sozinha, passou por uma povoação e viu algumas raparigas a pilar. Entre elas havia uma muito bonita e que se chamava Chipha Dzuwa.

A hiena disse: "Es muito bonita, casa comigo". A rapariga respondeu: "Primeiro tens de falar com os meus pais, traz o teu padrinho. E caso contigo".

Entretanto, o coelho, que pouco depois passou pela mesma povoação, apaixonou-se pela mesma rapariga. "Casa comigo", disse-lhe o coelho. "Não posso, já dei a minha palavra à hiena. Ele vem apresentar-se aos meus pais", respondeu a rapariga. O coelho começou a soltar grandes gritos e a rebolar-se no chão. Riu e zombou da rapariga: "Não compreendo nada. Então tu, tão bonita que és, casas com um qualquer? Não sabes que a hiena é meu serviçal e serve-me de cavalo quando entendo?" "Não acredito, apresenta-me provas", pediu a rapariga, humilhada e espantada.

Quando o coelho se encontrou com a hiena, nada disse. Esta, porém, estava feliz e pediu ao amigo para ser seu padrinho no dia da apresentação aos pais. O coelho fingiu: "Não sei, amigo, é que não ando lá muito bem. Além disso, piquei-me num pé e não consigo caminhar longas distâncias". A hiena ofereceu-se logo cheia de boa vontade: "Não faz mal, eu carrego-te às costas. O que eu quero é que vás apresentar-te aos pais da Chipha Dzuwa". Mas o coelho insistiu: "Tu andas muito depressa, tenho receio que me deixes cair. Só se permitires que eu ate uma corda ao teu pescoço". A hiena estava por tudo naquele momento. Aceitou.

No dia combinado, lá foram os dois, o coelho no dorso do amigo e com as mãos na corda. Quando chegaram à povoação, o coelho começou a fazer manobras como se estivesse montado num cavalo e logo que viu a rapariga, começou a gritar: "Corre depressa, aí está a nossa amiga". A hiena, que não tinha percebido ainda o que o coelho estava a fazer, correu mesmo. Ao chegarem ao pé da rapariga, o coelho saltou para o chão e disse-lhe: "Estás a ver como eu tinha razão? A hiena é ou não o meu servidor fiel?" Esta apercebeu-se então do que estava a passar-se e ficou de tal maneira envergonhada que fugiu para bem longe. E o coelho casou com Chipha Dzuwa.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

Lourenço do Rosário (1949)


Lourenço Joaquim da Costa Rosário nasceu em 1949, em Marromeu, Moçambique.

É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português/Francês, pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e Doutorado em Letras, especialidade de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, pela mesma Universidade, desde Janeiro de 1987.

Tem leccionado em várias instituições de ensino superior de renome internacional como, entre outras, a Universidade de Hamburgo, na Alemanha, Universidade de Milão, em Itália, Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil.

Actualmente professor da Universidade Nova de Lisboa e Reitor do Instituto Superior Politécnico e Universitário - ISPU - em Maputo, Moçambique.

Tem também a seu cargo a orientação de trabalhos de licenciatura, mestrado, doutoramento e pós-doutoramento. 

Com várias obras publicadas, é inúmeras vezes solicitado para participar como orador em congressos e conferências. 

Para além de outras funções ligadas à defesa e preservação da língua portuguesa, faz também parte do seu vastíssimo currículo a Presidência do Projecto Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa.

Fonte:
http://www.macua.org/livros/contoszamb.html

Andrade Sucupira Filho (Poesias Avulsas)

Libreria Fogola Pisa

Andrade é de Vila Velha/ES

I L H A

Acima das nuvens
Fora do solo da irmã Terra
Há uma Ilha

Às vezes vou para lá
Apenas relaxar
Acima dos aviões

Jamais usei drogas para ir lá
Nem para nada
Apenas relaxo...e vou...vou...

Não ouço o ruído da guerra
Vejo a irmã Lua
E o irmão Sol
E tudo muito pequeno
Na Irmã Terra

Sinto-me UNO com o Cósmico

Mas não estou no espaço sideral
Estou na Ilha...agora
Não estou perdido
Não estou fora
Não sinto dor

Estou em uma Ilha
Chamada
EU INTERIOR...

DELEITE EM VERSOS LIVRES

...Hoje me deleitei...com a beleza que vejo em você...
Meus olhos furta-cores buscaram
os seus olhos de esmeralda...
Minhas mãos ‘acariciaram’ seus cabelos,
“negros como as asas da graúna”...

Meus lábios pousaram nos seus lábios
“doces como um favo de mel”...
Suavemente...
Então...Viajamos juntos até o Paraíso...

De repente...desvanecemo-nos em brumas cor de Amor...
...Era somente sonho de Mago e Fada?...
Eu já nem sei se era real...ou nada...

E L O

Eu sou aquele que foge do extremo...
Ligo um extremo ao outro, o meio ao fim...
Onde? A corrente inteira está em mim...

CÉU AZUL

Estava tudo calmo no oceano.
E então foi se fechando o tempo, lento...
Nuvens escuras, raios (que momento),
E ainda: ondas gigantes, mar insano...

E eu, sozinho, em meu barco, desgarrado,
fui navegando nas revoltas águas.
E a natureza a liberar suas mágoas...
E Deus, de Jonas, a bradar, irado.

Dizem que Deus, em sua onisciência,
é sempre bom, é justo, é sempre amigo.
Mas, vez por outra, perde a paciência:
Acho que agora Ele a perdeu comigo...

Por que? Sei que motivos tem de sobra,
com a humanidade inteira...eu somente?
(E enquanto penso, faço uma manobra).
Navego e vou. Canso, meu corpo sente...

Relaxo, e então faço uma prece viva...
Não mais questiono...me entrego...adormeço...
Sonho, deliro, viajo ao léu, me esqueço...
E no oceano, a minha nau deriva...

Raios? Trovões?...e eu a dormir sonhando...
Voltou meu barco ao porto firme, ao sul...
Quando me acordo, vejo o sol brilhando,
a natureza calma, o céu azul...

L U Z

Ah! Quanta Luz entrou pela janela,
Quando evoquei meu Deus interior...
Como expandiu-se a Luz de minha vela!
Que então mostrou-se em três: Luz, Vida e Amor!

Ah! Quanta Luz entrou pelo meu peito,
E se alojou dentro do coração!
Eu me infundi no Um, no Deus perfeito...
E iluminou-se a Vida desde então...

Ah! Quanta Luz entrou na minha mente!
E a vibração que hoje o meu corpo sente
É tão sublime que extinguiu a dor.

Ah! Quanta Luz me invade o corpo inteiro:
Sinto o universo, justo e verdadeiro;
O Todo é o Um, e a criação, o Amor...

QUO VADIS?

Passo na porta, quase que enlatado...
Deparo com o humilde escudeiro:
"-Aonde vais senhor?" - Ao mundo inteiro.
Respondo ao homem do olho dilatado.

Embora tendo um olho...e outro não.
Meu escudeiro, sempre dedicado,
Sorri pra mim, depois cospe de lado
E me convida, no dialeto: - Vão?"

Meu escudeiro???...Mas, que tempo é esse?
Onde é a espada o símbolo do bem?
Tempo de muitos? Tempo de ninguém?
Tempo de ajuste? Tempo de benesse?

E então me acordo: um reboliço imenso...
Nas ruas, terremoto, um tiroteio...
Furacão, meteoro... é devaneio?
Como Descartes: Já que existo, penso...

ESPERA

Olho p'ra natureza e leio...leio...
Cai a semente...sol e chuva...espera...
Espera...e nasce, e cresce...é primavera...
E o tempo passa...espera...o fruto veio...

Espera...e o vento, e a chuva...e o fruto cresce...
Espera...e gira a terra, e esfria, e esquenta,
Tudo se acalma...chove, e gela, e venta...
E o tempo...espera...e o fruto amadurece...

E cai o fruto...e o ciclo recomeça...
Vem o verão e o outono...e o inverno surge...
E o vento sopra, e a chuva cai e cessa...
E a natureza vive...e o tempo urge...

...Vou caminhando e lançando semente...
E passa o dia, o mês, o ano...a era...
...Minha colheita?...A voz que nunca mente
"Me diz: “espera...espera...espera...espera...”

R E A L

(Escrita em 1981, publicada no livro “Vôos de pés no chão” – ACE - 1ª edição – 1995 – Vitória –ES)

 A natureza eu sinto em mim vibrando:

O mar, o submar, peixes nadando,
Gaivotas e pardais em frenesi,
As gotinhas do orvalho cintilando,

O amor, a planta, a flor, o colibri,
O infinito e essa imensidão de estrelas
Que fascinam e eu me detenho a vê-las,
Querendo ir morar no meio delas...

Sensitivas janelas de minh’alma,
Que se tocam com tudo a minha volta,
Os meus olhos percebem, mente solta,
Que afinal há o real, o grito, a calma.

E a poesia, que fora lírio puro,
Passeia por casebres, por calçadas,
Pelos presídios, pelo beco escuro,
Pelos muitos, por poucos, pelos nadas...

O lirismo se envolve à realidade,
Que é o bem e o mal, concreto, natureza,
Amor, amor, furor, sonho, verdade...
Morrem e nascem pessoas na cidade.

Fonte:
http://www.culturarevista.jor.br/andradesucupira.htm