quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Expressões e suas Origens III

DO ARCO DA VELHA

Do arco da velha é uma expressão popular da língua portuguesa que significa "fantástico", "incrível", "espantoso". Muitas vezes a expressão completa é: "são coisas do arco da velha". Esta expressão também pode servir para qualificar uma história ou alguma coisa que é absurda ou inverossímil.

“O meu avô começou a falar dos seus tempos de infância e contou muitas histórias do arco da velha.”

Origem

É sabido que por volta do século XIX, a expressão "arco da velha" servia para descrever o arco-íris, algo que já não é tão comum nos dias de hoje. Uma das explicações por trás dessa expressão é que essa denominação foi criada graças à história bíblica de Noé, quando depois do dilúvio, Deus criou o arco-irís para demonstrar a sua aliança com o ser humano, e que não voltaria a enviar outro dilúvio dessa magnitude. Assim, na expressão "do arco da velha", o termo "velha" representa a velha aliança que Deus formou com o Homem. Por esse motivo o arco-irís também é conhecido como arco-da-aliança.

Uma explicação alternativa para a origem desta expressão é que originalmente ela seria "arca da velha" e não "arco da velha". Isto porque senhoras de certa idade tinham o hábito de guardar coisas incríveis e espantosas nas suas arcas.

ZÉ POVINHO

Zé povinho é uma expressão popular que significa gente simples, indivíduo do povo. É usada para identificar pessoa desqualificada socialmente.

Zé, é uma forma popular de exprimir o homem do povo. Povinho, é o diminutivo de povo (habitante de uma localidade). Zé povinho é uma expressão descriminatória, usada para indicar uma pessoa simples, ralé.
 
Origem

Zé povinho foi um personagem criado pelo caricaturista português Rafael Bordalho Pinheiro, em 1875, no periódico de humor político, A Lanterna Mágica, numa charge intitulada Calendário Português, criticando de forma humorística os principais problemas sociais, políticos e econômicos do país. Tornou-se uma figura identificativa do povo português.

A imagem de cerâmica do personagem, criada pelo caricaturista, encontra-se  hoje no Museu Rafael Bordoalho Pinheiro, na freguesia de Campo Grande em Lisboa, Portugal.

MEIA TIGELA

Meia tigela ou "de meia tigela" é uma expressão popular que significa sem valor, medíocre. É usada para designar algo sem importância. Também pode ser usada para definir uma pessoa incompetente. Ex: O chefe é um administrador de meia tigela.

Quando queremos nos referir a um prestador de serviços de qualidade duvidosa, podemos usar a expressão "meia tigela". Ex: O posto de saúde faz um atendimento de meia tigela.

Origem

A origem da expressão "meia tigela" tem duas versões. Uma vem do tempo da monarquia em Portugal, onde os novos serviçais que iam morar nos castelos, eram chamados de "fidalgos de meia tigela", pois tinham poucos direitos dentro da corte.

A outra versão vem da época da escravidão. Quando os escravos faziam o serviço ao agrado do dono, recebiam uma tigela cheia de comida e, aqueles que não faziam, recebiam a tigela pela metade, significando que o trabalho estava mal feito.
 
CUSTAR OS OLHOS DA CARA

Custar os olhos da cara é uma expressão popular que significa custar muito caro, ter um preço muito alto, preço acima da média esperada.

Origem

A expressão "custar os olhos da cara",  teve origem  em costumes antigos. Na Grécia, vários poetas eram cegos. O primeiro deles foi Tâmires, que vangloriou-se de ser melhor cantor que as Musas, filhas de Zeus. As Musas zangaram-se e na sua cólera, tornaram-no cego.

Da mesma maneira, Dáfnis, Teiresias, Estesícoro e até o próprio Homero, ficaram cegos. Isso é mais que uma coincidência. Havia um motivo definido para privar os poetas da visão. Não eram as Musas que os cegavam, mas os reis gregos. Esses reis tinham ciúme dos seus poetas e os prendiam para si, arrancando-lhes os olhos.

O povo bárbaro arrancava os olhos de seus prisioneiros.

Tito Márcio Plauto, dramaturgo romano, que viveu durante o período republicano, se refere a essa expressão em uma de suas peças.

Custava os olhos da cara, ser poeta na Grécia antiga ou cair nas mãos dos bárbaros.

COMER COM OS OLHOS

Comer com os olhos é uma expressão popular que significa comer uma quantidade superior àquela necessária para passar a fome, comer além do limite, comer em excesso. Significa que a pessoa está ligada à glutonaria, ou seja, é um glutão, aquele que come muito.

A expressão também é usada quando o indivíduo está simplesmente observando atentamente a comida e por diversos motivos não pode comer. É ainda usada quando alguém está apreciando e desejando um objeto ou uma pessoa admirada.

Comer com os olhos, custar os olhos da cara, olhos de lince, são expressões populares que usam a palavra olhos no sentido figurativo.

Origem

A expressão surgiu na Roma antiga, onde nos rituais fúnebres eram realizados grandes banquetes em oferenda aos deuses. Durante o ritual não era permitido comer, apenas admirar as comidas. Se comia com os olhos.

CAVALO PARAGUAIO

Cavalo paraguaio é uma expressão usada para designar os times de futebol que iniciam um campeonato com excelente atuação e, no decorrer dos jogos, são superados pelos outros times.

A expressão "cavalo paraguaio" também é usada para nominar um jogador, quando este se destaca, com um excelente futebol, no início dos jogos e, depois cai de produção.

Cavalo paraguaio é uma expressão popular que teve origem no turfe.

Quando um cavalo dispara na largada, indicando que vai ganhar o páreo e, no meio da corrida é ultrapassado pelos outros competidores, diz-se que ele é um cavalo paraguaio.

A República do Paraguai é um país localizado na América do Sul, fazendo fronteira com o Brasil, a Bolívia e a Argentina.

Na Ciudad del Este, localizada na região conhecida como Tríplice Fronteira, encontra-se uma zona franca de comércio, o que atrai um grande número de compradores, pelos baixos preços das mercadorias.

Vários compradores identificaram produtos falsificados vendidos na zona franca de Ciudad del Este, o que fez a palavra paraguaio, ser empregada no sentido pejorativo, como algo que tem qualidade duvidosa.

Fonte:
http://www.significados.com.br/expressoes-populares/

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 26 – 6 de setembro de 1887

Eustáquio Primo de Seixas,
Morador em Santo Amaro
(Bahia), fez umas queixas
Sobre um caso duro e amaro.

Parece que um tal Francisco
De Paula Aragão e Souza,
Para reduzi-lo a cisco
E pôr-lhe em cima uma lousa,

Pegou de um revólver, obra
Bem feita, acabada,
Pior que dente de cobra,
Melhor que fio de espada;

E, indo ao sobredito Seixas,
Despejou-lhe, não a arma
Nem precisamente endechas,
Nem violetas de Parma,

Mas uma descompostura,
Como se diz vulgarmente,
Porque quando a gente cura
De falar mais finamente,

Diz torrentes de impropérios;
Tal foi o modo limado
Que, em seus artigos tão sérios,
Empregou este agravado.

Eustáquio estava na rua
Da Matriz — tão concorrida
De gente, que viu a sua
Pessoa assim ofendida.

De tais injúrias e acintes
Ouviu metade calado,
Até que, em tantos ouvintes,
Um houve, mais animado,

Que pôde dar escapula
Ao que ouvia tanta cousa,
Mas o diabo que açula
A alma a Aragão e Souza,

Faz com que lhe não estaque
A torrente de impropérios,
Sotaque sobre sotaque,
Ditérios sobre ditérios.

Já que em casa recolhido
Eustáquio, vai muita gente
Pôr-se ao lado do ofendido
Contra aquele ato insolente.

Vai mais; vai gente inimiga;
Vai mais; vai o próprio Souza
Pedir-lhe que o não persiga;
Que lhe perdoe tanta cousa.

Responde-lhe Seixas: “Pronto
Estou a dar-lhe o que pede,
Mas só quero um ponto, um ponto,
E cederei se me cede.

“Peço-lhe que se retrate
Das injúrias que me há dito...”
Aragão, dado ao combate,
Repete, e repete escrito

Todas as injúrias feitas...
Aqui, meu leitor amigo,
Tu que buscas, tu que espreitas
Achar sentido ao que digo,

Não decifrando a charada,
Perguntas naturalmente:
“Que tenho eu com isso?” — “Nada,
Respondo-te eu; e a Regente?”

Porque o mais rico da cousa
E' que o tal Eustáquio Seixas,
Contra o Aragão e Souza,
Trouxe à imprensa as suas queixas,

Escrevendo: “À Sereníssima
Princesa Regente”. Ó dura
Condição triste e tristíssima,
Que mal sei como se atura!

Governar para ler estas
E outras ridiculezas...
Ó sorte das régias testas!
Ó destino de princesas!

Que um homem em Santo Amaro,
Ouvindo duas graçolas
(Caso antes comum que raro)
Toque no chapéu de molas,

Enfie a casaca, e calce
As botas envernizadas,
E, todo flor e realce,
Suba as imperiais escadas,

Para contar uma cousa
Que se conta ao delegado
Isto é, que Aragão e Souza
É pouco morigerado,

Palavra que desanima
De ocupar na terra um sólio:
Antes governar a rima,
Bem ou mal como o Malvólio.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Oitenta e Sete

Quando fui ao Amazonas expressamente para preparar terreno para um negócio de tartaruga em grande escala, negócio que, de ótimo, tornou-se péssimo, por causa dos jacarés... a minha viagem foi cheia de acontecimentos curiosos, nada vulgares, os quais para um sujeito impressionável seriam obra de mau agouro ...

Viagem assim, dá-se uma vez na vida, outra na morte... mas dá-se.

Fui em barco a vapor, de rodas; e como ia muito bem recomendado ao capitão do navio, fui sempre tratado à vela de libra. Dispensei, sim, a cama de bordo, para dormir sobre o meu costumado colchão de couros de onças, todos com as suas cabeças e garras. Estes couros, como se sabe, são muito magnéticos, e, no mar, livram do raio; em terra, espantam as pulgas, e, no mato, servem de vigia, contra as feras.

Logo ao suspender ferro, correu a bordo a voz tremida de terror, de que um dos passageiros era um famoso bandido, matador feroz de gente pacata, incendiário, saqueador...

E, realmente, um senhor indivíduo que embarcara à última hora, sorrateiramente, tinha toda a traça da maldade e do crime: enormes cicatrizes de talhos, desfiguravam-lhe o rosto; uma larga peladura, de bala, raiava-lhe a cabeça; todos os dentes molares, quebrados, e, nas costas, ainda aberta, uma grande chaga parecendo de queimadura.

Conservava na cintura um par de pistolas, de cano montado, carregadas, bem como um bruto facão, largo e afiado.

E tomava-se o indivíduo ainda mais suspeito porque estava embuçado em um amplo capote, que vinha-lhe até os pés, e completamente abotoado; no pescoço um cachenê de lã, e, na cabeça, um chapéu desabado sobre os olhos, o que tudo tapava-lhe do rosto, de forma que ninguém podia ver-lhe as feições.

O comandante e eu ficamos logo alertas, para o que desse e viesse, em defesa dos outros passageiros, ameaçados, medrosos ou inquietos, com justa razão.

O barco largou.

Ao sair o vapor a barra, debaixo de borrasca, mar desfeito em ondas colossais, nenhum passageiro resistiu; fugiram para as camarinhas, enjoados.

Eu, fiquei.

Acredito que por ser muito pitador de fumo de naco, forte, sem me sentir tonto, creio que por isso não enjoei.

Os que sofrem do enjôo do mar, principalmente as senhoras, bem podem ensaiar esse tratamento: pouco custa experimentar.

O navio subia na crista das ondas... adernava... parecia afundar-se no abismo, virar-se de quilha para cima! ... mas lá aprumava-se, e seguia avante, batendo as rodas com fragor.

O capitão assestava o óculo para o mar largo, cheirava o ar, sorria-se; e afinal disse-me, esfregando as mãos;

— Que sorte! Que fortuna! Que viajão vamos ter...

Quem não sabe é como quem não vê! O que parecia-me uma loucura, sair com tal tempo, era, ao contrário, uma bela esperteza do comandante: é que, à vista da barra, passava nadando para o norte uma colossal manta de tainha, cuja morrinha (de peixe cru) sentia-se então, fortíssima.

É mais que sabido que uma manta de tainhas, quando é grande, de conta redonda, como se diz, quebra as vagas, aplana as águas, torna o espaço de mar por ela ocupado perfeitamente manso. Navio que tem a sorte de poder meter-se no centro de uma dessas mantas, voga sereno, como em mar de rosas, ainda que ao largo estoure a tempestade, encapele-se o mar, revolto!

Pois tal manobra e marcha desenvolveu O vapor, que quando sentimos estávamos dentro da manta das tainhas, e navegando sossegados, como em água de rio.

Realmente, é... muito cômodo!

Aquele imenso cardume de milhões de tainhas formava como que uma ilha misteriosa, que se movia, de corrida, à flor d'água, marchando sempre a rumo certo, que, por acaso, era o nosso.

Ao longe sobre as beiradas da manta, pelo óculo de bordo, via-se a arrebentação do mar, fazendo ressaca, espumando e espraiando-se, violentamente, como sobre uma praia de areia.

Durante todo o resto da semana, ao almoço e ao jantar, tivemos tainha fresca; e a bordo ainda salgaram muita.

E se durante mais dias não navegamos dentro da manta foi por causa da voracidade dos próprios peixes.

Assim:

As rodas do vapor não batiam n'água... não é exagero! Moviam-se dentro da massa compacta das tainhas, que nadavam aglomeradas; e, assim, é claro, esmagavam, matavam, tonteavam milhares e milhares delas; e tanto que essas morriam, as outras devoravam-as. e esta carniça foi estabelecendo a desordem na manta. As tainhas que comiam ficavam pesadonas e preguiçosas e deixavam-se ficar para trás; as que não tinham comido... revoltavam-se - é o que parece - e começou então uma verdadeira batalha das tainhas entre si, que foram-se atirando umas às outras, tão depressa e tão vorazmente que, em pouco tempo, da manta só apenas restavam sobre as águas escamas e espinhas!

Certamente umas comeram as outras, e as outras comeram as outras...

Pra lá de Santa Catarina batemos numa baleia que provavelmente estava dormindo. Eu nunca vira semelhante animal; para espantá-la, a pedido do comandante, dei-lhe uns tiros sobre a cabeça; e sem querer meti-lhe todas as balas nos ouvidos; de forma que foi pior, porque ela ficou surda e não ouvia os apitos do vapor e os gritos que dávamos; o choque foi horrível; pensei que íamos a pique; felizmente o vapor tinha a proa muito esguia e o talha-mar muito afiado, e como apanhou a baleia em boa posição, bem a meio, cortou-a em duas metades; atoramo-la!...

Foi a nossa salvação.

Pelas alturas do Rio de Janeiro, sentimos o navio rodeado de tubarões; era um rebanho, ou manada, ou tropa, como quiserem dizer. Era uma - manta - de tubarões; fica bem assim?

Fiquei horrorizado da companhia dos tremendos devoradores, e atônito para explicar-me o porquê daquele cerco tão perigoso. O comandante porém, muito prático das cousas do mar - também era o que faltava! - tranquilizou-me em dois tempos. Ora, é simplíssimo...

Quando as rodas do vapor esmagavam as tainhas, da trituração dos corpos foi resultando uma pasta ou massa ou mingauzada de gorduras, de carnes, de ovas das vítimas; esta pasta foi pegando, besuntando o casco do navio. Da passagem à força por entre as duas metades da baleia, resultou ainda, como se fosse de caiação, mais uma mão de azeite misturado com esparmacete... Ora, os tubarões são grandes comedores de tainhas e bebedores de azeite de baleia... e mal no fundo do mar sentiram o cheiro daquela marmelada.., vieram-se!

Porém como eles têm a boca debaixo do corpo e não na frente, como os outros animais, não podiam chuchar aquela rica pastalhada pegada no navio ... e que tanto os seduzia!

Assim fomos andando, como uma grande isca, levando a reboque a manta dos tubarões.

Vivendo.., e aprendendo!

Mais ou menos a meio do arquipélago dos Abrolhos, há dois caminhos a seguir: ou pelo mar largo ou pela costa; este encurta muito o trajeto, mas é muitíssimo perigoso, por causa dos recifes à flor d'água.

Porém o comandante do nosso vapor era extraordinariamente prático desses lugares, e de mais a mais tirou um partidão dos tubarões.

Foi assim:

Os bichos, sempre ao faro da marmelada de tainha pegada no navio, vinham coalhando o mar em roda: à frente, à popa, a bombordo e estibordo!

Qualquer guinada que desse o vapor, eles orçavam, acompanhando.

Quando o capitão meteu o navio nos recifes, o bando dos tubarões da frente foi servindo de guia; se eles paravam, o navio parava, recuavam, recuava; para a esquerda, para a esquerda; para a direita, para a direita!

Compreenderam? ...

Que capitão mitrado! Servia-se dos tubarões, tal qual como em terra um general serve-se de piquetes de cavalaria, na vanguarda. Tirei o meu chapéu: aquele golpe era de mestre!

Fizemos uma travessia absolutamente - ótima.

Quando estávamos próximos a sair daquele rendado de pedras, o capitão, sempre com o óculo nos tubarões da vanguarda, chamou-me a atenção para uma certa ilhota recoberta dumas esquisitas conchas, como de ostras, mas com um feitio especial, como de ninhos de pássaros. Julguei mesmo que fossem ninhos de gaivotas.

O comandante mandou tocar as máquinas devagarinho, para eu não perder nada do que ele queria mostrar-me. E disse-me:

— Olhe, Romualdo: o mar tem, por semelhança, todos os animais que há em terra: para o elefante, a baleia; para o tigre, o tubarão; para o cavalo, o boi, o cachorro - o cavalo-marinho, o peixe-boi, o lobo-do-mar. Para os pássaros, temos o peixe voador, e para os canários belgas, cantores, temos os canarinhos do mar, que é o que você vai agora ver e ouvir, naquele ilhéu.

Nisto o vapor deslizava em frente à ilhota, e eu vi, patentemente visto, e ouvi, patentemente ouvido, com estes dois... e estes dois.., dois e dois que são quatro.., quatro que a terra há de comer... vi e ouvi, por todo o rochedo, dentro e empoleirados na borda das conchas abertas, uns peixinhos amarelos cor de ouro, muito espertinhos, dando saltinhos e cantando, cantando numa granizada de trilos e gorjeios, tão dobrados e garganteados, que efetivamente parecia um bando de canários que houvesse pousado sobre aquele rochedo! ... Eu estava maravilhado! O comandante afirmou-me ainda:

— Romualdo, para a maior sucuri de terra, a maior que você possa arranjar, temos a serpente do mar; para a cobra mais venenosa de terra, temos a cobra-farelo que, quando morde o pescador, o nadador, este se desfaz logo em miangos.

— Ah! atalhei eu: sobre cobras, fale comigo! Escute!

E ali, no quente, entupi-o com umas sete cobras ... digo, sete casos de cobras.

E a ilhota dos peixes-canários sumiu-se no horizonte ...

O navio retomou a sua marcha a todo o vapor, e a tropa dos tubarões estendeu-se também, na carreira.

Dias passados, à hora da merenda, deu-se a bordo uma avaria grande, na máquina.

O vapor esguichava e assobiava, saindo em rolos, pelos buracos abertos: foi o pânico entre foguistas e maquinistas!

A minha habilidade de atirador procurou minorar o mal; fiz vários tiros, de bala, metendo, é certo, as balas, uma em cada buraco, mas foi fraco remédio, porque o calor do vapor era tão forte que derretia o chumbo dos projetis!

Então - para os grandes males, grandes remédios! - meti os dedos nos furos, tapando assim a perda do vapor, enquanto o comandante mandava, a toda a pressa, rebater novos arrebites, por dentro da caldeira.

Não fora o meu sangue-frio e sabe Deus que desastre se poderia dar!

Eu digo sempre: caçar onças é boa escola para aprender a não se assustar!

Desejando uma linda companheira de viagem possuir uma gaivota azul das que então voavam sobre e em torno do navio, senti-me pesaroso por não poder ser-lhe agradável, por falta de munição própria: pois somente trazia uma barrica de balas.

A gaivota azul é uma ave muito maciça, e se eu atirasse-lhe com bala reduzi-la-ia a pó.

Mas lembrei que podia das balas fazer um pouco de chumbo... era um pequena questão de algum trabalho e paciência.

Espetei uma faca afiada dentro de uma tina cheia d'água e comecei.

Carregava de bala a minha espingarda: apontava ao corte da faca, descarregava, e pronto; cortava a bala em duas metades, que caíam e esfriavam logo, dentro da água da tina.

Tornava a carregar, então já com as duas metades da bala; e novo tiro, e, zás! tinha os dois pedaços cortados em quatro; outro tiro com os quatro pedaços, e, zás! cortava-os em oito.., e assim, tiro a tiro, dividi uma mancheia de balas a... chumbo miúdo.

Isto aconteceu; mas no dia seguinte não se avistou nenhuma gaivota cor-de-rosa.

Afinal, num domingo, chegava eu ao meu último porto, o de desembarque.

Pela primeira vez na travessia, o vapor largava âncoras, parava!

Corremos então um sério perigo: fomos rodeados pelos tubarões, a quererem ainda comer a pasta de tainha, que restava pegada ao casco do navio. Atiravam-se às trombadas, ou às marradas, contra o navio; julguei, mesmo, que pudessem abrir o cavername da embarcação.., mas, não, pobres! ... Eram os últimos arrancos da sua ferocidade, estavam cansados, estafados da viagem!

Atraídos e seduzidos pelo cheiro da pastalhada e danados por atirarem-se a ela, mas não tendo jeito para fazê-lo, por causa da marcha da embarcação, os tubarões haviam se esquecido de caçar outras comidas e também de dormir. E assim, em jejum e em claro por tantos dias e noites, à chegada, não puderam mais resistir à fraqueza, e com aquele último esforço foram morrendo, morrendo todos, com fundas olheiras e com as badanas em carne viva, de tanto nadar, e inflamadas, do sal da água do mar..., tal qual como gente, quando caminha muito e fica estropeada, com os pés sangrando, inchados e doloridos.

Tomei cômodos no principal hotel da cidade.

Notei que as cercanias do estabelecimento estavam apinhadas de povo, como se se tratasse de algum acontecimento de monta. No salão do hotel ia uma lufa-lufa de gente que ria, que dava as mãos, fazia caras extravagantes.

Bastante curioso, chamei o patrão da casa e indaguei do que se tratava.

Ele então explicou:

— O Senhor não sabe, porque ignora. Aqui ao lado, no sobrado, reside um casal, gente benquista e muito dada. O marido é uma pérola ... a mulher uma jóia! Pois... de há três anos para cá, cada ano a senhora apresenta sinais infalíveis de gravidez; isto e aquilo ... e aquiloutro... que não enganam nem nunca enganaram nem marido nem mulher alguma....

O homem chamou um médico.., dois, quatro, sete.., dez médicos, em consultas, exames e conferências; e todos, ao mesmo tempo e a pés juntos, juraram, à fé do seu grau, que aquilo ... aquilo..., era mais que gravidez, era parto próximo. Até marcaram mês, lua e semana.

Pois... e nada! Os sinais certos, volume, etc, desapareceram!

Marido, mulher, sogros, doutores, comadres, parentes e conhecidos..., tudo pasmou!

E o caso passou, esqueceu.

Um ano depois ... a mesma cousa! Não havia dúvida: era, agora era mesmo!

O volume então, esse, era de duplo bojo...

Doutor houve então, que jurou que aquilo agora, ou era gravidez e parto próximo, ou então.., ele queimava os livros e mandava a medicina às favas! ... E mais, que, a calcular pelo volume ... era de par de gêmeos para cima!

Novo alarme nas relações do casal; parabéns, presentes de roupinhas, promessas de missas, queima de velas bentas, etc. etc. Pois

Senhor... A sua graça?

— Romualdo, um seu criado.

— Obrigado, outro tanto. Pois, Sr. Romualdo, nada! Tudo passou, tudo voltou ao seu antigo natural...

— Com efeito, Senhor ... A sua graça?

— Figueiredo, um seu criado.

— Obrigado; outro tanto. Pois Sr. Figueiredo: é célebre!

— Muito célebre, Sr. Romualdo. Agora note: um ano depois, o terceiro portanto, que é este, o mesmíssimo sucesso se repete, está se dando, está impressionando a cidade, alarmando meio mundo!

A primeira vez, depois que tudo passou a senhora voltou a espartilhar-se, a passear, a ir a teatros e a bailes; a segunda vez.., também tudo passou, desapareceu, alisou-se, voltou ao seu antigo natural... Mas agora ... ninguém sabe em que isto irá parar!

Desde que, aqui há meses, começou a correr a notícia da terceira gravidez... e o volume - compreende? - foi aumentando... aumentando... o marido, por precaução, chamou doutores, muitos, daqui, de fora, de longe.

Estou com o hotel abarrotado deles; já reparou?

O que ninguém dá é uma explicação do mistério.

— É celebérrimo, Figueiredo!

— Celebríssimo, Romualdo!

As dores na doente seguiam o seu curso.

Uma noite, o dono do hotel, o Figueiredo, chamado às pressas para ajudar, lá foi. E veio logo chamar-me, a mim.., O homem estava pálido, trêmulo de comoções.

— Romualdo, o Senhor já é pai, ajude-me a ajudar o vizinho! Estão-lhe nascendo os filhos, muitos ... uns atrás dos outros... É um cordão... não cessa! A um de fundo!

Saímos; fomos.

Como contar o caso?

Os doutores estavam a postos, alinhados, desde junto da doente, até muito para cá; e de um para o outro, de mão para mão, vinha passando criança sobre criança...

Era um colar, um rosário, uma enfiada de criancinhas, todas pegadinhas pelas mãozinhas!

E todas guinchavam, esperneavam, fortes e saudáveis, meninas e rapazes! ... Valente senhora!

Afinal cessou aquela ... descarga de crianças, que os doutores, de lanceta em punho, começaram a separar, pois, como disse, estavam presas umas às outras, pelas pontas dos dedos. E logo tratou-se de banhá-las e enfaixá-las como foi possível em toalhas, lençóis, camisas, porque as roupinhas não chegavam para todas. Depois arrumar-se-ia tudo em ordem; o essencial agora era não deixá-las apanhar frio.

E, então, procedeu-se à contagem: eram oitenta e sete crianças!

Tudo chorava!

O pai...

A mãe...

A sogra...

Os doutores...

Eu...

Tudo chorava!

Como nenhuma das crianças tivesse morrido do mal dos sete dias, no oitavo fez-se o batizado geral. Funcionaram sete padres; além de outros senhores, todos nós, os que assistiram ao nascimento, fomos convidados para padrinhos, cada um dum pequenito.

Padrinhos, madrinhas, afilhados e amas... formavam uma procissão, salvo seja!

Como não sou abelhudo e nem me envolvo na vida alheia, não quis, no momento, dar a minha opinião sobre aquele sucesso; porém pelo que ouvi, esparso, e por informações vagas, dos antigos do lugar, cheguei a esta conclusão:

Nem a tataravó, nem a bisavó, nem a avo, nem a mãe daquela senhora, nunca tinham tido filhos; de forma que toda a fecundidade, toda a força familieira, tinha passado, acumulada, para a minha comadre... e assim se explica como veio ela, sozinha, a ter, duma só vez, todos os filhos que deviam ter vindo ao mundo repartidos em... pelo menos, cinco gerações!

O meu afilhadinho lá ficou com o meu nome, Romualdo. Era o mais bonito..., e olhem que é difícil ser o mais bonito entre oitenta e sete!

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XX

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) VI, final

Malungos

Nasci nas caatingas de Riachão,
e pela beira do Rio Jacuípe,
que descia leve para alcançar o Paraguassu,
aprendi o nome dos peixes e dos bichos.
E entre tantos companheiros que se foram
levados pela enchente do implacável tempo,
ficou apenas um, pelejando contra a Besta:
Foi Manoelito de D. Dora,
que nas manhãs azuis jacuipenses,
recitava para mim os Salmos de David.
Fui ficando sozinho no ermo da estrada.
Meu pai que me presenteava com livrinhos,
e minha irmã que me cobria de carinhos.
Se perderam pelos caminhos.
Sou agora um carneiro perdido,
Desgarrado do seu rebanho,
Pastando sozinho nesse Vale de Lagrímas.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Jorge Pieiro (Meu Tio e Eu)

O tio era magrinho. Contava nos dedos a idade, brincadeira. Tantos dedos eram poucos para tanta. Tinha a pele muito pálida e um gênio danado. Era dele de quem eu gostava. Muito mais que dos outros treze. Eu sabia que ele tinha visões. Talvez por isso julgavam que ele fosse doido. Quando chovia, ele corria comigo  pela rua, na lama. Gritava e ninguém aguentava os gritos.

– Com essa lama eu viro Deus!

E rolava no chão. Eu o seguia. A gente rolava feito dois porcos e sentia o chão quentinho. Parecia uma fogueira, o chão. Era um fogo sagrado. De vez em quando, o tio gritava. Um grito fiiiino... Bem diferente da voz. Pra mim, o grito era um cordão azul que ia saindo da garganta dele. Os treze tios, acho, sentiam era um gosto de arame farpado na garganta. Aí o cordão ia se anovelando e ele engolia o novelo e sorria pra mim. Eu corria pra ele. A gente se abraçava. Ele batia na minha cabeça com a mão.

– Com essa lama eu fui Deus!

Depois que a chuva passava, a gente se escondia, pra deixar a lama secar. O tio ficava irritado, eu ficava calado. Como ali era o galinheiro, ele saía pegando as galinhas pelos pescoços, e arrancava-os com uma só dentada. Vontade eu tinha de experimentar, mas se eu fizesse o mesmo os tios castigavam. Com a lama endurecida no corpo, a gente parecia uns cavaleiros de armadura. Eu acho que era isso que o tio achava. As galinhas eram os inimigos. Bom, mas pra entrar em casa, a gente tirava a lama, a armadura. Eu ligava a mangueira do jardim e jogava  água no tio. Ele chorava. Eu ficava com pena. A lama amolecia. Ele soluçava.

– Com essa lama eu sou só um anjo!

Eu sentia que era também feito um anjo. A gente ria até a barriga doer. A gente se entendia. Por isso eu gostava dele, muito mais que dos outros treze. Mas o tempo foi rápido. O tio foi ficando igual a um cordão azul, igual àquele que eu imaginara. Foi se transformando num novelo, ovalzinho, recheado. Um novelinho, cada vez mais. E eu fui ficando forte. Não era magrinho. Cresci e crescia cada vez mais. Até que um dia, o tio me chamou.

– Agora vou ser Deus pra sempre!

Ele riu e se engoliu, como um novelo. Naquela hora, senti que o novelo tinha se enganchado na minha garganta. Eu achei que fosse ele. A alma dele. A vida dele. Não sei. Meus outros treze tios suspiraram aliviados. E eu passei muito tempo calado. Triste. Fui ficando magrinho. Os tios se preocupavam comigo. Mas eu não dava atenção a eles. Quando chegou a época de chuvas, eu chorei muito. Lembrei do tio. Saí escondido de casa. Na rua comecei a rolar na lama, um porco, roncando. E o novelo desapareceu da garganta. Foi quando deu vontade de gritar. E gritei.

– Com essa lama eu viro Deus!

Meus outros treze tios quando souberam, rasgaram as peles dos rostos. Eram mesmo umas máscaras! Tentaram me castigar, mas não puderam mais. Eu já era grande. Aí, dessa vez, foram eles que choraram. Sentiram um gosto novo de arame farpado na garganta...

(Jorge Pieiro, Caos Portátil)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) 1990 em Diante – Jorge Pieiro

Nos anos 1990 apareceram alguns periódicos literários: O Pão (homenagem ao jornal da Padaria Espiritual), em 1992; Espiral: Revista Literária, em 1995; Almanaque de Contos Cearenses, que, embora não tenha sido criado como revista, pode ser considerado a única revista cearense de contos, com apenas uma edição, em 1997; e Literapia – Revista de Literatura da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, em 1999. Como “continuação” do Almanaque, em 2005 surgiu a revista Caos Portátil – Um Almanaque de Contos, também dedicada exclusivamente à prosa de ficção breve.

Nas páginas desses órgãos se publicaram e publicam contos dos mais variados feitios, sejam de escritores mais conhecidos na comunidade literária, com livros editados e comentados, sejam dos mais jovens e inéditos.

O Almanaque exerceu o mesmo papel de O Saco no final dos anos 1970: o de dar ânimo aos novos escritores cearenses, ao mesmo tempo em que surgiu da necessidade de publicação de poemas e contos daqueles poetas e contistas. Naqueles anos ocorria no Brasil o chamado boom do conto. Nos anos 1990 teve início outro boom, que se estendeu pelo século XXI. À frente do Almanaque estiveram Pedro Salgueiro e Tércia Montenegro. Além de homenagem a escritores do passado (Adolfo Caminha, Otávio Lobo, Moreira Campos e Juarez Barroso), se publicaram peças de outros veteranos (Eduardo Campos, José Alcides Pinto, Caio Porfírio Carneiro) e de contistas cearenses surgidos depois dos anos 1970: (alguns com vários livros publicados ou premiados em importantes concursos literários, como Natércia Campos, Nilto Maciel, Carlos Emílio Corrêa Lima, Audifax Rios, Batista de Lima, Ronaldo Correia de Brito), além dos mais novos ou inéditos em livro, como Alano de Freitas, Paulo de Tarso Pardal, Jorge Pieiro, Astolfo Lima Sandy, Luís Marcus da Silva, Dimas Carvalho, Pedro Salgueiro, Napoleão Sousa Jr, Luciano Bonfim e Tércia Montenegro.
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JORGE PIEIRO

Jorge Alan Pinheiro Guimarães (Limoeiro do Norte, 1961) é mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Publicou Ofícios de desdita (Fortaleza: edição do autor, 1987); Fragmentos de Panaplo (Fortaleza: Ed. do autor, 1989); O tange/dor (Fortaleza: Ed. do autor, 1991); Galeria de murmúrios (Fortaleza: Cadernos de Panaplo, 1995); Neverness (Fortaleza: Letra & Música, 1996); Caos portátil (Fortaleza: Letra & Música, 1999); Os sonhos de Josafá (Fortaleza: Seduc, 2006) e Bolha de Osso (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Tem contos nas coletâneas Almanaque de Contos Cearenses (Recife: Ed. Bagaço, 1997), Geração 90 – Manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo, 2001), Geração 90 – os transgressores (São Paulo: Boitempo, 2003) e Os cem menores contos brasileiros do século (São Paulo: Ateliê Editorial, 2005). Co-edita – juntamente com Pedro Salgueiro – a revista Caos Portátil – um almanaque de contos.

            Aos seus contos ele designa de contemas. E explica: “contema é a menor unidade significativa do conto”, além de poder “representar a aglutinação da palavra Conto com a palavra Poema” e, ainda, poder “querer sugerir o tema para o conto a ser, quem sabe?, desenvolvido...”

            A linhagem de Jorge é a de Gilmar de Carvalho e Uilcon Pereira. Do primeiro herdou a aversão à disciplina técnica da arte de contar, narrar. De ambos herdou o gosto pelos personagens impalpáveis, mutantes, nebulosos, imaginários, quase mitológicos. “naíra desencantou-se de sua forma vespa em mulher” (“desencanto num crepúsculo ou meio-delírio em reflexão”). Loucos, delirantes, crianças habitam o universo caótico da ficção de Pieiro. O narrador de “meu tio e eu” não via no tio um doido, embora soubesse da opinião dos outros: “julgavam que ele fosse doido.” Porque o tio rolava no chão, gritava, corria com o menino (“cavaleiros de armadura”), em perseguição aos inimigos, as galinhas. São de novo Quixote e Sancho. Trata-se de um conto de alto teor poético, sem deixar de ser narrativo. “O tio foi ficando igual a um cordão azul” (...). A morte do tio, o sentimento do narrador, o tempo passando – é tudo um poema de intensidade máxima. Em outra narrativa de concepção e realização soberbas, “chocolates brancos”, o protagonista-narrador, um mudo em busca de comunicação com o mundo, narra suas descobertas: os nomes das pessoas com quem se encontra numa praça todos os dias.

            Da série “episódios delirantes”, segunda parte de Caos Portátil, dois personagens, Io e Ella, buscam saídas, verdades. “Eu revolvo meus olhos como se não houvesse mais esperança”. Na verdade (haverá verdade?), Ella é apenas fruto da imaginação de Io: “E eu não sou uma pessoa. Sou sua imaginação, sua fruição.” Io é um inventor, um criador, um escritor, como se lê no episódio 7: “Ella, quero andar com você pelas ruas. Vamos? Não posso, bobo. Você é um escritor... Por que não? Você inventa...”

Nos sete contemas de O Tangedor o leitor encontra personagens os mais estranhos: um espantalho apaixonado rabiscava setas no papel e uma delas atingiu-lhe o peito de palha; um alienígena e uns “bichinhos das gaiolas” que saíram voando na manhã da caatinga; um louva-a-deus com medo da “língua pegajosa de tamanduá”; o vento que coleciona folhas secas e tenta “relatar essa vida de vento”. Há ainda o narrador que executou o sol; o criador da personagem valdizete (“ela não existe”, “a não ser que eu próprio seja esse homem inventando histórias fantásticas”); e rubem (os nomes dos personagens são sempre escritos com letras minúsculas), que “só queria encantar a vida” e terminou descobrindo que “violões mudos são cisnes bebendo água”. Estes primeiros contemas seriam uma amostra do que viria em outros livros.

Em Fragmentos de Panaplo surge o lugar, ou o “desejo-lugar”, onde os personagens viverão. Panaplo “achada, despertada e desiludida”. Mas “talvez panaplo não mais exista. Pela falta de fé...” Nele, “lugar de ninguém estar”, o leitor deparará aqui e ali uma estação de trem, trilhos, uma estrada, a “última mangueira”, passarinhos, papagaios, jardins, colinas, gnomos, fadas, rainhas, meninos de louça, bruxos, dragões, gigantes, espelhos e também prédios em avenidas, automóveis, cães policiais, furgões, a violência urbana. Em Panaplo tudo acontece ou tudo existe: um narrador diz ter se encontrado “com um walter benjamim em panaplo, num dia de seus delírios”.

Em Caos Portátil ocorrem algumas mudanças formais em relação ao livro anterior. Os parágrafos são iniciados com letras maiúsculas, assim como nomes de lugares e personagens. Panaplo não é mais “panaplo”. O espaço geográfico do Ceará aparece algumas vezes: o barranco do Jaguaribe, em “à nau do velho lobo-do-rio”, localidades e prédios de Fortaleza, como o Cine São Luiz, o Theatro José de Alencar, o hospital Mira y López, o Parque do Cocó, a Praça Portugal, a Praça do Ferreira, embora não mencionada pelo nome (“A praça reflete simpatia nos meus olhos. Gosto dos seus adereços. Os bancos de madeira, compridos, pintados de branco, estimulam os proprietários do tempo livre”). Há também referência à cidade criada por Uilcon Pereira, Àssombradado, numa homenagem ao escritor paulista. Está no conto citado neste parágrafo: “– Vamos comprar pérolas em Àssombradado!”

Os narradores quase nunca se identificam por nomes. Em “comemoração de um remorso” o narrador aguarda o trem na estação, que “está tão fria”. Parece estar só, a pensar no passado e no futuro. Em “interrupção de um sonho de cidade e vale” lembra as “três sombras” que o “aborreceram na estrada, durante a luta com o javali”. Após a luta, caiu “no vale de um jaguar jamais sonhado.” Em “descrição de uma cena do irreal domingo” o personagem informa: “sempre morei numa estação que não existia”. No entanto, a casa sempre existiu naquele lugar e por trás dela os trilhos. Em “um incidente numa lama da noite” o narrador talvez seja um lobisomem. Numa noite, “rolando no lamaçal”, viu “a branca vaca” passar “voando por cima de mim”. Surgem homens armados. Ele se defende: “por favor, homens, não atirem! não sou um lobisomem...”

Também em Caos Portátil muitos narradores e personagens não têm nomes explícitos. Em “última sessão”, no Cine São Luiz, “um homem invade a imagem na tela”. A plateia ouve o estrondo do tiro. A seguir, outro espectador foge do local, “carregando a arma fumegante, sem entender, na correria, o que ainda pode ser real...” Ficção (o filme) e realidade (plateia) se confundem. Essa fusão da realidade com a ficção ou o espetáculo artístico reaparece em “a execução”. No Theatro José de Alencar durante um concerto, o trompetista “meteu a mão no colete e arrastou, sic, uma navalha”. O espetáculo continuou, “o maestro fez gesto de grito, mas nada conseguiu com a batuta no ar.” Os espectadores deliraram. Aquilo fazia parte do show?

A opinião de Horácio Rodrigues, no ensaio “O Jorge dos Espelhos Cearenses”, é a de que o contista, “Sem pompa e com atrevimento, transforma a linguagem usual em linguagem literária, parte do corriqueiro chegando a uma dedução fantástica. Em seus contos curtos, quase poemas, Jorge surpreende ao transpor o horizonte semântico da comunicação onde o possível se confunde com o impossível, ultrapassando, de maneira simples, a visão realista”.

Há também narradores plurais, como em “transe de uma divagação”. São “esses humanos diferentes, medrosos a bombas”. Outras vezes o narrador se pluraliza, como “nitratos de muros e pensamentos”. Primeiro um narrador: (...) “ruminando sei lá que vidas... por isso, concluí: sou um bicho condenado” (...) Depois os narradores: (...) “mas nem só eu: nós. E estamos condenados” (...). 

Nos contemas em que o ponto de vista é onisciente os personagens são seres do mundo da fantasia, dos contos de fadas, seres fantásticos. Em “contrabrincadeira da carochinha” gnomos e flores veem desarticulada a sua paz, enquanto a princesa corria “em busca do seu plebeu”. Outras vezes os personagens têm nomes simbólicos: monamy e korea, em “caso de uma desobediência”; naíra, que “desencantou-se de sua forma vespa em mulher”, no contema “desencanto num crepúsculo ou meio-delírio em reflexão”; elesbão, o caolho de “historinha especular de um rei ausente”. De Caos Portátil podem ser lembrados aqui Aliandro Odraga (vejam-se as iniciais maiúsculas), o de “umbigo esfacelado”; Oreblas, de “o bicado oreblas”, personagem atacado por pássaros; Prantina, Buan e as ratazanas, de “os nervos”. E muitos outros.

É recorrente a presença de pássaros e de outros animais nos contemas de Pieiro. Como em “a mangueira que colheu corina”: o velho sonho humano de voar, porque “a vida só tem significado para os passarinhos”. Em “antes de tudo & depois de tudo” o personagem sem nome explícito “contemplou o espaço e notou que os pássaros voavam da direita para a esquerda”. Ao final, “o pássaro tomou o rumo do sul, seguindo os pássaros comuns”. Há até um conto, “o bicado oreblas”, em que pássaros invadem a casa do personagem, o aprisionam em fios-raminhos e o bicam “até o amanhecer de um dia seguinte...” A mulher gorda de “o sábio” surge no meio da rua, abre os braços, põe-se a rodar, dando “a impressão de que queria voar”.

Pieiro manipula a linguagem com sabedoria, sem se deixar encantar pela prosa coloquial e de uso comum e muito menos pelo vocabulário erudito ou pelo estilo pomposo. Os narradores não são simples contadores de histórias, embora haja esboços de enredos em alguns contos. A narração às vezes é constituída de frases sem pontuação, como em “o exílio, smj”. Muitos dos contos são divididos em pequenas partes numeradas. Os tempos verbais são utilizados com sabedoria de arquiteto. Em “a cilada”, durante quase toda a narração, os verbos estão no presente, como a tornar evidente a realidade. A primeira frase é: “A porta entreaberta destrói a surpresa.” Na última frase, no desfecho, o verbo vai para o futuro: “A portaberta destruirá outras surpresas.”

A reutilização de temas dos contos de fadas faz de Jorge Pieiro um esmerilhador de personagens. As velhas gêmeas Mirla e Marla lembram bruxas e princesas esquecidas. De tão envelhecidas e envoltas no passado, terminam encontrando o príncipe e voando para o céu, “uma numa vassoura, a outra como um passarinho”. Veja-se também “contrabrincadeira da carochinha”, “historinha especular de um rei ausente”, “o gigante jamais dormia...” e outros. Nem sempre esses personagens habitam Panaplo. E, se habitam, o leitor não percebe. O certo é que havia um gigante em Panaplo e jamais dormia. O mundo de Pieiro é habitado por estranhas criaturas e animais pestilentos, tarântulas, besouros, mas também por crianças em busca da “caixa de barulhos” (“muito detrás dos jogos de amarelinha”). 

No entender de Nelson de Oliveira, em “O novo conto brasileiro: apocalipses”, “Pieiro gosta de trabalhar com ferramentas de corte e solda na microestrutura do discurso. Ou seja, ele, a gramática em uma mão, a tesoura e o tubo de cola noutra, recorta orações e vocábulos a fim de construir sentenças que jamais se completam, cheias de interrupções e atalhos. O resultado é sempre caleidoscópico, com cheiro de escrita automática desautomatizada”.

Na antologia Geração 90: Manuscritos de Computador o escritor de Limoeiro do Norte comparece com dez contos. Narrado na primeira pessoa, “Janela” tem outra personagem, sempre chamada de “Ela”, que também pode ser vista como co-narradora. O narrador principal conduz a narração e dá a palavra à outra: “Ela me disse:”. Essa personagem explica: “Sou apenas a pessoa da janela”. E mais uma vez a lembrança do sonho de voar: (...) “havia o receio de não saber se podia voar.” Ao se referir, o narrador, ao personagem secundário Leonardo, justifica: “Ele veio pelo abismo, voando numa geringonça” (...). Em “O Mágico” mais um personagem de nome estranho, Mr. Kaletzip, o prestidigitador. Em “Não deveria manchar de sangue esta página” o narrador é um palhaço apaixonado pela mulher do equilibrista. É, no entanto, um personagem: mora numa página. O narrador tem a clara noção de que não é real. Sendo assim, não deve matar o equilibrista, mas apenas imaginar sua queda ou programar ameaças veladas e sabotagens. Não deve manchar de sangue a página da história. Há ainda duas homenagens, uma ao escritor Eduardo Luz, em “Tiara de Algodão”, e outra a Moreira Campos, a quem chama de “um maior”, em “Borboleta”. Compara o escritor a sua grande borboleta à “grande mosca no copo de leite”, de um conto do autor de Vidas Marginais. Os pássaros estão presentes no miniconto “Sem título”. O narrador sem nome explícito anuncia: “Nunca desci daquela árvore. Os pássaros me chamam de estátua.”

E assim vai Jorge Pieiro construindo a sua obra, os seus labirintos, os seus caminhos, os seus mundos, os seus panaplos, os seus contemas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Fábulas: Estratégias para leituras

Artigo por VAZ, Fernanda; BORGES, Suellen Chaves; CASTELA, Greice da Silva ; MANCHOPE, Elenita Conegero Pastor ; BARREIROS, Ruth Ceccon

RESUMO:
Este artigo é resultado da experiência obtida a partir da Oficina “Fábulas: estratégias para leituras”, ministrada no Projeto de Extensão “Ação da Escola: em prol da Leitura e da Cidadania”, desenvolvido pelo Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) da UNIOESTE (Cascavel), em parceria com a Secretaria de Estado da Ciência,    Tecnologia e Ensino Superior (SETI), no Programa Universidade Sem Fronteiras, junto aos professores de uma escola municipal em Cascavel - PR. Valorizar e destacar as peculiaridades das estratégias de educação para a leitura foi um dos objetivos propostos por este Projeto, que contou com a participação de um grupo de acadêmicos do curso de Letras, um profissional recém-formado e três professoras orientadoras. Como um espaço de reflexão e discussão sobre a teoria e a prática de leitura e sua importância nos âmbitos acadêmico e social, o Projeto utilizou-se de diferentes gêneros textuais, numa proposta de formação contínua do educador. O objetivo da Oficina em destaque foi proporcionar aos professores/participantes novas possibilidades de uso do gênero Fábula, dentro de uma perspectiva de leitura voltada à formação de leitores críticos, tendo por base o referencial teórico proposto por Solé (1998). As atividades desenvolvidas durante a Oficina mostraram que, apesar de ser bastante conhecido pelos professores das séries iniciais, o uso desse gênero permanece limitado no contexto escolar.

1 – Introdução

Este artigo é resultado da experiência obtida a partir da Oficina “Fábulas: estratégias para leituras”, ministrada no Projeto de Extensão “Ação da Escola: em prol da Leitura e da Cidadania” do Programa Universidade Sem Fronteiras, junto aos professores de uma escola municipal em Cascavel - PR. O objetivo da Oficina foi proporcionar aos professores/participantes novas possibilidades de uso do gênero fábula, dentro de uma perspectiva de leitura voltada à formação de leitores críticos, tendo por base o referencial teórico proposto por Solé (1998).

As discussões que nortearam a Oficina foram pensadas numa perspectiva dialógica da língua, em que os sujeitos constroem os sentidos do que lêem, tomando o texto como lugar de interação, onde está presente uma infinidade de não-ditos (implícitos) que são desvelados por um contexto sociocognitivo dos interlocutores (KOCH & ELIAS, 2009).

2-Fábulas: um breve histórico e seus principais representantes

Desde os tempos mais longínquos, histórias criadas pelo povo, contadas oralmente, eram repassadas de uma região a outra pelos mercadores e/ou por outros viajantes – transmitidas, assim, de geração em geração. O conjunto desses textos constitui a literatura oral e tradicional. Com o tempo, alguns escritores e investigadores registraram por escrito tais textos, de origem anônima, conservados na memória popular, fixando-os, então, em livro, para que não se perdessem. Foi o que fez Jean de La Fontaine, no século XVII, com as fábulas de Esopo (século XI a.C.) – boa parte do que foi publicado pelo escritor francês já existia na oralidade. Por isso mesmo o escravo grego, ainda que considerado o pai do gênero, não possui o reconhecimento de que La Fontaine desfruta na contemporaneidade – consideração relevante, num trabalho a ser empreendido com os alunos, levando-se em conta o aspecto oral da língua, percebido em suas peculiaridades e devidamente distinguido em relação à escrita.

Monteiro Lobato, no ano de 1922, dá nova roupagem às antigas fábulas de Esopo e de La Fontaine, trazendo breves comentários e perspectivas críticas. Os textos originais são realçados pelos diálogos, meticulosamente construídos pela genialidade inventiva do autor, entre as personagens do Sítio.

Os ouvintes de Dona Benta e Tia Nastácia são, pois, participantes e insatisfeitos, não se acomodando a soluções sacramentadas. Os meninos    interferem no relato, mudam os finais, criticam os desempenhos, têm opiniões, ainda que, às vezes, equivocadas e preconceituosas. Assim sendo, o recebedor é sempre um indivíduo ativo, cuja reação é decisiva para o transcurso do ato de narrar (ZILBERMAN, 1982, p. 110, grifo nosso).

Mesclando elementos factuais aos da fantasia, Lobato pode ser considerado precursor (e referência) da literatura infantil brasileira. Zilberman explica que a introdução do local e do contemporâneo deveu-se a Monteiro Lobato, que inventou ainda um núcleo ativo de personagens infantis, liderados pela boneca Emília e situados nas propriedades de Dona Benta. O sucesso do empreendimento literário do escritor encetou uma produção para a infância com raízes locais, o que se verifica na obra de coetâneos seus, como Viriato Correa, José Lins do Rego, Erico Veríssimo e Graciliano Ramos, todos com narrativas para crianças, publicadas na década de 30 (1982, p. 107).

Sua obra mais famosa, Sítio do Pica-Pau Amarelo, mostra um universo mágico em que os problemas do Brasil são tratados de forma metafórica e criativa, ganhando uma versão televisiva na década de 1970. Lembrou-se, que tal popularidade (da obra) pode viabilizar o uso das fábulas em atividades pedagógicas contextualizadas, sem perder de vista as estratégias propostas para leitura.

3-Estratégias para leitura

O aluno entra em contato, no dia-a-dia, com diversos gêneros textuais, seja por necessidade, por obrigação ou, até mesmo, por prazer/entretenimento; embora, nem sempre perceba isso. Em regra, ele não sabe por que precisa ler determinado(s) texto(s), em detrimento de outro(s).

Consideramos, assim como Solé (1998, p. 114), que, “Se ler é um processo de interação entre um leitor e um texto, [...] podemos ensinar estratégias aos alunos para que essa interação seja o mais produtiva possível”. O mecanismo primeiro no processo de dar sentido ao que se lê, ou seja, no processo de compreensão do texto, pode ser a indagação do(s) objetivo(s) da leitura – para quê lemos? Como afirma Solé, a interpretação que nós, leitores, realizamos dos textos que lemos depende em grande parte do objetivo da nossa leitura. Isto é, ainda que o conteúdo de um texto permaneça invariável, é possível que dois leitores com finalidades diferentes extraiam informação distinta do mesmo. Assim, os objetivos da leitura são elementos que devem ser levados em conta quando se trata de ensinar as crianças a ler e a compreender (1998, p. 22).

O “processo de previsão e inferência contínua, que se apóia na informação proporcionada pelo texto e na nossa bagagem de previsão” (ibid, 1998, p. 23), configura-se,    igualmente,    uma    forma    de    estratégia    para guiar o aluno/leitor na construção do(s) sentido(s) do texto. Aciona-se uma gama de informações – de forma consciente ou não – no processo de leitura, identificando-se, para que tal fato seja visto e usado como estratégia, a necessidade, por vezes, da mediação/intervenção de um leitor mais maduro, ou seja, daquele que possui, em tese, mais leituras.

Fazemos previsões sobre qualquer tipo de texto e sobre qualquer um dos seus componentes. Para realizá-las, baseamo-nos na informação proporcionada pelo texto, naquela que podemos considerar contextual e em nosso conhecimento sobre a leitura, os textos e o mundo em geral (ibid, 1998, p. 25).

Nesse sentido, um trabalho cônscio e direcionado pode apontar, ainda, a importância das antecipações e das hipóteses, feitas a partir do título do texto, da identificação do autor, do meio de veiculação e do gênero textual, pois antes da leitura do texto, propriamente dito, fazemos antecipações, levantamos hipóteses que, no decorrer da leitura, são confirmadas ou rejeitadas. Neste último caso, as hipóteses serão reformuladas e novamente testadas em um movimento que destaca    a    nossa    atividade    de    leitor    [ativo], respaldada    em conhecimentos arquivados na memória (sobre a língua, as coisas do mundo, outros textos, outros gêneros textuais [...]) e ativados no processo de interação com o texto (KOCH & ELIAS, 2009, p. 13-14).

E, por isso mesmo “a leitura pode ser considerada um processo constante de elaboração e verificação de previsões que levam à construção de uma interpretação” (SOLÉ, 1998, p. 27). Nesse sentido, todo o contexto sócio-cultural que ampliaria a leitura das fábulas, em atividades pedagógicas, pode permanecer latente e deixar de ser acionado se o professor limitar-se a realizar um trabalho mecânico e pouco expansivo.

4-A oficina

Em concordância com os objetivos do Projeto em questão – um trabalho destinado aos professores/participantes, a partir dos diferentes gêneros textuais, visando a formação contínua do educador – buscou-se, numa perspectiva de leitura voltada à formação de leitores críticos, apontar as múltiplas possibilidades de uso do gênero fábula em contexto escolar, pautadas em referencial teórico voltado às Estratégias para leitura.

A apresentação da oficina dividiu-se em dois momentos – um aporte teórico, que subsidiasse as atividades pedagógicas; e, um apanhado de proposições que contextualizasse a teoria. Discutindo aspectos teóricos, falou-se do gênero em si – O que são fábulas e quais os elementos que, de fato, caracterizam o gênero? A palavra fábula, de origem latina, significa relato, conversação, narração alegórica; dela provém o verbo fabulare (falar) – uma das mais antigas formas de narrativa (tradição oral), em verso ou em prosa, que se utiliza do lúdico para transmitir uma lição de moral. Suas personagens são, em regra, animais, que representam tipos humano, como o egoísta, o ingênuo, o espertalhão, o vaidoso, o mentiroso etc. O gênero se divide em duas partes: a história (o que aconteceu) e a sua moral (o significado da história).

Destacou-se a relevância de se resgatar traduções de fábulas de Esopo e de La Fontaine feitas por Monteiro Lobato, cuja criticidade pode constituir um rico material de suporte para consubstanciar os debates propostos aos alunos, a partir da leitura das fábulas (originais).

Percebendo a leitura como “[...] uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que o aborda e seus objetivos” (SOLÉ, 1998, p. 22), procurou-se apontar mecanismos a serem utilizados pelo professor, de forma consciente e intencional, em atividades de leitura e de produção textual, propostas a partir do gênero fábulas.

5-Considerações finais

Apesar de esse gênero ser bastante conhecido pelos professores, constatou-se que seu efetivo uso ainda não foi incorporado ao contexto escolar, de maneira satisfatória. Os participantes concordaram que trabalhar o gênero como ferramenta didática é lidar com amplas vantagens, não apenas por seu caráter lúdico    e de (aparente) entretenimento, mas, sobretudo, pelas (diferentes) versões que ilustram, de forma concreta, distintos contextos sócio-histórico-culturais, que, se devidamente, explorados, podem auxiliar no processo de leitura.

Os resultados, obtidos pela oficina, segundo relato dos professores, foram positivos, levando-se em consideração, sobretudo, a discussão proporcionada com base nas atividades práticas que lhes foram propostas.

Referências

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Trad. Cláudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre:Artmed, 1998.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Leitura, texto e sentido. In: ______.Ler e compreender os sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2009, p. 9-37.
ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In: _______. (org.) A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 93-115.

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010
Diversidade, Ensino e Linguagem    UNIOESTE - Cascavel / PR. (CD-Rom)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 15)

Entre a inocência e a esperteza,
é da inocência o troféu.
O esperto ganha a riqueza,
o inocente ganha o céu.
A. A. DE ASSIS (PR)

Se vai às compras ou a passeio,
saco de plástico evitar.
A terra, de saco cheio,
já deu o que tinha que dar.
AIRTON SOARES (CE)
-
Quanta ternura e carinho,
quanta pureza inocente,
naquele abraço fofinho
do meu "pinguinho de gente"!
ALFREDO DE CASTRO (MG)
-
Sou gente e os meus desenganos
somam-se a certo desgosto
por ver que o espelho dos anos
não gosta mais do meu rosto!
AMALIA MAX (PR)
-
Este amor que é meu tormento
bate em casa abandonada;
responde, na voz do vento,
somente o eco – mais nada!
AMARYLLIS SCHLOENBACH (SP)
-
Ante a luz que já clareia,
a fartura que há de vir,
pecado é ter a mão cheia
e não saber dividir.
ANALICE FEITOSA DE LIMA (SP)
-
Sem fazer-me de rogada,
só persiste uma verdade:
a trova em mim fez pousada,
trazendo a felicidade.
ANDRÉA MOTTA (PR)
-
Maria, só por maldade,
deixou-me a casa vazia:
Dentro da casa   a saudade,
E na saudade, – Maria!
ANIS MURAD (RJ)
-
É de dor a sensação:
meu pai... arrastando os passos;
e eu... puxando pela mão
quem já me levou nos braços!
ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO (DF)
-
Eis um médico fardado
-que perfeito matador!-
quem escapar do soldado,
não escapa do doutor...
ANTÔNIO SALLES (CE)

Como é grande a minha mágoa,
ao ver sofrer tanta gente...
Uns sofrem por falta d'água,
outros, vítimas da enchente.
ANTÔNIO VALENTIM RUFATTO (SP)

Pobre de mim, por desgraça,
Meu coração é um coador...
Nele o riso escorre... e passa...
E fica tudo que é dor....
AUGUSTO DOS ANJOS (PB)
-
Se não praticas o bem,
pára um pouco, pensa e muda:
quem não ajuda ninguém
precisa urgente de ajuda!
ARLINDO TADEU HAGEN (MG)
-
No amor o tempo se gasta
com medidas desiguais:
se estás longe, ele se arrasta;
se perto, corre demais”
CAROLINA RAMOS (SP)
-
El sol que marca el camino
De sus centellas azules
Su ternura le adivino
Cuando se viste de tules
CRISTINA BONILLA (MÉXICO)
-
 Somos como pan de vida,
con agua y harina mezclados;
no habrá nada que divida
al coserlos separarlos!
CRISTINA OLIVEIRA (USA)
-
Um coração que se isola
cava a própria solidão
e não há melhor escola
que o convívio com o irmão.
DÁGUIMA DE OLIVEIRA (MG)
-
O pouco que há sobre a mesa
é o bastante para a gente,
quando se tem a certeza
de que Deus se faz presente
EDMAR JAPIASSU MAIA (RJ)
-
Esta gente brasileira
viaja, desde criança,
como eterna passageira
do comboio da esperança!
EDUARDO A. O. TOLEDO (MG)
-
Com a verde camisola
de detalhes provocantes,
a boazuda Carola
morre de sonhos picantes.
ELIANE APARECIDA PEREIRA (SP)
-
A mulher do militar
deve pagar mais imposto,
só pelo fato de usar
sempre um marido... com...posto…
ELTON CARVALHO (RJ)
-
Que bom se a gente pudesse
fazer tudo que não fez...
e a vida, a chance nos desse,
de ser criança outra vez!...
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA (SP)
-
O esplendor desta cidade,
com o seu mundo de atrações,
não mata em mim a saudade
da beleza dos sertões.
FERNANDO CÂNCIO ARAUJO (CE)
-
Nosso amor é tão patente,
embora os anos passados,
que aos olhos de toda gente
parecemos namorados.
FERNANDO CRUZ (RJ)
-
Esplendor tens, de tal monta,
quando passeias na praça,
que a lua se esconde, tonta,
atrás da nuvem que passa.
FRANCISCO JOSÉ PESSOA DE ANDRADE REIS (CE)
-
Espremam o coração
deste vate trovador,
e vocês conhecerão
o doce suco do amor!
FRANCISCO MACEDO (RN)
-
Primeiro amor!... chama ardente,
que o coração fere fundo,
mas, esse amor, torna a gente,
o mais feliz ser do mundo!...
HERIBALDO GERBASI (SP)
-
Apago as luzes...invento...
e faço tudo o que posso
quando a insônia é meu tormento
no quarto que já foi nosso!
HÉRON PATRÍCIO (SP)
-
Não escrevas tua história
com sangue do opositor,
os louros desta vitória
sem sangue tem mais sabor.
HORTÊNCIO SALES PESSOA (CE)
-
Sensação deliciosa
quando eu estou inspirada:
não tem espinho a rosa
nem tem pedras minha estrada.
JANSKE SCHLENKER (PR)
-
Quanto mais teu corpo enlaço
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento.
JESY BARBOSA (RJ)
-
Nas brancas ruas caiadas,
da terra do sono infindo,
as portas estão fechadas
e todos estão dormindo!
JOÃO RANGEL COELHO (RJ)
-
Minha mais linda vitória
das batalhas que venci
foi a que fez nossa história
depois que te conheci.
JOSÉ DEUSDEDIT ROCHA (CE)
-

Carregador da estação,
letrado como ninguém,
leu na cartilha o rifão:
-“há malas que vêm pro trem”...
JOSUÉ DE VARGAS FERREIRA (SP)
-
Saudade no pensamento,
rastro de antigos apelos:
perfume que vem no vento,
trazido de teus cabelos.
LÍLIA SOUZA (PR)
 -

“ É a trova em seu natural
mordaz, alegre ou dolente,
lindo trecho musical
de quatro notas somente.”
LILINHA FERNANDES (RJ)
-
Saudade, não o ciúme,
é a maior prova de amor.
É como sentir perfume,
mesmo distante da flor.
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH (PR)
 -

Festejo tanto e bendigo,
vitórias que os outros têm,
que a vitória de um amigo
parece minha,  também!
LUIZ OTÁVIO (RJ)
-
O esplendor do teu olhar
meigo, com muita brandura,
lembra a grandeza do mar
ao mostrar tanta candura!...
MARIA ARGENTINA A. DE ANDRADE (CE)
-
Carrinho de rolimã,
nas curvas do meu passado,
traz vontade temporã
de viver despenteado.
MÁRIO A.J. ZAMATARO (PR)
-
Noite de tédio... comprida...
tão sem graça e tão vazia,
que eu bebo qualquer bebida
e aceito qualquer Maria...
MÁRIO PEIXOTO (RJ)
-
Quando quero que a saudade,
em meu peito se avolume,
busco, em total ansiedade,
o aroma do teu perfume.
MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH (PR)
 -

Minha estrada, de fonemas,
toda escrita em verbo amar,
tem ladrilhos de poemas
para o meu amor passar.
NEI GARCEZ (PR)
-
Vou indo por este mundo,
para tudo tenho sinônimo;
mas meu desgosto é profundo
pois sou um poeta anônimo!
NILTON DA COSTA TEIXEIRA (SP)
-

Bendito seja o escritor
que concretiza o saber
e nos transforma em leitor
para o mundo conhecer!...
OEFE DE SOUZA (SP)
-

No alpendre do casarão,
em permanente vigília,
Dirceu cantava a paixão
em versos para Marília.
OLYMPIO COUTINHO (MG)
-

Não pisco os olhos ao vê-la
para não correr o risco
de, por momentos, perdê-la,
a cada instante em que pisco.
ORLANDO BRITO (MA)
-
Quisera pra mim um lume
que indicasse a solução
pra esquecer do teu perfume
cativo em meu coração.
OSIRES HADDAD (PR)
-
Eu, da saudade me farto,
vencendo a insônia, risonho,
quando apago a luz do quarto
e acendo a luz do meu sonho!
RODOLPHO ABBUD (RJ)
-
Quando o amor maduro,na alma
acende o fogo, a paixão,
faz a poesia que acalma
na forma do coração.
SUELI TORNICI (SP)
-

Dum jardim pleno de flores
salta sempre graciosa,
pra rima dos trovadores
a beleza de uma rosa.
VICTOR MANUEL CAPELA BATISTA (PORTUGAL)
-

A feliz trova que eu faço,
quer no verso, quer na rima,
não me traz nenhum cansaço
 sua luz sempre me anima.
VIDAL IDONY STOCKLER (PR)
-
Vejo as flores se espargindo
e o amor ficando mais terno
e a natureza sorrindo
com a chegada do inverno.
VITAL ARRUDA DE FIGUEIREDO (CE)
-

Teu perfume alvissareiro,
mais ligeiro que os teus passos,
chegando sempre primeiro
me faz sentir em teus braços.
WANDIRA FAGUNDES QUEIRÓZ (PR)
-

No esplendor dos verdes anos
minha alma feliz sorria;
hoje, imersa em desenganos,
tem vislumbres de alegria.
ZENAIDE BRAGA MARÇAL (CE)

Irmãos Grimm (A Água da Vida)

Era uma vez um rei muito poderoso que vivia feliz e tranquilo em seu reino. Um dia adoeceu gravemente e ninguém esperava mais que escapasse. Seus três filhos estavam consternados vendo o estado do pai piorar dia a dia. Choravam no jardim quando surgiu à sua frente um velho de aspecto venerável que indagou a causa de tamanha tristeza. Disseram-lhe estar aflitos por causa da enfermidade do pai, já que os médicos não tinham mais esperanças de o salvar.

O velho lhes disse: "Conheço um remédio muito eficaz que poderá curá-lo; é a famosa Água da Vida. Mas é muito difícil obtê-la."

O filho mais velho disse: "Vou encontrá-la, custe o que custar."

Foi imediatamente aos aposentos do rei, expôs-lhe o caso e pediu permissão para ir em busca dessa água.

"Não. Sei bem que essa água maravilhosa existe, mas há tantos perigos a vencer antes de chegar à fonte que prefiro morrer a ver um filho meu correndo esses riscos" disse o rei.

O príncipe porém insistiu tanto que o pai acabou por consentir.

Em seu íntimo o príncipe pensava: "Se conseguir a água me tornarei o filho predileto e herdarei o trono."

Partiu pois montado em rápido corcel na direção indicada pelo velho. Após alguns dias de viagem, ao atravessar uma floresta viu um anão mal vestido que o chamou e perguntou: "Aonde vais com tanta pressa?"

- "Que tens com isso, homúnculo ridículo? Não é da tua conta" respondeu altivamente sem deter o cavalo.

O anão se enfureceu e lhe rogou uma praga. Pouco adiante o príncipe se viu entalado entre dois barrancos; quanto mais andava mais se estreitava o caminho, até que não pôde mais avançar nem recuar, nem voltar o cavalo nem descer. Ficou ali aprisionado sofrendo fome e sede mas sem morrer.

O rei esperou em vão sua volta.

O segundo filho, julgando que o irmão tivesse morrido, ficou contentíssimo pois assim seria o herdeiro do trono. Foi ter com o pai e lhe pediu para ir em busca da Água da Vida.

O rei respondeu o mesmo que ao primeiro; por fim cedeu ante a insistência do rapaz.

O segundo príncipe montou a cavalo e seguiu pelo mesmo caminho. Quando atravessava a floresta surgiu-lhe o anão mal vestido e lhe dirigiu a mesma pergunta: "Para onde vais com tanta pressa?"

- "Pedaço de gente nojento! Sai da minha frente se não queres que te espezinhe com meu cavalo."

O anão lhe rogou a mesma praga, assim o príncipe acabou entalado nos barrancos como o irmão.

Passados muitos dias sem que os irmãos voltassem, o mais moço foi pedir licença ao pai para ir buscar a Água da Vida. O rei não queria consentir, mas foi obrigado a ceder ante suas insistências.

O jovem príncipe montou em seu cavalo e partiu; quando encontrou o anão na floresta ele, que era delicado e amável, deteve o cavalo dizendo: "Vou em busca da Água da Vida, o único remédio que pode salvar meu pobre pai, que está à morte."

- "Sabes onde se encontra?" perguntou o anão.

– "Não."

- "Pois já que me respondeste com tanta amabilidade vou te indicar o caminho. Ao sair da floresta não te metas pelo desfiladeiro que está à frente, vira à esquerda e segue até uma encruzilhada; aí segue ainda à esquerda. Depois de dois dias encontrarás um castelo encantado: é no pátio dele que se encontra a fonte da Água da Vida. O castelo está fechado com um grande portão de ferro maciço, mas basta tocá-lo três vezes com esta varinha que te dou para que se abra de par em par. Assim que entrares verás dois leões enormes prestes a se lançarem sobre ti para te devorar; atira-lhes estes dois bolos para apaziguá-los. Aí corre ao parque do castelo e vai buscar a Água de Vida antes que soem as doze badaladas, senão o portão se fecha e tu ficarás lá preso."

O príncipe agradeceu gentilmente, pegou a varinha e os dois bolos e se pôs a caminho, e conforme as indicações chegou ao castelo.

Com a varinha mágica bateu três vezes e o imenso portão se abriu; ao entrar os dois leões se arremessaram contra ele de bocas escancaradas, mas atirou-lhes os dois bolos e não sofreu mal algum. Porém antes de se dirigir à fonte da Água da Vida não resistiu à tentação de ver o que havia no interior do castelo, cujas portas estavam abertas: galgou as escadas e entrou.

Viu uma série de salões grandes e luxuosos. No primeiro, imersos em sono letárgico, viu uma multidão de fidalgos e criados. Sobre uma mesa estava uma espada e um saquinho de trigo; pressentiu que lhe poderiam ser úteis e levou-os consigo. Indo de um salão a outro, no último deu com uma princesa de rara beleza, que se levantou e disse que, tendo conseguido penetrar no castelo, destruíra o encanto que pesava sobre ela e todos os súditos do seu reino; mas o efeito do encantamento só cessaria mais tarde.

– "Dentro de um ano, dia por dia, se voltares aqui serás meu esposo."

Depois lhe indicou onde estava a fonte da Água da Vida e se despediu, recomendando-lhe que se apressasse para poder sair do castelo antes do relógio da torre bater as doze badaladas do meio-dia, porque nesse exato momento os portões se fechariam.

O príncipe percorreu em sentido inverso todos os salões por onde passara, até que viu uma belíssima cama com roupas muito alvas e limpas; cansado que estava da longa caminhada deitou-se para descansar um pouco e adormeceu.

Felizmente mexeu-se e fez cair no chão a espada que colocara a seu lado, despertando com o barulho. Levantou-se depressa: faltava um minuto para o meio-dia e mal teve tempo de correr ao parque, encher um frasco com a água preciosa e fugir.

Ao transpor os batentes da entrada soou o relógio dando meio-dia; o portão se fechou com estrondo e tão rápido que ainda lhe arrancou uma espora.

No auge da felicidade por ter conseguido a água que salvaria seu pai e ansioso por se ver no palácio pulou sobre a sela e partiu a galope.

Na floresta encontrou o anão no mesmo lugar, o qual vendo a espada e o saquinho de trigo disse: "Fizeste bem em guardar este precioso tesouro. Com essa espada vencerás sozinho o mais numeroso exército, e com o trigo desse saquinho terás todo o pão que quiseres e nunca se lhe verá o fundo."

O príncipe estava porém apoquentado com a desgraça dos irmãos, e perguntou se o anão poderia fazer algo por eles.

"Posso, ambos estão pouco distante daqui entalados em barrancos muito apertados; amaldiçoei-os por causa de seu orgulho."

O príncipe rogou encarecidamente que os perdoasse e libertasse, e o anão cedeu às suas súplicas.

"Mas te advirto que te arrependerás. Não te fies neles, são de mau coração; liberto-os apenas para te ser agradável."

Assim dizendo fez os barrancos se afastarem libertando os entalados, pouco depois reunidos ao irmão que os esperava. Muito feliz por tornar a vê-los o príncipe lhes narrou suas aventuras e disse que daí a um ano voltaria para desposar a maravilhosa princesa e reinar com ela sobre um grande país. Puseram-se os três de regresso para casa. Atravessaram um reino assolado pela guerra, estando o rei desesperado de poder salvar-se e a seu povo.

O príncipe confiou-lhe então o saco de trigo e a espada mágica, com os quais o rei derrotou os exércitos invasores e encheu os celeiros até o forro. O príncipe tornou a receber a espada e o saquinho de trigo e os três irmãos seguiram viagem, tomando um navio para encurtar o caminho.

Durante a travessia os dois irmãos mais velhos, devorados de ciúmes, começaram a conspirar contra o mais novo.

"Nosso irmão conseguiu a Água da Vida e nós não; com isso nosso pai o promoverá a herdeiro do trono que deveria ser nosso e nada nos restará."

Então juraram perdê-lo. De noite quando ele dormia furtaram-lhe o frasco e substituíram a Água da Vida por água salgada. Tentaram também roubar-lhe a espada e o saquinho de trigo mas os objetos desapareceram de repente.

Chegando em casa o jovem correu para o pai e lhe apresentou o frasco para que logo sarasse. Mal engoliu alguns goles daquela água salgada o rei piorou sensivelmente.

Estava se lastimando quando chegaram os mais velhos e acusaram o irmão de ter querido envenenar o pai. Eles porém traziam a verdadeira Água da Vida e lha ofereceram.

Apenas bebeu alguns goles pôde se levantar do leito cheio de vida e saúde como nos tempos da juventude. O pobre príncipe, expulso da presença do pai, se entregou ao maior pesar. Os dois mais velhos vieram ter com ele rindo e mofando:

"Pobre tolo! Tu tiveste todo o trabalho e conseguiste encontrar a Água da Vida mas nós tivemos o proveito; devias ser mais esperto e manter os olhos abertos, enquanto dormias a bordo trocamos o frasco por outro de água salgada. E poderíamos se quiséssemos ter-te atirado ao mar para nos livrarmos de ti, mas tivemos dó. Livra-te contudo de reclamar e contar a verdade ao nosso pai, que não te acreditaria; se disseres uma só palavra não nos escaparás, perderás a vida. Também não penses em ir desposar a princesa daqui a um ano, ela pertencerá a um de nós dois."

O rei estava muito zangado com o filho mais moço, julgando que o quisera envenenar. Convocou seus ministros e conselheiros e lhes submeteu o caso. Foram todos de opinião que o príncipe merecia a morte e o rei decidiu que fosse morto secretamente por um tiro.

Partindo o moço para a caça sem suspeitar de nada um dos criados do rei foi encarregado de o acompanhar e matar na floresta. Chegando ao lugar destinado o criado, que era o primeiro caçador do rei, estava com um ar tão triste que o príncipe lhe indagou a razão:

– "Que tens, caro caçador?"

- "Proibiram-me de falar, mas devo dizer tudo."

- "Dize então o que há, nada temas."

- "Estou aqui por ordem do rei e devo matar-vos."

O príncipe se sobressaltou mas disse:

– "Meu amigo, deixa-me viver. Dar-te-ei meus belos trajes em recompensa e tu me darás os teus, que são mais pobres."

- "Da melhor boa vontade" disse o caçador.

– "É preciso que o rei julgue que executaste suas ordens senão sua cólera recairá sobre ti. Vestirei estas roupas feias e tu levarás as minhas como prova de que me mataste. Em seguida abandonarei para sempre este reino."

Assim fizeram.

Pouco tempo depois o rei viu chegar uma embaixada faustosa do rei vizinho incumbida de entregar ao bom príncipe os mais ricos presentes em agradecimento por ter ele salvo o reino da fome e da invasão do inimigo.

Diante disso o rei se pôs a refletir: "Meu filho seria inocente?" e comunicou aos que o serviam: "Como me arrependo de o ter mandado matar! Ah, se ainda estivesse vivo ..."

Encorajado por estas palavras o caçador revelou a verdade. Disse ao rei que o bom príncipe estava vivo mas em lugar ignorado. Imediatamente o rei mandou um arauto proclamar por todo o país que considerava o filho inocente e que desejava imensamente sua volta. Mas a notícia não chegou ao príncipe; encontrara seu amigo anão, que lhe dera ouro suficiente para poder viver como um filho de rei.

Nesse interim a princesa do castelo encantado que ele livrara do sortilégio mandara construir uma avenida toda calçada com chapas de ouro maciço e pedras preciosas que conduzia diretamente ao castelo, explicando aos seus vassalos:

– "O filho do rei que será meu esposo não tardará a chegar; virá a galope bem pelo meio da avenida. Mas se outros pretendentes vierem, cavalgando à beira da estrada, expulsem-nos a chicotadas."

Com efeito, dia por dia, um ano depois do jovem príncipe ter penetrado no castelo, o irmão mais velho achou que podia se apresentar como sendo o salvador e receber a princesa por esposa. Vendo aquela avenida calçada no meio de ouro e pedrarias não quis que o cavalo estragasse com as patas tanta riqueza que já considerava sua e fez o animal passar pelo lado direito. Quando chegou diante do portão e disse ser o noivo da princesa todos riram e depois o correram de lá a chicote.

Pouco tempo depois veio o segundo príncipe, e vendo todo aquele ouro e jóias pensou que seria um pecado arruiná-los; fez o cavalo galopar pelo lado esquerdo e se apresentou como sendo o noivo da princesa. Teve a mesma sorte do irmão mais velho: foi corrido a chicote.

Findava o ano estabelecido e o terceiro príncipe resolveu deixar a floresta para ir ter com sua amada e a seu lado esquecer as mágoas. Pôs-se a caminho pensando só na felicidade de tornar a ver a linda princesa; ia tão embebido que nem sequer viu que a estrada estava toda coberta de pedras preciosas. Deixou o cavalo galopar pelo meio da avenida, e quando chegou diante do portão do castelo este lhe foi aberto de par em par. Soaram alegres fanfarras e uma multidão de fidalgos saiu para recebê-lo.

Adentrou e em pouco apareceu a princesa, deslumbrante de beleza, que o acolheu cheia de felicidade e declarou a todos que ele era seu salvador e senhor daquele reino. As núpcias foram realizadas imediatamente em meio a esplêndidas festas.

Terminadas as festas, que duraram muitos dias, ela lhe contou que seu pai o havia proclamado inocente e desejava vê-lo de novo.

Acompanhado da rainha sua esposa ele foi ter com o pai e contou-lhe tudo que se passara: como fora traído pelos irmãos e como estes o obrigaram a se calar.

O rei, extremamente irritado contra eles, mandou que seus arqueiros os trouxessem à sua presença a fim de receberem o castigo merecido, mas vendo suas maldades descobertas eles tinham tomado um barco tentando fugir para terras longínquas para aí esconderem sua vergonha. Não o conseguiram. Sobreveio uma tremenda tempestade que tragou o navio e eles pereceram miseravelmente.

Fonte:
Contos de Grimm

domingo, 19 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 15


Irmãos Grimm (A Serpente Branca)

Há muitos e muitos anos, vivia um rei muito celebrado por sua sabedoria. Nada era oculto para ele. Era como se o conhecimento das coisas mais secretas chegasse até ele pelo ar. Mas tinha um estranho costume. Quando a refeição do meio-dia acabava, a mesa era tirada e não havia mais ninguém presente, um criado de confiança lhe trazia um prato a mais. Esse prato era coberto. Nem mesmo o criado sabia o que havia ali dentro. Nem ele nem mais ninguém, porque o rei só tirava a tampa e comia depois que ficava sozinho.

Um dia, depois que isso já acontecia há algum tempo, o criado não aguentou mais de curiosidade na hora de levar o prato embora. Secretamente o carregou para seu quarto, trancou a porta com cuidado e, quando levantou a tampa, viu que dentro havia uma serpente branca.

Depois de ver a cobra, não aguentou ficar sem dar uma provadinha. Cortou um pedaço bem pequeno dela e o pôs na boca. Assim que o pedacinho da serpente tocou a língua dele, o criado começou a ouvir sussurros suaves e estranhos do lado de fora da janela. Quando se debruçou para ver o que era, descobriu que as vozes que murmuravam eram de pardais conversando, que contavam uns aos outros tudo o que tinham visto pelos bosques e campos. Provar a serpente tinha lhe dado o poder de entender a linguagem das aves e dos animais.

Ora, aconteceu que justamente naquele dia desapareceu o melhor anel da rainha.

Como o criado de confiança tinha toda a liberdade para ir onde bem entendesse no palácio, suspeitaram que o tivesse roubado. O rei mandou chamá-lo e brigou com ele, dizendo que, a não ser que ele desse o nome do ladrão até o dia seguinte, seria considerado culpado e decapitado. Não adiantou jurar inocência. O rei mandou-o embora sem uma palavra de consolo.

Com medo e se sentindo desgraçado, ele foi até o quintal e ficou pensando, vendo se encontrava um jeito para sair daquela situação. Alguns patos estavam calmamente sentados na beira de um riacho, à vontade, se alisando com o bico e batendo papo. O criado parou e escutou. Cada um dizia aos outros o que tinha acontecido em todos os lugares por onde tinha nadado naquela manhã, e toda a comida gostosa que tinha comido. Mas um deles disse, queixoso:

- Estou com um peso no estômago... Estava comendo tão depressa que engoli um anel que estava no chão bem embaixo da janela da rainha...

O criado rapidamente agarrou o pato pelo pescoço, levou-o direto para a cozinha e disse ao cozinheiro:

- Olha só que pato gordo Se eu fosse você, assava ele.

- É mesmo - disse o cozinheiro, pesando o pato com a mão. - Já que ele se esforçou para ganhar tanto peso, é tempo agora de ir para o forno.

Cortou o pescoço do pato e depois, quando estava limpando a ave para assar, encontrou o anel da rainha no estômago dela. Com isso, não foi difícil o criado convencer o rei de sua inocência. Querendo reparar a injustiça que tinha feito, o rei lhe perguntou se havia alguma coisa que ele desejasse, e lhe ofereceu o cargo que ele quisesse escolher na corte.

O criado recusou todas as honras e disse que só queria um cavalo e um pouco de dinheiro, porque desejava ver o mundo e viajar um bocado. O rei logo lhe deu o que queria, e ele partiu.

Um dia, passando por um lago, notou que três peixes estavam presos nuns caniços e estavam ficando sem água. Dizem que os peixes são mudos, mas ele ouviu muito bem como eles gemiam se lamentando, diante da morte horrível que os esperava. Como era um bom sujeito, desceu do cavalo e pôs os três cativos novamente na água. Eles puseram as cabecinhas de fora, se abanando de alegria, e disseram:

- Vamos lembrar disso e recompensar você por nos ter salvo.

Ele continuou seu caminho e, pouco depois, ouviu uma voz que vinha da areia a seus pés. Prestou atenção e ouviu a queixa do rei das formigas:

- Se os humanos conseguissem manter seus animais desajeitados bem longe de nós, seria ótimo! Esse cavalo estúpido com esses cascos imensos e pesados está esmagando meu povo sem piedade...

Ouvindo isso, o criado saiu por um caminho lateral, e o rei das formigas gritou: - Vamos lembrar disso e recompensar você...

O caminho levava a uma floresta. Lá, ele viu um casal de corvos empurrando os filhotes para fora do ninho:

- Fora, seus marmanjões! - gritavam. - Não podemos mais encher as barrigas de vocês. Já estão bem grandinhos para buscarem sua própria comida.

- Ainda somos filhotes indefesos - gritavam. - Como é que podemos arranjar comida?

Os pobres filhotes batiam as asas desajeitados e não conseguiam levantar-se do chão. comida se ainda nem sabemos voar? Vocês vão nos fazer morrer de fome!

Ouvindo isso, o bom jovem apeou, matou o cavalo com a espada e deu sua carne para alimentar os filhotes de corvo. Eles vieram saltitando, comeram até se fartar, e disseram:

- Vamos lembrar disso e recompensar você.

Daí para a frente, ele teve que usar as pernas. Depois de muito caminhar, chegou a uma grande cidade. As ruas estavam cheias de barulho e movimento. Um homem a cavalo anunciava que a filha do rei estava procurando marido, mas que quem quisesse pedir a mão dela precisava primeiro cumprir uma tarefa muito difícil e, se falhasse, perderia a vida. Muitos já tinham tentado, mas arriscaram a vida à toa. Quando o jovem viu a filha do rei, ficou tão estonteado com a beleza dela que se esqueceu do perigo, foi até o rei e se apresentou como pretendente.

Foi levado diretamente à beira do mar. Lá, diante de seus olhos, jogaram n'água um anel de ouro. Depois, o rei lhe disse que ele precisaria ir buscar o anel lá no fundo. E acrescentou:

- Se você sair da água sem ele, será jogado de volta, tantas vezes quantas necessário, até morrer nas ondas.

Os cortesãos todos ficaram com pena do jovem e lamentaram sua sorte, tão bonito. Depois, deixaram-no sozinho na praia.

Ele ficou um pouco ali parado, pensando no que ia fazer. De repente, viu três peixes nadando em sua direção - justamente os três cujas vidas ele tinha salvo. O do meio tinha uma concha na boca. Depositou-a na praia, junto aos pés do rapaz. Quando ele pegou a concha e abriu, viu que dentro estava o anel de ouro.

Todo contente, levou o anel até o rei, esperando receber a recompensa prometida.

Mas a princesa era muito prosa e, quando viu que ele era inferior a ela em nascimento, desprezou-o e disse que ele ia precisar cumprir uma segunda tarefa. Desceu até o jardim e espalhou dez sacos cheios de farelo pelo meio da grama.

- Você vai ter que recolher tudo isso até amanhã, antes do sol nascer - disse ela -, sem faltar nem um grãozinho.

O rapaz sentou no jardim e começou a pensar em um jeito de cumprir a tarefa, mas não lhe ocorria nada. E lá ficou ele, tristíssimo, esperando que o levassem para a morte quando o dia nascesse. Mas quando os primeiros raios do sol chegaram ao jardim, ele viu que os dez sacos estavam de pé, cheios até a borda, sem faltar nem um grãozinho. O rei das formigas tinha vindo durante a noite, com milhares e milhares de formigas, e os bichinhos agradecidos tinham juntado todos os grãos de farelo dentro dos sacos outra vez.

A filha do rei veio em pessoa até o jardim e ficou espantadíssima de ver que a tarefa tinha sido cumprida. Mas seu coração prosa ainda se recusava a se render. Por isso, ela disse:

- Ele cumpriu as duas tarefas. Mas não será meu marido enquanto não me trouxer um fruto da árvore da vida.

O rapaz nem sabia onde ficava essa árvore da vida. Partiu procurando, resolvido a andar até onde as pernas o levassem, mas sem qualquer esperança de encontrar.

Uma noite, depois de procurar por três reinos, ele chegou a uma floresta. Sentou-se debaixo de uma árvore e estava quase adormecendo quando ouviu um barulho nos galhos e uma fruta de ouro caiu em suas mãos. Ao mesmo tempo, três corvos desceram voando da árvore, pousaram em seus joelhos e disseram:

- Nós somos os filhotes de corvo que você não deixou morrer de fome. Quando crescemos e ouvimos dizer que você estava procurando a fruta de ouro, voamos por cima do mar até o fim do mundo, onde cresce a árvore da vida, e pegamos a fruta.

Muito contente, o rapaz voltou para casa. Deu a fruta de ouro para a princesa e, depois disso, ela não tinha mais desculpa. Dividiram a maçã da vida e a comeram juntos. Aí o coração dela se encheu de amor por ele, e os dois viveram até a velhice numa felicidade perfeita.

Fonte:
Contos de Grimm