quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Argemiro Garcia (Poemas Avulsos)

Impressão
Curioso, eu vi
as rosas de Giverny
e, como todo que vê
a obra de Monet,
sorri.

Meus anjos
Os anjos do meu caminho?
perdi-os...
(quase todos).
Mas os anjos são assim: vêm e vão,
com um jeitinho...
angelical!
Seus caminhos, diferentes dos rios,
não seguem a gravidade:
há anjos que vêm, há anjos que vão.
Os que ficam, então,
felicidade nos dão.

Caleidoscópio
Caleidoscópio.
Quero meus versos assim,
mutantes,
permanentemente dançantes,
um chá beneficente!
Murmúrios,
augúrios,
gritinhos de surpresa
- ohs! e ahs! -
e sorrisos deliciados
descobrindo
duplos sentidos.
Meus versos têm
verso
e reverso.

Janelas
Olho da janela e o que vejo?
Formigas de azulejo
escalam muros de pedra;
anjos de face rosada
velam santos e orixás;
outros anjos, de cara suja,
percorrem praias e ruas,
à cata de latas e lixo.
Em torno, um e outro bicho
passam também a fuçar.
Rabiscos riscam tapumes e uma garatuja
assina-se nas paredes. Solidão flutua no ar.
Janelas, sempre janelas!
Assisto através delas
o mundo que teima em passar.
Gotas escorrem do vidro:
lágrimas? Suor?
Liberdade, Paraíso, Amaralina,
Copacabana, Imbetiba, Ondina,
quantas ruas será que eu, ainda,
percorro até me encontrar?

Meus versos
Meus versos, eu os escrevo
com a tinta negra da noite escura;
quero-os no rasto do caipora,
perseguindo atentos na penumbra afora
os passos quentes do saci e do capeta.
Quero versos de pés sujos, lama e areia,
quero-os vivos, a correr sem peia,
percorrendo, altivos, recantos imundos,
becos abandonados e trilhas desertas,
captando aqui e ali causos e histórias incertas.
Quero meus versos de pé no chão,
calos nas mãos e olhar na imensidão.

Quatro sombras

Duas crianças caminham pela rua
conduzidas pelas mãos de dois adultos;
a visão dessa cena é muito breve,
na penumbra só diviso os quatro vultos.

Quatro sombras se perdem entre as sombras
percorrendo seu caminho – displicentes?
infelizes? inseguras? Simplesmente
percorrem seu caminho entre as gentes.

Morro acima, morro abaixo
A cidade sobe, num jeito de presépio,
pelas curvas de nível e ladeiras.
Sobem, acima dela, pipas, pássaros,
nuvens de fumaça, como um véu;
sobem sonhos e orações num escarcéu.
A cada chuva descem,
nas sarjetas,
suores, sujeiras e dissabores,
incertezas e esperanças
que aguardam outro dia,
outra chance, a loteria,
para se concretizar.

Paz

Não sou guerreiro.
Não sou herói.
Guerreiros não vacilam nas grandes batalhas.
Prefiro lençóis a mortalhas.
Não puxaria um gatilho,
mas uma enxada.
Dignidade se constrói
com tijolos e cimento,
calos, calva e cãs.
Medalhas e bravatas? Coisas vãs.

Três poetrix

Sertões
Filitas feito facas,
feito lápides, são estacas
cravadas no coração do Brasil.

Vira-latas
a Marilda Confortin e Manuel Bandeira
Revirando o lixo,
menos que um bicho
é um menino.

Marinheiros


Sobre a pedra, uma gaivota
observa o remador
e estuda sua rota.

Cantiga do meu morrer
(depois de Ferreira Gullar)

Menina que não conheço,
quando eu me for embora,
me guarde de alguma forma,
me guarde por uma hora
ou duas, no seu coração.

Se no seu coração não couber,
menina que não conheço,
nem uma lembrança minha,
guarde então nos ouvidos
alguma palavra de apreço.

Mas, mesmo se uma palavra
que eu diga lhe valha pouco,
menina que não conheço,
reserve apenas nos olhos,
a imagem de um velho louco.

Se minha imagem guardar
lhe for muito sacrifício,
se vou lhe atrapalhar,
menina que não conheço:
me lembre como um estrupício.

Se essa triste memória
lhe servir só para tormento,
não se preocupe comigo;
me deixe no esquecimento,
menina que não conheço.

Cheiro de sal

Em algum lugar na infância
o mar me cheirou salgado;
não havia esgotos ou sargaço,
apenas a espuma branca,
a água fria
e a areia de grãos finos.
Tempo! O tempo voa veloz,
como gotas salgadas escorrem
na pele dos meninos.
Meus meninos brincam na água.
Meus meninos andam na água.
Meus meninos passam na água.
Não há o que os segure crianças,
ainda que o queira.
Minha vida segue com eles.

Fonte:
Goulart Gomes (Organizador). Antologia do Pórtico. 2003.

Nilto Maciel (Hipnose)

Andrew Albee chegou a Palma numa tarde quente. Maleta à mão, desceu do ônibus. Um menino ofereceu ajuda. “O senhor vai para o hotel?” O americano perguntou onde ficava o melhor hotel. “Aqui só tem um. Ali do outro lado da praça. Hotel Canuto.”

            Após o banho, Andrew se dirigiu à sala de jantar. Pediu o menu. O hoteleiro gaguejou, andou pela sala, olhou para a hoteleira, ofereceu água e café ao visitante. “Mulher, você viu o menu?” A arrumadeira saiu em seu socorro. “Já trabalhei num restaurante na capital. Menu, cardápio, relação dos nomes dos pratos. Aqui não tem isso, né?” O hoteleiro sentou-se de novo. Não serviam jantar no hotel. Nem almoço. Porém, havia um restaurante na praça. O estrangeiro sorriu. Se a moça não se importasse, poderia fazê-la dormir naquele momento. Ela também sorriu. Ninguém a faria dormir àquele hora. “Eu não sou galinha para dormir tão cedo.” De qualquer forma, aceitou o desafio. “O senhor quer me hipnotizar, não é?”

            Cinco minutos depois do início da sessão, Maria dormia, sentada na cadeira, diante de Andrew e sob os olhares de espanto dos donos do hotel. O hóspede dava ordens e a arrumadeira obedecia. Pareceu comer um frango inteiro, lambuzar-se de gordura, lavar as mãos e a cara. O hoteleiro nem sequer piscava. Coisa do demo. Minutos depois, a moça acordou, a um bater de palmas  do estrangeiro. Um gato parou à porta e cravou o olhar no mágico.

Dizendo-se faminto, Andrew se dirigiu ao restaurante. Bebeu cerveja e jantou, sem parar de conversar com garçons e fregueses. Quem aceitava ser hipnotizado? Um dos garçons duvidou de seus poderes. Dois minutos depois parecia um robô. A plateia bateu palmas. Um rapazote se apresentou ao visitante. Queria ser hipnotizado. Novo sucesso. “João, você comeu uma barata.”

Feitos amigos, o americano e João saíram para a praça e se puseram a caminhar. As moças olhavam para Andrew e diziam coisas, baixinho: “Bonitão!” “Que louro bonito!” “Valha-me , Deus!”. Ele sorria e andava. João olhava para o alto e conversava. “Vamos tomar uma cerveja, gringo?” Uma das moças da praça aceitou a proposta de hipnotização. E até levantou a saia, sentada num banco.

A cidade se preparava para eleger prefeito e vereadores. Ananias, o prefeito, chamou o estranho ao seu gabinete. “Meu filho é candidato a prefeito.” E apresentou uma proposta a Andrew: mordomias, mulheres, passeios, segurança, tudo, em troca da hipnotização geral dos eleitores no dia da votação. O gringo sorriu. Como era o rapaz? O pai disse maravilhas de Sainan: estudioso, bonito, inteligente. João, Maria e outros eleitores disseram cobras e lagartos do filho do prefeito. Estroina, vagabundo, safado. Se dependesse do votos deles, o novo prefeito seria o  candidato da oposição. Ou qualquer outro, menos Sainan. Nunca o filho do prefeito. Preferiam votar num burro, num cachorro, num bode, em nada.

 Chamado de novo à Prefeitura, Andrew fez Ananias dormir por alguns minutos. E se retirou pé ante pé. Encontrou João à calçada. “Vamos tomar cerveja.” Jamais o prefeito se deixaria hipnotizar. Sono artificial naquele homem - nunca. Porém, no dia da eleição, Sainan e seu pai dormiram muito. E Andrew Albee fugiu da cidade, às pressas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) I

MULHER

Tens como encanto
Um sorriso
E um espanto
No brilho do olhar

Bem sei há tristezas
Profundas contidas
E bem escondidas
Num canto qualquer

Como sei que há vida
Uma vida incontida
Pronta a aflorar
De teu ventre, mulher.

LA BELLE D’JOUR

És flor delicada e bela
Que abrindo se perfuma o ar
Anuncias a primavera
No encanto do teu olhar.

Brilhas a noite mais escura
Iluminas o dia mais sombrio
Com teu jeito de menina pura
E esse corpo de mulher no cio.

És um milagre de Deus
Uma fonte inesgotável e incontida
De inspiração pros versos meus
E de alegria e tesão pela vida.

Lute batalhe experimente
O suave sabor da felicidade
Sejas cativa somente
Da beleza do amor e da liberdade.

NÁUFRAGO

Não deixes meu ser à deriva
Meu coração começa a adernar
Frágil embarcação nessa vida
Naufragando no teu lindo olhar.

Leve-me ao teu porto seguro
Bem perto do entardecer
Ouça o forte murmúrio
Deste meu peito a bater.

No teu corpo minha vida
Entrego sem nada temer
Vem curar as feridas
Que o mundo costuma fazer

Para que de novo à lida
Eu volte sem tempo ruim
Sabendo que alguém nesta vida
Ama, cuida e vela por mim.

ARS / AMOR
A poesia abre o coração
Expõe a alma
A pintura abre os olhos
Expõe a realidade
A música abre a cabeça
Expõe a percepção
A mulher abre os braços
Expõe-se à vida.

PRECE

Seu amor menina
Encanta me ensina
Seu desejo mulher
Cresce me envaidece
Deixa-me do tamanho
De quem numa prece
Encontrou Deus.

VICE OU VERSA

Te amo!
Jamais direi novamente que
Posso viver sem você.
Acredito que
Apesar de tudo
Você me ame também.
Não consigo imaginar que
Algum dia
Te esquecerei.

CANTIGA

Teus olhos belos sóis
Dois lindos arrebóis
À noite duas luas
Brilhando seminuas

E no amanhecer
Já nas primeiras horas
Iluminam teu ser
Como duas auroras.

IRIS

A gentil serenidade
De teu olhar
Desnudou meu orgulho
Ressuscitando em mim
O menino que eu matara.

LÁCRIMA
Brota nos recantos do coração
Deságua pelas janelas da alma
Rola rosto pura emoção

Essa pérola viva do ser
Rainha de uma extrema dor
Princesa de um imenso prazer.

MÃES MENINAS

Meninas tão lindas
Tão jovens ainda...
Mulheres tão puras
Tão verdes, maduras...

Deixam (sem querer)
O brinquedo, o sorriso
A pureza e o prazer
Para brincarem de sofrer.

PUPILAS
O esplendor do sol
Transforma em ouro
As espigas do trigal
As pétalas dos girassóis
E as meninas dos olhos
Do poeta.

CHEGA DE SAUDADE

A palavra cala
No gesto do abraço
Teus olhos úmidos
Meu peito em descompasso

Um beijo ardente
Silencioso e profundo
Aproxima a gente
Do paraíso no mundo.

DRUMMONDIANDO

No
Meio do caminho
Havia uma pedra
Eu!
Que esfarelou-se humana
A um simples toque
Seu.

TOGETHER

Esses teus olhos tristonhos vão sumir
Em seu lugar darei o brilho
Que ainda resta em meu olhar
Pois quero ver teu rosto se iluminar
Num sorriso simples sincero e sem medo.

Se hoje lhe ajudo também peço ajuda
Quero te ver sonhando meu sonho
Vivendo meu viver
Quero te amar bem mais que o meu coração
Quero juntar à tua minha solidão.

Pois eu também por muito tempo andei sozinho
Sem ter ninguém , sem ter amor pra me ajudar
Andei caminhos sem rumo, sem destino
Mas hoje a vida deu-me outra chance
Ao te encontrar.

WINDOW

Você é janela aberta
Em dia ensolarado;
Ilumina, areja, liberta
Meu coração trancafiado.

DOCE MISTÉRIO
Mulher
Segredo e milagre
Santa
Quando briga ou canta
Delicioso
Mistério de amor
Entre
O humano e o poder
Criador.

PERCEPÇÃO

Meus olhos muitas vezes
Vêem coisas
Que pessoas apressadas
Nem dão fé!
Se eles mentem
O fazem colorido
Num sorriso
Numa flor
Numa mulher.

SE FOSSES MINHA

Se fosses minha amiga
Darias-me uma droga
Mais forte que a vida;

Se fosses minha amante
Darias-me amor maior
Do que ontem;

Se fosses minha amada
Não deixarias morrer
Nosso conto de fada.

YES

Agradeço a Deus
Por um sorriso teu
Que seja só para mim

Pois o teu encanto
Enxugou meu pranto
E me deixou assim

Louco por teus beijos
Pleno do desejo
De chegar ao fim

Deste mar revolto
Lindo que é teu corpo
Dizendo-me sim.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Folclore da África (O Violino do Macaco)

A fome e a necessidade de satisfazê-la forçou o macaco a abandonar a sua terra e procurar outro lugar entre estranhos para o tão necessário trabalho. Bulbos, feijões da terra, escorpiões, insetos, estavam completamente extintas em sua própria terra. Mas, felizmente, ele recebeu, por enquanto, abrigo com um tio-avô dele, Orangotango, que morava em outra parte do país.

Quando ele tinha trabalhado durante certo tempo ele quis voltar para casa e, como recompensa seu tio deu-lhe um violino e um arco e flecha e lhe disse que com o arco e flecha, ele poderia acertar e matar qualquer coisa que ele desejasse, e com o violino ele poderia obrigar qualquer coisa a dançar.

O primeiro que ele encontrou em seu retorno para a sua terra foi o irmão lobo.  Este velho companheiro disse-lhe todas as novidades e também que ele estava desde cedo tentando perseguir um cervo, mas tudo em vão.

Então o macaco disse para ele todas as maravilhas do arco e flecha que ele carregava nas costas e lhe garantiu que se avistasse o cervo, ele iria acertá-lo para ele. Quando o lobo mostrou-lhe o veado, o macaco estava pronto e derrubou o cervo.

Eles fizeram uma boa refeição juntos, mas em vez do lobo ser grato, o ciúme se apoderou dele e ele pediu para o arco e flecha. Quando o macaco recusou-se a lhe dar, ele usou sua força para ameaçá-lo, e assim, quando passaram pelo chacal, o lobo disse que o macaco tinha roubado o seu arco e flecha.

O chacal tendo ouvido falar do arco e flecha, declarou-se incompetente para resolver o caso sozinho, e ele propôs que eles levassem a questão para o Tribunal do Leão, Tigre, e os outros animais. Nesse meio tempo, ele declarou que iria ficar tomando conta do que tinha sido a causa de sua discussão, de modo que seria mais seguro, como ele disse. Mas o chacal imediatamente tirou de tudo o que era comestível,  e isso gerou um longo período de matança, antes que o macaco e o lobo concordassem em levar o caso para o tribunal.

As evidências do macaco era frágeis, e para piorar, o testemunho do chacal foi contra ele.  Ele pensou que desta forma seria mais fácil obter o arco e flecha para si mesmo.

E assim a sentença foi contra o macaco. O roubo foi encarado como um grande crime: ele seria enforcado.

O violino ainda estava ao seu lado, e ele recebeu como um último desejo do tribunal o direito de tocar uma música nele.

Ele era um mestre dos truques de sua época, e além disso, tinha o maravilhoso poder de sua rabeca encantada. Assim, quando ele emitiu a primeira nota do “Canto do Galo” no violino, o tribunal começou logo a mostrar uma vivacidade incomum e espontânea, e antes de terminar a primeira estrofe da valsa da velha canção toda a corte estava dançando como um redemoinho.

Mais e mais, mais rápido e mais rápido, tocou a melodia do “Canto do Galo” no violino encantado, até que alguns dos bailarinos, exaustos, caíram, embora ainda mantendo seus pés em movimento. Mas o macaco, músico como ele era, ouviu e não viu nada do que tinha acontecido à sua volta. Com a cabeça colocada carinhosamente contra o instrumento, e seus olhos meio fechados, ele tocou, mantendo a cadência com o seu pé.

O lobo foi o primeiro a gritar em tom suplicante, sem fôlego, “Por favor, pare, primo macaco! Pelo amor de Deus, por favor, pare!”

Mas o macaco nem conseguiu sequer ouvi-lo. Mais e mais a valsa “Canto do Galo” parecia irresistível.

Depois de um tempo o leão mostrou sinais de fadiga e, quando ele rodava mais uma vez com a leoa, ele rosnou quando passou do macaco, “Todo o meu reino é vosso, macaco, se você parar com essa música!”

“Eu não quero isso”, respondeu macaco “, mas retire a sentença e devolva o arco e flecha, e você, lobo, reconheça que você o roubou de mim!”

“Eu reconheço, reconheço!” gritou o lobo, e o leão no mesmo instante, chorou anulando a punição.

O macaco ainda deixou-os girando mais uma vez ao som da valsa, e depois recolheu seu arco e flecha, e sentou-se no alto da árvore de espinhos mais próxima.

A corte e outros animais estavam com tanto medo que ele pudesse começar de novo que apressadamente correram para outras partes do mundo.

Fontes:
http://www.sacred-texts.com/afr/saft/sft05.htm
http://casadecha.wordpress.com/2013/08/28/o-violiono-do-macaco/‎
Imagem = http://portuguese.alibaba.com

Rachel de Queiroz (Tangerine-Girl)

De princípio a interessou o nome da aeronave: não ‘zepelim’ nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de voo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si – como um animal de vida própria; fascinava-se como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma joia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-se um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita – pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade – faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U.S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulado entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento – sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita – o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!” – embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixaria ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projetil, mas suavemente, como uma dádiva.

A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto – uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U.S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou – e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também – não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.

Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louco feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços de agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição de menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de ‘Tangerine-Girl’. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus.

Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele ‘Tangerine-Girl’. Seria ela? Sim, decerto... e a aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura.  Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer ‘a hora depois do meio-dia’.

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho – e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes de escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel se passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão – até parecia manobra militar –, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.

E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado – ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado – nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais ‘ele’ fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...

Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base – só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão da mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:

– Desculpem... houve engano... um engano...

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos – ou às vezes apanhados pelos moleques do sítio.

(Rachel de Queiroz, A Casa do Morro Branco)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Contemporâneos do Clã – Rachel de Queiróz

Além dos grandes nomes do conto cearense surgidos com o Grupo Clã, se destacaram no cultivo da narrativa curta no Ceará outros escritores nascidos nos primeiros anos do século XX ou que despontaram durante o período de ouro daquela “agremiação”, sem a ela pertencerem.

Em 1965 se editou Uma Antologia do Conto Cearense, precedido do famoso ensaio de Braga Montenegro “Evolução e natureza do conto cearense”, publicado na revista Clã nº 12 de fevereiro de 1952. Não se sabe quem organizou a antologia, se o próprio Braga, se Artur Eduardo Benevcides, se ambos, se outro. O certo é que fazem parte dela quatro novos contistas (José Maia, Juarez Barroso, Margarida Saboia de Carvalho e Sinval Sá), ao lado dos mais importantes nomes do Clã, como os mencionados Artur e Braga, Eduardo Campos, Fran Martins, João Clímaco Bezerra, Lúcia Fernandes Martins, Milton Dias e Moreira Campos. José Maia teria um conjunto de narrativas curtas intitulado A Noite a Nudez. De Juarez Barroso é dito que figurou no Panorama do Novo Conto Brasileiro, 1964, organizado por Esdras do Nascimento, e “tem pronto o livro Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal”, publicado anos depois. De Margarida Saboia se diz que publicou crônicas, contos e artigos no jornal Diário do Povo, que circulou de 1947 a 1961. Estreou em 1964 com um livro de crônicas. Preparava o segundo volume de contos. De Sinval Sá (paraibano) é dito que em 1959 “reuniu em livro alguns contos publicados em Clã e na imprensa.”

Longe do Ceará, alguns escritores cearenses conseguiram projeção nacional, não como contistas, mas como romancistas, poetas e cronistas. É o caso de Rachel de Queiroz (1910), um dos nomes mais conhecidos da Literatura Brasileira. Seu livro O Brasileiro Perplexo (1962) aparece na análise de Braga Montenegro no ensaio muitas vezes aqui mencionado. Entretanto, seus contos se misturam às crônicas e não sobrepujam os romances.

Um que se dedicou mais ao conto é Caio Porfírio Carneiro (1928), talvez o escritor mais vocacionado para a composição ficcional curta no Ceará, depois de Moreira Campos. Sua estreia em livro de contos é de 1961, com Trapiá.

Juarez Barroso (1934), falecido muito cedo, deixou dois volumes de contos e um romance. A publicação do primeiro livro de contos ocorreu somente em 1969.

Outros escritores importantes desse período que também se dedicaram à narrativa breve são Gerardo Mello Mourão (1917), que se dedidou ao poema e ao romance e somente em 1979 apresentou o livro de contos Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas; José Alcides Pinto (1923), que estreou no gênero conto, em livro, em 1965, com Editor de Insônia; e Moacir C. Lopes (1927) – outro que, embora veterano das letras, apareceu como contista muito tarde, em 1995, com O Navio Morto e Outras Tentações do Mar.
 
Rachel de Queiroz

Rachel de Queiroz (Fortaleza, 1910 - Rio de Janeiro, 2003) estreou em 1930, com o romance O Quinze (“Prêmio Graça Aranha”). Em 1932 publicou João Miguel. Seguiram-se, em 1937, Caminho de Pedra; em 1939, Três Marias (“Prêmio Felipe d´Oliveira”); em 1950, O Galo de Ouro; e em 1975, Dora, Doralina. Colaborou por muito tempo no Diário de Notícias, nas revistas O Cruzeiro e Manchete e outros órgãos. Publicou várias coletâneas de crônicas e escreveu peças de teatro. Em 1992 editou o último romance, Memorial de Maria Moura. De sua vasta obra se destacam dois livros que contém contos mesclados com crônicas: O Brasileiro Perplexo (Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963) e A Casa do Moro Branco (São Paulo: Ed. Siciliano, 1999). Publicou mais os seguintes volumes de crônicas e, em meio a elas, alguns contos: A donzela e a moura torta (1948); 100 Crônicas escolhidas (1958); O caçador de tatu (1967); As menininhas e outras crônicas (1976); O jogador de sinuca e mais historinhas (1980); Mapinguari (1964); As terras ásperas (1993); O homem e o tempo (74 crônicas escolhidas); A longa vida que já vivemos; Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas; Cenas brasileiras. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Traduziu mais de quarenta obras. Traduções para o alemão, o francês, o inglês, o japonês. Diversos prêmios, condecorações e títulos.

Quando publicou, em 1965, o famoso ensaio “Evolução e Natureza do Conto Cearense”, Braga Montenegro fez a seguinte observação: “‘Monólogo’, ‘Romance’, ‘Luisinha, a Manicura’ e mais um punhado de contos a ser retirado em meio a uma avalanche de crônicas, notadamente em O Brasileiro Perplexo (1963), constituem a limitada bagagem de Rachel de Queiroz. Entretanto, a escassez não insinua a inaptidão. Rachel de Queiroz, se quisesse, seria contista na mesma altura por que é romancista, e até não há exagero em afirmar-se que poucas de suas páginas superam a humanidade, a contagiante ternura, a discreta beleza de ‘Monólogo’”.

No volume A Casa do Morro Branco, catalogado como crônicas, observa-se com nitidez a presença da contista.

Na verdade, o livro é composto de 13 contos ou narrativas curtas e um ensaio sobre a Soberba ou o Leviatã. Nas 13 histórias o espaço geográfico da ação quase nunca se repete. Em “Ma-Hôre” o drama se inicia no mar de um planeta desconhecido e, em seguida, no interior de um navio espacial. Em “Natal no Paraguai”, como o título indica, a ação se desenrola naquele país. “O mato era ralo; mas visto do chão parecia fechado” (...). O protagonista, um soldado brasileiro, se achava caído no chão, em algum lugar do Paraguai. “Não sabia onde estava. Paraguai, era. Léguas e léguas, Paraguai adentro.”

Em “A Casa do Morro Branco” os episódios ocorrem numa casa (e seus arredores) situada num morro “num desses ricos estados do Brasil adentro”, possivelmente São Paulo: “A casa caiada, cercada de alpendres, é tão antiga que certa gente pretende que ela vem dos tempos do Anhanguera.” O primeiro protagonista é fugido de Pernambuco, por crime político, ao tempo da Confederação do Equador. Em “Os dois bonitos e os dois feios” a ação se desenvolve no sertão. Não há nenhuma referência a localidades apontadas em mapas. Sabe-se apenas que os dois heróis da história “eram vaqueiros”, “campeiros da mesma fazenda”. É o sertão nordestino: novilhas, bois, cavalos, mulungus, cumarus, imburanas, veredas. Em “Isabel” as ações se dão no Ceará, “numa capoeira deserta, na seca ribeira do Sitiá”, proximidades de Quixadá. Os personagens vivem numa terra pedregosa. Isabel e o marido viviam de um “roçado pequeno, quase no quintal da casa”. Ela criava galinhas, ele “ganhava uns vinténs no corte de lenha”. Outro conto ambientado no sertão do  Ceará é “Cabeça-Rosilha”, nas fazendas Junco e Califórnia. História de touros bons de briga. E ainda no Ceará, na cidade de Aroeiras, se desenrola a narrativa intitulada “O telefone”. Um dos personagens tem casa na praça da Matriz, “com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão”, típica casa dos ricos nas pequenas cidades do interior nordestino nos séculos XIX e XX.

Em “O vendedor de ovos” o episódio é narrado numa delegacia de polícia de cidade pequena. A trama, porém, ocorre nas ruas. O personagem Anjinho vive “pelos trens, comprando ovo aqui, vendendo ovo na cidade.” Os personagens de “O jogador de sinuca” participam de drama na cidade mineira de Lafaiete, mais precisamente no salão do Bar Campestre, onde disputam uma partida de sinuca.

Em “Vozes d’África” os personagens vivem “isolados, como num sertão longínquo”, no Estado do Rio de Janeiro. Moram numa casa de taipa com telhado de sapé. Uma comunidade de negros. Em “Cremilda e o fantasma” o drama se desenrola numa cidade grande (Rio de Janeiro?) ou, mais especificamente, numa mansão, “trabalho de mestre-de-obras português, portais de cantaria, varandim, sacadas de ferro batido, soalho de acapu e amarelo e até vitrais de cores nos janelões”. Também no Rio de Janeiro se desenvolvem as ações de “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca-Rua”. O protagonista morava no Morro do Bugue-Iúgue e vendia diamba a um motorista de caminhão que tinha ponto no Campo de São Cristóvão.

Em “Tangerine-Girl” não há referência a nenhuma localidade específica. A narradora menciona a casa da protagonista, localizada “a algumas centenas de metros” da “base aérea dos soldados americanos”. A garota é brasileira, posto que “pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa”, a fim de poder entender as mensagens dos marinheiros estrangeiros.

Os dramas dos contos de A Casa do Morro Branco abordam os mais variados temas. Ma-Hôre, o homúnculo da raça dos Zira-Nura, “dois palmos de estatura”, se vê diante de quatro gigantes humanos, numa nave espacial avariada. A história pode ser lida como ficção científica, mas também como mensagem aos exploradores do espaço sideral, sempre certos de que são seres superiores. Ma-Hôre é visto como “anão intruso”, “pequeno humanoide”. No entanto, acaba matando os astronautas e tripulando a nave, “na marcha de regresso à terra dos Zira-Nura”. Os heróis humanos são vítimas de um minúsculo ser de outro planeta.

A morte também está presente em “Natal no Paraguai”. E também a “vingança” do inimigo do suposto herói, no caso o soldado brasileiro. O tempo histórico aqui é o da Guerra do Paraguai, a do “tirano López” e de Pedro II, “imperador brasileiro”. Rachel utiliza na narração a mistura de falas: ora do narrador onisciente, ora do protagonista, em monólogo interior. A cena final (o surgimento de dois meninos paraguaios), até o desfecho (a morte do soldado brasileiro), é magnífica enquanto narração. Outra vingança é de Isabel, no conto que leva o seu nome. O marido vivia bêbado, a roncar na cama feita de “quatro forquilhas de palmo e meio de altura, dois caibros fazendo as barras e a estiva de varas servindo de enxerga”. Isabel vivia de “costas magoadas”, de tanto apanhar do marido: (...) “enrolou a mulher com o relho, que sibilou no ar, com um silvo de cobra”. A cena da morte do homem é de um realismo alucinante. São quase três páginas de narração: “Esteve algum tempo a olhar a criatura.” Segue-se a cena em que ela ajeita na rede o corpo dormido do homem. “Isabel tirou a agulha que enfiara no peito do casaco. E rapidamente costurou uma contra a outra, as duas beiradas da rede” (...). Finalmente “malhou a cabeça que a rede envolvia e o pilão amparava por baixo.” Dá-se a primeira pancada. O corpo se imobiliza. Mesmo assim “Isabel continuou batendo, batendo ritmicamente, até perder a força no braço.”

Em alguns contos a escritora se serve da sua vocação de cronista e vez por outra se imiscui na história. Em “A Casa do Morro Branco” é assim: “Só conheço o lugar de vista.” Ou ao dizer “nós do Nordeste”. A cronista também se mostra em “Os dois bonitos e os dois feios”. A narrativa se inicia com uma longa digressão sobre o amor: “Nunca se sabe direito a razão de um amor.” No segundo parágrafo anuncia: “O caso que vou contar” (...). E mais ainda aqui: “nós mulheres estamos habituadas” (...). Em “Cremilda e o fantasma” a narradora-escritora não se contém: “sei que pela manhã viu-se” (...). Ou: “se me permitem dizer.” E ainda: “esqueci de contar que em vida o moço” (...). Em “O jogador de sinuca” a cronista reaparece logo no início da narrativa, a tecer loas às cidades históricas de Minas Gerais. E no meio da narração: “nunca vi ninguém produzir tal impressão” (...). Em “Tangerine Girl” a narradora põe a língua de fora no meio da narração: “Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete.” E em “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca-Rua”, na primeira frase: “Esta história é um pouco comprida e complicada.” No início da segunda parte do conto pergunta ao leitor: “Já falei que o nosso amigo se chamava Henrique?” Em “Cabeça-Rosilha” a narradora escreve: “ainda me lembro”. Mais adiante esclarece ao leitor que a fazenda Califórnia “era de minha avó”. Nada disso, porém, impede que denominemos de contos as histórias deste livro, exceção feita ao “ensaio” intitulado “A presença de Leviatã”.

O tempo se dilata por anos e anos em “A Casa do Morro Branco”, dividida em três partes e três tempos. Na primeira, “O avô”, é mencionado o ano de 1825, data da chegada de Chico Aruéte ao Morro Branco. Na segunda, “O filho”, “o vigário se saiu com um relaxo em latim”. Na terceira, “O neto”, apareceu “um bando de cavaleiros desconhecidos, que se diziam revoltosos da Coluna Prestes.” No mais das vezes, no entanto, o episódio ou os episódios decorrem num restrito lapso de tempo, como em “O vendedor de ovos” – apenas o tempo de um curto interrogatório numa delegacia de polícia. Em “Cremilda e o fantasma” o episódio central é narrado após uma série de delongas, até que “alguns anos atrás” “dera-se um crime impressionante.” Narrados o crime (a morte de Armando, “um moço solteiro, herdeiro universal da avó”) e suas consequências, são “passados tempos”, o personagem chamado de “o velho” ou “o apóstolo” ou “o pai de Cremilda” passa a habitar a casa onde ocorrera a morte do rapaz. “Passados os primeiros dias” (...), “em certa manhã da segunda semana”, “Armando aparecera”. Inicia-se o episódio principal, que decorre em dias e dias, depois em meses e meses, até o desfecho, com o parto de Cremilda: o menino “nasceu morto”, porque filho do fantasma de Armando.

Além desta história de espiritismo, Rachel de Queiroz dedica outro conto à religião, o de Exu. O aparecimento de “um homem morto na esquina do Tenaro” atrai curiosos e a polícia. A narradora conta fases da vida do morto, o Henrique, ou o Rico, desde quando cultivava um roçadinho de diamba em Alagoas, ao tempo do governo de Arnon de Melo. De plantador passa a consumidor ou usuário. Além disso, adota a magia negra e se transforma em cavalo de Exu. Ao mexer num despacho de outro Exu: “Baixou a mão, revolveu a farofa com o dedo, atirou longe uma moeda, sonâmbulo, sonâmbulo de todo. Apanhou o charuto, que chegou aos lábios, mas soltou antes de morder. Por fim pegou na garrafa, tirou a chapinha nos dentes – imagine que força de transe – e foi tacando o marafo na boca.” E a seguir principia a morrer, até “cair de borco por cima do despacho. Morto.”

Tirante o extraterrestre Ma-Hôre, os personagens de Rachel de Queiroz são tipos sertanejos, urbanos, metropolitanos de um Brasil atrasado (em oposição a globalizado), mas culturalmente rico, mesmo quando essa riqueza se manifesta em ardis espiritistas (fantasmáticos) ou quimbandistas. Esses tipos comuns da gente brasileira nada têm de caricatural, mesmo em contos em que a sátira ou o cômico se manifestam. Enfim, são personagens cujos nomes podem figurar nas galerias mais requintadas da arte de contar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel) (Sonetos Escolhidos 5)

NÓS E O PLANETA
-
Nascemos num oceano de incertezas,
São vidas sobre vidas, muitas vidas.
Que no combate até desconhecemos
Se são amigos nossos ou inimigos.

A ciência desvenda-nos perigos
De vírus a bactérias, faz vacinas
Contra os males fatais que nos imolam,
Pois somos nós os monstros. E sorrimos.

Também, com relação ao universo,
Somos futuros vírus já dispersos,
Na Terra, onde seremos os seus réus.

Fazemos, desta casa azul, um lixo...
Pensando (ou sem pensar) que com tudo isto
Estamos, corpo e alma, indo pro céu.
-
JANEIRO
-
Janeiro, enfim, colhe a primeira folha
Já pelas frinchas da manhã que vem,
Não sabe o que virá, não tem escolha,
Dirá amanhã: a morte, o mal, o bem...

Não olha, com olhos doces, para trás,
Nem sequer se arrepende de algum erro.
Mas vai, segue, danado como um perro,
Puxando o ano em tudo quanto faz.

Na alvorada, sozinho, só consigo,
Sem fama ou gloriolas pra contar,
Nascido forte, enfrentará o perigo.

Mas agora, na calma de quem ama,
Vendo, do dia, a clara, a acesa chama,
Confia e toca as bolas pra rolar.
-
GÊMEOS
-
Razão e sentimento – a contradança,
da natureza, em seio feminino,
onde nascem saber, suor, destino,
vida, tristeza, glória... o que se alcança.

Porém, se um prato pende da balança,
se pesa mais razão que sentimento,
de Deus se quebra todo o pensamento
e o homem perde o estribo da esperança.

Sem os tons, sem o ritmo dessa dança,
é quando a vida se transforma, ou cansa,
é quando a dor é luto... E morre a paz.

Inseparáveis dons, duplas crianças
gêmeas no corpo, na alma e nas heranças,
se se separam, morrem. Nunca mais!
-
CONTRA A TEORIA
-
Meus mestres do fazer por sentimento
me põem guardas contra as teorias,
de religiões, partidos, guerras frias,
quentes, mornas, e deuses...Que tormento!

Lendo o verbo, seus versos em poemas,
vindos de longe mas chegados cedo,
sem ter medo de ser, para que medo?
Humanidade, amor são nossos temas!

No mundo velho, o tudo é o tecer novo,
o melhor vem de nós e vem do povo,
porque, dizendo assim é que não minto.

E eu, sem acreditar em tanto aleijo,
descreio nas verdades que não vejo,
confio ao coração o que amo e sinto.
-
A VOZ DO FETO
-
Mamãe querida, tenha fé em Deus,
Não tome esse remédio que envenena,
Ainda sou pessoinha tão pequena,
Não me troque por vãos prazeres seus.

Respeite: a minha vida é sua vida,
Você pode ser boa e dar carinho,
Quando aí eu chegar com meu chorinho
Você se sentirá bem comovida.

Quando eu nascer serei a recompensa.
Ai, sou pequeno! E como defender-me?
Posso saber por que em mim não pensa?

Quero dormir, não ser expulso agora,
Não me possua qual se fosse um verme.
Só Deus nos diga: “Já chegou a hora!”
-
SUTILEZAS DO PRETO
-
Ninguém falou nem me escreveu ainda
do preto – as sutilezas e o sentido.
Serão verbais por existir o branco?
Ou o homem-natureza contradiz-se?

Da beleza e fealdade, qual o espírito?
A luz que vem do sol nos ilumina
O dia. E, à noite, então, por que esconder,
Dentro do escuro, as curvas e as esquinas?

Ser linhas sem contorno? Nesta vida,
Só existe a luz porque dois olhos temos,,
Assim, as manchas negras nunca vistas.

Furos de negro, atrás dos olhos, vejam
O que há no mundo que nós nem sonhamos,
E o que perdemos na hora de nascer.
-
A LÍNGUA
-
A língua portuguesa que falamos
palmilhou, no Brasil, ínvios caminhos,
ganhando mais bondades e carinhos,
debaixo deste sol que muito amamos.

Junto à mãe preta e junto à índia em flor,
o português saudoso em seu transporte,
aqui chegado do hemisfério norte,
pega brilho na voz, nos olhos, cor.

Selvagem, forte, dúctil, na verdade,
rica e serena, triste na saudade,
franca nas decisões, porém com calma.

A língua portuguesa é, docemente,
a minha voz (e a de milhões de gente)
como parte profunda de minh’alma.
-
A COISA BRABA
-
Quando acordo e me vejo pelo espelho
do meu quarto, a janela inda fechada,
nada do que já fui, nada do velho
me vem à frente. Onde perdi a estrada?

Sinto-me preso a um mundo que desaba,
sem graça, sem amor, sem segurança.
Não sei de onde é que vem a coisa braba,
se é por defeito meu, se é por vingança.

Tudo foge de mim. Onde está o homem?
O tórax sufocado pelo abdômen
e é tudo que me sobra do “eu” aflito.

Tento entender meus males, fecho o senho,
mas não sei por que diabos me contenho,
sem forças de gritar...Retenho o grito.
-
SONETOS BRANCOS (1)
-
Andei por outros ritmos altos, brancos,
No tempo em que as palavras me mordiam,
Porém se foram com meus devaneios...
E a vida me agarrou pelos cabelos.

Por rosto e carne, amor fui e voltei
Ao pecado do amor, na escuridão
Dos dias claros, fosse maio ou agosto,
Fosse praia ou inverno, vento ou calma.

O amor negou-me. Mas por que negar
Tranquilidade, o bom humor, a luz
Para vencer o que outros já venceram?

E eu reneguei-o então, só por vaidade,
Fui sozinho e mais triste que sozinho,
E me fiz, me desfiz em toda parte.
-
SONETOS BRANCOS (2)
-
Se sofri, se gozei, ninguém me aborda,
Que ninguém quer saber do amor alheio,
Nem do sabor dos beijos que, não dados,
Foram belas fatias noutros beijos.

O que vale é o desejo mais intenso,
Ou a paixão invisível que nos cega.
Que o mundo diga: “amigo, tu és tolo”,

Ninguém quer ter a morte sem peleja.
Das faltas, a lembrança viva e forte,
De vez em quando, rompe meus lençóis,

De verdade ou na pura indiferença.
Tantas vezes no sonho é que se vive,
Inventa e reinventa o ser feliz,
Mesmo depois de estarmos acordados.
-
SONETOS BRANCOS (3)
-
Branco é o linho e branca é a pureza,
E se eu sou branco, as cores não me atingem,
Negra, amarela, verde... No meu baile,
Todas dançam com a mesma sutileza.

Por dançar mal, conheço, sou levado,
No vai-e-vem das buscas atrasadas.
Quantas vezes não minto, contrariando,
Porque, no descansar, o gozo é ver-se!

Nada melhor que um riso feiticeiro,
Mesmo sem ter certeza pra onde vai...
Que alegria a pesar-lhe na cabeça!

Melhor nem pensar nisto e antegozar
O céu do amor num leito quente e fofo
Pondo alvorada em seus amanheceres.

Fonte:
O Autor

Ialmar Pio Schneider (Caderno de Trovas)


Acabou-se da memória
o desejo de te amar,
mas ninguém me rouba a glória
de em meus versos te cantar!...
* * *
A desculpa não aceites
de que o relógio parou,
pois na cabeça os enfeites
foi ela que te botou.
* * *
Alta noite, escrevo versos,
sentindo a falta de alguém;
quem me dera que dispersos,
ela os ouvisse também...
* * *
Amiga de muitos anos,
companheira de verdade,
enfrentando os desenganos,
ela se chama: saudade.
* * *
Amor platônico, medo
de não ser correspondido;
quando alguém ama em segredo,
depois fica arrependido…
* * *
Andei por árduo caminho
no qual não quero andar mais;
e voltei para o meu ninho
como voltam os pardais...
* * *
Anoitece lentamente
quando medito sozinho
e me quedo descontente
distante do teu carinho.
* * *
A noite desceu aos poucos
e no céu surgiu a lua
para os boêmios e loucos
que vagam a esmo na rua.
* * *
Ao tentar criar poemas
para contar minha história,
me deparei com dilemas
na fase contraditória...
* * *
Aquela que um dia fez
meu coração palpitar,
hoje não saiba, talvez,
desta saudade sem par.
* * *
Às vezes me contradigo
sem querer, naturalmente,
pois corro sempre o perigo
de te amar inutilmente.
* * *
A trova que canto agora
tem sabor de nostalgia,
por alguém que foi embora
quando mais bem a queria.
* * *
Busco na trova a harmonia
para equilibrar a vida;
é o resumo da poesia
em quatro linhas contida.
* * *
Cada paixão que me invade
surge do amor que não tive;
e representa a saudade
de quem neste mundo vive.
* * *
Chega em casa quando quer,
mas o dia já raiou,
e vai dizendo à mulher:
- O meu relógio parou!
* * *
Como tarda anoitecer
nestes dias de verão,
quanto é difícil viver
mergulhado em solidão.
* * *
Contigo no pensamento,
eu vou compondo esta trova,
porque neste sentimento
minha paixão se renova.
* * *
Coração aventureiro,
vive sonhando um amor,
que pode ser verdadeiro,
infeliz ou enganador.
* * *
Cresce a planta no jardim
por força da natureza;
e cresce dentro de mim
o amor à tua beleza.
* * *
Desejo fazer somente
o que deveras me apraz,
levando os sonhos em frente,
deixando as mágoas pra trás.
* * *
De manhã cedo levanto
e ao Senhor dos Céus imploro,
que me ajude quando canto
e me console se choro.
* * *
Desejo que o nosso amor
nunca seja de mentira;
por isto sou trovador
romântico, ao som da lira.
* * *
De tudo que amo e venero,
vem em primeiro lugar,
teu beijo doce e sincero
que me faz revigorar.
* * *
Devo te dizer cantando
para que escutes sorrindo
e assim vás acreditando
que eu não esteja fingindo...
* * *
Dos versos soltos que faço,
um deles tem mais calor;
porque lembra teu abraço
e nossos beijos de amor..
* * *
Duas coisas levo medo,...
faço pouco e até duvido:
mulher que guarde segredo,
livro ao dono devolvido!
* * *
Eis que chega a primavera,
trazendo-me novo alento,
vivo o “suspense” da espera
de te encontrar num momento…
* * *
Escrevo trovas sentidas
num desabafo de dor:
são as ilusões perdidas
de certo frustrado amor.
* * *
Esse amor que tu me deste
foi efêmero, fugaz...
Por isto a tristeza investe,
arrebatando-me a paz.
* * *
Este amor que não resiste
às tentações deste mundo,
se não fosse assim tão triste,
pudera ser mais profundo.
* * *
Estivemos frente a frente,
mas nenhum de nós sorriu;
parecias diferente
que me deixaste arredio.
* * *
És uma estrela tão alta,
brilhando no firmamento,
que a minha canção exalta
no calor do sentimento.
* * *
É tão tarde... a madrugada
daqui a pouco vai raiar;
e pensando em minha amada
quero dormir e sonhar...
* * *
Eu agora não me espanto
e nem me causa pavor,
o terrível desencanto
que sofri por teu amor.
* * *
Eu caminho lentamente
pelas areias do mar,
debaixo do sol ardente
que descamba devagar...
* * *
Eu fui ficando distante
e vivendo da saudade,
pois desejo, doravante,
somente a sinceridade...
* * *
Eu fui te ver certo dia
e apenas me confundiste;
ia cheio de alegria
e voltei magoado e triste.
* * *
Eu fui vivendo meus dias,
procurando te olvidar,
e quantas horas vazias
se arrastavam devagar...
* * *
Eu já vou me convencendo
que nada sei pra ensinar;
amei tanto e não compreendo
o que significa amar.
* * *
Eu levo a vida cantando
minhas trovas e canções;
só assim vou afastando
mágoas e desilusões.
* * *
Eu não sou navegador,
mas enfrento o mar da vida,
por causa do nosso amor
que não teve despedida.
* * *
Eu te esperei tantos anos,
até não conseguir mais
aguentar os desenganos
que o teu desprezo me traz.
* * *
Eu te quis com tanto afã,
não pude te conquistar;
pela tentativa vã,
peço perdão por te amar...
* * *
Faço de conta que penso
e me concentro demais;
todavia me convenço
que não me encontro jamais...
* * *
Faço versos para alguém
que surgiu em minha vida
e agora com seu desdém
me deixou a alma ferida.
* * *
Faze da trova teu lema
com grande satisfação
e terás em cada tema
um motivo de emoção.
* * *
Fiquei contente ao saber
que realizaste teu sonho,
pois fazes por merecer
um futuro assaz risonho.
* * *
Fora bom que tu partisses
para nunca mais voltar;
assim talvez conseguisses
que eu pudesse te olvidar...
* * *
Foste a morena brejeira
que surgiu em meu amor
como o botão da roseira
que agora não dá mais flor.
* * *
Fui feliz antigamente,
quando era um pobre menino;
e só vivia o presente,
sem me importar com o destino.
* * *
Hoje não tenho alegria
por sentir esta saudade
que nasce de quem fazia
a minha felicidade.
* * *
Iremos os dois sozinhos
em meio da multidão,
por diferentes caminhos
que jamais se encontrarão.
* * *
Já não canto por desgosto
e nem por felicidade,
mas, à tardinha, ao sol-posto,
eu me quedo na saudade...
* * *
Mesmo depois de velhinho,
se Deus me der esta graça,
quero sentir o carinho
do amor total que não passa...
* * *
Meu amor foi o mais louco,
pois nasceu de uma esperança,
que não vingou nem um pouco
e transformou-se em lembrança.
* * *
Meu amor simples em tudo
não te convenceu bastante,
porque permaneço mudo
ao te ver tão deslumbrante.
* * *
Meu coração se consterna
olhando a noite estrelada;
no mundo quem me governa
são as carícias da amada.
* * *
Meu coração se enternece
quando vejo os passarinhos,
no instante que a noite desce,
retornarem aos seus ninhos.
* * *
Meu coração treme ainda
ao lembrar-te com saudade,
porque por seres tão linda
eras a felicidade!
* * *
Minhas mágoas já são tantas
que não posso descrevê-las;
é como se pelas tantas
fosse contar as estrelas...
* * *
Nada te digo nem quero
que alguma coisa me digas;
se às vezes me desespero
eu me desfaço em cantigas...
* * *
Não estás junto comigo
nestes momentos adversos;
no entanto, pra meu castigo,
vives inteira em meus versos!
* * *
Não façamos desta vida
um motivo de revolta;
nesta estrada sem saída
é tão difícil a volta.
* * *
Não foram horas perdidas
as que passei junto a ti;
são lembranças bem vividas
que nunca mais esqueci...
* * *
Não há mentira mais louca
da que sai do coração,
pois a que nasce da boca
quase sempre é pretensão.
* * *
Não há poder que consiga
me demover da vontade,
de tê-la só como amiga
quando me assalta a saudade.
* * *
Não me iludem teus olhares
e nem tampouco teus risos:
são expansões singulares
ou desejos indecisos ?!
* * *
Não te desprezo, nem quero
o teu desprezo, igualmente;
se o amor não é sincero
procuro esquecer, somente...
* * *
Não vais chorar, certamente,
ao saberes que te quero
e creias, porém, somente
que tudo... tudo é sincero.
* * *
Nesta manhã radiante
de sol claro e resplendente,
por seres tão inconstante,
me deixas tão descontente...
* * *
Nosso amor já teve fim,
pois não esteve ao alcance
o que você quis de mim
pra ter sucesso o romance.
* * *
O amor à primeira vista
visitou meu coração,
mas no instante da conquista
vi que tudo foi em vão.
* * *
O amor de quem não desiste,
seja forte, seja brando,
há de permanecer triste
que nem flor que vai murchando.
* * *
O amor platônico vive
em minhas trovas também;
foi um que uma vez eu tive
e não me fez muito bem.
* * *
O amor tem prazer e pranto,
também mágoas e carinhos;
pois assim sendo, portanto,
não há rosas sem espinhos!
* * *
O calor convida ao mar
aonde o meu desejo vai,
preciso te procurar
quando a tarde aos poucos cai.
* * *
O que me causa tristeza
não é saber que não me amas,
é tão-somente a certeza
que sofres e não reclamas !
* * *
O tempo que tudo apaga
só deixa recordação,
que nem uma viva chaga
sangrando no coração.
* * *
Para esquecer-te procuro
me envolver na multidão,
mas não me sinto seguro
e retorno à solidão.
* * *
Para sofrer tanto assim
fora melhor não revê-la;
está tão longe de mim
como se fosse uma estrela.
* * *
Para te amar me concentro,
esperando chegar a hora;
pois quem não ama por dentro,
não adianta amar por fora.
* * *
Para tê-la novamente
andei por muitos caminhos
e retornei descontente
sem conseguir seus carinhos...
* * *
Para viver com carinho
procurei amar alguém;
hoje sinto que sozinho
eu vivia muito bem.
* * *
Pelo amor sempre sonhado
e nunca correspondido,
vou cantar um verso alado
pra que chegue ao teu ouvido.
* * *
Pelos caminhos da vida
fui deixando para trás,
como em cada despedida
um sonho que se desfaz.
* * *
Penso em ti quando a saudade
me visita de surpresa
e na minha soledade
recordo a tua beleza.
* * *
Perambulando sozinho
pelas ruas da cidade,
procuro achar o caminho
que leva à felicidade.
* * *
Perdido em divagações
sento à beira do caminho,
como se as recordações
não me deixassem sozinho.
* * *
Perto de ti me convenço
que nada posso fazer,
sem empregar o bom senso
para afinal te esquecer.
* * *
Por mais que tente esquecê-la,
não consigo meu intento,
sempre será qual estrela,
brilhando no firmamento.
* * *
Posso perder-te... que importa
se não queres me aceitar...
Há muito tempo está morta
a vontade de te amar.
* * *
Proclamas que és minha amiga...
ou foges da realidade ?!
Não te importas que eu te diga
desejar mais que amizade ?!
* * *
Quando te vejo sorrindo,
não consigo disfarçar,
este desespero infindo
de não poder te beijar.
* * *
Quantos amores têm fim
por falta de persistência,
não concretizando assim
a base da convivência.
* * *
Quem há de saber do enredo
de um romance fracassado,
se tudo fica em segredo
e nenhum quer ser culpado?!
* * *
Quem quiser ser trovador,
seja primeiro aprendiz,
mesmo em matéria de amor
se aprende pra ser feliz.
* * *
Roubei-lhe um beijo, ao passar
ao meu lado, sorridente;
e lembrando seu olhar,
de noite, dormi contente...
* * *
Saudade!... palavra viva
do que ficou no passado;
és o bem que nos cativa
para sempre ser lembrado!
* * *
Se amar causa sofrimento;
é preciso suportar...
pois não há pior tormento
do que sofrer sem amar...
* * *
Se amei e fui preterido,
pouco me importa até quando,
pois não me dou por vencido
e continuo te amando.
* * *
Se eu não sentisse saudade
daquela que tanto quis,
talvez a felicidade
não me fizesse infeliz.
* * *
Segue teu rumo que eu sigo
o meu destino também,
se não pude andar contigo
vou procurar outro alguém...
* * *
Segura o pouco que tens
e amanhã podes ter mais,
porque de todos teus bens
preponderam ideais.
* * *
Se leres os versos soltos
neste livro de lamentos,
que não te assaltem revoltos,
infelizes sentimentos...
* * *
Sempre existe na existência
pra nos fazer infeliz,
um amor sem convivência
que a gente esperou e quis.
* * *
Sendo um simples aprendiz
de saber da trova o enredo,
sinto que não sou feliz
e me condeno em segredo.
* * *
Se o amor não tem futuro
e vive só da esperança,
é qual um tiro no escuro
e sem querer você “dança”.
* * *
Se pudesses compreender
a paixão que me enlouquece,
nunca mais o teu viver
uma só mágoa tivesse...
* * *
Se tens amor e resistes
às ligações perigosas,
teus dias não serão tristes
e viverás entre rosas...
* * *
Se tens amor não escondas,
muito sofri por contê-los;
ele surge como as ondas
e foge ao não ter desvelo...
* * *
Se tens amor não o escondas,
proclame-o para quem é;
as paixões são como as ondas
que aproveitam a maré.
* * *
Se te querer foi loucura,
eu serei um triste louco,
por te dar tanta fartura
e ter em troca tão pouco.
* * *
Sócrates assim dizia:
“Eu só sei que nada sei.”
E com tal filosofia
eu também responderei.
* * *
Sofro por ti, me atormento
a cada instante que passa;
e neste martírio lento
vou vivendo na desgraça...
* * *
Tenta fazer do teu verso
uma lição de ternura;
então terás do Universo
a mais sublime ventura...
* * *
Trovas de amor e saudade
trazem mil temas diversos,
mas predomina a amizade
nascendo de tantos versos...
* * *
Tudo não passou de um sonho
tão rápido e fugidio;
um pensamento enfadonho
que de nada me serviu.
* * *
Tu me procuras sorrindo
e te recebo contente,
como se fosse surgindo
um novo amor de repente!
* * *
Tu mereces muito mais
daquilo que posso dar-te,
mas um dia entenderás
que te dei toda minha arte.
* * *
Tudo tem o seu começo
e um fim também há de ter,
mas das dores que conheço
a pior é não te ver...
* * *
Vai-se um amor... outro vem...
e assim se passam os dias.
Os nossos sonhos também
são de mágoas e alegrias.
* * *
Vida de amor e saudade,
que junto com nossos sonhos,
também traz a realidade
e momentos enfadonhos.
* * *
Vive de amor, se te apraz,
e nunca percas a calma;
porque a verdadeira paz
só se encontra dentro da alma.

Fonte:
O Autor

Ialmar Pio Schneider (1942)

Entrevista realizada virtualmente por José Feldman (PR) com o poeta e trovador Ialmar Pio Schneider (RS), para o blog Pavilhão Literário Singrando Horizontes.
JF: Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou, sua trajetória literária.

Nasci no município de Sertão/RS em 26-08-1942. Filho de Henrique Schneider Filho e dona Amábile Tressino  Schneider, ambos falecidos.

Cursei o primário em minha terra natal na Escola Pio XII das Irmãs Franciscanas onde diplomei-me inclusive em datilografia com 13 anos de idade. Ingressei no Ginásio Cristo Rei dos Irmãos Maristas em Getúlio Vargas/RS que conclui após 4 anos, em 1959, período em que iniciei a compor poesias. Daí transferi-me para Passo Fundo/RS onde ingressei no Colégio N. Sra. da Conceição dos Irmãos Maristas cursando então simultaneamente o Curso Científico e a Escola Técnica de Contabilidade por um ano e meio, continuando a escrever poesias inclusive gauchescas, algumas das quais foram publicadas no Jornal do Dia, de Porto Alegre, até que um concurso público para o Banco do Brasil S.A. me levou a Cruz Alta/RS, onde assumi em 1961, poucos dias antes de completar 19 anos de idade.

Posteriormente integrei o corpo de funcionários da agência de Soledade/RS, que estava em Instalação, o que ocorreu em 1962. Completei o curso em Técnico de Contabilidade em 1962, permanecendo por 5 anos na cidade, onde exerci o cargo de Fiscal da Carteira Agrícola do Banco até ser transferido para a Metr. Tiradentes do Rio onde não cheguei a tomar posse, tendo feito uma permuta tríplice com outros dois colegas, vindo a assumir em Canoas/RS, em 1967, para logo após um ano se transferir para São Leopoldo/RS em nova permuta com outro colega, onde tencionava tirar o Curso de Direito da Unissinos, o que não se concretizou.

Casei-me em 1968 com Helena Dias Hilário, de Soledade/RS e transferi-me para a Agência Centro do Banco do Brasil S.A de Porto Alegre, em 1969. Residindo em Canoas, nasceu minha filha Ana Cristina Hilário Schneider. Permaneceu por 3 ou 4 anos compondo poesias diversas inclusive a maior parte de seus poemas gauchescos ainda inéditos bem como muitos sonetos então com 30 anos de idade. Resolvi novamente transferir-me de cidade a fim de ficar mais próximo dos meus parentes e os de minha esposa e pleiteei uma permuta, que consegui para a cidade de Passo Fundo, tendo lá permanecido por cerca de 3 anos, ocasião na qual requeri e fui transferido para a agência do Banco em Palmas/ PR, onde residiam minha mãe e irmãos, de cuja remoção desisti pelo motivo de minha esposa ser professora estadual e não ter conseguido aproveitamento naquela cidade. Com dificuldade em adquirir casa de moradia retornei a Canoas voltando a residir e a trabalhar no Banco até que em uma concorrência nacional para fiscal da Carteira Agrícola do Banco fui nomeado para a cidade de Antônio Prado/RS, onde permaneci por 2 anos e meio aproximadamente.

Em 1980, regressei a Canoas onde adquiri um apartamento em que resido até hoje, na rua que leva o nome do grande pintor Pedro Weingartner tendo feito vestibular para a Faculdade de Direito do Instituto Ritter dos Reis, classificado em segundo lugar de que também participou o ilustre jogador de futebol do Internacional Paulo Roberto Falcão, que logo depois transferiu-se para a Itália.

Trabalhando no Banco do Brasil- agência de Canoas e estudando, só consegui formar-me em Direito nas Faculdades Integradas do Instituto Ritter dos Reis em 1990, após 10 anos de curso superior. Enfim, antes tarde do que nunca.

Transferi-me para o CESEC do Banco do Brasil Sete de Setembro em Porto Alegre, onde trabalhei até 1991, tendo completado 30 anos e alguns dias de serviço no Banco quando me aposentei por tempo de serviço.

Por enquanto, resido na cidade de Porto Alegre/RS, no Bairro Tristeza, com uma vista maravilhosa para o Rio Guaíba, em uma janela do qual até um joão-de-barro já fez um ninho há uns dois anos. Como diz o inigualável poeta gauchesco saudoso Jayme Caetano Braun: “Eu até fiquei contente/ Dizem que dás muita sorte !”em seu poema “João Barreiro”.

Atualmente minha filha é casada, ambos advogados, com escritório.

Durante os meses de verão, dezembro até fevereiro, permaneço em Capão da Canoa/ RS, cidade praiana, onde produzo diversas poesias: poemas, sonetos e trovas. Nos últimos dois anos desloquei-me com a família por uns dez dias em final de temporada para a praia de Canavieiras, precisamente Cachoeira do Bom Jesus, em Florianópolis/SC.

Eis em rápidas pinceladas a sucinta biografia rotineira de um poeta menor.

JF: Ialmar, se é poeta menor, então eu nem existo, precisaria um ultra microscópio para me encontrar (risos). Recebeu estímulo na casa da sua infância?

Total estímulo e incentivo inclusive éramos 6 filhos, 4 irmãos e 2 irmãs e nossos pais só tinham como meta o nosso estudo.

JF: Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever.

Muitos livros de poesias: Fagundes Varela, Casemiro de Abreu, romances de Paulo Setúbal, os grandes romances do Cristianismo, trovas de Adelmar Tavares e diversos outros. Mas o romancista que mais me agradou foi Lima Barreto, antes Dostoiewsky, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Cronin, uma infinidade de autores, enfim. Desculpe se não cito todos, nem um por cento talvez.

JF: Teve a influência de alguém para começar a escrever?

Foi naturalmente através das leituras escolares.

JF: Tem Home Page própria (não são consideradas outras que simplesmente tenham trabalhos seus)?

Tenho diversos blogs que podem ser encontrados procurando por IALMAR PIO SCHNEIDER no Google, como http://ialmar.pio.schneider.zip.net/; http://ialmarpioschneider.blogspot.com http://ial123.blog.terra.com.br

JF: Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Nunca pensei nisto. No Brasil acho que só meia dúzia o consegue.

JF: Como começou a tomar gosto pela escrita?

Para conhecer e aprender, pois acho que todo o livro é de auto-ajuda.

JF: Você possui livros?

Fiz a estréia editorial na obra TROVADORES DO RIO GRANDE DO SUL, org. por Nelson Fachinelli, em 1982. Publiquei a obra poética SONETOS E CÂNTICOS DISPERSOS, em 1987. Figuro em outras coletâneas. A última obra, POESIAS ESPARSAS DIVERSAS, de 2000.

JF: Como definiria seu estilo literário?

Eclético para poesia e crônicas também.

JF: Que acha de seus textos: O que representam para si? E para os leitores?

Acho que são a expressão do meu pensamento. A maioria dos leitores dizem gostar.

JF: Qual a sua opinião a respeito da Internet? Tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

Tem contribuído muito e eu considero o mais valioso meio de publicação atual, ainda mais para quem não tem a grande mídia ao seu dispor.

JF: Tem prêmios literários?
Alguns.

JF: Participa de Concursos Literários? Qual sua visão sobre eles? Acha que eles tem “marmelada”?
Participo às vezes. Tenho visto trovas sem nenhum fundamento serem premiadas.

JF: Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um “clic” e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente precisa de algum ambiente especial ?
Surge de repente, não sei de onde nem quando.

JF: Você acredita que para ser poeta ou trovador basta somente exercitar a escrita ou vocação é essencial?

Tudo é essencial, principalmente muita leitura.

JF: No processo de formação do escritor é preciso que ele leia livros de baixa qualidade?

É preciso distinguir.

JF: Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós chega apenas o que a mídia divulga. Na sua opinião que livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

Os clássicos: Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Rui Barbosa. Paulo Setúbal, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Lya Luft e outros. Os bons escritores. A lista é infindável. Poesias de Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e os clássicos também Castro Alves, Fagundes Varela, Alvares de Azevedo, Olavo Bilac, tantos e tantos.

JF: Qual o papel do escritor na sociedade?

Ensinar e divertir também.

JF: Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Há sim. Aqui no sul principalmente a poesia gauchesca, os sonetos românticos. Basta declamar uma poesia atraente todos gostam.

JF: A pessoa por trás do escritor

Um bancário aposentado, um advogado não militante e um diletante em literatura.

JF: O que o choca hoje em dia?

A violência e a falta de saúde pública.

JF: O que lê hoje?

Romances e poesias. Estou curtindo um ócio criativo. Nada de muito profundo.

JF: Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Continuar escrevendo nos blogs e talvez preparar um livro de poemas e poesias gauchescas.

JF: De que forma você vê a cultura popular nos tempos atuais de globalização?

Vai andando aos trancos e barrancos, mas com o andar da carroça as abóboras se ajeitam na caixa.

JF: Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever ?

Ler bastante e escrever mesmo errando.

JF: O que é preciso para ser um bom poeta ou/e trovador?

Muita leitura e perspicácia.

JF: Trovas de sua autoria.

Cada paixão que me invade
surge do amor que não tive;
e representa a saudade
de quem neste mundo vive.

Eu não sou navegador,
mas enfrento o mar da vida,
por causa do nosso amor
que não teve despedida.

Foste a morena brejeira
que surgiu em meu amor
como o botão da roseira
que agora não dá mais flor.

Não foram horas perdidas
as que passei junto a ti;
são lembranças bem vividas
que nunca mais esqueci...

Perambulando sozinho
pelas ruas da cidade,
procuro achar o caminho
que leva à felicidade.

JF: Finalmente, se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos quais seriam?

Boa saúde, meios para continuar vivendo e a felicidade da Humanidade inteira.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 4)

Xô inverno... vá-se o frio...
      volte depressa o calor...
que as rosas já estão no cio,
à espera do beija-flor!
A. A. DE ASSIS – Maringá/PR
-
Repare que nossa alma
rende-se sempre bem mais
por um olhar que se espalma
que por ouvir tristes ais.
AMILTON MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Quero de novo aprender
para depois ensinar
como se deve viver
conjugando o verbo amar.
ANTÔNIO MANOEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
Nem futuro nem presente,
só mesmo o passado impera,
pois não mais que de repente
o que seria já era.
ANTÔNIO ROBERTO – Campos/RJ
-
A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!
ARLINDO TADEU HAGEN – Juiz de Fora/MG
-
O amor ficou no passado...
– Hoje eu sei por que ficou:
o nosso encontro marcado,
o destino desmarcou!
CLENIR NEVES RIBEIRO – Nova Friburgo/RJ
-
Desprezei tua amizade,
queria mais, muito mais!...
Hoje sou nau da saudade,
apodrecendo no cais.
CONCEIÇÃO DE ASSIS – Pouso Alegre/MG
-
Olhei a foto atrevida
de uma cena de nós dois:
Era o retrato da vida,
tão diferente depois!
DELCY CANALLES – Porto Alegre/RS
-
Se “Mãe” não tem com que rime,
não desistas, trovador...
Troca a palavra sublime
pelo sinônimo “Amor”!
DOROTHY JANSSON MORETTI – Sorocaba/SP
-
Amanhece... e eu me agasalho
na mais fria solidão,
porque o sol enxuga o orvalho,
mas minhas lágrimas... não!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – Rio de Janeiro/RJ
-
Orgulho bobo... vaidade...
caprichos do amor sobejo...
Eu, morrendo de saudade,
fingir que nem te desejo!
ELISABETH SOUZA CRUZ – Nova Friburgo/RJ
-
Lembrando o que tu dizias
do amor que tinhas por mim,
eu vi, enquanto partias,
quanto o infinito... tem fim!
ERCY MARQUES DE FARIA - Bauru/SP
-
Meia luz...noite...a vidraça...
a cama... o beijo... e depois...
um brinde... o champanhe... a taça...
o amor... o sonho... nós dois.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS
-
O progresso traz mudanças,
cria fábricas e usinas,
mas se esquece das crianças
que dormem pelas esquinas!
GERSON CÉSAR SOUZA - São Mateus do Sul/PR
-
Meus lábios apaixonados
bebem o orvalho dos teus,
desses teus lábios molhados,
que sonham com os lábios meus!
GISLAINE CANALES – Porto Alegre/RS
-
Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho.
GUTEMBERG ANDRADE – Fortaleza/CE
-
Se no passado ou futuro,
de um homem, tristeza houver,
pode crer que essa tristeza
tem por essência a mulher.
HÉRON PATRÍCIO – São Paulo/SP
-
Saio da luta ferida;
logo depois me refaço...
Volto na dança da vida
com mais certeza em meu passo!
IVONE T. PRADO - Belo Horizonte/MG
-
Há dois mil anos o brilho
de um grande amor sobressai:
– o sacrifício de Um Filho
pelos filhos de Seu Pai!!!
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Floresta amiga, perdoa
o fogo, a serra, a agressão:
a humanidade ainda é boa,
certos homens é que não!
JOÃO FREIRE FILHO - Rio de Janeiro/RJ
-
As tuas rosas vermelhas
levei-as ao meu jardim.
Nunca vi tantas abelhas
voando em torno de mim!
JUDAS ISGOROGOTA – Lagoa da Canoa/AL
-
O sonho que idealizo
tem, na sua intensidade,
o tamanho do sorriso
de quem mata uma saudade.
JOSÉ MESSIAS BRAZ – Juiz de Fora/MG
-
Se a vida pede uma pausa,
       faça isso, por favor,
ou por amor a uma causa,
ou por causa de um amor!
  JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Quem a família coordena
e a sua casa não trai,
quem não tem alma pequena
é um bom modelo de pai.
   LÓLA PRATA – Bragança Paulista/SP
-
O meu amor desmedido,
 sem ter cais para ancorar,
parece um barco perdido...
longe da praia... a vagar...
  MARIA LUA – Nova Friburgo/RJ
-
Com dois cálices de vinho,
na ilusão de “alguém” comigo,
bebo os dois, mas um restinho
finjo que é seu... e prossigo!
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO - Bandeirantes/PR
-
A distância, achando meios
para unir nossas metades,
somou nossos devaneios
e dividiu as saudades!...
MARIA NASCIMENTO – Rio  de Janeiro/RJ
-
No grande páreo da vida,
o amor luta contra o ódio.
Não permita que a corrida
finde sem o amor no pódio.
MIGUEL RUSSOWSKY – Joaçaba/SC
-
Naquele seco torrão
de terra o pobre coitado
só colheu desilusão;
mesmo não tendo plantado!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO – Fortaleza/CE
-
Guarda no olhar a doçura
com que me embalou um dia.
Mãe lembra sempre a figura
e a ternura de Maria.
NILCI GUIMARÃES – Rio de Janeiro/RJ
-
 Planta um beijo em meu jardim,
meu amor, quando te fores,
que ao ver teu beijo florir
murcharão as outras flores!
PEDRO EMÍLIO – São Fidélis/RJ
-
Amor de perdas e danos,
triste contabilidade:
resgate dos desenganos,
sobras de caixa-saudade!
SELMA PATTI SPINELLI – São Paulo/SP
-
No mar da vida, meu barco,
mesmo ao sabor da maré,
tem a esperança por marco
e por farol tem a fé!
THEREZA COSTA VAL – Belo Horizonte/MG
-
Vou dormir porque preciso
com você, mamãe, sonhar,
e sonolenta analiso:
não vou querer acordar!
VÂNIA ENNES – Curitiba/PR
-
Amizade é sã vivência
do bom relacionamento,
e se estrutura na essência
do mais belo sentimento.
VIDAL IDONY STOCKLER – Curitiba/PR
-
Almejo trilhas sem fim,
ornamentadas de rosas!...
Mãe, vais à frente de mim,
cultivando as mais formosas!
WAGNER LOPES – Pedro Leopoldo/MG

Nilto Maciel (A Reunião)

Os homens se acomodaram ao redor da grande mesa. Falavam baixo, cochichavam, mãos postas sobre a tábua ou os papéis. Que notícia traria o Presidente? Teria alguma relação com a morte do vereador de Sapoapé? Não, Sapoapé não – Cipoaté. Ou com o nascimento do cabrito com duas cabeças? Possivelmente não. Aquilo interessava muito mais aos biólogos do que aos políticos. Um ou outro alisava garrafinhas com água e copos. A luz das lâmpadas no teto não provocava sombras. Súbito a grande porta se abriu e por ela entrou o Presidente, boca cheia de sorrisos e bons-dias. Os ministros se levantaram de uma vez, como se tomados de repentino susto. Estrépito de cadeiras arrastadas no chão. O coro de vozes roucas retribuiu a saudação. A autoridade maior se sentou e, com um aceno, autorizou o sentar-se de seus auxiliares. Olhos fitos no rosto do comandante, os homens nem sequer piscavam, paralisados, imóveis, inertes. O que diria o chefão? Sapoapé, Cipoaté, cabrito, vereador? Olhar vidrado, ele engolia palavras, sem mastigar. Um ou outro ministro cruzava as mãos suadas. Nenhuma sombra se mexia sobre a mesa, nas paredes, no chão. E nada de o mandachuva abrir a boca. Ao longe, garçons cochilavam, surdos e mudos. A ponta do sapato de um cupincha encontrou a ponta do sapato de outro cupincha à sua frente. Arregalaram os olhos. Qual o significado daquilo? Estaria ficando louco? Retirasse o pé dali, imediatamente. Deixasse de gracinhas. Alguém ousou levar as mãos a um copo. Reprimenda geral, com os olhos. Não fizesse aquilo. Deixasse a autoridade se servir primeiro. O silêncio fazia ouvirem-se os mais remotos e insignificantes ruídos: na boca de um, nos lábios de outro, a respiração de fulano. Olhares se cruzavam de ponta a ponta. O do vizinho à esquerda do chefe fulminava o sétimo à direita dele. O terceiro à direita piscou discretamente para o quinto da coluna frontal ao frontispício central. Por que o homem não falava nada? Teria perdido a fala? Estaria dormindo? Seria sonâmbulo? Teria enlouquecido? E se o interpelassem? Quem o faria? Não, ninguém ousaria interromper o sono do Presidente.

A mim cabia somente filmar a reunião. E também nada dizer ou perguntar.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem = http://www.lisriopreto.com.br

Goulart Gomes (Poemas Avulsos)

O ANALFABETO IDEOLÓGICO
ou Carta Aberta a Herr Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto ideológico.
Ele desconhece a importância
do respeito ao ser humano
e é capaz até de destruir tudo à sua volta
pelas suas crenças.
Ele é o pai de todas as guerras.
O analfabeto ideológico é tão burro
que ignora que milhões de pessoas foram mortas
em Auschwitz, em Kronstadt, no Arquipélago Gulag,
em Hanói, em Saigon, em Leningrado, Havana,
Hiroshima e Nagasáki
pela ignorância dos politicamente alfabetizados.

O analfabeto ideológico já não se lembra
do napalm atirado em crianças, no Vietnã
dos tanques esmagando jovens em Beijing
nem da Primavera de Praga.
Ele esqueceu dos desaparecidos
no Araguaia, em Buenos Aires,
em Santiago do Chile.
O analfabeto ideológico
explode bombas contra católicos e protestantes
em Dublin
e contra judeus e muçulmanos
em Jerusalém.

Não sabe o imbecil que da sua ignorância
nasce o mutilado, o órfão,
o neurótico de guerra, a viúva,
las madres de Plaza de Mayo,
as ditaduras.
Tudo isso porque
o analfabeto ideológico tem uma visão estreita,
uma amnésia do passado
e nenhum compromisso com o futuro.

Já leu todas as biografias dos grandes estadistas,
mas nunca a do Mahatma Gandhi,
que foi líder sem ser governante
e por isso desconhece ahimsa:
a lei da não-violência.
Em seu radicalismo
ele não ouve, não respeita, não conhece
(ainda que seja para criticar)
outras ideologias, que não a sua.

Ele está preocupado em promover
a discórdia, o confronto,
e não tem o menor respeito à Vida:
nem à sua, nem à dos outros.

L’ANA

A tarde amorenava o dia
permutando cores onde pousava
o seu toque
Lançava sobretudo sua tez
abria um leque à cara do sol
e tingia de penumbra os espaços
dos olhos dela fugia a claridão
e à volta se tingia
aquela cor de pele
espargindo a noite

A quem contar segredos?
Inútil degredo dentro
de nós mesmos
ânsia de ouvir espelhos
clamor de anos que não vieram

L’Ana e su’alma de caranguejo
subterrânea/submarina
tenazes fortes e cor baiana:
a mais doce mistura destas tendas;
seu corpo espraia-se
num descobrir de terras macias
além do Oceano (rio mais grande,
lágrimas de Orixá)
dança, noturna, feito estrela
lua-mãe cheia nos leitos
de um homem e dos rios
fazendo canastras de tarot
Só L’Ana amortece a dor
no parapeito do riso
e seus lábios rubros e ciganos
traçam caminhos, deixam vestígios
úmidos no meu corpo
e palavras em gemidos

TEMPO FARPADO

Matamos o tempo; o tempo nos enterra
(Machado de Assis)

arame farpado
o Tempo recurva
até os pregos;
nos ferros
depõe suas marcas
amarga as madeiras
descendo as ladeiras
dos dias

A flor impera
promessa da semente
e do húmus da terra
espinhos e farpas
não cortam o vento

(o Tempo se cala)
a pétala fala
também somos eternos

DÁDIVA DA VIDA

a ninguém devia nada
no colo, apaixonada
deu por si

ALUNISSAR
um dia chegarei com passos firmes
sem cavalo
e não direi palavra;
o simples gesto da presença
apaga mágoas
e pressupõe surpresas

será um dia comum
- nenhuma ânsia -
com sol, nuvens e pássaros
no rádio, alguma música romântica
estará tocando
a torneira da pia, como sempre
pingando

um dia chegarei em silêncio
e tudo flutuará
por absoluta falta de gravidade

ISTMO

ela, tão triste
ele, tão ausente
nem a lua se fez presente

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico. 2003.