segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Mário Pontes

Mário Pontes (Nova Russas, 1932), autodidata, fez-se tipógrafo e depois jornalista, em Fortaleza. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi, por décadas, editor de cadernos de cultura do Jornal do Brasil. Além de centenas de artigos sobre livros e autores, publicou Milagre na Salina, 1977 (traduzido para o russo); Ninguém ama os náufragos; Andante com morte, 1999, Canta, violão, novela para leitores jovens; Doce como diabo, ensaios sobre poesia popular, e, em 2003, Um Homem Chamado Noel. Sua peça para adolescentes, As minas do Rei Aurino, permaneceu seis meses em cartaz no Teatro Cacilda Becker, Rio. Mario Pontes já traduziu 25 livros de ficção de autores como Camilo José Cela (Prêmio Nobel); Júlio Cortázar e Isabel Allende; e obras filosóficas, como O saber grego (66 autores europeus); Voltaire e os intelectuais, de Pierre le Pape e A razão no século XX, de Bertrand Saint-Sernin, professor da Sorbonne.

            Seus contos estão publicados em dois volumes: Milagre na Salina e Um Homem Chamado Noel. O primeiro lembra a estrutura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e de Jorge Medauar Conta Estórias de Água Preta. Os capítulos do romance podem ser lidos como pequenas histórias. Já as “estórias” de Medauar constituiriam romance, na opinião de Fernando Góes, porque os episódios narrados estão centrados na cidade de Água Preta. Também as composições de Mario se localizam em um só ambiente, Salina. No entanto, ambos são mesmo coleções de contos. Na segunda obra Salina é deixada para trás ou, pelo menos, não é mencionada. Aliás, em nenhuma narrativa a ação se desenvolve na mesma localidade, à exceção das duas primeiras, quando Lucas ainda é criança. O protagonista está sempre em viagem pelo Brasil afora. As únicas cidades mencionadas são Leonardópolis e Brasília.

Em Milagre na Salina é perfeita a pintura do ambiente, dos personagens e das ações. Salina é a parte mais pobre de qualquer cidadezinha do Nordeste brasileiro. Teofânio, Antonio Profeta, Chico Pé-de-Valsa, Francalino, Situba, delegado Ermírio, dona Toinha, Manoel de Rosa, Zacarias, Cardoso, Campeão, Xandu, Mino e outros são nordestinos sob todos os aspectos. Os crimes, as safadezas, as intrigas praticadas pelos seres fictícios parecem relatadas por cantadores de feiras. Tudo é como se estivesse o leitor vivendo aquela bruta vidinha da cidade miúda da terra de secas e enchentes.

O espaço geográfico em que se movimentam os seres fictícios é o mesmo. Vez por outra, protagonistas de um capítulo surgem às escondidas em outros. É o caso de Teofânio, o dono da bodega aonde quotidianamente os bêbados da Salina vão se embriagar e contar as novidades. E nem mesmo ele consegue sobrelevar-se à categoria de primeiro personagem, apesar de quase todos os contos serem narrados em sua bodega.

Em Um Homem Chamado Noel a armação da estrutura do livro é semelhante à de Milagre na Salina: um personagem, Lucas (nas três primeiras narrativas aparece com o nome de Mino, apelido de infância), amarra uma peça a outra, ora como narrador, ora protagonista e, às vezes, testemunha ou deuteragonista. O drama se desenrola em diversas localidades ou cidades ou por onde anda Lucas. Os demais seres fictícios atuam uma só vez, isto é, não reaparecem em outras células dramáticas. Assim, Noel, personagem principal da obra que dá título ao livro, não é encontrado nas demais. Por isto, o melhor título para a coleção talvez fosse outro, como Ícaro. Pois o herói grego é o próprio Mino ou Lucas em sua luta pela sobrevivência, em seus voos ao longo da vida, em suas buscas de liberdade. Ou A Morte Vermelha, pela presença constante da “indesejada das gentes” em todos os episódios.

                O grande ser fictício do livro é Mino ou Lucas. Se se tratasse de novela ou romance, seria o protagonista. As histórias se sucedem ao longo de sua vida. Em “Ícaro”, “mal acabava de completar nove anos”. Em “A Morte Vermelha”, mestre Aldo, seu pai, recrimina mulher que não parava de falar de tragédias: “Olhe meu filho, é quase uma criança!”. Nos demais contos Lucas é adulto: em “Não olhe para trás” realiza o sonho de sair de casa, fugir para longe, aventurar-se pelo mundo, viver a própria vida (e a dos outros).

O tempo vivido pelo protagonista pode ser apreendido aos poucos: no início o pai fumava cigarro Colomy e vestia paletó de caroá; o padre misturava latim (Dominus vobiscum) ao português, nos sermões. Num segundo momento, havia estrada de ferro, trens de passageiros, e ainda não se falava em rodoviária e ônibus. Na terceira peça, há uma estação ferroviária e uma tipografia onde se imprimia um jornalzinho. Em “O Dia de Tudo” há um velho major da antiga e extinta Guarda Nacional, a dar vivas ao Estado Novo. Em “O Rapto de Sabina” Lucas diz haver nascido pela mão de uma parteira. Em “Um Homem Chamado Noel” a ação decorre em 1949, como se pode ver em trecho da narração em que Noel aciona “isqueiro em casca de bala de metralhadora: uma das modas criadas pela guerra já velha de quatro anos”. O episódio derradeiro da última narrativa do volume se desenvolve depois de 1964, numa Brasília ainda calma, “calma demais, rígida como se a houvessem nocauteado”.

As dez histórias da obra são todas longas para os padrões de hoje, ocupando a mais curta oito páginas, e a mais longa, vinte. Sete delas têm narrador em terceira pessoa e as demais em primeira pessoa, Mino ou Lucas. Na última, o leitor não encontrará referência ao nome do narrador, mas logo no início lerá: “Ia encontrar meu pai carpinteiro” (...). Na primeira peça o pai de Mino é mestre Aldo, marceneiro, e contracena com o protagonista. No segundo também tem papel fundamental e a sua profissão é mostrada com orgulho pelo garoto, embora os ricos da cidade não admitissem que um carpinteiro residisse na Praça da Matriz, “quadrilátero” nobre, onde moravam “o prefeito, o juiz, o delegado de polícia, o primeiro tabelião e alguns dos mais abastados comerciantes da cidade”. Nos demais contos Aldo desaparece.

O ponto de vista às vezes passa da terceira pessoa para a primeira, mas de maneira sensata, premeditada, como em “Os Loucos de Jamal”. Os personagens são de duas categorias: uma narradora e um interlocutor, de um lado ou no presente, e o sírio Jamal, seus amigos espíritas, os loucos, o oficial de justiça Adel e outros de menor importância, no passado ou como personagens de Helu. Ou seja, há dois narradores: um onisciente, não-personagem, e outro também onisciente, mas personagem. O segundo inicia a narrativa: “Naquele tempo a cidade era uma rua e uma praça”. É interrompido pelo primeiro (por travessões): “– Helu contou a Lucas, exagerando a beleza de sua voz, não menor que a de seu rosto –”. Este, na verdade, só se manifesta para passar a voz da narradora para o interlocutor e fazer comentários à beleza da jovem, a quem chama de “fada narradora”.

As histórias de Mario Pontes são realistas, embora de um realismo mais próximo do exotismo. Uma das mais belas, “A morte vermelha”, é envolta pela atmosfera da narrativa macabra, como num desfile funéreo, numa dança da morte, a arrastar os vivos. Também “Os loucos de Jamal”, uma das mais estranhas do volume, na qual se mesclam espiritismo, loucura, intolerância, violência. O desfecho é de uma crueza digna dos mestres do conto de horror, a lembrar Edgar Poe. Estranha é ainda “Felismende, ourives”, de enredo intocável. “O dia de tudo” chega a ser burlesca ou bufa. O burlesco também se apresenta em “Revelações noturnas”. Já “O Rapto de Sabina” é outra história exótica, numa mistura de aventura com crime. A composição que dá título ao livro pode também ser posta nesse rol, pela singularidade do protagonista, misterioso em seus atos e sua fala. “Sancho e a Rainha” segue a mesma linha de mistério, aventura, crime, como nas boas obras do gênero policial.

As peças de Mario Pontes têm a estrutura do conto dito tradicional, com começo, meio e fim, embora aqui e ali utilize o flashback, como em “Felismende, ourives”, “O rapto de Sabina” e, sobretudo, em “Sancho e a Rainha”. A narrações minuciosas se sucedem diálogos alongados. As descrições não chegam a enfadar o leitor e até engalanam a prosa: “um poste de ferro, fundido e floreado”; “um sujeito muito magro, levemente recurvo”; “rosto estreito como um machado, terminando em um nariz fino, uma lâmina” (“Não olhe para trás”).

São raros os contos de flagrante; quase todos têm suas tramas desdobradas ao longo de meses e anos, com o surgimento e o desaparecimento de personagens. Num deles, Lucas caminha por longas horas, para se afastar da cidade onde vive; à noite chega “a um pequeno povoado”; no dia seguinte alcança uma cidade maior; passa-se uma semana; “ao cabo de seis meses” decide retomar a estrada...

Mario Pontes é escritor vocacionado para a novela e o romance. Entretanto, isto não menospreza as suas composições, que não podem ser vistas como rascunhos de obras de maior envergadura. A sua vocação é a de criador de personagens ricos e enredos substanciosos, de manipulador de tempos e espaços amplificados e de apóstolo de um realismo exótico.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos)


SONETO à FLORBELA ESPANCA
*8.12.1894  - +8.12.1930
-
Foi amando teus versos que aprendi
a soluçar também o mal do amor,
nos desencontros e no frenesi
que envolveram meu estro sonhador...

 Soubeste extravasar todo o calor
que sentias, assim como senti,
das paixões que me fazem ser cantor
dos mesmos temas que provêm de ti.

 Ó divina poetisa, os teus tormentos
expressos na poesia e nos lamentos,
que soluçaste, fazem-te imortal...

 Ninguém foi tão sincera e tão brilhante,
fazendo versos de mulher e amante,
enaltecendo sempre Portugal !

SONETO A RAINER MARIA RILKE
Nascimento do poeta em 4.12.1875

Sonetos geniais vou lendo agora
de um primoroso vate que escreveu:
´´Cartas a um Jovem Poeta´´ e lhe deu
conselhos pra seguir a qualquer hora...

´´A obra de arte é boa quando nasceu
por necessidade...(...),´´; nada descora
a beleza natural de uma aurora
e o que criares sempre vai ser teu !

Rainer Maria Rilke, também busco
em teus escritos muito que preciso
pra poetizar meus versos de sozinho;

e te aprendendo sei que não ofusco
minha tarefa, às vezes, de indeciso,
sempre à procura de um melhor caminho !

SONETO PARA O ANO-NOVO

Há quanto tempo não escrevo um verso,
De amor ardente ou de filosofia...
Quem me dera, fazê-lo neste dia
De Ano-Novo no esplêndido Universo !

Vede a luz que dos céus tanto irradia
Raios difusos quando me disperso
Em pensamentos e me vejo imerso
No mar azul da linda fantasia !...

E quem sinto povoar-me a solidão,
nessas horas em que o sol vai se pôr ?!
- Posso dizer que é uma grande paixão !

E aquela que a causou não vou falar,
Talvez nem saiba compreender o ardor
De minh´alma... Terá que adivinhar !

A PORTA QUE SE ABRIR...

Ouvindo a música suave e mansa
eu passo as minhas horas solitárias...
Que difícil manter uma esperança
quando as próprias ideias são contrárias !

Como desejo ter uma mudança,
nestas ocasiões, tão necessárias;
penso na estrela que jamais se alcança
e na desgraça que recai nos párias...

Entretanto, procuro não cair,
porque os espíritos, enfim, reagem
mesmo perante a mais feroz tristeza...

Espero pela porta que se abrir
em meu destino e assim me dê passagem
p’ra conviver com a tua beleza…

SONETO A GONÇALVES DIAS
Falecimento do poeta em 3.11.1864- In Memoriam -

Poeta das palmeiras e também
dos indígenas, com força genial,
cantou grandes amores que ninguém
houvera feito assim sentimental…

Lendo seus versos a saudade vem
me visitar de modo especial,
da minha terra que palmeiras tem
onde o sabiá modula sem igual.

Gonçalves Dias, vate da natura,
és um astro que em nosso céu fulgura,
com tuas mais românticas poesias…

Soubeste transmitir a inspiração
que as Musas te trouxeram na solidão
do mundo ideal das alegorias !

SONETO A CARLOS MAGALHÃES DE AZEREDO
- Falecimento do poeta em 4.11.1963 aos 91 anos. – In Memoriam -.

Quando leio sonetos dos poetas,
velhos românticos de antigamente,
sinto quão suas musas são diletas
nos versos que escreveram docemente…

Poesias inspiradas e discretas,
mas também outras, de romance ardente,
que tudo dizem, atingindo as metas
que se propunham, na paixão ingente.

Leio Carlos Magalhães de Azeredo,
o seu ´´Verão e Outono´´, em que demoro,
curtindo um verso no final do enredo

em que ele escreve: ´´Doce e amargo encanto !
São tuas próprias lágrimas que choro !´´
E aprendo, então, como é tão forte o pranto…

SONETO A RUI BARBOSA
Nascimento do escritor Rui Barbosa em 5.11.1849 – In Memoriam -

Rui Barbosa
Literato
Foi de fato
Rei da Prosa.

Escritor
Mui correto
Tão dileto
Prosador.

Assombrou
C´o saber
Tão profundo…

Pois honrou
Seu dever
Neste mundo.

SONETO ALEXANDRINO A AMADEU AMARAL
Nascimento do poeta Amadeu Amaral em 6.11.1875 – In Memoriam -

“Rios”, “Sonhos de Amor”, e “A um Adolescente”,
são sonetos de escol que leio comovido,
porque me fazem bem neste dia envolvente
pela nublada luz do céu escurecido…

E fico a meditar, trazendo para a mente,
os poemas “A Estátua e a Rosa”, em sublime sentido;
“Prece da Tarde”, quando exsurge a voz do crente
como um sopro de amor no caminho escolhido…

Estou perante o mestre Amadeu Amaral,
cujos versos serão sempre muito admirados,
como régio cultor da nobre poesia…

Além do mais, ficou sendo vate Imortal,
pois eleito ele foi por membros consagrados
de nossa Brasileira Excelsa Academia !

SONETO PARA CECÍLIA MEIRELES
Nascimento da poeta em 7.11.1901 – In Memoriam -

Procuro viajar nestes poemas
que me emocionam tanto e permaneço
conhecendo em mais variados temas,
a vida alegre ou triste em que padeço…

Procurei fazer versos, de tropeço
em tropeço, p´ra resolver problemas
que enfrentei no viver, desde o começo,
quando me apareciam os dilemas.

Um dia encontrei doce poesia
melancólica, plena de ternura,
mas também sempre límpida e correta.

São horas de tristeza e nostalgia
que me suscitam a feliz candura,
de Cecília Meireles, a poeta !

SONETO A ARTHUR RIMBAUD
Falecimento do poeta francês em 10.11.1891 – In Memoriam -

Jovem poeta que parou bem cedo
de fazer versos plenos de emoção…
Soneto de “Vogais” em cujo enredo
cada uma tem a significação.

Sua obra não foi simples arremedo
de alguém que pensa apenas na ilusão;
não se sabe do enigma nem do medo
de a poesia dar continuação…

O certo é que depois, quando indagado
se era parente de Rimbaud, dizia:
“Eu nunca ouvi falar !” E assim calado

continuou pelo resta da vida, só,
com sua nova e vã filosofia
em que se sabe que seremos pó !

SONETO A AUGUSTO DOS ANJOS
Falecimento do poeta em 12.11.1914 – In Memoriam -

Leio seus versos de poeta ousado,
e me comovo com a verve forte,
que se deprime qual um condenado,
a cada instante lamentando a sorte.

Mas foi um grande, embora desgraçado,
sem ter um lenitivo que o conforte,
em cada verso um passo encaminhado
rumo ao destino que o esperava: a morte !

E sendo um vândalo destruidor,
andou por ´´templos claros e risonhos´´,
como num pesadelo com pavor…

Então, num ímpeto de iconoclastas,
´´quebrou a imagem dos seus próprios sonhos´´,
´´erguendo os gládios e brandindo as hastas´´!

SONETO A CRUZ E SOUSA
Nascimento do poeta em 24.11.1861 – In Memoriam -

Poeta das Visões e dos Mistérios,
Evocando outros mundos de Quimera
Onde devem viver seres etéreos
Que por aqui passaram n´outra Era…

São espíritos cuja Vida austera
Atravessaram cá momentos sérios,
Sem conhecer a eterna Primavera,
Hoje ouvindo dos Anjos os saltérios…

São as almas que o Vate Cruz e Sousa
Evocava em seus versos: “ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?!”

Lembramos que sua alma ora repousa
Por Mundos para nós desconhecidos,
Mas plenos de canções… louvor… hosanas…

APÓS LER CRIME DO PADRE AMARO DE EÇA DE QUEIROZ
Nascimento do escritor em 25.11.1845 – In Memoriam -

Uma história de amor que nos surpreende,
libélulo ao celibato imposto,
lança no espírito feroz desgosto
que por maior esforço não se entende.

São os mistérios que jamais se aprende:
uma existência trágica ao sol-posto
penetra o cérebro e no próprio rosto
dá contrações de nervos e se estende.

O mundo estupefato ao Padre Amaro
lançará seu desprezo inconformado,
pois mesmo que procure achar amparo

na vã filosofia de um idílio,
surgirão tão fatal como o pecado
a pobre Amélia morta e morto o filho…

SONETO  A GREGÓRIO DE MATOS
Falecimento do poeta em 26-11-1696 – In Memoriam -

Gregório de Matos – Boca do Inferno,
assim o apelidou o poviléu,
apesar de às vezes ser mui terno
e descantar também bênçãos do céu…

Na Bahia causavam escarcéu,
suas notas satíricas e hodierno,
se despertou talvez algum labéu,
há de ficar seu estro sempiterno…

Vejo que a data do seu nascimento,
será sete de abril?! ou vinte e três,
ou vinte de dezembro?! Não é certa…

Mas sei que foi poeta de talento,
e tudo o que escreveu, e disse, e fez,
mostra a coragem de sua alma aberta…

VENTO DO MAR

 Vento que sopras furibundo
 e vens meus sonhos despertar,
 as tristezas de todo o mundo
 parece que trazes do mar…

 Ouvindo o lamento profundo
 sempre constante a marulhar,
 quedo-me triste, me confundo
 co’a voz misteriosa do mar…

 Altas horas, cada segundo
 teimas o meu corpo abraçar,
 quando em reflexões me aprofundo
 para obter segredos do mar…

SONETO
Comemora-se no Brasil, o Dia Nacional da Leitura (a partir de 2009 – Lei nº 11.899).

A distração do espírito é a leitura
e os grandes mestres nos ensinam tal;
nas obras-primas, vasto cabedal
a mente encanta e o pensamento apura…

A existência tem fases de amargura,
pois há um confronto assaz fenomenal:
de um lado luta o bem e de outro o mal
e o que vence por fim é o que perdura.

Escrevam, romancistas, seus romances !
Cantem, poetas, salutar poesia !
Porquanto houver na vida tantos transes,

não vão morrer as páginas aflitas
e nem há de ficar a imagem fria
das criações pra todo sempre escritas.

DIA DA CRIANÇA

Julgavas que este amor não encontrasse
pedras e espinhos pela estrada afora,
mas são os sofrimentos e a demora
o que fazem eterno o que é fugace.

Repara-me nos olhos e na face
para ver quanta mágoa me devora,
por não ter alma cândida e sonora
a fim de ser o que teu sonho amasse.

Deixemos de torturas e cansaços,
reclina-te serena nos meus braços,
confia em mim na maior esperança…

Faz de conta que nada mais existe,
então verás alguém que foi tão triste
convertido na mais alegre criança…

SONETO   ÍNTIMO

 Enfrenta teu destino sem alarde;
 que ninguém saiba o que te vai na mente…
 Não te lastimes, murmurando: “É tarde !”
 Esquece o teu passado, indiferente…

 Também não fujas, como vil covarde,
 à luta que te espera, e simplesmente
 pede ao Senhor que te proteja e guarde
 em Sua bondade infinda, onipotente.

 Encontrarás, enfim, sabedoria
 para atingir a meta projetada,
 sem falso orgulho, mágoa ou rebeldia;

 porque tua fé com força redobrada
 renascerá com flores de alegria,
 enfeitando pra sempre tua estrada.

CATULLO DA PAIXÃO CEARENSE
Soneto em homenagem póstuma – In Memoriam

Faz-me lembrar o tempo de menino,
no lar paterno, lá na velha aldeia,
com minha mãe, irmãos e irmãs, na ceia,
de noitezinha, ao bimbalhar do sino…

Depois, eu contemplava a lua cheia
e perguntava aos céus: qual meu destino,
neste mundo que roda e cambaleia,
com momentos de luz e desatino?!…

E ouvia a minha voz na voz do vento,
dizendo que eu tivesse paciência,
estudasse, aprendesse e na paixão

de adquirir maior conhecimento,
ingressasse no reino da sapiência…
Que lindo era o Luar do meu Sertão !…

SONETO DE UM CAVALEIRO TRISTE

O sol descai… Montado no alazão
eu sigo pensativo pela estrada,
ouvindo o triste mugir da manada
que procura abrigar-se no capão.

Horas de amor… horas que o coração
modula calmamente uma toada;
que a tarde vai descendo para o nada
e cheio de poesia fica o rincão.

Morre a tardinha e nasce então o sonho
que anima, que cativa, que reluz,
embora seja às vezes tão tristonho.

A noite vai descendo, foge a luz,
por toda parte um reluzir tardonho
e eu prossigo levando a minha cruz !

SONETO DE UM ANDARILHO

Eu vivo solitário e maltrapilho,
a caminhar por este mundo afora,
e levo a vida por um triste trilho,
boêmio sem amor e sem aurora.

Da solidão sou sempre um pobre filho,
e com imensa dor minh´alma chora,
quando lembro sozinho o nosso idílio,
aquele louco amor que tive outrora.

Hoje, tristonho e maltrapilho vivo,
da sociedade sempre longe, esquivo…
Apenas nas tabernas acho paz.

E lá, quando me afogo na bebida,
olvido a desventura desta vida
e penso, doido, que me amando estás.

SONETO ARDENTE
Aos poucos vou contando minha história
nos poemas, nas crônicas, nos versos
dos sonetos, das trovas… – merencória
poesia – todos por aí dispersos…

Relembrando os amores mais diversos
que passaram, bem sei, longe da glória
de se concretizarem ou perversos,
magoando a minha triste trajetória…

Lendo as páginas de outros sonhadores
que enfrentaram fracassos, dissabores,
eu me ponho a pensar no céu da vida

que me pudesse dar felicidade
e chego a bendizer esta saudade
como se aos beijos da mulher querida…

SONETO TRISTONHO

Que lindo é o modular do passaredo
que canta desde a aurora vir chegando
até que a tarde triste vá tombando
e a noite desça cheia de segredo.

Ai! quem me dera que eu cantasse ledo
sem estes prantos que me vão cegando
e quando a noite vier se aproximando,
cantar contente sem nenhum degredo !

Como meu peito já não quer cantar
e minha vida sem amor definha,
no verso derradeiro a chorar

te peço encantadora moreninha,
que quando a morte me vier buscar,
reza uma prece pela alma minha !

MATE NO GALPÃO

O mate amargo passa de mão em
mão e a gente se lembra de tropeadas
do destino que leva por estradas
desconhecidas, tristes, sem ninguém.

A cuia prateada me entretém,
escutando os causos dos camaradas
que fizeram de suas gauchadas
por terras que se somem pelo além.

Ruivo fogo crepita no galpão,
nobre abrigo dos tauras soberanos
que saudosos se ajuntam no rincão

a fim de recordar passados anos.
E a cuia do gostoso chimarrão
me é tristezas, saudades, desenganos…

SONETO DO FIM DO DIA

A noite vem descendo vagamente,
as estrelas no céu vão apontando,
a lua começa sua jornada urgente,
de um lado para outro vai passeando…

Quem nestas horas, de um amor ausente,
não fica triste a imensidão mirando,
e embora tantas vezes queira e tente
modular, de tristor fica chorando?!

Nesses momentos sempre é que a saudade
me desanima, me tortura, ingrata…
E eu me recordo, olhando a imensidade,

dos felizes passeios pela mata;
e a feroz aflição que então me invade
irrompe dentro em mim como cascata !

SONETO À MULHER MORENA

Linda manhã radiosa me convida
a prosseguir nos passos rumo ao mundo,
porque sonhar amando é tão profundo,
que mais e mais, também prolonga a vida !

Mas se eu pudesse ser um vagabundo,
sem conhecer a estrada percorrida,
com certeza, conceberia a lida
de procurá-la até em um submundo…

Eu sei que vou lhe amar a todo o instante,
com seu sorriso límpido e brilhante,
qual se fosse de Alencar – ´´A Iracema´´!…

E para consagrar meu preito à bela
morena, que não sai da minha tela,
eis o soneto que ainda é o poema !

FARRAPO

Levantou-se o gaúcho sobranceiro
no alto da coxilha verdejante,
carregava uma carga no semblante
dum tristor que seria o derradeiro.

A glória de lutar e ser galante:
o sonho que conduz o aventureiro.
A glória de ser livre e ser gigante:
o lema que conduz o pegureiro.

Este lema e este sonho se fundiram
e assim surgiu o nobre Farroupilha
que lutou com ousada galhardia,

porque a honra e a justiça escapuliram
da canhada e do topo da coxilha,
do pago em que ele viu a luz do dia !

QUANDO MURCHAR A PRIMAVERA

Quando murcharem as flores dos caminhos
e o peito calar-me indiferente
como a serena mudez dos passarinhos
em noite senil e permanente…

Órfão de afetos, insaciado de carinhos
caminharei tristonho de dolente,
buscando outras sensações em novos ninhos
como a cura ao meu amor fervente.

E nada há de curar a viva chaga
que deixaste a sangrar em meu desejo
ao provar a doçura do teu beijo

naquela tardinha rubra e vaga
e onde estiveres chorarás baixinho
a mágoa de deixar-me tão sozinho.

CANSAÇO

No corpo sentírás a lassidão
de uma canseira incrível, de um torpor
que te virá só para em ti depor
as esperanças que te morrerão…

E numa palidez verás, então,
teus olhos magoados pela dor,
vidrados sem o brilho sonhador
que te deixava tão alegre são…

Desejarás dormir nestes instantes.
O sono não virá dar-te um abraço.
Irás cantar, mas inda que tu cantes

passarás amarguras como passo
e enxergarás que em risos deslumbrantes
te sorrirá flamívolo cansaço…

sábado, 4 de janeiro de 2014

Cláudio de Cápua (Meu Sonho)


Irmãos Grimm (A Donzela sem Mãos)

Era uma vez, há alguns anos, um homem que ficava na estrada e que possuía uma pedra enorme de fazer farinha, com a qual moia cereal da aldeia. Esse moleiro estava passando por dificuldades e não restava nada além da enorme pedra de moinho e da grande macieira florida atrás da construção.

Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de prata para cortar lenha, um velho estranho surgiu atrás de uma árvore.
 
- Não há necessidade de você se torturar cortando lenha – disse o velho em tom engabelador – posso adorná-lo de riquezas se você me der o que esta atrás de seu moinho.
 
- O que esta atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? – perguntou-se o moleiro, concordando com a proposta do velho.
 
- Dentro de três anos virei buscar o que é meu – disse o estranho rindo a socapa, e foi embora a mancar, desaparecendo entre os troncos das árvores.
 
O moleiro encontrou sua mulher no caminho. Ela havia saído correndo de dentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.
 
- Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógio mais bonito, nossas cadeiras rústicas foram trocadas por cadeiras de veludo, nossa pobre despensa esta repleta de carne de caça, nossas arcas e baús transbordam de tão cheios. Diga-me, por favor, como isso aconteceu. – e nesse exato momento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo foi puxado e preso num arco dourado.
 
- Ah, disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a ser de cetim. Diante dos seus olhos, seus sapatos de madeira com salto tão gastos que ele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos sapatos. – Bem, isso foi um desconhecido – disse ele, ofegante. - Deparei-me com um homem estranho, com uma sobrecasaca escura. E ele me prometeu enorme fortuna se eu lhe desse o que está atrás de nosso moinho. Ora mulher, claro que podemos plantar outra macieira.
 
- Ai, meu marido! – lamentou-se a mulher dando a impressão de ter levado um golpe mortal. – O homem de casaco escuro era o diabo e o que está atrás do moinho é a árvore sim, mas a nossa filha está lá varrendo o quintal com uma vassoura de salgueiro.
 
E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas sobre seus trajes. A filha permaneceu sem se casar durante três anos, e tinha o temperamento como uma das primeiras maçãs doces da primavera. No dia que o diabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e ficou parada num círculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o diabo estendeu a mão para agarrá-la, uma força invisível o lançou para o outro lado do quintal.
 
- Ela não pode mais se banhar – berrou ele. – Ou não vou conseguir me aproximar dela.
 
Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram em que ela ficou sem se banhar, até que o cabelo ficou emaranhado; suas unhas, negras; suas roupas encardidas e duras de sujeira. Então; como a donzela parecia cada vez mais com um animal, surgiu mais uma vez o diabo. No entanto; a menina chorou e suas lágrimas escorreram pelas mãos e pelos braços. Agora suas mãos e seus braços estavam alvíssimos e limpos. O diabo ficou furioso.
 
- Cortem-lhe fora as mãos, do contrário não vou poder me aproximar dela.
 
- Você quer que eu corte as mãos da minha própria filha? – perguntou o pai horrorizado.
 
- Tudo aqui irá morrer, berrou o diabo. – Você, sua mulher e todos os campos até onde sua vista alcance.
 
O pai ficou tão apavorado, que pedindo perdão a sua filha começou a afiar o machado. A filha conformou-se.
 
- Sou sua filha, faça o que deve fazer.
 
E foi o que ele fez; no final ninguém podia dizer quem gritou mais alto, se foi o pai ou a filha. Terminou assim a vida da menina da forma que ela conhecia. Quando o diabo voltou, a menina havia chorado tanto, que os troncos que lhe restavam estavam novamente limpos, e o diabo foi mais uma vez atirado para o outro lado do quintal quando tentou agarrá-la.
 
Lançando maldições que provocavam pequenos incêndios na floresta, ele desapareceu para sempre, pois havia perdido todo o direito sobre ela.
 
O pai havia envelhecido cem anos, e sua esposa também. Como autênticos habitantes da floresta, eles continuaram como podiam. O velho pai fez a oferta de manter a filha num imenso castelo de beleza e riqueza pelo resto da vida, mas a filha disse achar mais condizente que se tornasse mendiga e dependesse da bondade dos outros para seu sustento. E assim ela fez com que atassem seus braços com gaze limpa e ao raiar do dia ela se afastou da sua vida como havia sido até então.
 
Ela caminhou muito. O sol do meio dia fez com que o suor escorresse riscando a sujeira de seu rosto. O vento desgrenhou tanto o seu cabelo que até parecia um ninho de cegonha com gravetos enfiados de qualquer jeito. No meio da noite, ela chegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos das árvores. Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso. Caiu, então de joelhos, pois estava faminta. Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e fechou a compota para esvaziar o fosso.
 
A donzela caminhou por entre as pereiras sabendo de algum modo que cada fruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles eram também vigiados. Mesmo assim, um ramo curvou-se abaixo para que ela o alçasse, fazendo o galho estalar. Ela tocou a pele dourada da pêra com os lábios e comeu ali em pé ao luar, com os braços atados em gaze, os cabelos desgrenhados, parecendo uma mulher de lama, a donzela sem mãos.
 
O jardineiro viu tudo, mas reconheceu a magia do espírito que a protegia e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer aquela única pêra, ela se retirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.
 
No dia seguinte o rei veio contar suas pêras. Ele descobriu que uma estava faltando, mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o fruto desaparecido. Quando lhe perguntaram o jardineiro tinha a explicação.
 
- Ontem a noite dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim a luz do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pêra que se oferecia a ela.
 
O rei disse que iria montar guarda naquela noite. Quando escureceu ele veio com o jardineiro e o mago que sabia conversar com espíritos. Os três se sentaram debaixo de uma árvore e ficaram vigiando. À meia noite, a donzela veio flutuando pela floresta, com roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braços sem mãos e o espírito de branco ao seu lado. Eles entraram no pomar da mesma forma que antes. Mais uma vez a árvore curvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pêra que estava na ponta do ramo. O mago aproximou-se deles, mas não muito.
 
- Vocês são deste mundo ou não são?- perguntou ele.
 
- Eu fui outrora do outro mundo – respondeu a donzela. – no entanto não sou deste mundo.
 
- Ela é humana ou é um espírito? – perguntou o rei ao mago, e ele respondeu que era as duas coisas. O coração do rei deu um salto, e ele se apressou a chegar a ela.
 
- Não renunciarei a você – exclamou o rei - deste dia em diante, eu cuidarei de você.
 
No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foram amarradas aos seus braços. E foi assim que o rei se casou com a donzela sem mãos.
 
Passado algum tempo o rei teve que ir combater num reino distante e pediu à mãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo coração.
 
- Se ela der à luz a um filho mande me avisar imediatamente.
 
A jovem rainha deu a luz a um belo bebe, e a mãe do rei mandou um mensageiro até ele para lhe dar as boas novas. No entanto no meio do caminho o mensageiro se cansou e, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono. Afinal, adormeceu profundamente às margens do rio. O diabo saiu de trás de uma árvore e trocou a mensagem por uma que a rainha havia dado à luz a uma criança que era metade humana metade cachorro.
 
O rei ficou horrorizado com a noticia, mas mesmo assim mandou de volta uma carta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terrível transe. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio e, sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo adormeceu junto a água. Foi quando o diabo mais uma vez apareceu e trocou a mensagem para:
 
- Matem a rainha e a criança.
 
A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindo confirmação. Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um adormecendo junto ao rio enquanto o diabo trocava as mensagens por outras que ficavam cada vez mais apavorantes, sendo a ultima que dizia:
 
- Guardem a língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta.
 
A velha mãe não pode suportar a ideia de matar a doce jovem. Em vez disso, ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu. Em seguida, ela ajudou a jovem rainha a atar o bebe junto ao peito e, cobrindo-a com um véu, disse que ela precisava fugir para salvar a vida. As mulheres choraram e se beijaram na despedida.
 
A jovem rainha vagueou até chegar à floresta maior e mais selvagem que jamais vira. Na tentativa de procurar um caminho, ela procurava passar por cima, pelo meio e por volta do mato. Quase ao escurecer, o mesmo espírito de branco apareceu conduzindo a jovem a uma estalagem pobre de gente simpática da floresta. Uma donzela vestida de branco levou a rainha para dentro e demonstrou saber seu nome. A criança foi posta no berço
.
- Como que você sabe que eu sou rainha? – perguntou a donzela.

- Nós da floresta acompanhamos esses casos, minha rainha. Agora descanse.
 
E assim a rainha ficou sete anos e se sentia feliz com sua criança e com sua vida. Aos poucos suas mãos voltaram; primeiro como pequeninas mãozinhas de bebes, rosadas como pérolas, depois como mãozinhas de menina e afinal como mãos de mulher.
 
Enquanto isso o rei voltou da guerra, e sua mãe se lamentou com ele.
 
- Por que quis que eu matasse dois inocentes? – perguntou ela mostrando-lhe os olhos e a língua da corça. Ao ouvir a terrível história o rei cambaleou e caiu a chorar inconsolável. A mãe viu a dor e contou que os olhos e a língua eram de uma corça e que ela havia mandado a rainha e o filho fugir pela floresta adentro.
 
O rei jurou não mais comer, nem beber, e viajar até onde o céu continuasse azul para encontrar os dois. Ele procurou por sete anos a fio. Suas mãos ficaram negras, sua barba de um marrom semelhante ao musgo, seus olhos avermelhados e ressecados. Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada, mas uma força maior do que ele o ajudou a se manter vivo.
 
Afinal ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta. A mulher de branco convidou-o entrar, e ele se deitou de tão cansado. A mulher colocou um véu sobre o rosto dele, e ele adormeceu. Quando ele chegou à respiração do sono mais profundo, o véu escorregou aos poucos do seu rosto. Ao despertar, ele encontrou uma linda mulher e uma bela criança que o contemplava.
 
- Sou sua esposa e este é seu filho. – O rei queria acreditar, mas a donzela tinha mãos. – Com todas as minhas afeições e com meus bons cuidados, minhas mãos voltaram a crescer – disse a donzela. 

E a mulher de branco trouxe as mãos de prata que estavam guardadas como um tesouro numa arca. O rei ergueu-se e abraçou a mulher e o filho, e naquele dia houve uma alegria imensa na floresta. Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um banquete. Depois, o rei, e a rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um segundo casamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram essa história para outros cem, que contaram para outros cem, exatamente como vocês fazem parte dos outros cem a quem eu estou contando.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=245592

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 16 – 27 de marco de 1887.

Cousa má ou cousa boa
Traz vantagem boa ou má;
O incêndio da Gamboa
Neste aforismo entrará.

Não fosse aquele medonho
Desastre que ali se deu,
E do qual nada aqui ponho,
Pois que o leitor tudo leu,

Não saberia eu agora,
Pelas narrações que vi,
Uma notícia que chora,
E que — essa, sim — ponho aqui.

Foi quando a água, correndo
Pela rua e para o mar,
Ia ardendo, ardendo, ardendo,
Ardendo de amedrontar.

Então li que os habitantes
De um beco, com tal horror
Viram as águas flamantes,
Arrastando a morte e a dor,

Que pensaram em deixá-lo,
O beco em que há muito estão,
Onde a morte, a fogo e a estalo,
Punha em gelo o coração.

Esse beco, o beco escuso,
O beco que nunca vi,
Beco de tão pouco uso,
Que nunca o nome lhe li,

Chama-se do conselheiro
Zacharias; leiam bem.
E vá, reflitam primeiro,
Como eu refleti também

Ó meu douto Zacharias!
Meu velho parlamentar!
Ó mestre das ironias?
Ó chefe ilustre e exemplar!

Quantas e quantas batalhas,
Deste contra iguais varões!
E de quantas, quantas gralhas,
Tiraste o ar de pavões!

Sólido, agudo, brilhante,
Sincero, que vale mais,
Depois da carreira ovante,
Depois de glórias reais,

Deram-te um beco... Olha, um beco...
De tantas cousas que dar,
Coube-te a ti, homem seco,
Triste beco ao pé do mar.

Não digas que são mofinas
Estas nossas distinções
Pintadas pelas esquinas;
Esquinas fazem barões.

Não cuides que, nesta lida
Em que andamos, tem de ser
Viva ainda a tua vida,
Escrita ou por escrever.

Logo, era uma honrosa graça
Se entrasses no grande rol
Com uma rua, uma praça,
Bem à vista, bem ao sol.

Mas, não. De quanto valias,
Agora nada valeis.
Há o beco Zacharias,
E a rua Malvino Reis.

Daqui, amigo, derivo
Esta antiga e estranha flor:
“Mais vale súdito vivo
Que enterrado imperador”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.