sábado, 4 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) José Hélder de Souza

José Hélder de Souza (Massapé, 1931 – Brasília, 2004) cedo se mudou para o Rio de Janeiro e depois Brasília. Contista, poeta, romancista e crítico literário, é autor de Coisas & Bichos (1977), Rio dos Ventos (1992) e Pequenas Histórias Matutas (2000), no gênero conto. Em outros gêneros publicou A Musa e o Homem (1959), A Grandeza das Coisas (1978), Os Homens do Pedregal (1979), Sonetos de São Luiz (1981), De Mim e das Musas (1982), Cabo Plutarco, O Berro D’água (1982), Raul de Leoni, Poeta de Transição (1984), Relvas do Planalto (1990), Brilhos e Rebrilhos de Goiás (1990).

Apesar dos longos anos longe do Ceará, a sua obra literária tem profundas raízes cearenses. Pelo menos nas narrativas de Rio dos Ventos e Pequenas Histórias Matutas é muito nítida a presença do espaço geográfico cearense, sobretudo do sertão. A começar por “Rio dos Ventos”, um de seus mais longos contos, cuja trama se desenrola na vila de Nossa Senhora dos Remédios, às margens do Rio dos Ventos. A casa dos protagonistas é próxima ao mar, às dunas, aos areais “entremeados de canaviais e coqueirais”. A personagem principal, Profíqua Mendes Carneiro, estudou num colégio de freiras em Sobral. Padre Firmo formou-se no Seminário da Prainha, em Fortaleza. “Sanharão” se passa no sertão. Cazuza Meireles morava numa casa construída “num pequeno vale, quase na quebrada da serra”, no alto da Serra da Meruoca. Em “O Capagato”, José Porfírio vivia nas proximidades da cidade de Saboeiro. Em “Os três enterros de Jasão” o personagem Chico Tripa, quando jovem, frequentava “casas de mulher à toa, no Beco do Pega-e-Puxa, na praia da Fortaleza”. Em “Nicodemus, ajudador da morte”, Manoel Trajano estudou em Sobral. Frequentava esporadicamente igrejas daquela cidade, de Massapé e São José. “A porca história de Elza” se desenvolve num “sobrado centenário”, “nas proximidades de Barbalha, nos confins do mundo do Cariri”. E assim é em quase todas as narrativas.

Também a linguagem dos contos de José Hélder é essencialmente cearense. No entanto, como para fugir à tentação de elaborar histórias baseadas na oralidade sertaneja, matuta, na fala regional, no coloquial, que fizeram a grandeza e a mediocridade da ficção regionalista, o contista cearense optou pelo ponto de vista onisciente do escritor-narrador. Em poucas ocasiões dá voz aos personagens. Em “Sanharão” um deles assim se manifesta: “– Num faço malefício a feme” (...), “mas arreda, mulher, num me estorva o passo.” E outro: “– Num me azougue, dona; vamo lá, Timbaúba.” No decorrer das narrações ocorrem referências a objetos da cultura cearense, ou nordestina: penico de louça, bule de ágata, terrina para a coalhada, cristaleira, espreguiçadeira; a plantas: cajazeira, mulungu, carrapateira; animais e acidentes geográficos. E muitos vocábulos em desuso: sentina, quartau baio, bagual, brivana, bregueço, lambrecar, cotrovia, trastejar, chaboqueiro, roncolho, maxabomba, embeleco, moringa, forroia, mistela, aranhol, facanéa, batota, pelebreu, pondenga, malamanhado.

Também chama a atenção do leitor a reconstituição de crônicas – familiares e pessoais – antigas, algumas delas datadas nas narrações. Em “Rio dos Ventos” o narrador se refere aos “meados dos setecentos”, quando “vieram de Portugal para aquelas bandas algumas fidalguinhas órfãs”. Tempo do Rei Dom José I, do Marquês de Pombal. “Sanharão” se desenrola durante o governo Justiniano de Serpa, tempo dos marretas ou republicanos conservadores, do coronel Franco Rabelo e do Padre Cícero. Em “O homem que fez o trem parar” “corria o ano de 1910”, tempo dos coronéis. Em “Ao crepúsculo, num quarto”, uma das narrativas mais bem realizadas de José Hélder, o protagonista é assassinado numa “pensão reles de cidade decadente, pobre”, por um cangaceiro. Quincas das Contendas, de história do segundo livro, é bisneto do capitão Godofredo Hortêncio de Aguiar, “fidalgote alentejano da Vila Pouca de Aguiar, ribeira de Xarrama, freguesia de Alcáçovas”, ao tempo do aldeamento dos índios Tremembés, nos setecentos. Em “A mistela que comeu o padre Verdeixa” narra-se episódio em que figura o famoso padre Zé Verdeixa. Em “Calunga, o homem de um tiro só” o protagonista é nascido “nos idos de 20 para 30”. Outro personagem foi “eleito deputado estadual na primeira eleição depois da queda de Getúlio, nos quarenta e seis”. Em “Contando os cobres guardados no banco” há referência ao “golpe de 1937”.

Os dramas vividos pelos personagens de José Hélder são quase sempre envoltos em tragédia, muitas vezes em razão de vinganças. Os desfechos coincidem com as mortes dos protagonistas ou das vítimas destes. No entanto, quando o contista se volta para o anedótico ou o humorístico a trama se apresenta frouxa, resultando em histórias do tipo “causos”, de irrisório valor literário. É o caso de “O Bolota da piroca dura” e “Contando os cobres guardados no banco”. A tragédia de “Rio dos ventos”, consubstanciada no amor do padre Firmo pela jovem Profíqua, dá ao marido traído, Francisco Carneiro Pachola, ares de Otelo sertanejo. O capítulo final, intitulado “Amar não é defeito”, pega o leitor pelo colarinho e o conduz à cena final do crime, a vingança. A morte do sacerdote, alvejado em pleno altar, quando rezava missa, seguida do desespero da mulher, é cena para se ler e reler. O desenlace, porém, se dá quando a jovem, quatro dias após o crime, “começou a devorar a comida com sofreguidão e, ao morder a titela da ave assada, um pedaço de osso atravessou-lhe na garganta”.

Do drama amoroso Hélder passa ao conflito familiar e partidário. “Sanharão” é história de cangaceiros, homens valentes, violentos. O pacato e medroso Quincoló mata o valentão Sanharão, ao ser por este abordado numa rua: “– Então, seu rabelista, cuma se lhe vai?” Rabelista, partidário de Franco Rabelo, eleito governador do Ceará em 1912, inimigo dos aciolistas, do partido de Nogueira Acióli. Inicia-se a perseguição ao assassino. E a história termina com a fuga de Quincoló, “num navio a vapor”, rumo ao Espírito Santo. Outra tragédia se lê em “O Capagato”. Acostumado a castrar gatos, José Porfírio encontra sua mulher e a criada mortas em casa e sai em perseguição aos assassinos. Ao final encontra um deles (o outro é morto por este). Subjugado, o homicida é amarrado “com uma tira de couro”. A narração da castração é cena digna dos melhores naturalistas. Em “Nicodemus, ajudador da morte” nada leva o leitor a suspeitar do desfecho. Trajano está muito doente, às portas da morte. Os parentes chamam Nicodemus, “o mais famoso puxador de reza e o melhor ajudador da morte de toda a redondeza”. As rezas não acabam nunca. Nicodemus percebe a chegada da morte e aconselha os familiares do moribundo a chamarem o padre: “Se é cristão, deve receber logo os sacramentos, as bênçãos de um padre, para não morrer nas trevas, na tentação do Diabo.” Ao final, numa “alta madrugada”, o ajudador, após muitas orações, retira-se da alcova de doente: “Acabara de abreviar a agonia de Manoel Trajano, ajudando-o a dar a alma a Deus, metodicamente sufocado.” Em “Ao crepúsculo, num quarto”, publicada nos dois livros, um viajante se hospeda numa pensão, se maldiz da pobreza do ambiente, pensa em se relacionar amorosamente com a arrumadeira (esse solilóquio demora algum tempo e absorve grande parte da narrativa), vê a noite chegar, sempre à janela, quando avista “uma figura ensombrada”. Engana-se, ao supor tratar-se da moça. Ao lavar o rosto e preparar-se para o jantar, batem à porta. Pensa tratar-se da jovem. Abre a porta, “sôfrego”. Ele e o leitor deparam, então, a figura de um assassino: “Nem viu direito o rosto cangaceiro encoberto pelo chapéu de abas largas, pois foi logo o revólver vomitando morte e lhe enchendo o peito e o bucho de balas.”

(...)

Os personagens nos dois livros aqui mencionados são desenhados com traços rudes, como não poderia deixar de ser. Nem mesmo as mulheres aparentam beleza, singeleza, ao contrário do que se vê em outros narradores cearenses. Chico Pachola é “desengonçado e casmurro”. O cangaceiro Zé de França, de “Sanharão”, é “caboclo chaboqueiro de cabelo-de-espeta-caju”. Pedro Silvério, de “Amores lícitos e ilícitos do Silvério e a negridão e o sabor das guabirabas”, é, talvez, o personagem mais favorecido na descrição: “Grandalhão, bem conformado, espadaúdo e um tanto obeso” (...) “tinha cara redonda e cabeça chata, maçãs do rosto salientes e nariz afilado e curto, quase arrebitado”. Nicodemus, de “Onde Nonato encontrou seu calunga, o Bozó”, é “homem grandalhão, barbaçudo e pestanhudo, de grenha intensa, ar bonachão e prestimoso”. O caçador de “A pondenga” é “um magro serrano de cara estragada pela bexiga, boca murcha pela ausência de dentes incisivos, olhar cansado e corpo arqueado de viver e sofrer.”

A par disso, muitos dos personagens vivem situações vexatórias, seja na hora da morte, seja em plena vida. Profíqua morre engasgada com pedaço de osso. A castração do homicida de “O Capagato” é cena do mais puro naturalismo: “a lâmina fina agora a penetrar fundo no seu saco escrotal”; “ouviu-se um berro estrondoso”, “berro horrível, como os dos gatos capados...” A cena de eutanásia em “Nicodemus, ajudador da morte” é inesperada. Elza é deflorada por um porco. Quinca das Contendas morre afogado: “animal e cavaleiro sumiram nas águas barrentas”. Padre Verdeixa, famélico, só encontra “a pobre mistela dos maxixes cozidos na água e sal” para matar a fome. Um dos mais contundentes contos de Hélder é, sem dúvida, “O estouro do homem faminto”. Nem sequer nome lhe é dado. Faminto, “era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira de um capão seco”. Passados dias de fome, “lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar”. Após matar e assar o bicho, “comeu uns nacos”. Dormiu e “acordou com uma sede dos diabos”. Procurou uma casa, conheceu Zefa, pediu-lhe água. Bebeu toda a água do pote e se despediu. Deu alguns passos, “quando ela ouviu um estouro”. O pobre homem “tinha espocado todo”.

José Hélder de Souza é discípulo de Gustavo Barroso, naquilo que o criador de Alma Sertaneja tinha de sedução pelas histórias contadas pelos sertanejos. Tem, no entanto, estilo próprio. Dimas Macedo, em “Um contador de causos”, apresentação de Pequenas histórias matutas, ressalta “a sua fidelidade à linguagem popular, ao lado de seu estilo e do seu jeito de dizer muito peculiar, porque é individualíssima a sua escritura literária.”

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) VIII

MÁSCARA
 

Endureci a face
Para não sofrer com a emoção
Meu rosto virou uma careta
E um calo, meu coração.

CANDLE
 

Se não podes ser sol
Almeje apenas ser uma vela
Que ilumine ao menos
Tuas próprias trevas.

TORCEDOR

No vôo livre da bola
Gira o sonho torcedor
Querendo ver na gaiola
Preso passarinho gol.

Pula xinga dança chora
Briga ri da própria dor
Quando perde vai embora
Mas volta sempre vencedor.

Seja campeão ou vice
Seja último ou não
Não importa o que dizem
Vence sempre a emoção.

SIBA

Meu pai
Era um homem baixo
Franzino e tímido até
Trazia os olhos tristes
Por amor a uma mulher
Sisudo agreste macho
Nunca aprendera a chorar
Sua palavra era silenciosa
E seu sorriso tentava esconder
Passos que não se sabiam...
Nunca precisou de dinheiro para beber
Mas sempre precisou da bebida
Para viver.

AMBROSIA

Minha mãe
Conserva ainda a esperança
E um encanto de criança
Nesses tempos tão hostis!

Em sua santa ignorância
Ensina-me confiança
Lição que desaprendi.

Minha mãe
Apesar de tantos anos
Segue humilde caminhando
Com um sorriso novo em flor...

Quando esquece suas dores
A comparo com as flores
Transbordando de amor.

RIMBAUD
 

Temos todos
Um rebelde dentro da gente
Um anjo caído torto e indecente.
Reminiscências
Da estação que passamos
No inferno da adolescência...
E só purgando no deserto do agora
Damo-nos conta de que aquela
Fora nossa melhor fase.

PEQUENO MERCADOR

Levantava madrugada
Antes de brilhar o sol
Do acordar da passarada
Em seu canto si bemol.

A noite, o vento, o frio
O castigavam franzino
E um medo interior
Massacravam o menino.

No escuro germinando
Ser mente ali brotava...
Quietinho, covarde, esperando

O dia que não nascia,
A feira que já fervia
Na vida que começava.

AMIGOS FOREVER
(para Danillo Feitosa)

Em vários momentos
Tenho saudades de nossa amizade
Tranqüila, sincera
Que nada queria além do instante.
Eu sei não sou
O que fora anteontem
Passo como tudo me transformo.
A paz do universo confidencia
Que as cores em lindas melodias
Desenham toda unidade
Comigo, contigo, contudo...
Espero não ter perdido
Sua amizade.

CANÇÃO DO EXÍLIO

Pátio vazio, olho o gradil
Meu Deus! estou preso!
Pior que cadeia,
Preso em mim mesmo!
Nem tenho direito
A um raio de sol
Que ilumine este pátio,
Que aqueça este peito.
Que me deixe sem jeito
De tentar esconder
Todo meu preconceito
Por não ter aprendido
O real, irreal sentido
Dessa magia, viver.

BLEFE

Não me atrevo
A ser apenas
O que desejo

Escrevo.

Nem admito
Escrever somente
O que sinto

Minto.

DISTRAÍDO

Olhava os pássaros
Procurando caminhos
Enquanto meus passos
Pisavam seus ninhos.

DEMASIADO HUMANO
 

Precisamos de um Deus
Que nos una
Precisamos de um Deus
Que nos ame
Precisamos de um Deus
Que nos puna
Precisamos de um Deus
Precisamos
Mesmo que seja Um
Que nós próprios
Inventamos.

POETA

Todo dia amanhecia verso
Toda vida gostara do outono
Toda noite dormia certo
Não morreria
Enquanto houvesse um sonho.

ENGANO
 

Não sou profeta
Nem vagabundo
Sou um poeta
A caminhar no mundo.

Não sou religioso
E nem ateu
Sou um homem
Que se acredita deus.

Na realidade sei
Que nada sou
Nada serei

Além do engano
De querer ser
Mais que humano.

EU TE AMO!

Meus olhos gritam
O que teus lábios
Teimam silenciar.

CIÚME
 

Olhando para o que não lhes pertence
Meus olhos choram uma dor
Que não deveria ser minha.

ECO

Amor difícil caminho
Eu digo rosas
Você repete espinhos.

MESTRES

Lábios
Dois sábios
Quando mudos beijam.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Caçar com velas

Poucas, as pessoas cuja vida tenha deslizado serena sempre, como um dia de sol sem nuvens; raros, aqueles que viveram sempre ao abrigo da luta pela existência; e se esses, assim postos ao abrigo, por uma circunstância toda especial da fortuna ganha pelos seus progenitores, se esses, digo, fossem de momento lançados àquela luta, provavelmente nela sucumbiriam, por entrarem na liça muito tarde, sem preparo algum nem o hábito da peleja e dos seus rigores nem da utilização das próprias faculdades.

A necessidade é uma grande mestra, e é sempre preferível que os homens moços aprendam com ela.

Houve um tempo em que eu cacei - não como amador, por simples recreio - mas por necessidade, para ganhar a vida, como negócio, em suma. É claro que não ia perder as minhas horas a espera de preás nem tuto-tucos, nem tampouco a levantar bem-te-vis ou pica-paus. Nada: procurava caça redonda, de poder até fazer fortuna com da, pois já não podia atender às encomendas que de toda parte me chegavam.

Cada dia mais avultavam os pedidos: os compradores pagavam à vista e sem regatear, por vezes, para ver-me livre deles, pedia preços loucos.., nem assim! É que eu tinha uma especialidade! -mas que especialidade! - só, somente vendia peles de onças, muito bem tiradas com rabo, cabeça e garras — tudo perfeito, sem um talho, sem um furo, sem um buraco!

Todos podem matar - e alguns, matam - onças a tiro, como eu; mas por melhor que seja esse atirador, ele estragara – sempre - o couro da presa, porque usa balas ou balins ou, pelo menos, chumbo grosso. Eu, não: só empregava... Esperem um pouco.

Parece até que tomava a minha caça em arapuca, inteirinha, sem um arranhão, e esfolava-a tranquilamente, como se depenasse um perdigão.

Era isso o que encantava os compradores dos meus couros... de onças.

Vários bisbilhoteiros acompanharam-me ao mato para verem o meu sistema; deixava-os ir, convidava-os mesmo, porém despistava-os facilmente. Como conhecia os paradouros das onças, encaminhava-me para lá. Afoitamente. Assobiando. Mal os bichos pressentiam a aproximação de gente, principiavam a urrar, já assustados, mas para assustar'...

Eu, então, para fingir medo, punha-me em altos brados, a chamar pelos tais fulanos... e quanto maior a gritaria, mais urravam as onças e... mais fugiam os bisbilhoteiros! Então ficava só em campo, ou antes, no mato, muito a meu gosto.

Outros, invejosos, diziam que eu tinha um - breve - contra onça; outros, que rezava a oração de São Cogominho, que é muito forte contra os perigos do mato. Diziam, porém tudo pura invenção.

O meu segredo era simplíssimo.

Como se sabe, é o homem o único animal capaz de respirar pela boca; todos os demais bichos respiram unicamente pelas ventas: quem lhas tapar, mata-os. Fiz centenas de verificações, por isso afirmo. E mais, todo o bicho preso pelo focinho é bicho dominado. Veja-se o touro, por bravo que seja, uma vez tendo uma argola passada nas ventas, já está dominado, o potro, com um cachimbo bem passado, está entregue; e assim outros.

Foi partindo desta certeza que pus em prática o meu processo, mesmo porque naquela época eu não tinha ainda descoberto minha futura famosa essência - de cachorro - que tão notáveis vitórias granjeou-me. Quando ia para o mato levava duas espingardas - das marrequeiras — de carregar pela boca, e de munição de guerra apenas espoletas, pólvoras e buchas. E em vez de ......     espere um pouco!

No que descobria a onça, fazia barulho, assanhava-a! Ela pulava, encastelava-se numa forquilha de qualquer árvore, agitando a cauda lambendo as barbas, miando rouco, afiando as unhas... Eu, parava-me bem em frente - que e a regra - porque se você dá costas, a onça pula-lhe em cima, e, adeus! era um dia...

Carregava a marrequeira com a sua espoleta, sua carga de pólvora e uma bucha, de sabugo de milho; depois então é que metia a... Espere um pouco!

Mas não despregava os olhos da fera. De tal forma a gente acostuma-se a estes perigos que chega a carregar a arma simplesmente pelo tato e pelo ouvido. Quando estava preparado enfiava na mira a racha do focinho da onça, e pum!

O bicho recebia a carga bem nas fuças; roncava, sufocado, e vinha ao chão, tonto, inconsciente, mortalmente batido, com as ventas entupidas e com o atilho pendurado no focinho. Lentamente corria, por ele amarrava a fera a qualquer ramo e já carregava a segunda espingarda - pra dar à primeira o tempo de esfriar - e assim, ia-me à segunda. terceira, sétima onça, etc.

Caçado o número marcado, sangrava cada uma e tirava-lhe o couro, sem um talho, sem um furo, um buraco: perfeito, sem avaria! Em lugar de balas eu comprava velas de sebo, já preparadas pelo calibre das armas em cada ponta do pavio ia preso um forte anzol.

Com o calor da pólvora, no tiro o sebo saia derretido, e dando bem pela frente nas ventas da onça, entrava por elas a dentro, enchendo-as e entupindo-as; a fera mesmo espirrando não mais podia expelir aqueles batoques, que, endurecendo, asfixiavam-na.

O pavio também seguia o seu caminho: um dos anzóis fisgava certo, no focinho; o outro quase sempre pegava na língua, outra vez numa das beiçolas ou no céu da boca... e cravava-se fortemente. Assim, firmado pelas duas pontes, o pavio formava uma alça.
O.........
A.........

Nem é preciso explicar.

As coisas mais simples são sempre as que parecem mais difíceis. Desvendado, o meu segredo é como o ovo de Colombo; agora todos dizem:

— Ora, que milagre!... Assim, Romualdo, assim, eu também faço!
======================
continua… mais casos

Fonte:
Wikipedia

domingo, 29 de dezembro de 2013

Carolina Ramos (Ano Novo) e Agradecimentos

Aguarde para ler o poema inteiro desta grande poetisa santista 

CAROS LEITORES, ASSINANTES E SEGUIDORES DO BLOG

Mais um ano que se encerra. O Blog completa este mês, 6 anos de existência.

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Cerca de 80 e-books, e e-revistas foram produzidos nestes 6 anos.
Tributos, Paraná Poético, Trova Brasil, Almanaque Paraná, Estados do Brasil em Trovas, Cavalgada de Trovas, Santuário de Trovas, etc

Colaborações de literatos do Brasil, Moçambique, Angola, Estados Unidos, Espanha, Argentina, Chile, Portugal, Japão, Alemanha, Itália, Malta.

Enfim, finalizamos sempre em ascensão. Obrigado aos que colaboraram com seus textos, e a todos que participaram diretamente e indiretamente prestigiando estas páginas. Paro por agora, mas retorno dia 3 de janeiro de 2014., desejando uma ótima passagem de ano a todos. 

Ano que vem estaremos juntos novamente.

José Feldman

P.S.: Se beber, não dirija. Quero te ver com saúde e vivo em 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 9)


Ave, irmãos, amai as aves,
deixai que voem, que cantem...
Deixai que, livres de entraves,
o verde e a vida replantem!
A. A. DE ASSIS – Maringá
-
Só verdade e compaixão
ponha no que você faz;
derrame amor e perdão
e deixe fluir a paz.
ADÉLIA MARIA WOELLNER – Curitiba/PR
-
Para o retirante é certo
que a árvore neste verão
é qual um sombreiro aberto
que Deus botou no Sertão.
ADEMAR MACEDO - Natal/RN
-
Relógio fique parado!
Não deixe o tempo passar...
Eu quero ser enganado,
quando a velhice chegar!
AMÁLIA MAX - Ponta Grossa/PR
-
 Procura longa e constante,
num sempre querer achar...
Um sonho louco e distante,
impossível de alcançar...
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
Amigos também são Anjos
com que Deus cuida de nós;
eles sempre têm arranjos
que desatam nossos nós...
AMILTON MACIEL MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Prato de vidro, vazio,
feito um espelho, em teu fundo
refletes o olhar sombrio
das injustiças do mundo!
ANTÔNIO DE OLIVEIRA – Rio Claro/SP
-
 Mamãe!... Não há quem exprima
uma palavra mais bela,
pois mesmo não tendo rima
a vida rima com ela!
ANTÔNIO ROBERTO – Campos dos Goytacazes/RJ
-
Se todos, sinceramente,
mostrarem paz e labor,
nós teremos, brevemente,
menos ódio, mais amor!
ARLENE LIMA – Maringá/PR

-
Eu te imploro, por favor
não insistas nesse adeus,
se não for por meu amor,
fica pelo amor de Deus!
ARLINDO TADEU HAGEN - Belo Horizonte/MG
-

Um fato triste, por certo,
não convém ser relembrado...
Jamais conserve por perto
as tristezas do passado!
BENEDITO MADEIRA – Porto Alegre/RS
-
Há quem chore por defunto
bem na beira do caixão,
mas ninguém quer ficar junto
do finado sob o chão.
CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI – Arco Verde/PE
-
Y es que el amor de los dos
quisiera escribirlo en oro
por que eres cosa de Dios...
¡Amor mío! ¡Yo te adoro!
CARMEN PATINO FERNÁNDEZ - (CARMIÑA) - Espanha
 -
Há contraste em nossas vidas
mas, perfeito é o desempenho:
luz e sombra, quando unidas,
dão força e vida ao desenho…
CAROLINA RAMOS – Santos/SP
-
Terra de todas as raças,
muito verso e trovador.
Têm pinheiros, parques, praças
e um povo trabalhador.
CECILIANO JOSÉ ENNES NETO - Curitiba/PR
-
Água pura e cristalina
no meu pote mergulhou...
E como luz que ilumina
minha sede então saciou.
CIDINHA FRIGERI – Londrina/PR
-
Palhaços de profissão?
Ah, Como é bom, fazem bem.
O triste é ter coração
e ser palhaço de alguém!
CLÁUDIO DE CÁPUA – Santos/SP
-
A mulher do amolador,
que é fofoqueira afamada,
diz que casou sem amor
só pra ter língua afiada!
CLENIR NEVES RIBEIRO – Nova Friburgo/RJ
-
Gosto de vocês demais,
que me alcançam, pelo espaço...
Somos galhos especiais,
unidos num mesmo laço...
CLEVANE PESSOA ARAÚJO - Belo Horizonte/MG
-
Solo versos sin belleza,
va luciendo mi alma herida,
pues me invade la tristeza
!al no compartir tu vida!
CRISTINA OLIVEIRA – Estados Unidos
-
Desmatar!…Ânsia incontida
ataque sem precedente…
ousadia contra a vida
que Deus nos deu de presente!
CYNIRA ANTUNES DE MOURA – Santos/SP
-
Os meus garbosos oitenta
jamais pensei alcançar:
– será que a carcaça agüenta
uns outros mais a chegar?
DIAMANTINO FERREIRA – São Fidélis/RJ
-
Inútil, desagradável,
tornar alguém diferente,
para que seja ajustável
aos interesses da gente.
DJALMA MOTA – Caicó/RN
-
 Nesta vida rotineira,
tua saudade em minha alma
é cantiga de goteira
em noite de chuva calma!
DOMITILLA BORGES BELTRAME – São Paulo/SP
 -
Ora eloquente, ora mudo,
teu olhar é uma charada:
promessa sutil de tudo,
no fútil revés... do nada!
DOROTHY JANSSON MORETTI – Sorocaba/SP
-
Quem meditar por instantes,
certos conceitos refaz:
- O mais caro dos brilhantes
não vale o brilho da paz!
EDERSON CARDOSO DE LIMA – Rio de Janeiro/RJ
-



Fecha-se o tempo passado,
meia-noite, eu me depuro;
o ano nasce, iluminado,
abre-se o tempo futuro.

ELIANA RUIZ JIMENEZ -  Balneário Camboriú/SC
-
 Vivo em constante conflito
entre o delírio e a razão:
– meu sonho alcança o infinito,
meus pés tropeçam no chão!
ELISABETH SOUZA CRUZ – Nova Friburgo/RJ
-
 Ela é plantadora, a gralha,
e plantando tudo dá;
é riqueza que não falha,
no solo do Paraná.
FERNANDO VASCONCELOS – Ponta Grossa/PR
-
Em ternura plena e extrema,
nossos sonhos se cruzaram!
E a noite se fez poema...
e os versos também se amaram!...
FLÁVIO ROBERTO STEFANI - Porto Alegre/RS
-
 Teus olhos, de um verde jade,
no instante do nosso adeus,
revelaram que a saudade
tem a cor dos olhos teus.
FRANCISCO JOSÉ PESSOA – Fortaleza/CE
-
Mi corazón te prefiere,
por mujer entre mujeres,
eres la flor que surgiere
donde mi tumba yaciere.
GERMÁN ECHEVERRÍA AROS - Chile
-
Aquela ponte que unia
nossas vilas ribeirinhas
une, ainda, por magia,
tuas saudades e as minhas.
GISLAINE CANALES - Porto Alegre/RS
-
A bengala, cor da paz,
que o homem cego conduz,
tem um mistério que faz
o som transformar-se em Luz!...
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO – Rio de Janeiro/RJ
-
Recebo a auréola de um santo,
levito pelos espaços,
chegando aos céus por encanto
quando me tens em teus braços!
IVONE T. PRADO – Belo Horizonte/MG
-
 Voltaste, e a Felicidade,
que voltou no mesmo dia,
rebatizou a Saudade:
– “Teu nome agora é Alegria!!!”
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Amor… dois copos de vinho,
são nossos dois corações,
cujo sabor é o carinho
transbordando de emoções!
JOSÉ FELDMAN – Maringá/PR
-
Não penses que estás distante
de uma estrada mais florida,
há sempre um mágico instante
que muda os rumos da vida!
JOSÉ LUCAS DE BARROS – Natal/RN
-
 O ganso jurou vingança
ao notar, estupefato,
que o pato dormiu com a gansa
e ele fez  “papel de pato”!
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Você é luz de luar,
É poesia encantadora!
Venha, pois, iluminar
Minha vida sonhadora!
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE - Pinhalão/PR
-

Coração desconsolado,
não podeis esmorecer,
se viver é complicado,
muito mais é não viver.
LUIZ ANTONIO CARDOSO – São Paulo/SP
-
O que dói, às vezes sara
e o que sara não castiga.
A ponte que nos separa
pode ser a que nos liga.
MIGUEL RUSSOWSKY - Joaçaba/SC
-
Quem diz que eu olho e não vejo
a lágrima em seu olhar
não merece mais meu beijo,
pois sofro a me controlar.
NEI GARCEZ – Curitiba/PR
-
Sonhando de trova em trova
pela estrada da poesia,
minha vida se renova
no correr de cada dia.
NILTON MANOEL – Ribeirão Preto/SP
-
Companheiro, estenda a mão,
que nem um bom cavalheiro,
ao colega, amigo, irmão...
porém lave a mão primeiro!
OSVALDO REIS – Maringá/PR
-
Que os rumos de meus irmãos
não se percam nas estradas
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!
RENATA PACCOLA – São Paulo/SP
-
 Quando o Sol encontra a Lua
– no entardecer de ouro e prata –
entoam canções na rua
com vestes de serenata.
SARAH RODRIGUES – Belém/PA
-
Há dias em que os palhaços
têm conflitos, sem medida,
quando, em segredo, aos pedaços,
mendigam risos da vida.
SILVIA ARAÚJO MOTTA – Belo Horizonte/MG
-
A minha Vida hoje eu traço
nestas linhas de meu verso,
assim acho meu espaço
e tenho todo o Universo !...
SÔNIA DITZEL MARTELO – Ponta Grossa/PR
-

Este perdão que me negas
por "um nada" que te fiz,
é mais um cravo que pregas
na cruz de um peito infeliz.
THALMA TAVARES – Tambaú/SP
-
Quando a vida é limitada
eu lhe amplio a dimensão:
cada coluna é bordada
com retalhos de ilusão...
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – Curitiba/PR
-

O tempo mostrou com calma,
que apesar dos seus desvelos,
não pôde polir minha alma
sem respingar meus cabelos.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ– Curitiba/PR
-

Nosso amor, nossos carinhos,
vão conosco na viagem,
pondo flores nos caminhos
e embelezando a paisagem!
YEDDA PATRÍCIO – Pouso Alegre/MG

Lairton Trovão de Andrade (Trova e Quadra no Brasil)

A Trova, que surgiu na amena região de Provença, ainda nos longínquos idos da Idade Média, expandiu-se naturalmente pela Itália, Espanha e Portugal, transbordando de ternura os corações das classes sociais da época, numa clara manifestação do espírito,  frequentemente espontâneo e extrovertido,  dos povos de línguas neolatinas.

Através dos tempos, a Trova não permaneceu inalterável como algo estático e acabado, mas sofreu alterações em sua estrutura, principalmente externa, como que a procura da própria identidade e perfeição.

Assim sendo, fora se transformando  progressivamente, através das literaturas, a tal ponto que podemos evidenciar: “As trovas dos seus primeiros tempos, bem como dos tempos de Dom Dinis,  diferem,  e muito, daquelas que praticamos hoje”.

Ainda no passado próximo, as alterações foram bem acentuadas. Cristalizaram-se definitivamente os versos setissilábicos. As rimas, que a princípio nem sempre existiam, tornaram-se indispensáveis. 

Posteriormente, nos jogos florais e nos concursos, não se admitiu mais a presença de trovas com rimas simples ( rima do 2º com o 4º verso), permanecendo, como regra, apenas as de rimas duplas , do 1º com o 3º, e do 2º com o 4º verso.

As históricas alterações, entretanto, preservaram na Trova a grandeza da essência. O  íntimo substancial praticamente permaneceu, a tal ponto que o conceito “trova” ultrapassou os séculos e as culturas e, em nossos dias, recebeu  imenso vigor de expressividade.

E as tendências continuam...

Trovadores sérios do Brasil não admitem mais os termos “quadrinha”, “trovinha” etc. como referências à “Trova”.

Ainda mais: Em se tratando de trovadores brasileiros, mesmo que “trova” e “quadra” sejam ainda sinônimos, já existe por aqui, talvez por influência de trovadores da UBT (União Brasileira de Trovadores), tendência de não reconhecer o termo “quadra” como simples sinônimo de “trova”.

A Trova representa profícua escola literária da Língua Portuguesa, onde o dinamismo dos seus membros, no seio de entidades como a UBT, por exemplo, expressa o esmero de um gênero literário florescente, além da convivência de seus pares numa confraria exemplar. 

Entre os brasileiros, o conceito “quadra” faz pensar, muitas vezes, que se trata de uma forma de versejar do povo, sem nenhuma preocupação gramatical, lembrando forma simples de poemeto de uma estrofe só, onde a simplicidade confunde-se com expressões incultas.

Diante da sua relevante envergadura, designá-la simplesmente de “quadra” parece-nos “sacrilégio literário”.

Nos dias de hoje, o conceito “trova” supõe rigor maior:  Há exigências incondicionais quanto ao número de sílabas, quanto ao sistema de rimas, quanto ao primor de conteúdo, quanto à correção gramatical e quanto à conclusão perfeita  de um pensamento.

Mais do que nunca, representa hoje a “excelência de um achado”. Por isso, a Trova, por sua estirpe e magnitude, pertence à alta nobreza da Literatura.

Enfim, o que se propõe, acima de tudo, é o cultivo da “Trova Literária” que, no seu íntimo, deve ser muito diferente da simples “trova popular”, apesar de que o desejo de todo trovador é que sua trova torne-se popular, no sentido de que seja lida e recitada  por todas as camadas sociais, manifestando a cultura e o esplendor do lado puro e simples da Língua Portuguesa.

Apesar disso, a “Trova Literária” será sempre erudita, ainda que espontânea, cujo conceito  ultrapassa, sem comparações, o mundo limitado e tacanho do conceito, às vezes pejorativo, de  “quadra  popular” do Brasil.

Trovador é aquele que faz trovas. O trovador é maior que o simples poeta, pois todo trovador é poeta, mas nem todo poeta é trovador. No reino das musas, não há orgulho maior que ser trovador!

Por isso, aquele que tem o dom de fazer trovas deve se sentir privilegiado, pois a Língua Portuguesa adquiriu suas primeiras formas literárias, através do labor heróico dos trovadores medievais.   

Os modernos trovadores são os legítimos herdeiros dos primeiros cultores da língua portuguesa.

É possível que, num futuro não muito distante, a Literatura Brasileira, o Dicionário Aurélio e outros possam apresentar diferenças essências entre “Trova” e “quadra”, uma vez que a Língua Portuguesa, sendo viva e dinâmica, pode, muito bem, continuar a ter evoluções e aquisições de novos conceitos, mesmo que alterando noções antigas por serem já, na opinião de muitos, obsoletas e inadequadas.

Concluindo, as considerações feitas aqui não dizem respeito à Trova de Portugal, denominada pelos irmãos lusitanos de “Quadra Popular”, que historicamente serviu de suporte ao nascimento da trova no Brasil.

Fonte:
Falando de Trovas e Trovadores – Nº  03 – Outubro de 2006. Disponível no Portal CEN

Jangada de Versos do Ceará (2)

NILTO MACIEL
Baturité (1945)
Se Me Chamares Fogo
-
Se me chamares fogo
eu te labaredas.

Se me quiseres água
eu te correntezas.

Se me julgares vento
eu te tempestades.

Se me disseres pedra
eu te porcelanas.

Se me chamares chão
eu te profundezas.

Se me quiseres noite
eu te estrela Vésper.

Se me julgares pássaro
eu te vendavais.

Se me disseres corvo
eu te Allan Poe.

Se me chamares serpe
eu te paraíso.

Se me quiseres corda
eu te Tiradentes.

Se me julgares diabo
eu te tentações.

Se me disseres anjo
eu te candelabros.

Se me chamares deus
eu te eternidade.

Se me quiseres louco
eu te poesia.

Se me julgares santo
eu te crucifixos.

Se me disseres vida
eu te funerais.

Se me chamares mito
eu te tecelões.

Se me quiseres pródigo
eu te ancestrais.

Se me julgares hoje
eu te amanhã.

Se me disseres sempre
eu te nunca mais.

Se me chamares vem
eu te seguirei.
====================

RACHEL DE QUEIROZ
Fortaleza (1910 – 2003)
Telha de Vidro
-
Quando a moça da cidade chegou,
veio morar na fazenda
na casa velha...
tão velha...
quem fez aquela casa foi seu bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
Mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha..a.
A moça não disse nada;
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro,
queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora
o quarto onde ela mora
e o quarto mais alegre da fazenda.
Tão clara que, ao meio-dia, aparece uma renda
de arabescos de sol nos ladrilhos vermelhos
que, apesar de tão velhos,
só agora conhecem a luz do dia...

A lua branca e fria
também se mete às vezes pelo claro
da telha milagrosa...
ou alguma estrelinha audaciosa
carateia no espelho onde a moça se penteia...
Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida?
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
==========================
SOARES FEITOSA
(Francisco José Soares Feitosa)
Ipu (1944)
Réquiem em Sol da Tarde
-
Grita, para ver se alguém te responde.
(Livro de Jó, 5, 1)


Sim,
a porteira do caminho do rio
ainda era a mesma.

A direção do rio também;
presumo não tenham mudado o rio.

O benjamim,
disseram, morrera na seca do 93;
arrancaram-no pelo tronco.

Não replantaram sombra,
nem pássaro.

O banco de aroeira,
racharam-no em lenha de fogo.
O curral das vacas,
também.

O chiqueiro das ovelhas,
À esquerda da casa,
e o dos bodes,
à esquerda do das ovelhas,
sumiram todos.

O batente da porta-da-frente,
e abaixo dele outro batente,
onde uma pedra,
com um caneco d'água
lavei os pés,
ainda estão lá,
os batentes;

e nos batentes também estavam
meus rastros em riscos de fogo,
que continuam.

Os canários amarelos,
os mofumbos florados,
não os vi;
nem flor...
que também não vi.

Os armadores da rede,
na sala-da-frente, sim,
estavam no logar,
parecem,
outra vez prontos para rangir.

E daquelas pessoas,
quando perguntei por elas,
fizeram-me um gesto distante.

Perguntei por mim;
ninguém sabia quem era.

Eu disse:
é um conhecido meu que gostava muito
daqui.

Perguntaram-me quem eu era.
Um amigo, disse,
e fiz um gesto
ao tempo.

Ficaram sentidos por não saberem
nem de mim, nem do "outro".

Um menino pequeno começou a chorar,
lá dentro.

A mãe correu
para acudir.

Despedi-me
sem dizer palavra.
======================

VIRNA TEIXEIRA
Fortaleza (1971)
Visita
-
Criado-mudo:
Bíblia e
rosário de contas.

Na cama, ao lado
a nudez
sem nome.
=================

FLORIANO MARTINS
Fortaleza (1957)
I  Salas de reconhecimento
-
Sou eu o nome as letras
em que te arrastas
As perguntas que iniciam
a travessia de tua dor

Noite inquieta sob escombros
Delicado tambor das tormentas 
Tua sombra vem vindo
ao ninho de minhas sílabas errantes

Tua sombra erguida 
Intimidade de cinzas
onde a dor o lábio toca 
Formas ressurgidas do caos
Prolongas teu ser em tudo o que me falta

Noite submersa em tremores
Esplendor de infernos  devassados 
Pousa tua mão
na esfera crepitante de meus sentidos

Uma prova o livro que conduz
ao templo 
Missal de cinzas 
Teu corpo soprado mil vezes
a queimar mais e mais longe de ti

Sou eu morte as ruínas
de tua história 
Lugar onde ninguém mais te escuta
Onde as pedras de fogo são polidas

Tua sombra erguida 
Oculto fósforo
no desmaio dos sentidos 
Os delicados jogos da morte
Assim escavas sob os pilares do tempo

A treva em ti atingirá
a fonte de outra queda 
Tumulto que eleva
tua vida acima de toda ruína

Sou eu o livro 
As vozes
de tua memória agitando os segredos do silêncio
Tuas carnes devoradas pelo tempo

Noite cerimonial do abismo
Tuas ruínas respiram em meu canto 
Mil nomes segreda
o ar ao cruzar as entradas invisíveis

Aqui andei 
Entre as criaturas
dementes do mundo 
Peregrino dentro de um quadro
Escrituras folheando o vento

Ressurges em mim 
Ávida sentença de meus
dias nas trevas 
Alma inacabada a sorrir das formas
que engendro como portas ao absoluto

Uma prova as últimas chamas
evocadas 
Braseiro confirmando a pele de teus dias
e suportar  as figuras do vazio

Noite nascendo em outra noite
Por trás das colunas circulares o fogo abriga o livro
do invisível pranto de suas cinzas

Aqui andei 
Fomos um e todos
Mascar o tempo é rito de alucinados 
Os episódios
virão dar todos nesta escura sala

Fonte:

Irmãos Grimm (O Fiel João)

Houve uma vez, um velho rei que, sentindo-se muito doente pensou:

"Este será o meu leito de morte!" – disse então aos que o cercavam:

- Chamem o meu fiel João.

O fiel João era o seu criado predileto, assim chamado porque durante toda a vida, fora-lhe extremamente fiel. Portanto, quando se aproximou do leito onde estava o rei, este lhe disse:

- Meu fidelíssimo João, sinto que estou me aproximando do fim; nada me preocupa, a não ser o futuro do meu filho; é um rapaz ainda inexperiente e, se não me prometeres ensinar-lhe tudo e orientá-lo no que deve saber, assim como ser para ele um pai adotivo, não poderei fechar os olhos em paz.

- Não o abandonarei nunca – respondeu o fiel João – e prometo servi-lo com toda a lealdade, mesmo que isso me custe a vida.

- Agora morro contente e em paz – exclamou o velho rei, e acrescentou: - depois da minha morte, deves mostrar-lhe todo o castelo, os aposentos, as salas e os subterrâneos todos, com os tesouros que encerram. Exceto, porém, o ultimo quarto do corredor comprido, onde está escondido o retrato da princesa do Telhado de Ouro; pois, se vir aquele retrato ficara ardentemente apaixonado por ela, cairá um longo desmaio e, por sua causa, correra grandes perigos dos quais eu te peço que o livres e o preserve.

Assim que o fiel João acabou de apertar, ainda uma vez, a mão do velho rei, este silenciou, reclinou a cabeça no travesseiro e morreu.

O velho rei foi enterrado e, passados alguns dias, o fiel João expôs ao príncipe o que lhe havia prometido pouco antes de sua morte, acrescentando:

- Cumprirei minha promessa. Ser-te-ei fiel como o fui para com ele mesmo, mesmo que isso me custe a vida.

Transcorrido o período de luto, o fiel João disse-lhe:

- Já é tempo que tomes conhecimento das riquezas que herdaste; vamos, vou mostrar-te o castelo de teu pai.

Conduziu-o por toda parte, de cima até embaixo, mostrando-lhe os aposentos com o imenso tesouro, evitando, porém uma determinada porta: a do quarto onde se achava o retrato perigoso. Este estava colocado de maneira que ao abrir a porta, era logo visto; e era tão maravilhoso que parecia vivo, tão lindo, tão delicado que nada no mundo lhe podia comparar. O jovem rei notou que o fiel João passava sempre sem parar diante daquela única porta e, curiosamente perguntou:

- E essa porta, porque não abres nunca?

- Não abro porque há lá dentro algo que te assustaria – respondeu o criado.

O jovem rei, porém insistiu:

- Já visitei todo o castelo, agora quero saber o que há lá dentro – E foi se encaminhando, decidido a forçar a porta. O fiel João deteve-o, suplicando:

- Prometi a teu pai, momentos antes de sua morte, que jamais verias o que lá se encontra, porque isso seria causa de grandes desventuras para ti e para mim.

- Não, não – replicou o jovem – a minha desventura será ignorar o que há lá dentro, pois não mais terei sossego, enquanto não conseguir ver com meus próprios olhos. Não sarei daqui enquanto não abrires essa porta.

Vendo que nada adiantava opor-se, o fiel João, com o coração apertado de angustia, procurou no grande molho a chave indicada. Tendo aberto a porta, entrou em primeiro lugar, pensando assim, encobrir com seu corpo a tela, a fim de que o rei não a visse. Nada adiantou, porém, porque o rei erguendo-se nas pontas dos pés, olhou por cima de seu ombro e conseguiu vê-la.

Mal avistou o retrato da belíssima jovem, resplandecente de ouro e pedrarias, caiu por terra desmaiado. O fiel João precipitou-se logo e carregou-o para a cama, enquanto pensava, cheio de aflição: "A desgraça verificou-se; Senhor Deus, que acontecerá agora?" Procurou reanimá-lo, dando-lhe uns goles de vinho, e assim que o rei recuperou os sentidos, suas primeiras palavras foram:

-Ah! De quem é aquele retrato maravilhoso?

-É da princesa do Telhado de Ouro – respondeu o fiel João.

- Meu amor por ela, - acrescentou o rei, - é tão grande que, se todas as folhas das árvores fossem línguas, ainda não bastariam para exprimi-lo; arriscarei, sem hesitar, minha vida para conquistá-la; e tu, meu fidelíssimo João, deves ajudar-me.

O podre criado meditou, longamente, na maneira conveniente de agir; porquanto, era muito difícil chegar à presença da princesa. Após muito refletir, descobriu um meio que lhe pareceu bom e comunicou ao rei.

- Tudo o que a circunda é de ouro: mesas, cadeiras, baixelas, copos, vasilhas, enfim, todos os utensílios de uso doméstico são de ouro. Em teu tesouro há cinco toneladas de ouro; reúne os ourives da corte e manda cinzelar esse ouro; que o transformem em toda espécie de vasos e objetos ornamentais: pássaros, feras e animais exóticos; isso agradará a princesa; apresentar-nos-emos a ela, oferecendo essas coisas todas e tentaremos a sorte.

O rei convocou todos os ourives e estes passaram a trabalhar dia e noite até aprontar aqueles esplêndidos objetos. Uma vez tudo pronto, foi carregado para um navio; o fiel João disfarçou-se em mercador e o rei teve de fazer o mesmo para não ser reconhecido. Em seguida zarparam, navegando longos dias até chegarem à cidade onde morava a princesa do Telhado de Ouro.

O fiel João aconselhou o rei a que permanecesse no navio esperando.

- Talvez eu traga comigo a princesa, - disse ele; portanto, portanto, providencia para que tudo esteja em ordem; manda expor todos os objetos de ouro e adornar caprichosamente o navio.

Juntou, depois, diversos objetos de ouro no avental, desceu à terra e dirigiu-se diretamente ao palácio real. Chegando ao pátio do palácio, avistou uma linda moça tirando água da fonte com dois baldes de ouro. Quando ela se voltou, carregando a água cristalina, deparou com o desconhecido; perguntou-lhe quem era.

- Sou um mercador, - respondeu ele, abrindo o avental e mostrando o que trazia.

- Ah! Que lindos objetos de ouro! – exclamou a moça.

Descansou os baldes no chão e pôs-se a examiná-los um por um.

- A princesa deve vê-los, - disse ela; gosta tanto de objetos de ouro que, certamente, os comprará todos.

Tomando-lhe a mão, conduziu-o até aos aposentos superiores, que eram os da princesa. Quando esta viu a esplêndida mercadoria disse encantada;

- Está tudo tão bem cinzelado que desejo comprar todos os objetos.

O fiel João, porém, disse-lhe:

- Eu sou apenas o criado de um rico mercador; o que tenho aqui nada é em comparação ao que meu amo tem no seu navio; o que de mais artístico e precioso se tenha já feito em ouro, ele tem lá.

Ele pediu que lhe trouxessem tudo, mas o fiel João retrucou:

- Para isso seriam necessários muitos dias, tal a quantidade de objetos. Seriam necessárias também muitas salas de expô-los, e este palácio, parecem-me, não tem espaço suficiente.

Espicaçou-lhe assim a curiosidade e o desejo; então ela concordou em ir até ao navio.

- Leva-me, quero ver pessoalmente os tesouros que teu amo tem a bordo.

Radiante de felicidade, o fiel João conduziu-a a bordo do navio e quando o rei a viu achou que era ainda mais bela do que no retrato; seu coração ameaçava saltar-lhe do peito de tanta alegria. O rei recebeu-a e a acompanhou-a ao interior do navio. O fiel João, porém, ficou junto ao timoneiro, ordenando-lhe que zarpasse depressa.

- A toda vela, faça com que voe como um pássaro no ar, - dizia ele

Entretanto, o rei ia mostrando à princesa, um por um, os maravilhosos objetos de ouro: pratos, copos, vasilhas, pássaros, feras e monstros, exaltando-lhes as formas e o fino cinzelamento. Passaram, assim, muitas horas na contemplação daquelas obras de arte; em sua alegria ela nem sequer percebera que o navio estava navegando. Tendo examinado o último objeto, agradeceu ao mercador, dispondo-se a voltar para casa; mas chegando ao tombadilho, viu que o navio corria a toda vela rumo ao mar alto, distante da costa.

- Ah, - gritou apavorada, - enganaram-me! Fui raptada, estou à mercê de um vulgar mercador, prefiro morrer!

O rei, então, pegando-lhe a mãozinha disse:

- Não sou um vulgo mercador; sou um rei de nascimento não inferior ao teu. Se usei de astúcia para te raptar, fi-lo por excesso de amor. Quando vi pela primeira vez teu retrato, a emoção prostou-me desmaiado.

Ouvindo essas palavras, a princesa do Telhado de ouro sentiu-se confortada e de tal maneira seu coração se prendeu ao jovem, que consentiu em se tornar sua esposa.

O navio continuava em mar alto e os noivos extasiavam-se a contemplar aqueles objetos todos; enquanto isso, o fiel João; sentado à proa, divertia-se a tocar o seu instrumento; viu, de repente, três corvos esvoaçando, que pousaram ao seu lado. Parou de tocar, a fim de ouvir o que grasnavam, pois tinha o dom de entender a sua linguagem. Um deles grasnou:

- Ei-lo que vai levando para casa a princesa do Telhado de Ouro?

- Sim, - respondeu o segundo, - mas ela ainda não lhe pertence!

- Pertence, sim, - replicou o terceiro, - ela está aqui no navio com ele.

Então o primeiro corvo tornou a grasnar:

- Que adianta? Quando desembarcarem, sairá a seu encontro um cavalo alazão, o rei tentará montá-lo; se o conseguir, o cavalo fugirá com ele, alcançando-se em voo pelo espaço, e nunca mais ele voltará a ver a sua princesa.

- E não há salvação? – perguntou o segundo corvo.

- Sim, se um outro se lhe antecipar e montar rapidamente no cavalo; pegar o arcabuz que está no coldre e conseguir com o mesmo matar o cavalo; só assim o rei estará salvo. Mas quem é que está a par disso? Se, por acaso, alguém o soubesse o prevenisse o rei, suas pernas, dos pés aos joelhos, se transformariam em pedra, quando falasse.

O segundo corvo falou:

- eu sei mais coisas. Mesmo que matem o cavalo, o jovem rei não conservará a noiva, pois, ao chegarem ao castelo, encontrarão numa sala um manto nupcial que lhes parecerá tecido de ouro e prata, ao invés disso é tecido de enxofre e de pez. Se o rei o vestir, queimar-se-á até a medula dos ossos.

O terceiro corvo perguntou:

- E não há salvação?

- Oh, sim, - respondeu o segundo, - se alguém tendo calçado luvas, agarrar depressa o manto e o atirar ao fogo para que se queime, o jovem rei estará salvo. Mas que adianta se ninguém sabe disso? E se soubesse e prevenisse o rei, se transformaria em pedra desde os joelhos até o coração.

O terceiro corvo, por sua vez, falou:

- Eu ainda sei mais: mesmo que queimem o manto, ainda assim o jovem rei não terá a noiva; pois, após as núpcias, quando começar o baile e a jovem rainha for dançar, ficará repentinamente pálida e cairá no chão como morta. E se alguém não a acudir depressa e não sugar três gotas de sangue de seu seio direito, cuspindo-o em seguida, ela morrerá. Mas se alguém souber disso e o revelar ao rei, ficará inteiramente de pedra desde a cabeça até as pontas dos pés.

Finda essa conversa, os corvos levantaram voo e sumiram. O fiel João, que tudo ouvira e entendera, tornou-se, desde então, tristonho e taciturno. Se não contasse o que sabia ao seu amo, este iria de encontro à própria infelicidade; por outro lado, porém, se lhe revelasse tudo, seria a própria vida que sacrificaria. Por fim resolveu-se: "Devo saldar meu amo, mesmo que isso me custe a vida."

Quando, portanto, desembarcaram, sucedeu exatamente o que havia predito o corvo: saiu-lhes ao encontro um belo cavalo alazão.

- Muito bem – exclamou o rei, - este cavalo me levará ao castelo, e fez menção de montá-lo.

O fiel João, porém, antecipou-se-lhe, saltou na sela, tirou o arcabuz do coldre e, num instante, abateu o cavalo. Os outros acompanhantes do rei, que não simpatizavam com o fiel João, exclamaram indignados:

- Que absurdo! Matar um animal tão belo! Tão apropriado para levar nosso rei ao castelo!

- Calem-se, deixem-no fazer o que achar conveniente; sendo meu fidelíssimo João, deve ter motivos razoáveis para agir assim.

Encaminharam-se todos para o castelo; na sala depararam com o manto nupcial, que parecia tecido de ouro e prata, sobre uma salva. O jovem rei logo quis vesti-lo, mas o fiel João, com gesto rápido afastou-o e, de mais enluvadas, agarrou o manto e o lançou ao fogo, que o consumiu imediatamente.

Os acompanhantes do rei tornaram a protestar contra esse atrevimento:

- Vejam só! Ousa queimar até o manto nupcial do rei!

Mas o rei tornou a interrompê-los:

- Calem-se! Deve haver um sério motivo para isso; deixem que faça o que deseja, ele é meu fidelíssimo João.

Tiveram inicio as bodas, com grandes festejos. Chegando a hora do baile, também a noiva quis dançar; o fiel João, atento às menores coisas, não deixava de observar-lhe o rosto; de súbito, viu-a empalidecer e cair como morta. De um salto, aproximou-se dela, tomou-a nos braços e carregou-a para o quarto, reclinando-se em seu leito; ajoelhando-se ao lado da cama, sugou-lhe do seio direito três gotas de sangue e cuspiu-as. Com isso ela imediatamente recuperou os sentidos e voltou a respirar normalmente.

Orei, porém, que a tudo assistia sem comprometer as atitudes do fiel João, ficou furioso e ordenou:

- Prendam-no já! Levem-no para o cárcere.

Na manhã seguinte, o fiel João foi julgado e condenado a morte. Levaram-no ao patíbulo, mas, no momento de ser executado, de pé sobre o estrado, resolveu falar.

- Antes de morrer, todos os condenados têm direito de falar; terei eu também esse direito?

- Sim, sim – anuiu o rei

Então o fiel João revelou a verdade

- Estou sendo injustamente condenado; sempre te fui fiel.

E narrou, detalhadamente, a conversa dos corvos, que ouvira quando estavam a bordo em alto mar. Fizera o que fizera só para salvar o rei, seu amo. Então, muito comovido, o rei exclamou:

- Oh, meu fidelíssimo João, perdoa-me! Perdoa-me! Soltem-no imediatamente.

Porém, assim que acabara de pronunciar as ultimas palavras, o fiel João caiu inanimado, transformado em uma estátua de pedra.

A rainha e o rei entristeceram-se profundamente, e este ultimo em prantos, lamentava-se:

- Ah! Quão mal recompensei tamanha fidelidade!

Deu ordens para que a estátua fosse colocada em seu próprio quarto, ao lado da cama. Cada vez que seu olhar caía sobre ela, desatava a chorar, lamuriando-se:

- Ah! Se me fosse possível restituir-te vida, meu caro, meu fiel João.

Decorrido algum tempo, a rainha deu a luz dois meninos gêmeos, os quais cresceram viçosos e bonitos e constituíam a sua maior alegria. Uma ocasião, enquanto a rainha se encontrava na igreja e os dois meninos brincavam junto do pai, este volveu-se entristecido para a estátua suspirando:

- Se pudesse restituir-te a vida, meu fiel João!

Então viu a pedra animar-se e falar:

- Sim – disse ela – está em seu poder restituir-me a vida, a custa, porém do que te é mais caro.

Assombrado com essa revelação, o rei exclamou:

- Por ti darei o que me seja mais caro nesse mundo!

A pedra então continuou:

- Pois bem; se, com tuas próprias mãos, cortares a cabeça teus dois filhinhos e me friccionares com seu sangue, eu recuperarei a vida.

O rei ficou horrorizado à ideia de ter que matar seus filhos estremecidos; mas lembrou-se daquela fidelidade sem par que lhe dedicara o fiel João, a ponto de morrer para salvá-lo e não hesitou mais: sacou a espada e decepou a cabeça dos filhos. Depois friccionou com o sangue deles a estátua de pedra e esta logo se reanimou aparecendo-lhe vivo e são o seu fiel João.

- A tua lealdade – disse-lhe ele, não pode ficar sem recompensa.

Então apanhando as cabeças dos meninos, recolocou-as sobre os troncos; untou-lhes o corte com o sangue deles e, imediatamente, os garotos voltaram a saltar e a brincar como se nada houvesse acontecido.

O rei ficou radiante de alegria; quando viu a rainha que vinha voltando da igreja, escondeu o fiel João e os meninos dentro de um armário. Assim que ela entrou, perguntou-lhe:

- Foi a igreja rezar?

- Sim, respondeu ela – mas não cessei de pensar no fiel João; por nossa causa ele foi tão desventurado!

Então o rei insinuou:

- Minha querida mulher, nós poderíamos restituir-lhe a vida; mas custa a vida de nossos filhinhos. Acha que devemos sacrificá-los?

A rainha empalideceu, sentindo o sangue gelar-se-lhe nas veias; contudo animou-se e disse:

- Pela incomparável fidelidade que nos dedicou acho que devemos.

Felicíssimo por ver que a rainha concordava com ele, o rei abriu o armário e fez sair as crianças e o fiel João.

- Graças a Deus – disse – aqui está ele desencantado e temos os nossos filhinhos.

Depois contou-lhe detalhadamente o ocorrido. E, a partir de então, viveram todos juntos, alegres e felizes, até o fim da vida.

Francisca Júlia (Cristais Poéticos 2)

ADAMAH
(a Júlia Lopes d'Almeida)

Homem, sábio produto, epítome fecundo
Do supremo saber, forma recém-nascida,
Pelos mandos do céu, divinos, impelida,
Para povoar a terra e dominar o mundo;

Homem, filho de Deus, imagem foragida,
Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,
Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,
Para ser o primeiro a conhecer a vida;

Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada
Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas
De pássaros saudando a primeira alvorada,

Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas
O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada
No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...

CARLOS GOMES

Essa que plange, que soluça e pensa,
Amorosa e febril, tímida e casta,
Lira que raiva, lira que devasta,
E que dos próprios sons vive suspensa,

Guarda nas cordas uma escala imensa,
Que, quando rompe, espaço fora arrasta
Ora do mar as queixas, ora a vasta
Sussurração de uma floresta densa.

Ei-la muda; mas tal intensidade
Teve a música enorme do seu choro,
O dilúvio orquestral dos seus lamentos,

Que, muda assim, rotas as cordas, há de
Para sempre vibrar o eco sonoro
Que su'alma lançou aos quatro ventos.

NATUREZA

Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
Agita os ares de um rumor de asas medrosas;
A Natureza ri pelas bocas vermelhas
Tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
O grito dos chacais e o pranto das ovelhas,
Brados de desespero e frases amorosas
Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
Na longa sucessão das noites e dos dias,
Tanto aborto, que se transforma e se renova,

Quando meu pobre corpo estiver sepultado,
Mãe! transforma-o também num chorão recurvado
Para dar sombra fresca à minha própria cova.

A FONTE DE JACÓ

Na velha Samaria era Sicar situada;
Ora, em Sicar, Jacó, filho de Isac, um dia,
Velho já, tarda a mão, à sua gente amada
Uma fonte rasgou d'água límpida e fria.

O Mestre, certa vez, a essa borda abençoada,
(No tempo de Jesus a fonte inda existia)
À hora sexta quedou-se, a fronte angustiada
De dor, a ver passar gentes de Samaria.

Uma Samaritana, acaso, à fonte veio;
E ao passar por Jesus, com seu cântaro cheio,
O alto busto ondulou numa graça lasciva...

— Água! pediu Jesus, mata-me a sede e a mágoa!
Do cântaro, que tens, dá-me uma pouca d'água
Que, em troca, eu te darei da fonte d'água viva.

A UMA SANTA

Foge, sem ódio, ao mal; o bem pratica;
Se a dor lhe dói, cuida-a gostosa e boa,
Ou faz então com que ela lhe não doa;
Na pobreza em que está julga-se rica;

O mal, sabe que passa, o bem, que fica;
Por isso o bem acolhe e o mal perdoa.
Quanto mais vive, mais se aperfeiçoa,
Quanto mais sofre, mais se glorifica.

Por essa alta moral os atos regra;
Em nenhum outro esforço em vão se cansa,
Por nenhum outro ideal se bate em vão.

E é feliz, mais feliz porque se alegra
Não com o muito que a sua mão alcança,
Porém com o pouco que já tem na mão.

A UM VELHO

Por suas próprias mãos armado cavaleiro,
Na cruzada em que entrou, com fé e mão segura,
Fez um cerco tenaz ao redor do Dinheiro,
E o colheu, a cuidar que colhia a Ventura.

Moço, no seu viver errante e aventureiro,
O peito abroquelou dentro de uma armadura;
Velho, a paz vê chegar do dia derradeiro
Entre a abundância do ouro e o tédio da fartura.

No amor, de que é rodeado, adivinha e pressente
O interesse que o move, o anima e o faz ardente;
Foge por isso ao mundo e busca a solidão.

O passado feliz o presente lhe invade,
E vive de gozar a pungente saudade
Das noites sem abrigo e dos dias sem pão.

DE VOLTA

Mais encanto que a mais populosa cidade,
Dentre tantas que viu, a sua aldeia encerra,
— Uma nesga de gleba e socalcos de serra
Sob um céu sempre azul, de ampla serenidade.

Por tudo o olhar derrama ungido de saudade,
E, evocando o passado, os tristes olhos cerra.
Neste instante feliz, nada há que mais lhe agrade
Que sentir-se entre os seus em sua própria terra.

Chega. O primeiro amigo a quem a mão aperta,
Quase à meiga pressão se esquiva, indiferente,
E de outras efusões mais vivas se liberta.

Nessa mão, que recua, outras, frias, pressente...
Antes exílio e dor, pão duro e vida incerta,
Que o desprezo arrostar da sua própria gente.

PÉRFIDA

Disse-lhe o poeta: "Aqui, sob estes ramos,
Sob estas verdes laçarias bravas,
Ah! quantos beijos, trêmula, me davas!
Ah! quantas horas de prazer passamos!

Foi aqui mesmo, — como tu me amavas!
Foi aqui, sob os úmidos recamos
Desta aragem, que uma rede alçamos
Em que teu corpo, mole, repousavas.

Horas passava junto a ti, bem perto
De ti. Que gozo então! Mas, pouco a pouco,
Todo esse amor calcaste sob os pés".

"Mas, disse-lhe ela, quem és tu? De certo,
Essa mulher de quem tu falas, louco,
Não, não sou eu, porque não sei quem és..."

NO BAILE

Flores, damascos... é um sarau de gala.
Tudo reluz, tudo esplandece e brilha;
Riquíssimos bordados de escumilha
Envolvem toda a suntuosa sala.

Moços, moças levantam-se; a quadrilha
Rompe; um suave perfume o ar trescala;
E Flora, a um canto, envolta na mantilha,
Espera que o marquês venha tirá-la...

Finda a quadrilha. Rompe a valsa inglesa.
E ela não quer dançar! ela, a marquesa
Flora, a menina mais formosa e rica!

E ele não vem! Enquanto finda a valsa,
Ela, triste, a sonhar, calça e descalça
As finíssimas luvas de pelica!

CARIDADE

A alma do homem se torna egoísta e má
Porque a impiedade de hoje é a sua escola.
Essa, que no Evangelho se acrisola,
Caridade cristã, onde é que está?

Capazes, hoje em dia, poucos há
Dessa piedade rara, que consola,
Que os olhos fecha para dar a esmola,
A fim de que não veja a quem a dá.

Sede piedosos. Bem-aventurados
Os que fazem o bem de olhos fechados.
Pois a esmola é só útil e eficaz,

Só tem justo valor, sem dano ou perda,
Se não chega a saber a mão esquerda
O benefício que a direita faz.

OUTRA VIDA

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
Depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
De sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
Que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
Lei que me condenou à tortura constante;
Porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
Abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
Na minha solidão a sua voz escuto,
E sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
Que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio…

NOTURNO

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.

À NOITE

Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra;
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois, a pensar... De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um "requiem" doloroso.

No alto uma estrela triste as pálpebras descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso...

Em noite escura assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor tão cheia de alma...

É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.
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Fonte: