segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Clevane Pessoa (De Anjos e de Pássaros.)

Ergo olhar deslumbramento
vejo anjos sobre cabeças humanas
dentro da catedral;
Anjos de ferro negro,
esculturas na architectura
de formas quase profanas
a romper tradição.

Não desabe ó figura
milenar, tu que estás
bem sobre mim ,
que não rezo orações prontas
e somente sei usar
o verbo molhado em pranto
ou a metáfora cheia de luar.

(...)
Que desabem
sobre as cabeças dos poetas
os passarinhos em alarido
dentro de um mercado,
a parecer kamikasi,
suicida em massa,
ao jogar-se do teto ao chão
apenas para bicar migalhas.

São nosso retrato:
livres, sem sermos canalhas,
videntes com olhos cheios de palhas
a predizer os tempos,
cada fato envolvido
no pacote dos tesouros,
crianças e sábios a um mesmo tempo,
a chamar atenção pelos vôos inusitados.

(...)

Prefiro os pássaros vagabundos
das ruas e das igrejas,
mercados e sinais.
Não são artes singulares e belas
nem enfeites de catedrais:
os anjos passarinhos
de Brasília
estão presos a cabos
e suspensos
sobre nossas cabeças
a lembrar talvez pecados ,
talento, criatividade embora.
Já os pássaros -anjos
desde o Egito antigo
têm a missão de carregar almas
entre a vida terrena
e a morada dos deuses.

Fontes:
Recanto das Letras
Imagem = http://www.zazzle.com.br 

Artur Azevedo (A Pele do Lobo)

Comédia em um ato
Escrita em 1875 e representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Fênix Dramática, em 10 de abril de 1877

A ANTONIO FONTOURA XAVIER

PERSONAGENS
CARDOSO - subdelegado
AMÁLIA - sua mulher
APOLINÁRIO
PERDIGÃO
JERÔNIMO
MANUEL MARIA
VITORINO
O COMPADRE
UMA PARTE

Dois soldados da polícia

A cena passa-se no Rio de Janeiro

Atualidade.

Ato Único
Sala, secretária, relógio de mesa, etc., etc.

Cena I


CARDOSO, AMÁLIA (Vestidos para a cerimônia e prontos para sair.) UMA PARTE (Que logo sai, à porta do fundo.)

CARDOSO - Sim, senhor; sim,. senhor! Pode ir com Deus. Descanse, que hoje mesmo serão dadas as providências que o caso exige.

PARTE - Às ordens de Vossa Senhoria. (Retira-se.)

CARDOSO - Safa!

AMÁLIA (Erguendo-se.) - Deixar-te-ão desta vez?

CARDOSO- E metam-se!

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Para que aceitaste esta maldita subdelegacia?

CARDOSO (Ainda passeando.) - Eu não aceitei: pedi. Mas já tenho dito um milhão de vezes que os serviços prestados ao país e ao partido pesam muito no ânimo daqueles que me podem fazer galgar mais um degrau na escala social.

AMÁLIA - Deixa-te disso, Cardoso; um degrau dessa tão falada escala social, não vale decerto o sacrifício que te custa essa autoridade de ca-ca-ra-cá. São uns desfrutadores, eis o que são! Hás de ser pago com um pontapé. Verás!

CARDOSO - Hei de ser promovido na primeira vaga que aparecer. O Cantidiano está por pouco a bater a bota. Verás se o lugar é ou não é meu!

AMÁLIA - Fia-te na Virgem e não corras.

CARDOSO - E uma vez que aceitei o cargo...

AMÁLIA - A carga, deves dizer.

CARDOSO - Venha com ele o sacrifício. Antes de tudo o dever!

AMÁLIA - Estamos prontos para sair há duas horas.

CARDOSO (Consultando o relógio de mesa.) - Há duas horas e dois minutos.

AMÁLIA (Embonecando-se ao espelho.) - Creio que não chegamos a tempo para o batizado.

CARDOSO - Que remédio terão eles, senão esperar pelos padrinhos?

AMÁLIA - E o carro na porta há tanto tempo?

CARDOSO - Anda com isso, anda com isso! E metam-se!

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Vamos. Não percamos mais tempo.

CARDOSO - Vamos . (Vão saindo. Batem palmas.)

AMBOS - Bateram.

CARDOSO - Quem é?

APOLINÁRIO (Fora.) - Sou eu.

AMÁLIA - Eu quem?

APOLINÁRIO (No mesmo.) - Um criado de Vossa Senhoria.

CARDOSO - Entre quem é.

AMÁLIA - Temo-la travada! (Entra Apolinário. Pisa macio e fala descansado.)

Cena II
Os mesmos e Apolinário

APOLINÁRIO (À porta do fundo.) - Dá licença, senhor subdelegado?

CARDOSO - Entre, senhor. (Vai outra vez por o chapéu na secretária.)

APOLINÁRIO (Entrando e sentando-se em uma cadeira que deve estar no meio da cena.) - Não se incomode Vossa Senhoria. Estou muito bem. Vossa Senhoria como tem passado?

CARDOSO - Bem, obrigado. O que pretende o senhor?

APOLINÁRIO - Sua senhora tem passado bem, senhor subdelegado?

AMÁLIA - Bem, obrigada. O senhor o que pretende?

APOLINÁRIO - Ah! estava aí, minha senhora? Os meninos estão bons?

AMÁLIA - Que meninos, senhor?

APOLINÁRIO - Os seus filhos, minha senhora.

AMÁLIA - Não os tenho. E esta!
 
APOLINÁRIO - Pois levante as mãos pra o céu e dê graças a Nosso Senhor Jesus Cristo!(Sinais de impaciência em Cardoso e Amália.) Eu tenho três, três! Todos três machos, felizmente. Mas que consumição! Que canseira! Quando não está um doente, está outro; quando não está outro, está outro; quando não está nenhum, está a mãe; quando não está a mãe, está o pai. Às vezes estão, filhos e pais, todos doentes. É preciso chamar a vizinha para dar-nos qualquer coisa. É uma lida, minha rica senhora! Peça a Deus que lhe não dê filhos. Olhe...(Mostra a cabeça.) Não vê?

AMÁLIA - O quê? o quê?

APOLINÁRIO - Já estou pintando... Ainda anteontem... Anteontem não... Quando foi, Apolinário? Segunda... terça... Foi anteontem mesmo... Eu tinha acabado de tomar o meu banhinho e de ouvir minha missinha...

CARDOSO (Interrompe-o.) - Meu caro senhor, tomo a liberdade de preveni-lo que temos muita pressa e não, podemos perder tempo. Íamos saindo justamente quando o senhor entrou...

APOLINÁRIO (Erguendo-se.) - Nesse caso, senhor doutor...

CARDOSO - Perdão, não sou doutor.

APOLINÁRIO - Fica para outro dia... Eu vinha dar minha queixa, mas... (Cumprimenta.) Senhor doutor... minha senhora... (Vai saindo.)

CARDOSO - Venha cá, senhor: já agora diga o que pretende.

APOLINÁRIO (Voltando-se e preparando-se como para um discurso, com força.) - Senhor subdelegado...

CARDOSO - Não é preciso gritar tanto...

APOLINÁRIO - Esta noite fui roubado.

CARDOSO - Diga.

APOLINÁRIO - Dezoito cabeças de criação... dezoito ou dezenove... Ontem esteve em nossa casa um cunhado meu, irmão de minha mulher, empregado no Arsenal de Guerra, e não tenho certeza de que ele levasse alguma galinha consigo, mas creio que não. Em todo caso, foram dezoito ou dezenove cabeças, não falando em um bonito galo de crista, que comprei no mercado, não há quinze dias.

CARDOSO - Muito bem. O senhor chama-se...

APOLINÁRIO - Apolinário, um criado de Vossa Senhoria.

CARDOSO - Apolinário de quê?

APOLINÁRIO - Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu (Dando um cartão) Olhe, aqui tem Vossa Senhoria meu nome e morada.

CARDOSO - Bem; pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige.

APOLINÁRIO (Preparando-se outra vez para um discurso e elevando muito a voz.) - Ainda não fica nisso, senhor doutor!

CARDOSO - Já tive ocasião de dizer-lhe, primeiro, que não é preciso gritar tanto; segundo, que não sou doutor.

APOLINÁRIO (Com a mesma inflexão, porém baixinho.) - Não fica nisso. Eu conheço o gatuno!

CARDOSO - E por que estava calado?

AMÁLIA (Não se podendo conter.) - Com efeito, Senhor Paraguaçu!

APOLINÁRIO (Atarantado.) - Hein! (Falando com cada vez mais descanso.) Não conheço eu outra coisa! Chama-se Jerônimo de tal, um ilhéu, um vagabundo, que foi há tempo cocheiro de bondes e agora não sai da venda de seu Manuel Maria, ao qual dizem que vende por um precinho de amigo, o que ...     (Ação de furtar.) Vossa Senhoria sabe qual é a venda de seu Manuel Maria? É a que fica mesmo em frente à casa do meu cunhado, do mesmo que esteve ontem em nossa casa, e sobre o qual estou em dúvida se levou ou não alguma galinha. (A Amália.) Mas que bonito galinho, senhora! Vossa Senhoria dava oito mil réis por ele com os olhos fechados... Era branco, branquinho, como aqueles patinhos do Passeio Público. Uma crista escarlate! Que bonito galo!

CARDOSO - Vamos! Não temos tempo a perder! Faça o favor de sentar-se naquela mesa e dar a queixa por escrito.

APOLINÁRIO - De muito bom gosto, senhor doutor. (Obedece.)

CARDOSO - E o senhor a dar-lhe! Já lhe disse que não sou doutor.

APOLINÁRIO - Isso é modéstia de Vossa Senhoria.

AMÁLIA - Parece de propósito, Senhor Paraguaçu.

CARDOSO - Deixa-o para lá. (Vai para junto de Amália.) Que maçador! E metam-se!

AMÁLIA - Não chegaremos a tempo.

APOLINÁRIO (À mesa.) - Esta pena está escarrapachada, senhor subdelegado...

CARDOSO - Vou dar-lhe outra... vou dar-lhe outra...

AMÁLIA - Anda... Tem paciência... Acaba com isso. (Cardoso vai abrir a secretaria e mudar a pena da caneta.)

APOLINÁRIO - Muito obrigado! Que incômodo tem tomado Vossa Senhoria! Mas também não há quem diga à boca cheia: “Aquilo é que é um subdelegado! Zelo até ali... É o pai das partes!”

CARDOSO - Faça o favor de escrever o que tem de escrever...

APOLINÁRIO - Às ordens de Vossa Senhoria . (Escreve.)

CARDOSO (Voltando para junto de Amália.) - Decididamente peço a demissão!

AMÁLIA - Isso já devias ter feito há muito tempo.

CARDOSO - Olha que é bem difícil suportar uma maçada assim... E metam-se!

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Pede demissão, Cardoso, pede demissão.

APOLINÁRIO (Da mesa.) - Senhor subdelegado, faça o favor de me dizer o modo por que devo principiar este requerimento... Em matéria de polícia sou completamente leigo... Diga-me só o cabeçalho... O cabeçalho! o resto vai...

CARDOSO - Aí, Senhor Paraguaçu! O senhor é maçante! Tenho estado a aturá-lo há meia hora!

AMÁLIA (Olhando o relógio.) - Há meia hora e sete minutos.

CARDOSO - Estamos muito apressados, meu caro senhor... não posso estar com isso...

APOLINÁRIO - Eu quis retirar-me quando Vossa Senhoria disse que ...

CARDOSO - Vamos lá! Escreva no alto — Ilustríssimo Senhor .

APOLINÁRIO - O Ilustríssimo Senhor — já cá está.

CARDOSO - Bem (Ditando.) —“O abaixo assinado, morador nesta freguesia, à rua de tal , número tal...”

APOLINÁRIO (Escrevendo.) - ...     número treze...

CARDOSO - “Queixa-se a Vossa Senhoria de que, ontem, às tantas horas da noite...”

APOLINÁRIO - “Queixa-se” é com x ou ch?

AMÁLIA - Ó céus! (Rindo-se.)

CARDOSO - Como quiser! Não faço questão de ortografia.

APOLINÁRIO - Vai com ch. (Acabando.) ...     “da noite”...

CARDOSO - Como está?! (Vendo.) Fulano de tal, tal, tal. Ah! (Ditando.) “Furtaram-lhe tantas galinhas...”

APOLINÁRIO (Escrevendo.) - ...”e um galo de crista”...

CARDOSO - “... as suspeitas de cujo furto faz recair em Fulano de Tal.” (Consultando o relógio.) E metam-se!

APOLINÁRIO (Escrevendo.) - “Fulano de tal, vulgo Barriga-cheia”. Pronto!

CARDOSO - Na outra linha: “Deus guarda a Vossa senhoria.”

APOLINÁRIO - ...     “a Vossa Senhora”...

CARDOSO - Na outra linha: “Ilustríssimo Senhor Subdelegado de tal freguesia.”

APOLINÁRIO - Pronto.

CARDOSO - Assine.

APOLINÁRIO - ...     “Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu.” (Erguendo-se.) Pronto.

CARDOSO - Bem; agora pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige.

APOLINÁRIO - Com licença, senhor subdelegado... Às ordens de Vossa Senhoria...

CARDOSO - Passe bem.

APOLINÁRIO - Minha senhora...

AMÁLIA - Viva. (Volta-lhe as costas.)

APOLINÁRIO - Sem mais incômodo. (Saída falsa.)

CARDOSO - Safa!

AMÁLIA - Saiamos, saiamos quanto antes! pode vir outro... (Vão saindo.)

APOLINÁRIO (Voltando.) - Ia-me esquecendo, senhor subdelegado...

CARDOSO - Outra vez!

AMÁLIA - Assustou-me até!

CARDOSO - O que mais deseja?

APOLINÁRIO - Hoje, logo depois do almoço, encontrei-me cara a cara com o tal Jerônimo!

CARDOSO - Que Jerônimo, senhor?

APOLINÁRIO - O Barriga-cheia, o tal que me furtou as galinhas...

CARDOSO - E o que tenho eu com isso, não me dirá?

APOLINÁRIO - Direi, sim, senhor. Com licença. (Desce à cena e senta-se.) Chamei-o de ladrão! Disse-lhe assim: “Você é um ladrão!” — Com licença da senhora...

AMÁLIA - E o que tem meu marido com isso?

APOLINÁRIO - É que o sujeito tomou três testemunhas, e diz que me vai processar por crime de injúrias verbais.

CARDOSO - Mas, enfim, faz favor de me dizer para que voltou cá?

APOLINÁRIO - Vim prevenir a Vossa Senhoria de que...

CARDOSO - Vá prevenir ao diabo que o carregue!

APOLINÁRIO (levantando-se.) - Senhor doutor.

CARDOSO (Gritando.) - Já lhe disse que não sou doutor!

APOLINÁRIO (Imitando-o) - Isso é modéstia de Vossa senhoria!

CARDOSO - Saia! Ponha-se ao fresco! Supõe o senhor que sirvo de joguete?

APOLINÁRIO - Mas Vossa Senhoria...

CARDOSO - Saia!

APOLINÁRIO - É que ...

AMÁLIA - Oh! senhor, já é a terceira vez que se lhe diz — saia.

APOLINÁRIO - Minha senhora, eu...(Tornando a sentar-se, com todo o sossego.) Com licença...

AMÁLIA - Oh! isto é demais!

CARDOSO - Então, não ouve!

APOLINÁRIO - Quero justificar-me!

CARDOSO (Ameaçador.) - Cuidado, Senhor Paraguaçu!

APOLINÁRIO - Bem, Vossa Senhoria está em sua casa: manda. (Levantando-se e cumprimentando.) Ás ordens de Vossa Senhoria.

CARDOSO - Viva! Há mais tempo! (Passeia agitado.)

APOLINÁRIO - Minha senhora...

AMÁLIA - Passe bem. (Saída falsa de Apolinário.) Que inferno! que inferno! E metam-se!

APOLINÁRIO (Voltando.) - Acredite senhor doutor, que eu não queria de forma alguma...

CARDOSO (Desesperado.) - Ah! ele é isso? (Agarra uma cadeira e levanta-a, correndo para Apolinário.)

AMÁLIA (Muito aflita.) - Ah! (Suspende o braço de Cardoso. Ficam todos numa posição dramática.)

APOLINÁRIO (Com todo o sangue frio.) — Tableau. (Desaparece.)

Cena III

Cardoso e Amália

CARDOSO - Vês, Sinhá, vês como um homem se deita a perder?

AMÁLIA - Sim, sim, mas vamos, anda daí!

CARDOSO (Caindo na cadeira que tinha nas mãos.) - E que dor de cabeça fez-me este bruto!... E metam-se.

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Espera... vou buscar a garrafinha de água-flórida. (Sai e volta com a garrafinha.)

CARDOSO - Depressa... depressa, Sinhá! (Amália esfrega-lhe as frontes com água-flórida.) Bem...basta... está pronto... Aí! que ferroadas! deita a garrafinha em cima a mesa e vamos, vamos! (Amália deita a garrafinha sobre a mesa e vai dar o braço a seu marido.)

AMÁLIA - Vamos! (Saem e voltam.) Esqueci-me do leque. (Entra à direita baixa.)

CARDOSO (Falando para dentro.) Que demora, Sinhá, que demora! Ainda há de vir alguém, verás! (Passeia.) Então não achas esse leque! Aí! minha cabeça! E metam-se! (Quebra-se alguma coisa dentro.) O que foi isso?! O que foi isso?! (Corre também para a direita baixa.)

AMÁLIA (Dentro.) - O meu frasco de água da Colônia!

CARDOSO (Dentro.) - Que pena!

AMÁLIA (Dentro.) - Ah! cá está o leque! (Voltam à cena, de braço dado e dirigem-se para a porta.)

CARDOSO - Já estou suando. (Procura nos bolsos.) Não tenho lenço.

AMÁLIA - Oh que maçada! Quanto mais pressa, mais vagar. (Sai correndo pela direita baixa.)

CARDOSO - E metam-se, hein! E metam-se a servir o país!

AMÁLIA (Voltando com um par de meias na mão.) - Toma, toma... Apre! (Dá-lho.)

CARDOSO - Isto é um par de meias, Sinhá! Estás a meter os pés pelas mãos! (Restitui-lho.)

AMÁLIA - Como está esta cabeça, meu Deus! (Sai e volta com um lenço.) Toma... Vamos... uf!

CARDOSO - Vamos! (Encaminham-se para a porta. Batem palmas.)

AMBOS - Ah!

CARDOSO (Fora de si.) - Não estou em casa!

JERÔNIMO (Aparecendo, de chapéu na cabeça.) - Licença para um...

Cena IV

Os mesmos e Jerônimo

CARDOSO - Então é assim que se entra em casa alheia?

JERÔNIMO (Sombrio.) - Assim como? A casa da autoridade é uma repartição pública. (Deita no chão a cinza de um cachimbo; e escarra na parede.)

CARDOSO - E que tal?

AMÁLIA - Vê o que ele quer, Cardoso?

JERÔNIMO - Venho preveni-lo de que é falso o que lhe veio hoje dizer um tal Paraguaçu, acerca de um furto de galinhas. É provável que ele lhe dissesse que eu, Jerônimo Linhares, vulgo Barriga-cheia, sou o autor desse furto, como andou por aí dizendo a quem quis ouvi-lo. É falso! (Cospe outra vez na parede.)

AMÁLIA (Empurrando um escarrador com o pé.) - Faz favor de não cuspir no chão... Aqui tem o escarrador... (Jerônimo nem olha para Amália.)

CARDOSO - Era só isso? Estou ciente.

JERÔNIMO - Não, senhor; por isto só não vinha eu cá, ora viva! Venho queixar-me do queixoso por crime de injúrias verbais. Chamou-me de ladrão, e se quiser o mais, mande aquela mulher para dentro. (Cospe outra vez na parede.)

CARDOSO - Pois apresente a queixa e as testemunhas.

JERÔNIMO - A queixa aqui está. (Apresenta um papel sujo, que Cardoso pega com repugnância. Vai à porta do fundo.) Ò compadre! Ó seu Manuel Maria! Ó seu Vitorino? podem entrar... Nada de cerimônias!

CARDOSO (A Amália.) - O tratante dispõe desta casa como se fosse sua!

Cena V

Os mesmos, Manuel Maria, depois O Compadre, depois Vitorino

MANUEL MARIA (Entrando.) - Aqui estou eu!

COMPADRE (Entrando.) - E eu...

VITORINO (Entrando.) - E eu...

AMÁLIA - Cardoso, dize-lhes que venham em outro dia... (À parte.) Como cheiram a cachaça!

CARDOSO - Meus senhores, tenham a bondade de voltar amanhã.

JERÔNIMO - Aí vem o maldito sistema da demora e do papelório.

CARDOSO - Cala-te daí, insolente, que não tens autoridade para fazer considerações neste lugar... Apareçam terça-feira ou mesmo amanhã! Mas terça-feira é melhor, porque é o dia da audiência. Não posso estar agora com isto... Estamos prontos para sair há muito tempo!

AMÁLIA - Há três horas!

CARDOSO (Consultando o relógio.) - Há três horas e três minutos!

JERÔNIMO (Cuspindo na parede.) - Então, podiam ter dito logo! Escusava a gente de estar aqui à espera! É isto sempre! A autoridade vai para a pândega, e o povo que sofra!

CARDOSO - Insolente! Espera que te ensino! (Agarra numa cadeira que está perto do toucador.)

AMÁLIA - Cardoso! O que vais fazer?!..

JERÔNIMO - Ah! Ele é isso? (Tira uma faca e deita a correr atrás de Cardoso. Amália fecha-se no quarto. As três testemunhas correm atrás de Jerônimo, para retê-lo. Cardoso apita.)

MANUEL MARIA - O que é isto, seu Jerônimo?!

COMPADRE - Compadre, tenha mão!

VITORINO - Não se deite a perder!

(Cardoso continua a apitar. Confusão.)

AMÁLIA (Grita de dentro.) - Aqui d’el-rei!

Cena VI

Os mesmos e Dois Soldados

SOLDADOS - O que é isto? o que é isto?...(Correm todos em redor da cena.)

CARDOSO - Prendam-no! prendam-no! (Jerônimo é afinal preso.) Levem-no! (Os soldados levam o preso, Saem também as testemunhas.)

Cena VII

Cardoso e depois Amália

CARDOSO (Caindo extenuado em uma cadeira.) - Uf!

AMÁLIA (Entrando.) - Feriu-te o maldito, feriu-te?

CARDOSO - Creio que não. (Apalpando-se.) Não feriu, não, Sinhá! Se não fossem as ordenanças que estavam na porta, a estas horas estavas viúva!

AMÁLIA - Credo! Viúva!

CARDOSO - Maldita subdelegacia! Maldita a hora em que aceitei semelhante cargo!

AMÁLIA - Como estás suando! Esta camisa é incapaz de aparecer no batizado...

CARDOSO - É verdade! O batizado! Vou mudar de camisa...

AMÁLIA - Mas isso depressa... depressa! (Saída falsa de Cardoso.) Ó Senhor Deus! Isto contado lá se acredita! É bem feito , senhor meu marido, é bem feito! Quem não quiser ser lobo, não lhe vista a pele.
(Rolo na rua. Apitos. Gritos. Pancadaria. Amália vai à janela.) Que vejo! Uma malta de capoeiras! Cardoso! Cardoso! Não tardam a entrar...

CARDOSO (Entra em mangas de camisa e com o fitão de subdelegado.) - O que é isto? (Espirra.)
Atxim! constipei-me... Atxim! O que é isto? Atxim! (Sai a correr pelo fundo.)

Cena VIII

Amália, depois Perdigão

AMÁLIA - Meu Deus! Hoje parece ser o dia de São Bartolomeu! Se não anda o diabo solto na cidade, ao menos nesta freguesia..

PERDIGÃO (Entra apressado pelo fundo, vestido para a cerimônia.) - Ó compadre! Ó comadre!

AMÁLIA - Mais uma parte!

PERDIGÃO - Deixe-se de partes!

AMÁLIA - Meu marido não está... (Reparando.) Ah! é o compadre!

PERDIGÃO - Estamos até estas horas à espera do padrinho e nada!

AMÁLIA - Queixe-se da maldita subdelegacia, compadre! Estamos vestidos há três horas...(Consultando o relógio.) Há três horas e um quarto...

PERDIGÃO - Ora! Para que foi o compadre buscar sarna para se coçar...

AMÁLIA - O compadre não imagina! Quantas vezes, alta noite, está ele sossegado a dormir, quando, de repente, é despertado pelas malditas partes...

PERDIGÃO - Por força!

AMÁLIA (Indo à janela.) - Já está aplacado o rolo... (Voltando.) Hoje quase o matam!

PERDIGÃO (Dando um salto.) - A quem?

AMÁLIA - Ao Cardoso.

PERDIGÃO - Ah! Ele descia a escada com tanta impetuosidade! Ia em mangas de camisa e de fitão... Olhem que figura! Espirrava, que era um Deus nos acuda! “Viva!” lhe disse eu; ele, porém, não me conheceu, apesar de responder: “Dominus tecum”, em vez de: ”Obrigado!”

Cena IX

Os mesmos e Cardoso

CARDOSO (Entra e cai espirrando em uma cadeira.) - Atxim!

PERDIGÃO - Viva!

CARDOSO - Dominus te... Quero dizer: Obrigado... Atxim! Ah! É o senhor, compadre? Desculpe.

PERDIGÃO - Já sei de tudo... Está mais que desculpado... Mas não perca tempo!

AMÁLIA - Sim, não percamos tempo!

CARDOSO - Vamos! (Ergue-se e deita o chapéu.) - Estou pronto!

PERDIGÃO - Em mangas de camisa, compadre?

CARDOSO - É verdade! (Corre ao quarto e volta vestindo a casaca.)

AMÁLIA - De fitão, Cardoso?

CARDOSO - É verdade! (Despedaça o fitão zangado.) Atxim!

PERDIGÃO - Já leu o que traz hoje o Jornal a seu respeito?

CARDOSO - Já: descompostura bravia! É o pago que dão a tantos sacrifícios.

PERDIGÃO - Diga antes: é o castigo que infligem ao erro de aceitá-los.
AMÁLIA (Impaciente.) - Vamos embora! (Vão todos saindo.)

Cena X

Os mesmos e um Soldado

SOLDADO (a Cardoso.) - Trouxeram este ofício e esta carta para Vossa Senhoria. (Entrega a carta e o ofício e sai.)

CARDOSO - De cá. (Abrindo a carta.) Com licença. (Lê.) É um bilhete em que o oficial do gabinete do ministro me participa haver sido outro nomeado para a vaga do Cantidiano... E metam-se!

PERDIGÃO - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país! (Abrindo o ofício.) Com licença! (Depois de ler o ofício.) Sabem o que é? Minha demissão.

PERDIGÃO E AMÁLIA - Demissão?

CARDOSO - Á vista do que a meu respeito tem aparecido na imprensa periódica!

PERDIGÃO - Não falemos mais nisso! Vamos embora.

CARDOSO - Poupou-me o trabalho de pedi-la.

AMÁLIA - Quem não quiser ser lobo...

PERDIGÃO - Mas o compadre acaba de despir a pele do lobo. (Apanhando o fitão.) Ei-la!

CARDOSO - Atxim! (Saem tos os três e cai o pano.)

[ Cai o pano]

Fonte:
AZEVEDO, Artur. Teatro de Artur Azevedo - Tomo 1. Instituto Nacional de Artes Cênicas-INACEN. V. 7: Coleção Clássicos do teatro Brasileiro.. In A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
Imagem = http://cemebturmaf.blogspot.com

Lourdinha Leite Barbosa (Amor e Transgressão em Hilda Hilst)

A escolha do tema dessa palestra deveu-se, além da vontade de compreender melhor a escrita instigante de Hilda Hilst, à tentativa de despertar o interesse dos ouvintes para uma obra que vem se tornando um verdadeiro desafio. A escritora cultivou os três gêneros principais da literatura, a poesia lírica, o teatro e a prosa narrativa e conseguiu extraordinários resultados devido a uma linguagem inovadora, vivaz, que não se submete a regras ou convenções.

Para melhor compreensão desse fenômeno, fazem-se necessárias
algumas informações sobre a vida de Hilda Hilst. Seu pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro, jornalista, poeta e ensaista, era filho de Eduardo Hilst, imigrante que veio da Alsácea-Lorena, e de Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado, de tradicional famüia paulista; a mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, era filha de portugueses. Logo que Hilda nasceu, seus pais se separaram e, um pouco mais tarde, aos trinta e cinco anos Apolônio apresentou os primeiros sinais de um distúrbio esquizofrênico, que o levaria com frequência a sanatórios. Esse fato a marcará profundamente, a partir da revelação da doença, Hilda Hilst, que na ocasião tinha apenas sete anos, passou a temer a loucura e a interessar-se pelos loucos.

Durante toda sua vida, Hilda manteve poucos contatos com o pai, a primeira vez que o viu foi aos quatro anos de idade e só voltou a encontrá-lo aos dezesseis anos, quando ele a convidou para visitá-lo na fazenda Olhos D'Água. Durante essa visita, ocorreu um fato que a deixou bastante perturbada: o pai a confundiu com Bedecilda, sua mãe, e pediu-lhe três noites de amor, segurando-lhe a mão repetia "apenas três noites". O pai é a grande presença na obra da escritora, ela mesma afirmou que tudo que escreveu foi para ele, para que ele sentisse orgulho dela.

Aos sete anos Hilda ingressou como aluna interna no Colégio Santa Marcelina, dirigido por freiras em São Paulo e ali permaneceu durante oito anos. Esse ambiente é evocado no seu teatro (A possessa, Rato no muro) e na narrativa (Unicórnio) e também na poesia. Cursou o clássico no Colégio Mackenzie e Direito no Largo São Francisco. Exerceu durante alguns meses a advocacia, mas, segundo ela, essa profissão a deixava apavorada. Morava com uma governanta na Alameda Paulista e frequentava todos os acontecimentos sociais. Moça de rara beleza, ela era cortejada por empresários e intelectuais, namorou o ator americano Dean Martin e o poeta Vinícius de Moraes e tentou, sem sucesso, conquistar Marlon Brando. Aos vinte anos publicou seu primeiro livro de poesia (Presságio, 1950). Em seguida vieram Balada de Alzira (1951) e Balada do Festival (1955). Na primeira reunião de suas obras poéticas lançada em 1967, essas três primeiras obras ficaram de fora, iniciando-se a coletânea por Roteiro do silêncio (1959).

Por ser muito vasta a obra da autora, mais de trinta livros publicados, serão comentados alguns poemas de diferentes livros (Júbilo, memória, noviciado da paixão 1974, Do desejo 1992, que reúne sete livros integrais, publicados entre 1986 e 1992, dos quais dois deles são inéditos - Do desejo e Da noite, 1992 - e os outros cinco já publicados (Amavisse, Vias espessa e Via vazia, 1989; Alcoólicas, 1990 e Sobre a tua grande face, 1986). E, principalmente, uma obra de ficção, A obscena Senhora D, considerada por Alcir Pécora, organizador das obras reunidas da autora, "uma obra extraordinária em seu conjunto: literatura de raça mesmo".

Eros - um caminho para o Mistério da Vida Desde as primeiras publicações, Hilda Hilst elegeu o amor como tema privilegiado em sua busca de fusão com o Outro. Assim, os primeiros poemas estão marcados por uma elevada dicção, cuja inspiração pode ser encontrada no idealismo clássico, como é o caso de Trovas de muito amor para um amado senhor:

Dizeis que tenho vaidades
E que no vosso entender
Mulheres de pouca idade
Que não se querem perder
E preciso que não tenham
Tantas e tais veleidades.
Senhor, se a mim me acrescento
Flores e renda, cetins,
Se solto o cabelo ao vento
E bem por vós, não por mim.
Tenho dois olhos contentes
E a boca fresca e rosada.
E a vaidade só consente
Vaidades, se desejada.
E além de vós
Não desejo nada.

(Poesia: 1959 - 1979, São Paulo: Quíron, 1980)

Na invocação que o eu-lírico faz ao senhor, percebe-se um retorno à origem da literatura, ou seja, à poesia trovadoresca, mas o que se manifesta muito claramente é a essência camoniana do amor. Em Sonetos que não são, persiste a tonalidade camoniana desde a opção pelo soneto, forma poética preferida há séculos pelos grandes poetas para cantar o amor:

Aflição de ser eu e não ser outra
Aflição de não ser, amor, aquela
que muitos filhos te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
objeto de amor, atenta e bela
Aflição de não ser a grande ilha
que retém e não se desespera.
(A noite como fera se avizinha).
Aflição de ser água em meio à terra
e ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.


Neste exemplo típico do idealismo amoroso, um eu lírico feminino diz-se dividido entre duas possibilidades de amor: o amor conjugal e o extraconjugal. De um lado está a estabilidade, a tranquilidade, a segurança; do outro, a instabilidade, a aventura, a paixão estonteante, a voragem do prazer.

A proporção que os títulos se sucedem, a poesia hilstiana alarga-se e, como afirma Nelly Novaes Coelho (1993): "A experiência poética deixa-se penetrar cada vez mais fundo pela experiência existencial-religiosa". Depois de sete anos, durante os quais a autora se dedicou ao teatro e à ficção (da qual falaremos mais adiante), vem a público novo volume de poesias. Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974). Os temas já tratados ganham uma maior intensidade nessa segunda fase, e o erotismo passa a ocupar o centro da poesia, erotismo no mais alto sentido filosófico: experiência de comunhão plena que faz o homem sentir-se participante da totalidade.

Perpassa o livro inteiro um desejo de comunhão amorosa e o eu lírico feminino, recorrendo ao apelo, recurso utilizado pelos trovadores medievais, dirige-se ao amigo, confessa sua arrebatada paixão e exige sua presença física:

Não é isso. Túlio, afastada de mim
A intenção de te causar tormento.
É o tempo, amigo. E se me faço ampla
O inimigo atroz não me acompanha
Porque Túlio se faz, a cada dia, exíguo.
Deleitosa caminho até a montanha
E tu te fechas tíbio, pesadas anteportas
Emergem do passeio a que me obrigo
Não é tormento, Túlio. Sempre te enganas.
É essa fome de ti, esse amor infinito
Palavra que se faz lava na garganta.


Subjazem nos versos vestígios das cantigas de amigo; contudo, como afirma Alcir Pécora, essa poesia amorosa não esconde sua matriz arcaizante à moda petrarquista e camoniana, tão comum em língua portuguesa até o século XVIII. O eu lírico, num tom magoado, queixa-se da atitude morna do amigo que põe obstáculos à sua avassaladora paixão,
sem preocupar-se com o escoar do tempo.

Eros e Tanatos

Em Da morte. Odes mínimas (1980), aprofundam-se os questionamentos sobre o sentido da vida e da morte e o eu lírico trava um diálogo cerrado com a "indesejada das gentes". Aproxima-se da morte de tal forma, que termina por constatar que as duas (poeta e morte), ou seja. Vida e Morte, são faces da mesma moeda:

Te sei em vida/ Provei teu gosto. Perdas, partidas
Memória, pó/ Com a boca viva provei/ Teu gosto, teu sumo grosso
Em vida, morte, te sei (...)/ Juntas. Tu e eu duas adagas
Cortando o mesmo céu. / Dois cascos sofrendo as águas.
E as mesmas perguntas.


A poesia é tomada por questões relacionadas à matéria perecível e ao desejo de imortalidade. A angustiante busca da mínima compreensão da existência humana se traduz em temas como a dissolvência do corpo, o amor, a morte, o tempo, tudo vazado numa linguagem circular, espiralada, que progressivamente deslizará para o confronto com um interlocutor que se fará cada vez mais ausente.

Em Sobre tua grande face (1986), a interrogação sobre a relação Homem/Deus aprofunda-se e, consequentemente, a linguagem simbólica ganha uma maior opacidade que seduz e intriga o leitor. Alternando razão e desrazão a poeta em sua ânsia do sagrado chega às raias do profano:

De ares e asas não percebo nada.
Mas atravesso abismos e um vazio de avessos
Para tocar a luz de teu começo.

Em muitas vidas hei de te perseguir.
Em minhas sucessivas mortes hei de chamar este seu ser sem nome
Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta
Destruindo o Homem.


Nas últimas obras, a linguagem poética de Hilda Hilst apresenta uma maior radicalização e surge com mais vigor o gozo/prazer a partir do amor e da morte, mas é na narrativa que essa radicalização atinge um nível sem precedentes.

Eros Transgressor

Toda a obra de Hilda Hilst tem como marca a transgressão, no entanto é na prosa que a interrogação mística assume inusitada violência, em busca de um absoluto aterrador, como afirma a crítica literária Eliane Moraes (1990): "Trabalhando nas bordas do sentido, ela vai colocar a linguagem à prova de um confronto com o vazio no qual o eterno confunde-se irremediavelmente com o provisório e a essência resvala por completo no acidental".

Em A obscena senhora D, a personagem Hillé, também chamada A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém ou Hilda Hilst, abre as comportas de sua consciência e deixa cair sobre o leitor, numa enxurrada desconexa, um diálogo, que na verdade é monólogo. Uma idéia é interrompida bruscamente e outra é introduzida por associação, através de uma sintaxe frouxa, sem a pontuação adequada. Nesse fluxo ininterrupto da consciência, surgem diferentes níveis de linguagem: o culto, o baixo calão, o formal, o vulgar, o caipira. Assim, numa sequência desordenada e vertiginosa, a protagonista faz interrogações, que se desdobram em outras, sobre a realidade do ser humano, sobre a solidão cósmica e, diante da ausência de respostas, exaspera-se, blasfema contra a divindade e desemboca no escabroso, no escatológico, na bestialidade.

A escrita obscurece as fronteiras entre a razão e a desrazão e subverte os parâmetros da organização pré-consciente. Esse monólogo interior assemelha-se ao famoso monólogo de Molly Bloom, na parte final de Ulisses, de James Joyce. Aliás, vários analistas, dentre eles Harry Levin ("James Joyce: a Criticai Introduction". Londres: Fáber and Fáber, 1960), examinaram o fluxo da consciência na obra de Joyce, apoiados na técnica psicanalítica da livre associação de idéias. Lacan também tem um estudo sobre Finnegans Wake. O texto de Hilda Hilst se presta perfeitamente para esse tipo de análise, principalmente se se levar em conta, além da obra, as entrevistas concedidas por ela ao longo da vida. Esse é um trabalho que pode ser realizado por alguém da psicanálise.

Em entrevista aos Cadernos de Literatura (1999), Hilst afirmou; "Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim. Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele", e acrescenta noutra passagem: "Meu pai foi a razão de eu ter me tornado escritora". Já quase no final da entrevista, o entrevistador pergunta-lhe se o sentimento final é de ter cumprido o dever e ela volta a reafirmar que fez o que o pai não pôde fazer e acrescenta que os pais se separaram porque a mãe engravidara e o pai não queria filhos, queria uma amante. Diz ainda que, quando a mãe comunicou-lhe que era uma menina, ele respondeu-lhe: "Que azar". Essa resposta do pai, segundo ela, impressionou-a bastante, por isso ela havia feito o possível para mostrar-lhe que era deslumbrante.

As últimas palavras da entrevista ainda são para ele: "Eu às vezes penso que, quando chegar em Marduk, um planeta que está encostado na Terra em "n" dimensões, onde estão fazendo transcomunicação, não sei se vou encontrar o papai com a mamãe. Eu queria tanto ficar com ele...Ele era lindo. Minha mãe adorava meu pai. E eu também, entende?"

O pai faltoso passou a ser importantíssimo para ela, que tenta preencher de todas as formas essa lacuna deixada por ele. A busca do Pai Ideal pode ser facilmente detectada nos primeiros poemas e parece que durante algum tempo deu-lhe certa estabilidade, mas a espécie de maldição pronunciada por ele, por ocasião de seu nascimento, provocou uma carência do nome do pai. Embora o pai lhe tenha dado seu sobrenome, não o garantiu de fato, ao negar-se a exercer a função paterna.

Assim, já que o nome não foi garantido, ela tenta compensar o vazio através da literatura, que se torna uma suplência à carência do nome do pai. Inicia-se, então, uma busca persecutória obstinada para criar uma literatura de peso. A letra está, assim, relacionada a uma inscrição psíquica que garante a filiação e estabelece um limite para que a lucidez não se perca totalmente: "(...) suportaria o estar viva, recortada, um contorno incompreensível repetindo a cada dia passos, palavras, o olho sobre os livros, inúmeras verdades lançadas à privada e mentiras imundas exibidas como verdades, e aparências do nada, repetições estéreis o dia a dia do homem do meu século?". Assim, situa-se no limite entre o amor e a morte, o humano e o animal, a razão e a desrazão, o claro e o escuro, a loucura e a lucidez.

A escrita obscura/luminosa de Hilda Hilst está à espera de analistas percucientes que busquem desvelar seus sentidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Nelly. A agonia dialética de A obscena senhora D. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20 de mar. 1983.

HILST, Hilda . Cadernos de Literatura Brasileira — Instituto Moreira Sales, n°8, out. de 1999.

MORAES, Eliane Robert. A obscena senhora Hüst. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de maio de 1990. Ideias/Livros.

PECORA, Alcir. Nota do organizador. IN: Júbilo, memória, noviciado da paixão/ Hilda Hilst; (organização Alcir Pécora). São Paulo, Globo, 2001.


Fonte:
Academia Cearense de Letras

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : À Saia Balão)

Balão, balão, balão! cúpula errante,
Atrevido cometa de ampla roda,
Que invades triunfante
Os horizontes frívolos da moda;
Tenho afinado já para cantar-te
Meu rude rabecão;
Vou teu nome espalhar por toda parte,
Balão, balão, balão!

E para que não vá tua memória
Do esquecimento ao pélago sinistro,
Teu nome hoje registro
Da poesia nos galantes fastos,
E para receber teu nome e glória,
Do porvir te franqueio os campos vastos.

Em torno ao cinto de gentil beldade
Desdobrando o teu âmbito estupendo,
As ruas da cidade
Co’a longa cauda ao longe vais varrendo;
E nessas vastas roçagantes pregas
De teu túmido bojo,
Nesse ardor de conquistas em que ofegas,
O que encontras, levando vais de rojo,
Qual máquina de guerra,
Que inda os mais fortes corações aterra.

Quantas vezes rendido e fulminado
Um pobre coração,
Não vai por essas ruas arrastado
Na cauda de um balão.
Mal despontas, a turba numerosa
À direita e à esquerda,
De tempo sem mais perda
Amplo caminho te abre respeitosa;
E com esses requebros sedutores
Com que saracoteias,
A chama dos amores
Em mais de um coração a furto ateias.

Sexo lindo e gentil, — foco de enigmas! —
Quanto és ambicioso,
Que o círculo espaçoso
De teus domínios inda em pouco estimas;
Queres mostrar a força onipotente
De teu mimoso braço;
De render corações já não contente,
Inda pretendes conquistar o espaço!...

Outrora já c’os atrevidos pentes
E as toucas alterosas,
As regiões buscavas eminentes,
Onde giram as nuvens tormentosas;
Como para vingar-te da natura,
Que assim te fez pequena de estatura.

Mudaste enfim de norte,
E aumentando o diâmetro pretendes
Avantajar-te agora de outra sorte
Na cauda do balão, que tanto estendes.
Queres em torno espaço,
Té onde possas desdobrar teu braço.

Assim com tuas artes engenhosas
Sem medo de estourar tu vais inchando,
E os reinos teus co’as vestes volumosas
Ao longe sem limites dilatando,
Conquistas na largura
O que não podes conseguir na altura.

Mas ah! por que o meneio gracioso
De teu airoso porte
Sepultas por tal sorte
Nesse mundo de saias portentoso?
Por que razão cuidados mil não poupas
Pra ver tua beleza tão prezada
Sumir-se-te afogada
Nesse pesado pélago de roupas?

Sim, de que serve ver as crespas ondas
De túrgido balão
A rugirem bojudas e redondas
Movendo-se em contínua oscilação;
— Vasto sepulcro, onde a beleza cega
Seus encantos sepulta sem piedade,
— Empavezada nau, em que navega
A todo pano a feminil vaidade? —
De que serve enfeitar da vasta roda
Os estufados flancos ilusórios
Com esses infinitos acessórios,
Que vai criando a inesgotável moda,
De babados, de gregas, fitas, rendas,
De franjas, de vidrilhos,
E outros mil badulaques e fazendas,
Que os olhos enchem de importunos brilhos.
Se no seio de tão tofuda mouta
Mal se pode saber que ente se acouta?!

De uma palmeira à graciosa imagem,
Que flácida se arqueia
Ao sopro d’aura, quando lhe meneia
A trêmula ramagem,
Comparam os poetas
As virgens de seus sonhos mais diletas.
Mas hoje onde achar pode a poesia
Imagem, que as bem pinte e as enobreça,
Depois que deu-lhes singular mania
De atufarem-se em roupa tão espessa;
Se eram antes esbeltas qual palmeiras,
Hoje podem chamar-se — gameleiras.

Também o cisne, que garboso fende
De manso lago as ondas azuladas,
E o níveo colo estende
Por sobre as águas dele enamoradas,
Dos poetas na vívida linguagem
De uma bela retrata a pura imagem.

Mas hoje a moça, que se traja à moda,
Só se pode chamar peru de roda.

Quais entre densas nuvens conglobadas
Em hórrido bulcão
Vão perder-se as estrelas afogadas
Em funda escuridão,
Tal da beleza a sedutora imagem
Some-se envolta em túmida roupagem.

Balão, balão, balão! — fatal presente,
Com que brindou das belas a inconstância
A caprichosa moda impertinente,
Sepulcro da elegância,
Tirano do bom gosto, horror das graças,
Render-te os cultos meus não posso, não;
Roam-te sem cessar ratos e traças,
Balão, balão, balão.

***

Ó tu, que eu amaria, se na vida
De amor feliz restasse-me esperança,
E cuja linda imagem tão querida
Eu trago de contínuo na lembrança,
Tu, que no rosto e no ademã singelo
Das filhas de Helen és vivo modelo;

Nunca escondas teu gesto peregrino,
E da estreita cintura o airoso talhe,
E as graças desse teu porte divino,
Nesse amplo detalhe
De roupas, que destroem-te a beleza
Dos dons de que adornou-te a natureza.

De que serve entre véus, toucas e fitas,
Ao peso dos vestidos varredores,
De marabouts, de rendas e de flores
Tuas formas trazer gemendo aflitas,
A ti, que no teu rosto tão viçosas
De tua primavera tens as rosas?...

Pudesse eu ver-te das belezas gregas,
Quais as figuram mármores divinos,
Na túnica gentil, não farta em pregas,
Envolver teus contornos peregrinos;
E ver dessa figura, que me encanta,
O altivo porte desdobrando a aragem
De Diana, de Hero, ou de Atalanta
A clássica roupagem!...

Em simples trança no alto da cabeça,
As fúlgidas madeixas apanhadas;
E a veste pouco espessa
Desenhando-te as formas delicadas,
Ao sopro das aragens ondulando,
Teus puros membros mórbida beijando.

E as nobres linhas do perfil correto
De importunos ornatos destoucadas,
Em toda a luz de seu formoso aspecto
Fulgindo iluminadas
Por sob a curva dessa fronte bela,
Em que tanto esmerou-se a natureza;
E o braço nu, e a túnica singela
Com broche de ouro aos alvos ombros presa

Mas não o quer o mundo, onde hoje impera
A moda soberana; —
Esquivar-se p’ra sempre, oh! quem pudera
À sua lei tirana!...

Balão, balão, balão! — fatal presente,
Com que brindou das belas a inconstância
A caprichosa moda impertinente,
Sepulcro da elegância,
Tirano do bom gosto, horror das graças!...
Render-te os cultos meus não posso, não;
Roam-te sem cessar ratos e traças,
Balão, balão, balão.

Rio de Janeiro, 18 de julho de 1859

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 35

CAPÍTULO V

A segunda decepção destinada a Branca consistiu no seguinte: Teobaldo, no fim de dois anos de casamento, já não tinha pela esposa o primitivo desvelo, se bem que ela, longe de perder alguma coisa dos seus encantos, ia-se fazendo cada vez mais sedutora.

Não deixou todavia a pobre senhora transparecer o seu ressentimento e, convencida de que havia de reconquistar o marido à força de carinhos, refinou na ternura e na meiguice. Mas em breve compreendeu que de nada aproveitariam tais esforços., porque no espírito egoísta daquele homem a inconstância era talvez a face mais desenvolvida. Foi terrível a sua desilusão, quando deveras se convenceu de que o vaidoso pensava muito mais em si do que nela.

— Agora, dir-se-ia até que ele apenas a estimava como a um precioso objeto de luxo que ao amor-próprio de qualquer desvanecera. Já não era o afeto, nem dedicação, nem respeito, mas simples orgulho de possuir inteira aquela mulher maravilhosa, que todos lhe invejavam sem ânimo de cobiçá-la. Teobaldo gozava muito mais com vê-la resplandecer em meio dos salões, crivada de olhares deslumbrados, do que com tê-la a sós, na intimidade do lar, palpitante de amor nos braços dele.

Branca percebeu tudo isso e começou a sofrer em silêncio; ao passo que o marido, de tão preocupado consigo mesmo e com as suas ambições, não dava sequer pelo estado lastimável em que ela se abismava. Às vezes, durante o almoço, enquanto Teobaldo comia, sem despregar os olhos e a faca do jornal em que vinha alguma coisa a respeito dele, a mísera esposa o fitava longamente, com a cabeça apoiada em uma das mãos, e toda ela enlanguescida e triste, como a planta mimosa que vai fenecendo à míngua de cuidados.

E suspirava.

Ah! Mas Teobaldo já não sabia ouvir estes suspiros e, ao erguer-se da mesa, distraído e apressado pelos seus interesses exteriores, também não sabia adivinhar nos olhos de Branca as lágrimas que tinham de rebentar daí a pouco, logo que ele transpusesse a porta da rua.

Uma ocasião, por volta de um baile em que ela mais do que nunca fez sobressair os seus encantos e as suas graças, o marido tomou-a frouxamente nos braços e pousou-lhe na fronte um beijo, em que já não havia a febre dos outros tempos.

Este beijo desnaturado e frio foi o bastante para fazer transbordar a grande tempestade interior que Branca há tanto e com tamanho custo reprimia. Ela deixou pender a cabeça sobre o colo do marido e abriu em uma explosão de soluços.

Teobaldo surpreendeu-se, sem compreender aquele súbito transbordamento de lágrimas.

— Por que choras, filhinha? Perguntou ele, procurando ameigá-la. A esposa não respondeu, porque o pranto não Iho permitia.

— Vamos! Não chores desse modo!... Se alguma coisa te aflige, dize-me com franqueza o que é.

Ela, sem poder falar, meneava a cabeça negativamente, a esconder o rosto como que envergonhada por se deixar trair, pelos seus soluços.

— Perdoa... disse afinal, não me pude conter. Perdoa.

— Mas qual é o motivo dessas lágrimas?

— Tu bem sabes por que choro.

— Eu?... Juro-te que não sei...

— Oh! Tu me fazes sofrer, Teobaldo!

— Eu?!

— Sim! Já não és o mesmo para mim...

— Ora essa! Acaso terei, sem saber, cometido alguma coisa que te desgostasse?... Já deixei qualquer dia porventura de tratar-te com a mesma delicadeza e com a mesma dedicação que sempre me mereceste?...

— Oh, não! Não me queixo disso! És cada vez mais delicado e mais atencioso para comigo.

— Então?

— Mas é que já não me amas como dantes! Acho-te frio, indiferente aos meus carinhos; posso dizer que me suportas com dificuldade quando insisto em ficar perto de ti.

— Ilusão tua!

— Não, não me iludo! Já não és o mesmo! Dantes querias ter-me ao teu lado, quando trabalhavas horas esquecidas no gabinete; fazias-me ir buscar na estante um livro ou outro de que precisavas para consultá-lo; fazias-me procurar no dicionário o termo que te faltava na ocasião; lias-me sempre o que escrevias, consultavas a minha opinião, discutias comigo, prendias-me enquanto durasse o teu serviço, pagando-me depois a beijos todo o prazer que eu punha em estar contigo. Dantes não tinhas fora de casa uma conversa, vem encontro menos comum, uma impressão qualquer, que não me viesses logo transmiti-los; tudo me contavas; dizias-me todos os passos de tua vida, e eu podia, hora por hora, instante por instante, afinar meu coração pelo teu; e agora já nada me contas do que fazes; já não me reclamas quando vais para a tua mesa de trabalho; já não me passas o braço na cintura e não me levas contigo; já não encontras o que me dizer; já não achas graça em coisa alguma que eu faço; vosso ir para o piano, posso cantar os mesmos romances que dantes estimavas tanto; e nada te comove, e nada te prende, e nada te chama a atenção! Teu pensamento, tua alma, está toda lá fora; aqui só vens para preparar novos elementos de popularidade! Agora ligas mais importância à opinião do primeiro que se te apresenta do que ligas à minha opinião e às minhas palavras!

— Sim, porque tua opinião é suspeita...

— Oh! Não há opinião menos suspeita e mais valiosa do que a da pessoa que amamos sinceramente; pelo menos comigo é assim: nada do que os outros me passam dizer, por mais lisonjeiro que seja, vale o mais insignificante gesto de aprovação que de ti venha. O maior elogio dos estranhos não vale o menor dos teus sorrisos...

— Ah! Decerto, porque o caso muda muito de figura: tu és mulher e és minha esposa; vives pura e exclusivamente para o nosso lar, vives para mim; teu público sou eu, e mais ninguém. A minha opinião deve esconder aos teus olhos todo e qualquer juízo dos estranhos. Desde que eu decida dos teus atos, nada mais tens que ver com o que pensam os outros a respeito deles. Se eu os aprovar ou se eu os reprovar, seja com justiça ou não seja, estão definitivamente aprovados ou reprovados, ninguém mais tem nada que dizer!

— Pois é justamente por isso; justamente porque tu para mim representas o mundo inteiro; justamente porque eu só a ti possuo; porque só com o teu julgamento devo contar, e porque não tenho outro estimulo e por que não tenho outro amor, senão o teu e que com tanto empenho te disputo e tanto me arreceio de perder-te?

Ao terminar estas palavras, Branca deixou de novo transbordar, desfeito em lágrimas o seu ressentimento, mas Teobaldo, por melhores esforços que empregasse, já não conseguia arrancar de si uma única centelha do extinto amor, que dantes lhe inspirava a esposa.

Todo o seu entusiasmo consumia-se no pedestal da sua própria imagem, gastava-se a seus pés, naquela eterna adoração de si mesmo. E no entanto, os suspiros de Branca, que ele já não sabia ouvir, e as lágrimas, que ele não sabia evitar, foram pressentidas e abençoadas de longe por alguém.
================
continua…

domingo, 8 de setembro de 2013

Luiz Otávio (Oração do Poeta)



Fonte:
RAMOS, Carolina. Príncipe da Trova. SP: EditorAção, out 1999. Capa final.

Poema e rosto de Luiz Otávio sobre pintura "O Poeta", de Manoel Castro

Concurso Nacional Intersedes de Trovas (Resultado Final)


A Diretoria da UBT-Curitiba tem a satisfação de informar o resultado do Concurso Nacional Intersedes 2013.

Comunicamos que a Seção BELO HORIZONTE, será a responsável pela realização do INTERSEDES 2014, haja vista que foi classificado no concurso 2013, em primeiro lugar, associado daquela Seção.


Tema: TÚNEL

1º Lugar:
Merece subir ao pódio
o glorioso vencedor
que destrói barreiras de ódio
e constrói túneis de amor.
Wanda de Paula Mourthé
- UBT- Belo Horizonte

2º Lugar
Em meio ao bélico impasse,
na escuridão de horas más,
que bom se o homem pensasse
quão branco é o túnel da paz!
Maria Helena Oliveira Costa
– UBT-Ponta Grossa

3º Lugar

Quando o trem da vida alcança
o túnel da meia idade,
nas sombras da tarde mansa
surge o perfil da saudade.
Adilson Maia
– UBT-Niterói

MENÇÕES HONROSAS

(ordem alfabética – as 03 trovas obtiveram a mesma pontuação).

Entre ilusões e esperanças,
meu amor sobreviveu
nesse túnel de lembranças
que liga meu mundo ao teu.
Almira Guaracy Rebelo
– UBT- Belo Horizonte


A vida é um túnel estreito
que à eternidade conduz.
- Só o amor nos dá o direito
ao desembarque na Luz.
Antônio Augusto de Assis
– UBT- Maringá.


Ah, coração, toma jeito!...
Calma, em tuas investidas...
ou te enclausuro, em meu peito,
em um túnel... sem saídas.
Therezinha Dieguez Brisolla
– UBT-São Paulo

MENÇÃO ESPECIAL
(ordem alfabética – as 02 trovas obtiveram a mesma pontuação).

Crista erguida, se avoluma
e, prestes a se espraiar,
vem a prancha e rasga a espuma
do túnel feito de mar...
Darly O. Barros
– UBT-São Paulo


Quando me sinto estressado,
fugindo da realidade,
vou do presente ao passado
pelo túnel da saudade.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
– UBT- Juiz de Fora.


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Resultado do Concurso Paralelo - Somente para participantes da UBT-Curitiba.

Tema: Refúgio

1º Lugar


Um refúgio hás de encontrar,
mesmo em meio a vilania,
se souberes cultivar
a semente da harmonia.
Eliane Queiróz Gabardo

2º Lugar


Um cantinho onde o combate
é travado na poltrona
é o refúgio para um vate
que num livro se abandona.
Mário A.J. Zamataro

3º Lugar

Foram refúgio de sonhos
as tuas cartas de amor;
hoje, traços enfadonhos
que só causam muita dor.
Maurício Norberto Friedrich

MENÇÃO HONROSA


O refúgio que eu habito
para mim é tão sagrado:
é minha alma, eu acredito,
o meu lar ensolarado.
Paulo Roberto Walbach Prestes

MENÇÃO ESPECIAL


Pra minha Fé não existe
nem o menor subterfúgio.
Estando eu alegre ou triste
tenho Deus por meu refúgio.
Roza de Oliveira
A premiação será entregue aos classificados no dia 24 de novembro de 2014, durante o almoço de final de ano da UBT-Curitiba, detalhes do evento serão divulgados nos próximos dias. Lembramos que a participação no mesmo é por adesão e que a UBT - Curitiba não se responsabilizará por nenhuma despesa realizada pelo classificado para participar do mesmo, conforme regulamento do certame.
Abraços,
Andréa Motta
UBT-Curitiba.

Fonte:
UBT-Curitiba

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) V

foi mantida a grafia original.
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AS VÍTIMAS

Eu vejo muita vez e raro já me assombro
— minha alma tanto afiz às tristes comoções! -
Na rua, junto a mim, passar ombro com ombro
No trânsito penoso as longas procissões,

De vítimas da sorte e vítimas do mundo!
Umas boas, gentis, outras feias, cruéis,
Envoltas num sudário ou num burel imundo;
Nas pompas teatrais, nas galas dos bordéis,

Não são filhas do sonho ou criações quiméricas
Da mente alucinada, ou vagos ideais;
São magros peitos nus, são faces cadavéricas,
São as tristes, as vis desolações carnais.

São pequenos sem pão que vão pedindo esmola
Nas lamas encharcando os regelados pés:
Que dormem nos portais, que nunca vão à escola
— flores que enfeitarão a noite das galés!

São aquelas gentis e pobres costureiras
De peito comprimido; anémica expressão;
Que passam a tossir, cansadas, com olheiras,
Ganhando em todo o dia apenas um tostão,

Curvadas a coser o lânguido veludo,
O irritante cetim dos grandes enxovais,
Das princesas do Banco, herdeiras disto tudo;
Depois indo morrer nos tristes hospitais!

São os pobres heróis que os seus irmãos combatem;
Que morrem sob o peso enorme dos canhões,
E o cortejo de mães pedindo aos reis que as matem
E os reis fazendo rir das suas maldições!

São da lúgubre noite umas flores sem nome
Batidas muito já dos grandes vendavais,
Que, porque sentem frio ou porque sentem fome,
Derramam pelo seio aromas triviais

E fingem depois ser aparições divinas,
Erguendo um pouco a saia, a fímbria sensual,
Abrindo um vil leilão de beijos, nas esquinas,
Aos apetites vis da multidão brutal!

São mineiros sem luz; são velhos britadores,
Que o contacto da pedra um dia endureceu,
Queimados pelo sol, gelados nos horrores
Do túmulo cruel que em vida os recebeu!

São aqueles heróis, enfim, dos grandes sonhos,
Que sentiram na terra as vastas corrupções
E às turbas apontando uns mundos mais risonhos
Tentaram espedaçar os últimos grilhões

E que passam também um tanto contristados,
Talvez cheios de tédio, ao verem que hoje, nós,
Os deixamos seguir ainda apedrejados
Não raro desprezando a sua augusta voz!

E a grande multidão de mártires sublimes,
De tristes seminus, constante a caminhar,
Aos céus erguendo as mãos, queixando-se dos crimes
Dos déspotas que aos pés não cessam de os calcar!

A fila tenebrosa, a procissão de vítimas,
Aumenta mais e mais; não deixa de crescer!
E do estigma cruel das penas mais legítimas
Em muita fronte bela um traço podeis ver!

Caminhe muito embora: a sorte é sempre vária
E a turba sofredora, ó grandes bem sabeis,
Podia dividir a túnica cesárea
Lançando aos que estão nus a púrpura dos reis!

EVOCAÇÃO

Levanta-te Romeu do túmulo em que dormes
E vem sorrir de novo à boa, à eterna luz!
De noite, ouço dizer que há sombras desconformes
E as noites do passado, oh, devem ser enormes
Na atonia fatal das larvas e da cruz!

Conchega gentilmente ao peito carcomido
Os restos do teu manto: — assim, que bem que estás!
Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido
Que busca desdenhoso o centro do ruído
Nas horas vis do tédio e das insónias más.

O mundo transformou-se; aquele fundo abismo
Do antigo amor fatal, fechou-se duma vez,
E tu filho gentil do velho romantismo,
Tu vens achar dormindo o rude prosaísmo
No berço onde sonhava a doce candidez!

No entanto podes crer; faz muito menos frio
À luz do novo sol; do gás provocador;
E o século apesar de gasto e doentio,
Não pode já escutar o cântico sombrio
Que fala de ideais e cousas sem valor!

Em paz deixa dormir a terna Julieta
Que aos céus ainda por ti levanta as brancas mãos;
E enquanto por mim corre a tétrica ampulheta,
Da musa alegre e vil da torpe cançoneta
Saudemos a nudez a par dos bons pagãos!

Nas praças, tu bem vês; a turba prazenteira
Inunda-se na luz de mil constelações!
E os arcanjos da rua assomam na poeira
Que exala o macadame, trazendo em cada olheira
O astro criador das grandes sensações!

E quando a cotovia à estrela matutina
Mandar a saudação. Lá fora, em pleno céu,
Romeu tu beijarás, que é tua eterna sina,
A trança da beleza anémica e franzina
Que entre os fumos da festa, a amar, adormeceu!

Boas noites coveiro: a tua enxada
Não cessa há tanto tempo de cavar?!
Cavaleiro da morte, ó fronte desolada,
Não sentes a mão trémula e cansada
De tanto trabalhar!

Tu esperas hoje as legiões sombrias
De mortos, que eu suponho ao longe ver?
Os felizes caídos nas orgias
E os tristes que além todos os dias
O gelo vem colher?!

Que imensa vala aberta! São medonhos
Os risos dessa boca infame, alvar!...
Descansa dos teus dias enfadonhos!
— Eu cavo a sepultura dos teus sonhos
Não posso descansar!

Fonte:
http://luso-livros.net/

Isabel Pakes (Poesias Avulsas) II

Pintura de Francisco Javier Rodriguez (O Poeta)
Às candeias do amanhã

Ausente do meu toque, feito um anjo ou feito um bruxo,
me olhas do alto da lua, me beijas através da brisa
e nas rosas que admiras me mandas lembranças tuas.
Pareces estar vibrando em tudo quanto me envolve,
até nos livros que leio, como se teus mensageiros,
contam-me histórias de amor iguais à tua e a minha.

E isso não te bastando, interceptas meus pensamentos,
seduzes meus argumentos e, de pronto,
te colocas porta adentro dos meus sonhos.
De tal forma te embrenhas em minha mente
que não há como fugir dos teus enleios e nem tenho eu por quê.
Se às vezes me exasperas pelo ontem que adiaste,
outras vezes me comoves, muito, profundamente,
quando feito a canção que mais gosto,
vens, manso e cativo, aninhar-te no meu peito.

Alheio ao tempo e à distância
por onde vou me alcanças trespassando dimensões,
alongando os teus sentidos aos menores dos meus gestos,
guardando-me em calmaria, às candeias do amanhã,
em noite de turbilhão.

Se és um anjo ou um bruxo, não sei.
Se me guardas ou me enfeitiças, não sei.
Talvez em mim só preserves o alento em cuja sombra repousas.
Mas estás aí, é o que importa!
Estás aí e me ouves devotado
e sem que te apercebas, minha alma embevecida
por um breve instante me escapa para abraçar-se à tua.

Anjos na Terra

Eu sei de um anjo. Eu sei de muitos anjos!
Não desses de belas faces e olhares plácidos
que povoam as páginas dos livros sacros
e as abóbadas das catedrais. Não desses.
Anjos de verdade, que posso tocar e sentir.
Anjos que, corporeamente, me livram do mal
da vaidade, do orgulho, da ambição...
Que me dizem do quanto sou feliz
com o que tenho e o que sou.
Anjos que trazem as asas atadas
e caminham a passos lentos e difíceis,
pelas barrancas que ladeiam o caminho por que vou,
a fim de que eu possa passar livremente e sem demoras.
E que se mostram a mim, sem reservas,
para que eu possa me pensar e dizer:- Obrigada, Deus,
por me conceder os meios com que exercitar o amor.
Anjos. Anjos do Senhor, na terra.

Estes anjos que sei,
trazem o céu dentro de si.
Às vezes, são como crianças grandes,
mas sempre puros como os pequeninos.
Jamais se abrem às ilusões do mundo.
Não vivem senão à vontade do Pai.

E pensar que, um dia, eu me julguei perfeita...
Eu! Que sempre fui tão vulnerável às tentações
e preciso deles como escoras
para suster minha pretensa evolução.

Estes anjos de que falo, existem por aí,
em todas as partes do planeta
e para reconhecê-los nem preciso aguçar minha visão.
São tão evidentes e tanto se parecem
nos rostos, nos gestos, na autenticidade do carinho,
no jeito excepcional de amar!
A quem de coração de entender, ou não.

Amor, substantivo concreto

Você é o amor feito criança!
Amor substantivo concreto
que tomo nos braços,
afago, aperto...

Quando olho pra você
esqueço-me em sua serenidade
sentindo-me alongar
no estado do meu ser.

E deixo-me ficar assim, agigantada!
Abandonada à sua angelical figura.
É tão doce esta paz de que me inundo
que me custa acreditar que o céu
é além divisas deste mundo.

É quando minha alma transparece
e minha voz te adormece
feito canção de ninar.

Sobras de amor

Há sobras de amor
rolando pelos cantos das casas inférteis
enquanto crianças, órfãos de afeto,
se abortam pelas sarjetas.

Não, isto não é poesia,
apenas um pensamento,
um desconforto da alma
num ter que viver terreno.
Igual quando vejo laranjas
apodrecendo nas árvores,
enquanto um espantalho mesquinho
afugenta os sanhaços.

Cerquilho - Cidade menina

Quando passeio meus olhos por tuas ruas e praças
tuas rosas me saúdam e fico orgulhosa de ti!
Lembro-me de que nasceste de um humilde vilarejo
onde abrigavas tropeiros que na calidez do teu colo
descansavam seus quebrantos...

Lembro-me dos estrangeiros, audaciosos lavradores
chegados na Estação, trazendo de além-mar
nada mais que garra e força, nada mais que amor e fé
e tuas terras verdejaram, vestindo-as de cafezais!

Lembro-me dos saber adentrando tuas portas;
tua primeira professora, teus primeiros aprendizes,
teu burburinho infantil no velho grupo escolar!

Lembro-me do teu grito quando a dor te estilhaçou,
do teu pranto, do teu luto, das tuas flores soterradas...
E de como renasceste, como a hera entre as ruínas,
tímida, assustada, mas ansiosa por viver!

Quantas lágrimas te banharam! Quanto suor te regou!
Mãos de aço, incansáveis, te soergueram das cinzas
e te fizeram mais forte, mais vigorosa ainda!

Lembro-me de como cresceste vitoriosa!
Do verde-cana mesclando-se ao verde-cor do café...
Das tuas indústrias ativando suas rodas
para nunca mais parar.

Lembro-me dos teus filhos, trabalhadores devotos
que honram teu padroeiro, teu amado São José!
Dos teus filhos cujos braços sempre abertos
acolhem quem te procura buscando o teu amparo
e cujas mãos se entrelaçam, unificados na prece,
entoando louvor e glória à providência dos céus!

Lembro-me da tua bandeira que baila com a brisa,
toda vaidosa ostentando os frutos do teu trabalho,
margeando de azul anil as páginas da tua história!
Ah... Minha cidade menina!

Tão robusta, mas menina. Radiante, graciosa!
Exalas essência de rosas e provocas dentro em mim
algo que não explico, porque não sei definir.
Só sei que estou orgulhosa, muito orgulhosa de ti!

Cerquilho - Cidade menina II

Remodelam a cidade.
Derrubam-se as minhas saudades-
- lugares meus da infância, da mocidade...
Santuários onde algum dia,
cheia de fé, rezando as minhas esperanças,
fiei quimeras e amoldei meu íntimo,
(entulhos agora) demovem-se do tempo,
desaparecem...

Fico triste. Choro...
Porém, num processo mágico,
talvez por maternal instinto,
as lágrimas que verto converto em seiva
para vitalizar meus novos ideais.

E a cidade se afigura sorridente!
Assume ares diferentes
qual menina adolescente preocupada em se enfeitar.
Diante dos meus olhos cada vez se faz mais bela
e, vaidosa, sempre cheirando à rosas,
ainda mais me envolve, ainda mais me seduz!
E mais ainda me induz
a me orgulhar sempre dela!

Minha eternidade

Conduze-me ao teu infinito!
Deixa-me romper-te
como o sol rompe a noite.
Eu quero afugentar os teus temores,
teus pesares, tuas dores...
Eu quero iluminar-te em larga aurora
num eterno amanhecer!
Quero-te claro como o dia,
sem segredos, inteiro!
Quero-te na plenitude do teu ser.

Conduze-me ao teu infinito!
Deixa-me lançar-me em tua vida
como uma aeronave no espaço etéreo.
Eu quero desvendar os teus mistérios,
descobrir-te como um novo mundo
e exilar-me em ti, confiar-me a ti,
compor contigo uma unidade,
esquecer-me em teu amor
como se fosse a minha eternidade!

É preciso

É preciso, antes do replante, revolver a terra;
retalhar raízes que, irreverentes, se torceram,
se tramaram... perderam-se das origens;
demover as ervas que, daninhas, se embrenharam nos trigais.

Que a seiva retorne ao seio.
Que vicejem as espigas
e se multiplique o pão!

É preciso alentar a terra;
lancetar as chagas, remover as pedras, dar vazão às lavas...
Dissolver as nuvens, destilar as águas, saciar-lhe a sede.
Que se refrigere!

Que essa febre cesse,
essa dor se aquiete,
que se cicatrize!

É preciso temperar a terra,
afastar as sombras, dar passagem à luz
que se lhe adentre no cansado ventre
e o restabeleça do desconforto da nossa inconsequência.
Que outra vez fecundo possa germinar a paz!

Sobretudo, é preciso cultivar a fé e preservar virtudes,
até que, preparada a seara, venha o lavrador
selecionar as mudas.

Bom tempo

Acendi o sol dentro de mim
hoje de manhãzinha,
depois da chuva que passou
e levou os meus entulhos
com as folhas mortas,
na enxurrada.

Revivescência

 Deixa refluir o vento...
Depois, quando no limiar da hora
for se desintegrando a noite
aos primeiros raios da esperada aurora,
há de a tempestade amainar-se
e se fazer bom tempo!

E há de brilhar o sol
como se, do eterno, na manhã primaz!

E soprará a brisa,
renascerão as flores,
revoarão os pássaros...
Toda a natureza se pontuará de luz!

E na memória,
nada a se lembrar do que foi mal passado,
nenhum resquício.
Porque aos ares da bonança
profundamente se alteram
as sementes dos abrolhos.

Tudo será novo,
como no despertar do sétimo dia!

E haverá calma e doçura...
a quem de boa vontade.

Fontes:
Portal CEN http://www.caestamosnos.org/
Blog da Autora. http://belpakes.blogspot.com/

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 34

CAPÍTULO IV

Depois desta cena, Branca fazia o possível por familiarizar-se com o Coruja. Procurava pô-lo à vontade, converte-lo em uma espécie de parente velho, rompia com ele sem cerimonias que não usava para com mais ninguém, e para as quais, força é confessar, não lhe sobrava jeito, pois que ela já por temperamento, como por educação, era uma dessas criaturas frias e reservadas, cujos sentimentos nunca se deixam trair na fisionomia ou nas palavras.

Mme. de Nangis, como toda a mãe adotiva, transmitira-lhe as suas maneiras, o seu gosto, o seu estilo, mas não lhe tocara na alma, porque esta só a própria mãe sabe educar.

Felizmente a alma de Branca era boa por natureza, e, se não se aperfeiçoou por falta de educação, também não se corrompeu com a moral da professora. André ficou extremamente surpreso quando notou que a encantadora senhora era para com ele muito mais dada e expansiva do que com qualquer dos outros amigos do esposo. E foi aos poucos se habituando a vê-la e a falar-lhe sem ficar constrangido, até sentindo já por fim um certo gosto quando a tinha a seu lado, tão tranqüila, tão feliz e tão distinta.

Ela, muita vez, ao vê-lo triste e apoquentado da vida, chamava-o para junto de si e procurava animá-lo com boas palavras de interesse. Dizia-lhe por exemplo:

— Então, meu amigo, que ar terrível tem hoje o senhor... Veja se consegue enxotar os seus diabinhos azuis e leia-me alguma coisa. Olhe! Dê-me notícias de sua obra, diga-me como vai a sua querida história do Brasil... Terminou afinal aquele episódio dos guararapes, que tanto o preocupava? Vamos! Converse!

Coruja sorria, muito lisonjeado por debaixo da sua crosta de elefante, mas remancheava para não mostrar o que escrevera.

— Ora... Aquilo era um trabalho tão frio, tão desengraçado, que não podia interessar o espírito de uma senhora.

Contudo, se Branca insistia, ele acabava por ir buscar os seus caderninhos de apontamentos históricos e lia-lhe em voz alta aquilo que dentre eles se lhe afigurava menos insuportável.

Eram fatos colhidos por aqui e por ali, em serões da Biblioteca Nacional, escritos num estilo compacto, muito puro, mas sem belezas de colorido nem cintilações de talento. O que lhe falecia em arte e gosto literário sobrava-lhe não obstante em fidelidade e exatidão; as suas crônicas eram de uma frieza de estatística, mas sumamente desapaixonadas, simples e conscienciosas. Entre aquela infinidade de páginas, abarrotadas de letrinha miúda e muito igual, não havia um só adjetivo de luxo ou uma frase que não fosse de primeira necessidade.

Teobaldo gostava de fazer pilhéria com os alfarrábios do amigo; mas, passando a falar sério, citava-os com respeito, se bem que deles não conhecesse uma linha ao menos.

— Obra de fôlego! Dizia, engrossando a voz; e afirmava que no meio de toda aquela papelada havia coisas magníficas.

Quando Branca estava aborrecida, durante pequenas viagens comerciais do marido, André, em lugar da enfadonha historia, lia-lhe alguns dos seus poetas mais prezados, clássicos na maior parte, entre os quais se destacavam Camões e Garrett, por quem ele sentia verdadeiro fanatismo. Outras vezes tomava da flauta e punha-se a tocar para a distrair; quase nunca, porém, o conseguia, porque o desgraçado tocava mal e sem inspiração.

Para ser agradável a Branca, para entreter, ele estava sempre disposto a tudo, menos a apresentar-se na sala de Teobaldo em noites de recepção ou acompanhá-los ao lírico. Adorava a boa música, mas não podia ajeitar-se com o frenético burburinho das platéias e a nervosa vivacidade dos saraus. Quando lhe dava na cabeça para ver uma ópera, o que era raríssimo, comprava um bilhete de torrinha e metia-se lá em cima, muito só, muito escondido de todos e pedindo a Deus que ninguém o notasse.

Entretanto o que Branca sentia por ele era menos estima do que uma certa espécie de condolência, que todo o coração feliz e farto costuma voltar aos desfalecidos da fortuna. E, se por vezes brilhava nas suas palavras ou nos seus gestos qualquer centelha de afeição, seria talvez alguma gota escapada do grande transbordamento do seu amor pelo marido; Coruja, por muito ligado a este, participava do luminoso eflúvio.

Tanto assim que, entre todas as relações de Teobaldo, antigas ou recentes, era essa a única que merecia da formosa criatura semelhante distinção; as outras, nem isso tinham.

O velho Hipólito e mais a mulher causavam-lhe tédio; ele com a sua eterna mania de criticar a Deus e a todo o mundo, com sua avareza mal disfarçada e com a sua proa de ricaço; &a com aquele gênio de querer governar sempre e dirigir a vida das pessoas com quem se dava e querer impor a sua opinião a propósito de tudo. Quanto ao Sampaio, esse felizmente poucas vezes aparecia e outro rastro não deixava de sua passagem além de meia dúzia de banalidades e algumas pontas de cigarro lançadas fora do cinzeiro. Era porco.

Depois do Coruja, o mais freqüentador da casa era o Afonso de Aguiar. Apresentava-se regularmente nos dias de recepção e surgia uma vez por outra à hora do jantar, sem ser esperado. A sua atitude ao lado da mulher do amigo, na aparência, a melhor e mais correta que se poderia desejar: chegava com o seu passinho miúdo, um sorriso de bom rapaz à superfície dos lábios, e ia logo apertar-lhe a mão com todo o respeito, perguntando-lhe cheio de doçura "como passava a sua querida prima e em seguida ia ter com Teobaldo e punha-se, até à ocasião de sair, a conversar com este sobre negócios e um pouco sobre política. Estas conversas tanto e tanto se repetiram e foram por tal forma tomando um caráter expansivo e intimo, que Teobaldo, contra todo o seu sistema de atração, já de último lhe confiava algumas particularidades da sua vida comercial. O outro, cuja posição na praça era bastante próspera e secura, animava-o com palavras de amigo e prometia estar sempre ao lado dele e ao seu dispor, quando por acaso Teobaldo encontrasse alguma séria dificuldade na sua carreira. Independente disso parecia admirar-lhe por tal modo o tino e o talento, que ao lado dele se fora aos poucos convertendo em um desses louvaminheiros constantes, que em geral acompanham os homens excepcionais, e para os quais reservam estes uma certa proteção amistosa, cheia de apreço e reconhecimento, mas com quem, no fundo, são de uma indiferença à toda a prova.

Como todo homem egoísta e vaidoso, Teobaldo gostava de ouvir elogios, viessem esses de quem quer que fosse, e o finório do Aguiar, compreendendo isso mesmo, não perdia ocasião de lhe queimar incenso defronte do nariz. Tudo, por mais simples, que fazia o marido de Branca, representava para o velhaco novos pretextos de entusiasmo. Um discurso à sobremesa ou em alguma outra reunião, um parecer em qualquer questão comercial, um artigo na imprensa, tudo era motivo de louvor e pasmo.

— Não há outro! Exclamava o primo de Branca. Não há um segundo Teobaldo! O ladrão reúne em si todas as qualidades que se podem desejar em um homem! Maneiras, talento, caráter, figura, tudo o que há de bom, de belo e de grandioso! E demais um verdadeiro fidalgo: ninguém como ele para saber cativar a quem quer que seja; para cada pessoa tem sempre um assunto especial que a interessa particularmente, que a prende. Se está defronte de um ministro, só conversa em política e, ouvindo-o, ninguém acreditaria que ele durante toda a sua vida, tivesse outra preocupação além da política; se fala a um homem de ciência, faz logo pasmar a todos com a sua despretensiosa erudição; se a pessoa com quem ele conversa é um artista, um músico, um poeta, um pintor ou um ator, então a sua palavra privilegiada chega a causar delírios de entusiasmo: as idéias, as frases, as belas imagens literárias, saem-lhe da boca em borbotão. E note-se que tão facilmente discorre pela arte moderna, como remonta à de três séculos atrás; tão à vontade se acha falando sobre os pintores da renascença, como falando da escultura pagã, como do teatro grego ou da poesia hebraica. Seu milagroso talento, sem fazer especialidade de coisa alguma, abrangeu tudo e de tudo se apoderou.

Nada do que existe no orbe intelectual escapou à sua grande faculdade de apanhar de um salto aquilo que os outros levam muitos anos para conquistar. Com a mesma facilidade com que compõe uma valsa, escreve uma poema, desenha uma paisagem, faz um discurso, escreve uno artigo político, engendra um folhetim de crítica, canta uma parte de barítono, sustenta a conversação de uma sala, dirige um cotilhão, inventa um feitio de chapéu para senhora, um prato esquisito para o jantar e tão pronto está para fazer uma lista dos melhores vinhos do mundo, como para fazer a classificação de todos os sistemas filosóficos até hoje conhecidos.

Teobaldo, com efeito, era um desses espíritos que tanto tem de inconstantes e fracas para aprofundar e conservar qualquer coisa, como de prontos e fortes para assimilar o que passa defronte deles com a carreira mais vertiginosa. Tudo conseguia apanhar em um lapso instantâneo, mas não conseguia estudar seriamente qualquer coisa; conhecia tudo e nada conhecia ao mesmo tempo, porque tudo percorrera de passagem; era enfim um homem superficial, um habilidoso, incapaz de qualquer trabalho de fôlego ou de qualquer concepção verdadeiramente individual, mas como ninguém apto para imitar em um relance tudo aquilo que os outros, os especialistas, conceberam e aperfeiçoaram durante uma existência inteira.

Por várias vezes representara em teatrinhos particulares e tão bem copiava o ator que ele escolhia para modelo, que chegaram a julgá-lo um gênio na arte dramática; quando pela primeira vez apareceu na corte o introdutor da copofonia, Teobaldo arranjou logo uma dúzia de copos de cristal, afinou-os e, tanto fez que, no fim de alguns dias já tocava, não com a perfeição do outro, mas enfim tocava, e isso era o bastante para satisfazer a sua fantasia. Depois de ver o Hermann, entregou-se durante três meses à mania da prestidigitação e conseguiu fazer maravilhas nessa especialidade; vendo um célebre jogador de bilhar, que em certa época se andava mostrando ao público do Rio de Janeiro, quis competir com ele e conseguiu fazer trezentas carambolas de uma tacada.

Para estas passageiras manifestações de habilidade, incontestavelmente era como ninguém. Entendia um pouco de tudo; sabia tirar retratos fotográficos, jogar todos jogos de cartas e mais os de exercício, contando a esgrima, o tiro ao alvo, a péla, a bengala, o bilboquê; e cada novidade que surgia, fazendo impressão no público, encontrava nele o maior e também o menos constante dos entusiastas. Assim, durante algum tempo, só o ouviram falar em magnetismo, e parecia resolvido a não pensar em outra coisa, daí em diante; depois veio o espiritismo, e Teobaldo durante outro período foi o mais fervoroso discípulo de Allan Kardec; depois passou a dedicar-se à astronomia; depois à maçonaria e, entre os vinte e os trinta anos, pertenceu sucessivamente àquilo que mais estivesse em moda. Foi materialista com Buckner; foi ateu com Renan; socialista com Saint-Beuve; evolucinista com Spencer; psicólogo com Bain; positivista com Littré e Augusto Comte; mas nenhum deles conseguiu estudar a sério; entusiasmava-se momentaneamente e de cada filósofo conhecia apenas os livros mais espetaculosos, mais vulgares, sem nunca entrar pela obra profunda dos sábios. De Buckner, por exemplo, conhecia tão somente Força e Matéria, de Renan a Vida de Jesus, de Jacolliot a Bíblia na Índia, e assim por diante; notando-se que de muitas obras conseguia ler apenas uma pequena parte, ou alguma notícia crítica, ou qualquer citação, ou um simples a-propósito.

No entanto falava de todas elas, nomeando autores modernos e antigos, discutindo-os, atribuindo-lhes até pensamentos e frases que jamais lhes pertenceram, chegando a sua temeridade ao ponto de citar em falso ou de orelha as mais respeitáveis autoridades, para justificar o que ele na ocasião negava ou afirmava. Esta prodigiosa faculdade de tudo assimilar sem nada digerir era tamanha em Teobaldo que muita vez discutindo com o Coruja, ele apanhava no ar os argumentos deste e apresentava-lhes em defesa própria, já transformados e desenvolvidos. E o mais curioso é que, posto André estivesse senhor da matéria em discussão e arrazoasse-la conscienciosamente, citando autores que o outro desconhecia, era sempre levado à parede e tinha de render-se, porque o contendor com sua afoita verbosidade lhe arrebatava todas as armas.

Seu espírito, de uma agilidade acrobática, saltava de um ponto a outro, fazendo as mais difíceis cabriolas; tão depressa Teobaldo se sentia mal seguro em um terreno, puxava logo a conversa para o lado oposto, sem que aliás ninguém desse por isso, tão presos ficavam todos à sonora corrente de suas palavras. E, sempre irrequieto, sempre em constante fermentação, aquele sutil e maleável espírito a tudo se amoldava, em tudo se informava, torcendo, singrando e penetrando por caminhos da ciência inteiramente desconhecidos para ele. E às vezes, sem conhecer de certos autores mais do que o nome, citava-os de todas as nacionalidades, de todas as classes e de todas as épocas.

Os ignorantes, ouvindo-o, comiam-no por sábio; um sábio se o ouvisse, havia de julgá-lo um louco. Afonso de Aguiar não o considerava nenhuma dessas coisas; mas bem lhe conhecia a parte vulnerável do caráter — A vaidade e, por ai contava invadir-lhe o coração e apoderar-se dele. E, no empenho de conquistar a confiança de Teobaldo, já por fim tanto lhe glorificava os dotes intelectuais e as simpáticas exterioridades de sua pessoa, como ainda lhe gabava as qualidades morais.

— Que coração! Segredava ele a todo aquele que pudesse levar suas palavras ao marido de Branca. Que coração de ouro! É capaz de despir a camisa para socorrer a um pobre! Da esmolas, sem contar o dinheiro e, dantes, quando não tinha para dar, sofria mais do que o próprio necessitado. Em solteiro, muita vez empenhou o relógio só para servir a algum amigo; muita vez teve de pedir emprestado dinheiro, que não era para ele; muita vez pagou dívidas, que não eram suas!

E o Aguiar, abaixando a voz, acrescentava quase sempre:

— E sem precisar ir muito longe, aí está o fato do Coruja…

— Que Coruja? Perguntavam.

— Ora! Aquele rapaz que ele tem em casa, um pobre diabo, sem eira nem beira, um tipo esquisitório, que teria levado o diabo, se não fosse ele!

Então passava a contar uma história a respeito do Coruja, e, sempre engrandecendo as qualidades do outro, resumia:

— Pois é como digo! E note-se que ele faz tudo isso somente porque o tal sujeito foi seu companheiro de colégio!

Esta calculada e constante glorificação de Teobaldo, feita pelo suposto amigo, foi afinal encontrando eco nos grupos em que ela caía, e o festejado esposo de Branca viu surgir aos poucos em torno de seu nome uma grande reputação de homem ilustrado, de homem de talento e de homem generoso. Isto, ligado à sua fama de rico, era tudo quanto ele desejava. E mais: todas as vezes em que Teobaldo ouvia elogiar o seu procedimento para com o Coruja e tentava provar que o não merecia, tanto mais se assanhavam os propagadores de sua fama e tanto mais o fato era engrandecido e apregoado.

Um deles exclamou cheio de entusiasmo:

— Além de tudo é modesto! Que homem! Nega a pé junto a esmola que faz como qualquer negaria um obséquio recebido que o humilhasse!

Branca, porém, revoltava-se com tamanha injustiça feita ao melhor amigo do seu Teobaldo. Este, pensava ela, tem de sobra com que merecer elogios e não precisa enfeitar-se com as penas que lhe não pertencem!

Sofreu, pois, uma enorme decepção, quando, falando a esse respeito ao esposo e dizendo que achava indispensável esclarecer bem aquele ponto aos olhos de todos, lhe ouviu declarar frouxamente:

— Não sei, minha flor, não acho muito prudente agitar essa questão mais do que já está... Com semelhante resolução talvez apenas conseguíssemos chamar sobre mim algum ridículo...E bem sabes que um homem na posição em que me acho deve temer o ridículo sobre todas as coisas!.

Branca não opôs uma palavra às do marido, mas intimamente sentiu estremecer, posto que de leve, o entusiasmo pelo seu ídolo, pelo seu amado, pelo seu esposo, pelo seu Deus: entusiasmo que ela até aí mantinha sereno e inalterável como uma estátua de ouro.

Foi o primeiro ponto escuro que descobriu no astro, e procurou logo enganar a vista, fazendo por convencer-se de que "aquilo" não passava de "uma venial fraqueza".

Ah! Mas a primeira mancha nunca vem só, e Branca tinha de sofrer ainda outras decepções mais amargas e mais difíceis de esquecer!

Todavia, uma vez ao lado do Coruja, não se pode dominar e falou-lhe abertamente sobre o fato.

Ah!... Respondeu o professor sem se alterar; eu já sabia... Fui até já várias vezes interrogado sobre isso…

— Como? Pois já chegaram a lhe falar?

— Sim, alguns amigos de Teobaldo.

— E o senhor explicou tudo, não é verdade?

— Não, não valia a pena... Que mal pode haver em que suponham semelhante coisa? Muito mais quando isso tem o seu fundo de verdade!...

— De verdade? Pois o senhor quer me convencer também a mim de que Teobaldo é quem lhe fornece os meios de subsistência?

— Ora, se os não fornece agora, já o fez por muito tempo, e quem sabe se não virei ainda a precisar disso?...

Branca, defronte destas palavras, ficou ainda mais surpresa de que quando ouviu as próprias do marido. Ela sabia já que o Coruja era um singular exemplo de abnegação e de boa-fé, mas nunca o julgou capaz de tanto.

E seu espírito, ainda puro, religioso e casto, principiou instintivamente a voltar-se mais e mais para aquela figura feia, resignada e melancólica, aquele pobre diabo carcomido pelo trabalho e pelo sacrifício, que todos repeliam, e para o qual ninguém sabia ter uma única palavra de amor e consolação.
––––––––
continua…