sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Saudade em Versos Diversos I

ALBERTO DE OLIVEIRA

Crescente de agosto

Alteia-se no azul aos poucos o crescente,
O ar embalsama, os cirros leva, o escuro afasta;
Vasto, de extremo a extremo, enche a alameda vasta
E emborca a urna de luz nas águas da corrente.

Na escumilha da teia, onde a aranha indolente
Dorme, feita de orvalho, uma pérola engasta.
Faz aos lírios mais branca a flor cetínea e casta,
Mais brancos os jasmins e a murta redolente.

Faz chorar um violão lá não sei onde... (A ouvi-lo
Na calada da noite, um não-sei-quê me invade)
Faz que haja em tudo um como estranho espasmo e enlevo;

Faz as cousas rezar, ao seu clarão tranqüilo,
Faz nascer dentro em mim uma grande saudade,
Faz nascer da saudade estes versos que escrevo.

ALCEU WAMOSY

Duas almas

Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...

A neve anda a branquear lividamente a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa
essa estrada sem fim, deserta, horrenda e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Soneto da defunta formosa

Temos saudade, pálida formosa,
De tudo quanto o pôr-do-sol fenece:
Ou seja o som final de extrema prece,
Ou seja o último anseio de uma rosa...

E mais ligeiramente a gente esquece
Uma hora que a alma de carinhos goza,
Que de ter visto, em roxa luz saudosa,
Uma imperial tulipa que adoece...

Um lírio doente no caulim de um vaso
Faz-nos lembrar um luar em pleno ocaso
Morrendo ao som das últimas trindades...

E nem eu sei, amor, por que perguntas,
Tu que és a mais formosa das defuntas,
Se eu de ti hei de ter loucas saudades.

AUGUSTO DOS ANJOS

O Bandolim
 

Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas,
Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez d'um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão as bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é fria e calma,
Teu canto vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d'alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!

DA COSTA E SILVA
 
Saudade

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho... o caboré com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas da névoa sobre a serra...

Saudade! O Parnaíba — velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...

JORGE DE LIMA
 
Velho tema, A Saudade

Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
— Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama...

Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...
..Um segredo de amor que se desfaz e mente...
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
— Faze que uma saudade a ti seja o presente!
— Faze que tua morte uma saudade seja!

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) Cravo, rosa e jasmim

Recolhido no Algarve

Uma mulher tinha três filhas; indo a mais velha passear a uma ribeira, viu dentro da água um cravo, debruçou-se para apanhá-lo, e ela desapareceu. No dia seguinte sucedeu o mesmo a outra irmã, porque viu dentro da ribeira uma rosa. Por fim, a mais nova também desapareceu, por querer apanhar um jasmim. A mãe das três raparigas ficou muito triste, e chorou, chorou, até que tendo um filho, este quando se achou grande, perguntou à mãe porque é que chorava tanto. A mãe contou-lhe como é que ficara sem as suas três filhas.

– Pois dê-me minha mãe a sua bênção, que eu vou por esse mundo em procura delas.

Foi. No caminho encontrou três rapazes em uma grande guerreia. Chegou ao pé deles…

«Olá, que é isso?».

Um deles respondeu:

– Oh, senhor; meu pai tinha umas botas, um chapéu e uma chave, que nos deixou. As botas em a gente as calçando, e lhe diga: Botas, ponham-me em qualquer banda, é que se aparece onde se quer; a chave abre todas as portas; e o chapéu em se pondo na cabeça, ninguém mais nos vê. O nosso irmão mais velho quer ficar com as três coisas para si, e nós queremos que se repartam à sorte.

– Isso arranja-se bem, disse o rapaz querendo harmonizá-los. Eu atiro esta pedra para bem longe, e o que primeiro a apanhar é que há de ficar com as três coisas.

Assentaram nisso; e quando os três irmãos corriam atrás da pedra, o rapaz calçou as botas, e disse:

– Botas, levem-me ao lugar em que está minha irmã mais velha.

Achou-se logo numa montanha escarpada onde estava um grande castelo, fechado com grossos cadeados. Meteu a chave e todas as portas se lhe abriram; andou por salas e corredores, até que deu com uma senhora linda e bem vestida que estava muito alegre, mas gritou com espanto:

– Senhor! Como é que pôde entrar aqui?

O rapaz disse-lhe que era seu irmão, e contou-lhe como é que tinha podido chegar ali. Ela também lhe contou a sua felicidade, mas que o único desgosto que tinha era não poder o seu marido quebrar o encanto em que andava, porque sempre lhe tinha ouvido dizer que só se desencantaria quando morresse um homem que tinha o condão de ser eterno.

Conversaram bastante, e por fim a senhora pediu-lhe para que se fosse embora, porque podia vir o marido e fazer-lhe mal. O irmão disse que não tivesse cuidado porque trazia consigo um chapéu, que em o pondo na cabeça ninguém mais o via. De repente abriu-se a porta, e apareceu um grande pássaro, mas nada viu, porque o rapaz quando sentiu barulho pôs logo o chapéu. A senhora foi buscar uma grande bacia dourada, e o pássaro meteu-se dentro transformando-se em um mancebo formoso. Em seguida olhou para a mulher, e exclamou:

– Aqui esteve gente! – Ela ainda negou, mas viu-se obrigada a confessar tudo.

– Pois se é teu irmão, para que o deixaste ir embora? Não sabias que isso era motivo para eu o estimar? Se cá tornar, diz-lhe para ficar, que o quero conhecer.

O rapaz tirou o chapéu, e veio cumprimentar o cunhado, que o abraçou muito. Na despedida deu-lhe uma pena, dizendo:

– Quando te vires em alguma aflição, se disseres: Valha-me aqui o Rei dos Pássaros! Há de te sair tudo como quiseres.

Foi-se o rapaz embora, porque disse às botas que o levassem onde estava sua irmã do meio. Aconteceram pouco mais ou menos as mesmas coisas; à despedida o cunhado deu-lhe uma escama:

– Quanto te vire em alguma aflição diz: Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Até que chegou também a casa da sua irmã mais nova; achou-a em uma caverna escura, com grossas grades de ferro; foi ao som das lágrimas e soluços dar com ela muito magra, que assim que o viu, gritou:

– Quem quer que vós sois, tirai-me daqui para fora.
   
Ele então deu-se a conhecer, e contou-lhe como achou as outras duas irmãs muito felizes, mas só com o desgosto de não poderem os seus maridos desencantar-se. A irmã mais nova contou-lhe como estava com um velho hediondo, um monstro que queria casar com ela por força, e que a tinha ali presa por não lhe querer fazer a vontade. Todos os dias o velho monstro vinha vê-la para lhe perguntar se já estaria resolvida a tomá-lo como marido; e que ela se lembrasse que nunca mais tinha liberdade, porque ele era eterno.

Assim que o irmão ouviu isto lembrou-se do encantamento dos dois cunhados, e pensou em apanhar o segredo por que ele era eterno; aconselhou à irmã que fizesse a promessa de casar com o velho, se lhe dissesse o que é que o fazia eterno.

De repente o chão estremeceu todo, sentiu-se como um grande furacão, e entrou o velho, que chegou ao pé da menina e lhe perguntou:

– Ainda não estás resolvida a casar comigo? Tens de chorar todo o tempo que o mundo for mundo, porque eu sou eterno, e quero casar contigo.

– Pois casarei contigo, disse ela, se me disseres o que é que faz que nunca morras?

O velho desatou às gargalhadas:

– Ah, ah, ah! Pensas que me poderias matar! Só se houvesse quem fosse ao fundo do mar buscar um caixão de ferro, que tem dentro uma pomba branca, que há de pôr um ovo, e depois trouxesse aqui esse ovo, e mo quebrasse na testa.

E tornou a rir-se na certeza de que não havia ninguém que fosse ao fundo do mar, nem fosse capaz de achar onde estava o caixão, nem mesmo de o abrir, e tudo o mais que se sabe.

– Agora tens de casar comigo, porque já te descobri o meu segredo.

A menina pediu ainda uma demora de três dias, e o velho foi-se embora muito contente. O irmão disse para ela, que tivesse esperança, que dentro em três dias estaria livre. Calçou as botas e achou-se à borda do mar; pegou na escama que lhe deu o cunhado e disse:

– Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Apareceu logo o cunhado, muito satisfeito; e assim que ouviu o acontecido mandou vir à sua presença todos os peixes; o último que chegou foi uma sardinhinha, que se desculpou por se ter demorado porque embicou num caixão de ferro que está no fundo do mar. O Rei dos Peixes deu ordem aos maiores que fossem buscar o caixão ao fundo do mar. Trouxeram-no. O rapaz assim que o viu, disse à chave:
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– Chave, abre-me este caixão.

O caixão abriu-se, mas apesar de todas as cautelas, fugiu-lhe de dentro uma pomba branca.

Disse então o rapaz, para a pena:

– Valha-me aqui o Rei dos Pássaros.

Apareceu-lhe o cunhado, para saber o que ele queria, e assim que o soube mandou vir à sua presença todas as aves. Vieram todas e só faltava uma pomba, que veio por último desculpando-se, que lhe tinha chegado ao seu agulheiro uma antiga amiga que estava há muitos anos presa, e que lhe tinha estado a arranjar alguma coisa de comer.

O Rei dos Pássaros disse que ensinasse ao rapaz onde é que era o ninho onde a pomba estava, e lá foram, e o rapaz apanhou o ovo que ela já tinha posto e disse às botas que o levassem à caverna onde estava a irmã mais moça.

Era já o terceiro dia, e o velho vinha pedir o cumprimento da palavra da menina; ela, que já estava aconselhada pelo irmão, disse que se reclinasse no seu regaço; mal o apanhou deitado, com toda a certeza quebrou-lhe o ovo na testa, e o monstro dando um grande berro, morreu.

Os outros dois cunhados quebraram ao mesmo tempo o encantamento, vieram ali ter, e foram com as suas mulheres, que ficaram princesas, visitar a sogra, que viu o seu choro tornado em alegria, na companhia da filha mais nova, que lhe trouxe todos os tesouros que o monstro tinha ajuntado na caverna.
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Notas Comparativas

Aparecem outras versões deste conto, nos Contos populares portugueses, n.º XVI; e nos Contos populares do Brasil, coligidos pelo Dr. Sílvio Romero, com o título O Bicho Manjaléu. (Rev. Brasileira, tomo VI, p. 120).

Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, de Brueyre, p. 81 e 119.

Nos Old Deccan Days, de Miss Frere, o conto do Punchkin versa sobre este mesmo assunto de um Mago que encanta todos, e cuja vida estava resguardada sendo impossível descobrir esse e talismã; é uma criança que livra sua mãe e sete tios, príncipes.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 33 – 29 de outubro de 1887

Alá! por Alá! Cá tenho
Inda nos tristes ouvidos
O som duro, o som ferrenho,
Destes termos desabridos:

“Os liberais padecemos
Como os cristãos da Bulgária
Padecem duros extremos
Da turca espada nefária”.

E porque tenho uma veia
Com sangue de Mafamede,
Cousa que não acho feia,
Que não desdoura, nem fede;

Juro que andei azoinado
Com o dito do estadista,
Azoinado e envergonhado,
Sem voz, sem sabor, sem vista.

Mas (Alá é grande!) agora,
Agora, neste momento,
Chegam notícias de fora,
Da Bulgária e de espavento...

Vejo que o governo novo
Daquele povo inquieto,
Para aquietar o povo,
Achou um meio discreto.

Convidou madre Censura
Para rever os diários,
Enterrando a unha dura
Por modos crespos e vários,

Nos trechos em que apareça
Opinião tão à toa,
Que em tudo, se mostre avessa
Ao que ela entender que é boa.

Assim podem os censores
Riscando uma parte ou tudo,
Fazer dos espinhos flores,
Fazer do rudo veludo.

É pouco. Um dos jornalistas
Tantas fez que foi pegado,
E teve, de mãos artistas,
Não pouco, nem moderado,

Castigo de tal volume
Que era de ver... Cem açoites!
Quase lhe levam o lume,
Quase lhe dão boas noites.

E disseram-lhe ao soltá-lo.
Que se voltasse à escritura,
Haviam de castigá-lo,
De outra forma inda mais dura.

Ora, o que me espanta nisto
É que a gente que maltrata
Os pobres filhos de Cristo
São cristãos de pura nata.

Lá que impeçam tais diários,
Acho até bom, não somente
Nos dias incendiários,
Mas nos de vida corrente.

Nunca veio mal de um mudo,
E imprimir o que se pensa,
Tudo, tudo, ou quase tudo,
É desastre, não imprensa.

Assim, acho grão perigo
Que, em obséquio ao Ramalho
Ortigão, meu grande amigo,
Honra do engenho e trabalho,

Desse a Gazeta, uma festa,
De autores e jornalistas,
Cerrada e longa floresta
De opiniões e de vistas.

Conservadores sentados,
Em frente a republicanos,
E liberais afamados
Ao lado de ultramontanos.

Gente ruim, gente feia,
Merecia nessa noite,
Não festa, porém, cadeia,
Não Borgonha, mas açoite.

País de tal liberdade
E tolerância tamanha,
Vai com toda a alacridade
Ao lodo, ao delírio, à sanha.

Olhemos para a Bulgária;
Arruma, cristão amigo,
Simples pancada ordinária,
Cem açoites por artigo.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Luciano Bonfim (De Natureza Cíclica)

– Olho aberto, gritam os patriarcas.

Não poderiam se descuidar da estrada; também preocupavam-se com as crianças, impacientes o necessário para se tornarem presas fáceis. Da última vez encontraram apenas ossos espalhados sobre o terreno.

Antes mesmo de o orvalho se despedir das folhas, homens se armam de pedras, pedaços de madeira e outros objetos que possam ser atirados à distância. Armas de fogo seriam inúteis: os animais podem se assustar e a menor imprudência será um desastre.

A fumaça vinda das fogueiras e chaminés esconde a ponte, e a cerração fecha o anoitecer.

– Botem sentido...

Do pequeno morro, cadeiras, bancos e o chão servem de miradouro; algumas pessoas preferem montar guarda próximo à ponte de onde têm uma larga visão do horizonte, evitando, também, maior aproximação da fazenda do coronel Galdêncio, que expulsa a tiros quem ousa desobedecê-lo.

– A dor ensina...

Não cochilavam em serviço, e quando alguém desiste do posto, indo rumo ao sul ou para o cemitério, seus netos ou parentes mais próximos não deixam descansar os cuidados. Antes mesmo de aprenderem os seus nomes as crianças nutrem raiva e medo pelo bico de ferro.

– Urubu quando canta, não chove...

Aqueles que não possuem animais, e até se beneficiam quando antes das formigas e urubus encontram carne fresca, torcem pelo ‘inimigo’.

– Quem não pode com o pote...

Ao apito da máquina gritaram pelas crianças e atiraram pedras como se fossem seus últimos atos em vida... Seguiu-se uma cortina de fumaça que sumiu a esmo; agora, apenas os trilhos paralelos cruzam o horizonte...

Aliviaram os gestos e começaram outro inventário.

...

No dia seguinte, como acontecia desde que foi instalada a ferrovia, iniciam a espera...

– Olho aberto – murmuram alguns fantasmas...

 (Luciano Bonfim, Dançando com sapatos que incomodam)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Luciano Bonfim


Luciano Gutembergue Bonfim Chaves (Crateús, 1971) é graduado em Pedagogia, pela Universidade Estadual do Ceará, e professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral. Faz mestrado em Educação na Universidade Federal do Ceará. Publicou: Janeiros Sentimentos Poéticos (Crateús: edição do Autor, 1992), de poesias, Dançando com sapatos que incomodam (Fortaleza: edição do autor, 2002) e Móbiles (Fortaleza: Edição do Caos, 2007), ambos de contos. Escreveu para o teatro: As mulheres Cegas (premiado no Festival de Teatro Amador de Acopiara – CE/2000) e Auto do Menino Encantado; e o cordel Como Donana Calunga venceu o mosquito da dengue, adaptado e encenado pelo Grupo Ambulantes.

            Luciano Bonfim se revela um escritor inventivo, versátil, que sabe se desviar do lugar-comum da literatura, da narrativa tradicional e linear. O contista não somente se vale da intertextualidade, ao colar trechos de obras clássicas ou contemporâneas, dar-lhes outra roupagem, como presta homenagem a alguns dos ícones da Literatura, ao conceber novas formas a fragmentos de suas criações, como em “O Cálice dos Desesperados”, numa recriação substantiva de um momento da Metamorfose de Kafka, como se lê aqui: “Até que um dia deparou-se com aquele monstro horrível, e sentiu mesmo uma imensa vontade de esmagá-lo”. Em “combinações aleatórias” as homenagens a escritores são claras. Nelas e no processo de diálogo intertextual, Luciano vai dos clássicos (Sören Kierkegaard, Juan Rulfo, Clarice Lispector) aos mais novos, como Caio Fernando Abreu e Jorge Pieiro.

Afeito à intertextualidade, Luciano sabe dialogar com outros textos, não somente os literários. Ao se aproveitar do recurso intertextual, ele o faz muito mais conscientemente do que inconscientemente, como se vê ao citar nomes e títulos de obras.

O contista demonstra afinidade não somente com escritores, mas também com compositores e pintores, como é o caso de Van Gogh. “Ilustração” se inicia assim: “No campo os girassóis lembram um certo pintor holandês ridicularizado em vida”.

Luciano também se socorre muito da descrição, que vem do seu amor à pintura e ao desenho. Como neste trecho de “Variações”: “Existe, após as casas, um imenso terreno baldio e um pequeno sítio onde cultivam flores e hortaliças; também possuem uma colmeia”.

            Vejam-se as imagens, pinceladas, descrições em “Após a Neblina Cinzenta do Crepúsculo”, cuja poesia se inicia no título: “Em toda a sua extensão a nossa vila turva-se de vermelho, rosa, roxo, verde, florais – estampas de um enorme e denso colorido. A lua nestas noites, desde as primeiras horas, talvez influenciada por tantas mudanças, compõe-se bordô, – reforçando detalhes e apagando eventuais manchas que possam dissimular imagens”. O próprio narrador (“Naquela mesma lua, na espessa calda que recobre a noite, os traços de Zuita Benoar ganham uma conotação cada vez mais confusa – aspecto de rascunho engolido pela paisagem”) se encarrega de enfatizar a tendência de Luciano pelo desenho, pela pintura, pela paisagem. Em “Aves de Arribação” (clara homenagem a Antônio Sales) se lê: “Durante algum tempo, a corda tensa no espaço e o corpo oscilando suspenso no ar, permaneceram compondo a paisagem, tendo o desvão azul e frio do céu como fundo arbitrário de imagem” (grifo nosso). Em “Estúpido Cupido de Giz” (absorção de parte da letra da música de Neil Sedaka, na voz de Celly Campello, gravada em 1959) outra descrição, outra pintura: “O firmamento é um imenso prato raso, onde todos os canais noturnos do inferno astral convergem para além do firmamento blue”.

                Em Luciano há muita poesia, sobretudo nas metáforas, que são abundantes: “Numa noite difusa, silenciosamente, as casas devoraram os seus moradores”. E, se não são metáforas, estamos diante de pura literatura fantástica. Veja-se a poesia deste excerto: “Não me encontrando [em meu coração] especializei-me em vislumbrar abismos”.

Dois de seus personagens – Margot e Gaspar – aparecem em diversas composições, o que levaria o leitor a imaginar a construção de um romance. Talvez houvesse essa pretensão no escritor. Porém, em nenhum momento se percebe nos “móbiles” ou nos “passos” do primeiro livro o espírito de romance.

  Em “Terceiro Caderno” o ser fictício está perdido e nem sabe como narrar, ou o que narrar. O de “Não Existe Apenas uma Forma de Amor & Prazer” mais se assemelha a ensaísta, num ensaio do amor e do prazer carnal. Em “Segundo Rascunho” o narrador-personagem está em completa solidão, desespero: “As ruas não estavam desertas, eu estava”. Em “Sobre Naturezas Humanas” o tema central é o ser humano, como a dizer: “Assim são os humanos”. Em “Por Causa do Gato Lilás”, cujo protagonista é um animal, “Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuímos em casa”. Seria a felina também pintora? Em “Correspondência Violada” o tema é a solidão do escritor, os sonhos literários, e seu cotidiano doméstico.

Em muitas peças nada se vê de descrição ou mesmo de informação geográfica. No entanto, aqui e ali se percebe como espaço das ações a cidade do interior. “Sina” é todo composto de referências ao ambiente rural, em vocábulos e expressões de uso comum no sertão. “Viúva de Marido Vivo” também retrata o ambiente de pobreza, a seca. Em “Apesar de.” “Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidade”.

                A chuva é outro elemento frequente na obra de Luciano, talvez exatamente em face da escassez dela no Ceará. Em “Blues da Finitude.” se lê: “Uma pequena chuva, dessas que não divergem opiniões e nos estimulam ao sexo, lambeu por toda a noite a cidade insone”.

Um conto só é bom se tiver um bom desfecho. Como em “Negócios Importantes para o Futuro da Empresa”: “Dali a pouco, ela pegaria a sua filha no colégio e eu me encontraria com o seu marido, para tratarmos de negócios importantes para o futuro da empresa”. Belo deslinde, inusitado, embora realista.

                Luciano se serve das mais variadas formas ou modalidades de comunicação: a carta – o que não é novidade – (como em “Cartas a Van Gogh”), a propaganda, a conversa fiada, o anúncio, a frase feita, o lugar-comum, o ditado (em “Na Brevidade das Fugas” a pessoa que dialoga com Maria e também o narrador fazem uso constante dessa linguagem). O mesmo recurso é utilizado em “De Natureza Cíclica”. Há até uma “Conversa entre Liquidificadores” (ilegível para o leitor humano, talvez legível por outros liquidificadores, que falariam de si mesmos ou dos humanos, de suas engrenagens, de seu trabalho diário, etc. Sim, sobre o que “conversam” os liquidificadores? Sobre os humanos ou sobre si mesmos?) Em “Noturnos Ópios No 9” Luciano aproveita a fórmula das questões de prova escolar. Em “Variações” encontramos até o que se poderia chamar de relatório oficial: “Casas: iguais e diferentes. /Moradores: análogos e divergentes. /Situações: semelhantes e distintas”. Em “Apesar de.” a forma utilizada é a do diário, o que também não é novidade.

                Muitas de suas composições são bem curtas, constituídas de diálogos breves, quase enigmáticos. Outras são compostas apenas de uma fala e uma narração breve, como em “Implicações Clandestinas das Herméticas Influências”.  “Intervenção Urbana” seria uma síntese de um acidente ou suicídio. Em “Original Lugar Comum” ele brinca com as fórmulas filosóficas, os sofismas, etc. Em “A Realidade Segundo H. P. Down” de novo a linguagem dos filósofos ou uma paródia filosófica. Ou conclusões lógicas, como em “O Filho Alérgico e a Mãe Protetora”.

                Luciano também aproveita com cuidado a sequência de vocábulos ideologicamente análogos, para construir a frase, o enunciado narrativo, como em “Manhã Guardada”: “Confissões, namoros feitos, mágoas, traições refeitas, álcool, amores desfeitos, mulher amada, punhais, olhares penumbros, bichas pavão, lésbicas fumadas, viciados utópicos – a praça para além dos bancos”. Ou em “Filhos de mãe d’água”.

                Tudo isso faz de Luciano Bonfim um escritor absolutamente moderno, novo, embora não se desfaça das fórmulas consagradas de narrar ou escrever, não se afaste dos narradores essenciais e, acima de tudo, não pense que inventou a roda, a pólvora ou mesmo o conto.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 17)

He-heee… pimenta boa!
Tanto assanha o maridão,
Que, emocionada, a patroa
Dobra a ardência do pirão…
A. A. DE ASSIS (PR)
-
Quero, por tudo e por nada,
Esquecer-te a qualquer preço
Mas a distância danada
Já sabe o meu endereço!
ANTÔNIO COLAVITE FILHO (SP)
-
Sou feliz! Não vivo ao lado
das estrelas na amplidão,
mas posso ter um punhado
de vaga-lumes na mão.
ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES (RJ)
-
Desta saudade infinita
não guardo mágoas, porque
foi a coisa mais bonita
que me ficou de você.
APARÍCIO FERNANDES (RN)
-

Que barulho o Zé fazia,
na moita de sabugueiro,
e quem passava sentia
que o barulho… tinha cheiro!
CAMPOS SALES (SP)
-
Uma luz quase apagada…
Um sonho chegado ao fim…
Eis um pedaço do nada
que tu fizeste de mim!
CONCEIÇÃO DE ASSIS (MG)
-
Sou tal qual ave ferida
que as suas asas quebrou
e Deus, para dar-lhe vida,
os seus pedaços juntou.
DIVA DA COSTA LEMOS (RS)
-
Bebo lembranças em tragos,
ao ponto da embriaguez,
para curar os estragos
que a sua ausência me fez!
ELISABETH SOUZA CRUZ (RJ)
-
No jogo da vida é assim:
tem encrenca e desacato,
e, quando ele chega ao fim,
a mãe de alguém paga o pato…
ERCY MARQUES DE FARIA (SP)
-
Desponta sereno o dia,
e o meu sonho, sem demora,
enche o mundo de poesia
ao romper da linda aurora!
EVA GARCIA (RN)
-
A palavra mais ardente
não é o fogo, é a paixão;
queimando o corpo da gente
deixa em brasa o coração.
GILDA MOURA (RN)
-
Aquela ponte que unia
nossas vilas ribeirinhas
une ainda, por magia,
tuas saudades e as minhas.
GISLAINE CANALES (SC)
-
Com ambição desmedida
por coisas materiais,
o homem não tem medida,
nem liberdade, nem paz…
GONZAGA DA SILVA (RN)
-
O sol, eterno andarilho,
Nas rotas do movimento,
Abre as cortinas com brilho
No escuro do firmamento.
HÉLIO ALEXANDRE (RN)
-
A ressaca da bebida
é pra ninguém esquecer.
Por isso a melhor pedida
é não parar de beber.
HELIODORO MORAIS (RN)
-
Quase todo brasileiro
tem esta…“mania”… estranha:
– dá sumiço no dinheiro
mais depressa do que ganha!
 IZO GOLDMAN (SP )
-

Se for teste, meu Senhor,
o viver nesta fornalha,
tu verás que a fé e o amor
de um nordestino não falha!
J.B. XAVIER (SP)
-
Não sei se é pecado ou vício,
bobeira… sei lá mais quê…
esse agridoce suplício
de só pensar em você!
 JEANETTE DE CNOP (PR )
-
Minhas lágrimas serenas,
cada qual mais ressentida,
formam um rosário de penas,
das mágoas de minha vida.
JORGE MURAD (RJ)

 -
Quando nós somos crianças
tantos sonhos são sonhados.
Hoje…adultos, são lembranças
daqueles tempos passados.
JOSÉ FELDMAN (PR)
-
“Escolha a pessoa certa
para entregar-se, querida.”
Mamãe, quando a fome aperta,
não dá pra escolher comida!
JOSÉ TAVARES DE LIMA (MG)
-
Não lastime as tristes horas
da viagem que angustia…
Viver é criar auroras
no ocaso de cada dia!
JOSÉ VALDEZ DE C. MOURA (SP)
-
O vazio dos teus braços,
depois de tristonho adeus,
fez a dor rondar meus passos,
na busca inútil dos teus…
JÚLIA LEAL MIRANDA (RJ)
-
O terapeuta sugere:
- “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
- “Tô” fora! Pimenta, não!
LUCÍLIA DECARLI (PR)
-
De todo “não” que me deste,
o que mais triste me fez
foi aquele que disseste
disfarçado num “talvez”…
LUIZ CARLOS ABRITTA (MG)
-
Nunca temerei fracassos
chegarei mesmo sozinho.
Quem segue do pai, os passos,
sabe as curvas do caminho…
MANOEL CAVALCANTE (RN)
-
“Limpou” o supermercado
e desculpou-se ao ser presa:
- Não é roubo, delegado,
é mania de limpeza!
MARIA DOLORES PAIXÃO (MG)
-
Meu sogro nem “manda brasa”,
mas, quando está de veneta,
deixa a “mala velha” em casa
e sai com qualquer “maleta”..
MARIA NASCIMENTO (RJ)
-
Vão ficando tão distantes
os carinhos do passado,
que eu nem sei se o que era antes
foi vivido… ou foi sonhado…
MARINA BRUNA (SP)
-
Se navegar é preciso,
se é necessário sonhar,
eu sonho no teu sorriso,
navegando em teu olhar!
MARISA OLIVAES (RS)
-
Quando a nuvem da má sorte
Cobre de sombras teu mar,
A esperança é o vento forte
Que faz o tempo mudar.
MILTON DE SOUZA (RS)
-
De tanto sofrer na vida,
eu peço a Deus, sem revolta;
– Abra as porteiras da ida,
feche as porteiras da volta.
MILTON NUNES LOUREIRO (RJ)
-
Loucuras… quantas já fiz
nos tempos da mocidade…
“Morri de amor” – fui feliz!…
Hoje vivo de saudade…
NÁDIA HUGUENIN (RJ)
-
Não há fronteira na vida
que separe um grande amor,
quando a ponte foi erguida
pelas mãos do Criador.
OLGA AGULHON (PR)
-
Do poeta, o maior sofrer
assim pode ser descrito:
É a luta para escrever
o que nunca foi escrito.
OLYMPIO COUTINHO (MG)
-
Nos extremos desta vida,
um contraste se percebe:
– A Terra chora a partida
daquele que o Céu recebe!
OSVALDO REIS (PR)
-
Altruísta, de verdade,
do benfazer! É sequaz,
age, com serenidade,
sem ostentar, o que faz…
PEDRO GRILO (RN)

-
Minha renúncia…Quem sabe…
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!
PROF. GARCIA (RN)
-
Coração, velha gaiola…
A saudade, no poleiro,
com seu canto me consola
noite e dia, o tempo inteiro!
REINALDO AGUIAR (RN)
-
Disse o carteiro, confuso:
- mora aqui o “seu” Leitão?
- Não mais, respondeu o luso:
virou torresmo e sabão.
RELVA DE EGYPTO REZENDE (MG)
-
Quando a paixão é marcada
por possessão, se resume
numa rosa incinerada
na fornalha do ciúme…
RENATA PACCOLA (SP)
-
A vida é um “fogo de palha”
e o tempo se mostra algoz,
mais parece uma fornalha
onde a palha… “somos nós”!…
ROBERTO TCHEPELENTYKY (SP)
-
Se nas revistas reparas,
verás que é questão de gosto:
alguns preferem ver Caras,
outros preferem o oposto…
RODOLPHO ABBUD (RJ)
-
Os dois velhinhos dançavam,
mostrando desenvoltura;
mas sempre que tropeçavam,
trocava de dentadura!
RONALDO AFONSO JÚNIOR (MG)
-
Quando a vida se distrai,
ou dá tudo, ou tudo nega:
Rico… pega o carro e sai;
pobre sai… e o carro pega!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA (SP)
-

Destilando hipocrisia
segue a tola humanidade
queimando a vã fantasia
nas fogueiras da vaidade!
UBIRATAN QUEIROZ (RN)
-

Aquela duna imponente,
que na paisagem se alteia,
tem na origem, certamente,
minúsculos grãos de areia.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ (PR)
-
Que lua-de-mel aquela!
Faltou luz, foi um sufoco:
a noiva queria vela,
o noivo só tinha um toco…
WANDA DE PAULA MOURTHÉ (MG)
-
É sempre ameno, suave, 
é um ápice da emoção,
quando a gente encontra a chave
que destranca um coração!…
ZÉ DE SOUSA (RN)

Irmãos Grimm (Os Seis Cisnes)

Era uma vez um rei que estava caçando numa imensa floresta, e ele caçava um animal selvagem com tanta vontade que nenhum dos que acompanhavam conseguiam segui-lo. Quando a noite chegou ele fez uma parada e olhou ao redor, e então, ele percebeu que ele havia perdido o seu caminho de volta.

Procurou uma saída, mas não encontrou nenhuma. Então, ele avistou uma velhinha que balançava a cabeça continuamente; ela era uma bruxa e vinha em direção a ele.

— “Minha bondosa senhora,” o rei disse para ela, — “Será que a senhoria poderia me mostrar o caminho para eu sair da floresta?”

— “Oh, sim, senhor rei,” respondeu ela, “lógico que eu posso, mas sob uma condição, e se não cumprires o prometido, jamais conseguirás sair da floresta, e morrerás de fome.”

— “E que condições são estas?” perguntou o rei.

— “Eu tenho uma filha,” disse a velhinha, “linda como não existe nenhuma outra no mundo, e muito digna de se tornar sua esposa, e se permitires que ela se torne sua Rainha, eu lhe mostrarei o caminho para sair da floresta.”

Como o rei estava angustiado, ele concordou, e a velhinha o conduziu para a sua pequena cabana, onde a filha dela estava sentada perto do fogo. Ela recebeu o rei como se ela estivesse esperando por ele, e ele constatou que ela era muito bonita, mesmo assim, ela não foi do seu agrado, e ele não conseguia olhar para ela, sem sentir um horror secreto.

Depois de ele ter conduzido a jovem para o seu cavalo, a velhinha mostrou-lhe o caminho, e o rei voltou para o seu palácio novamente, onde foi celebrado o casamento.

O rei já havia se casado uma vez, e com a primeira esposa, ele teve sete filhos, seis meninos e uma menina, a quem ele amava mais do que tudo no mundo. Como ele temia que a madrasta poderia não tratar bem dos seus filhos agora, ou mesmo fazer-lhes algum mal, ele os levou para um castelo solitário que ficava no meio de uma floresta. Ele ficava tão escondido, e o caminho para encontrá-lo era tão difícil, que ele mesmo não conseguiria tê-lo encontrado, se uma fada não tivesse dado a ele um novelo com propriedades mágicas.

Quando ele soltava o novelo, ele se desenrolava e mostrava o caminho até o castelo. O rei, todavia, ia todos os dias visitar os seus filhos queridos na floresta que a Rainha começou a notar a sua ausência; ela ficou curiosa e queria saber o que ele fazia quando estava totalmente sozinho na floresta. Ela deu uma certa quantia em dinheiro para os seus criados, e eles contaram o segredo para ela, e contaram a ela também sobre o novelo mágico que sozinho poderia mostrar o caminho.

E então, ela não conseguiu ter mais sossego, até que ela descobriu onde o rei guardava o novelo, e então, ela fez camisas de seda branca, e como ela tinha aprendido a arte da bruxaria com a sua mãe, ela costurou um encanto dentro das camisas. E quando o rei havia saído para caçar, ela pegou as camisas de seda e foi para a floresta, e o novelo mostrou a ela o caminho. Os filhos, que viram de longe que alguém estava se aproximando, pensaram que o pai deles estava vindo visitá-los, e radiantes de alegria, correram para encontrar-se com ele.

Então, ela lançou uma camisa de seda sobre cada um deles, e mal as camisas haviam tocado seus corpos e eles foram transformados em cisnes, e voaram para longe da floresta. A Rainha voltou para casa feliz e realizada, e pensou que ela tivesse se livrado dos seus enteados, mas a menina não havia corrido com seus irmãos para encontrá-la, e a rainha nada sabia sobre ela. No dia seguinte o rei foi visitar os seus filhos, mas ele não encontrou ninguém além da garota.

— “Onde estão os teus irmãos?”, perguntou o rei.

— “Ah, meu pai,” respondeu a menina, — “eles foram embora e me deixaram sozinha!” e ela contou para ele que tinha visto da sua janelinha como os seus irmãos fugiram para a floresta transformados em cisnes, e ela mostrou a ele as penas, que eles tinham deixado cair no quintal, e que ela apanhou.

O rei ficou triste, mas ele não pensou que a rainha tinha feito essa maldade, e como ele receava que a garota poderia também ser roubada dele, quis levá-la consigo. Mas a pequenina tinha medo da madrasta, e insistiu ao rei para deixá-la ficar apenas mais uma noite no castelo da floresta.

A pobre menina pensou: — “Não posso mais ficar aqui. Irei procurar os meus irmãos.”

E quando a noite chegou, ela fugiu, e foi direto para a floresta. Ela caminhou a noite toda, e no dia seguinte também caminhou sem parar, até que ela não conseguiu continuar caminhando porque estava muito cansada. Então, ela encontrou uma cabana na floresta, e entrou dentro dela, e encontrou um quarto onde havia seis pequenas camas, mas ela não ousou deitar-se em uma delas, mas escondeu-se debaixo de uma das camas, e deitou-se no chão duro, pretendendo passar a noite ali.

Pouco antes do amanhecer, todavia, ela ouviu um barulho de asas batendo, e viu que seis cisnes vinham voando pela janela. Eles pousaram no chão e sopravam as plumas uns dos outros, e as suas penas de cisnes ficaram lisas como camisas. Então, a garotinha olhou para eles e ela reconheceu os seus irmãos, ficou contente e saiu debaixo da cama. Os irmãos também ficaram felizes em verem sua irmãzinha, mas a alegria deles teve curta duração.

— “Aqui não podes morar,” disseram eles para ela.

— “Este é um esconderijo de ladrões, se eles chegarem em casa, e te encontrarem, eles te matarão.”

— “Mas vocês não podem me proteger?”, perguntou a irmãzinha.

— “Não,” responderam eles, somente durante quinze minutos por dia de cada noite nós podemos tirar as nossas plumas de cisnes e usar durante esse tempo a forma humana; depois disso, voltamos novamente a sermos cisnes.”

A irmãzinha chorou e disse,

— “Vocês não conseguem se libertar?

— “Oh, não,” eles responderam, “as condições são muito difíceis! Durante seis anos não poderás falar nem sorrir, e durante esse tempo você deverá costurar seis camisas pequenas feitas de aster para nós. E se uma única palavra for pronunciada da sua boca, todo teu trabalho terá sido em vão.”

E quando os irmãos tinham dito isto, os quinze minutos haviam passado, e eles voaram novamente pela janela como se fossem cisnes.

A garota porém, havia decidido resolutamente libertar os seus irmãos, mesmo que isto lhe custasse a própria vida. Ela saiu da cabana, foi para o meio da floresta, sentou-se numa árvore, e lá passou a noite. Na manhã seguinte, ela saiu para colher aster e começou a tecer.

Ela não poderia conversar com ninguém, tampouco poderia sorrir; ela ficou sentada ali e nada lhe interessava além do seu trabalho. Quando já fazia muito tempo que ela tinha passado ali, aconteceu que o rei daquele país estava caçando na floresta, e o seus companheiros de caça vieram até a árvore onde a garota estava sentada. Eles a chamaram e disseram:

— “Quem és tu?” Mas ela não falou nada.

— “Desça aqui com a gente,” disseram eles. — “Não vamos lhe fazer nenhum mal.”

Ela apenas balançava a cabeça. Como eles a pressionavam com perguntas ela lançou seu colar de ouro para eles, e pensou que isso os deixaria satisfeitos. Eles, no entanto, não paravam, então, ela jogou sua cinta para eles, e isso também não adiantou nada, jogou também suas ligas e aos poucos tudo o que ela usava até que ela ficou só de blusa. Os caçadores, porém, não se tomaram por vencidos, mas subiram na árvore, desceram a menina e a levaram para o rei. O rei perguntou:

— “Quem és tu? O que estavas fazendo em cima da árvore?”

Mas ela não respondia. O rei fez a pergunta em vários idiomas que ele conhecia, mas ela permanecia tão calada como um peixe. Como ela era muito linda, o coração do rei ficou encantado, e ele foi tomado por uma grande paixão por ela. Ele colocou nela a sua manta, levou-a em seu cavalo, e a conduziu para o seu castelo. Depois, ele mandou que ela se vestisse com roupas riquíssimas, e a beleza dela brilhava como um dia reluzente, mas nenhuma palavra ele conseguia tirar dela. Ele a colocou ao seu lado, na mesa, e a sua postura humilde e educada o encantou tanto que ele disse:

— “Ela é a mulher com quem eu quero me casar, e não quero nenhuma outra.” E depois de alguns dias ele se uniu a ela.

Mas o rei tinha uma mãe perversa que não estava satisfeita com este casamento e falava mal da rainha.

— “Quem sabe,” disse ela, — “de onde veio essa garota que não sabe falar? Ela não é digna de um rei!”

Depois que um ano se passou, quando a rainha deu a luz ao seu primeiro filho no mundo, a velhinha tomou dela a criança, e manchou a boca dela de sangue enquanto ela dormia. Depois ela foi até o rei e acusou a rainha de ser uma devoradora de crianças. O rei não quis acreditar nisso, e não permitiu que ninguém fizesse nenhum mal a ela. Ela, no entanto, continuava sempre costurando as camisas, e não se preocupava com mais nada. No ano seguinte, quando ela deu a luz a um belo garoto, a falsa madrasta se utilizou do mesma maldade, mas o rei não aceitava acreditar nas palavras dela. Ele disse:

— “Ela é bondosa e meiga demais para fazer qualquer coisa desse tipo, se ela não fosse muda, e pudesse se defender, a sua inocência seria explicada.”

Mas quando a velhinha roubou o filho recém-nascido pela terceira vez, e acusou a rainha, que não proferia nenhuma palavra ou defesa, o rei não pode fazer nada senão entregá-la à justiça, e ela foi condenada a sofrer a morte na fogueira.

Quando chegou o dia para que a sentença fosse executada, esse era o último dia dos seis anos durante os quais ela não podia falar nem rir, e ela tinha libertado os seus queridos irmãos do poder do encantamento. As seis camisas estavam prontas, somente faltava a manga da sexta camisa. Quando, então, ela era levada para a fogueira, ela levava as camisas em seus braços, e quando ela se levantou e o fogo ia ser acendido, ela olhou ao redor e viu seis cisnes que vinham voando pelo ar em direção a ela. Então, ela percebeu que a sua libertação estava chegando, e seu coração pulava de alegria.

Os cisnes pousaram sobre ela e desceram de modo que ela podia lançar as camisas em cima deles, e a medida que eles eram tocados pelas camisas, suas plumas de cisnes se desfaziam e seus irmãos assumiam sua forma humana diante dela, e eles eram fortes e bonitos. Apenas o mais jovem lhe faltava o braço esquerdo, e tinha no lugar do braço uma asa de cisne em seu ombro. Eles se abraçaram e se beijaram, e a rainha foi até o rei, que estava muito emocionado, e ela começou a falar e disse:

— “Querido marido, agora eu posso falar e declarar para ti que sou inocente e fui acusada injustamente.”

E ela lhe contou toda a maldade que a velhinha havia levado embora os três filhos dela e os havia escondido. Então, para grande alegria do rei, eles foram encontrados e trazidos até ele, e como punição, a madrasta má foi colocada na fogueira e queimou até virar cinzas. Mas o rei e a rainha com seus seis irmãos viveram muitos anos feliz e em paz.
================
Nota:
Aster = planta da família das borragináceas também conhecida como murugem.


Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/Os_seis_cisnes

Miguel Russowsky (Poemas Avulsos)

A CHUVA CHORA

A chuva chora lenta na vidraça
suas lágrimas são finas... (eu também).
Hoje estou triste e dói... A vida passa
e eu faço versos sem saber a quem.

Há sonhos que recheio de fumaça
sortidos em teares do desdém.
Amei... Perdi... e da amargura, a taça,
soube fazer de mim o seu refém.

Escrevo... A chuva chora... O pensamento
umedece meus olhos, no momento
em que tento findar este terceto.

Sei que o silêncio habita a tarde fria,
só não sei como a chuva, tão macia,
consegue por espinhos num soneto.

ARREPENDIMENTO

Um por um, os meus sonhos, nesta vida,
Despi no andar do tempo modorrento
Qual árvore esfolhada pelo vento
Numa tarde outonal, entristecida.

Quebrei-me um pouco, assim, a cada ida
À procura não sei de qual intento.
Deixei amor, amigos e, ao relento,
Destroços de minha alma enrijecida.

E hoje, velho, ao voltar da caminhada,
Tropeço em meus pedaços pela estrada
Com saudosa visão aqui e ali.

Não mais me iludo, e essa descrença atesta
Que passarei o tempo que me resta
Recolhendo os pedaços que perdi.

CHOVE… E NÃO VENS!

Chove a chuva e tu não vens... (Tristeza!)
... e os talheres... e os cálices de vinho
sobre a toalha, alvíssima de linho...
e as velas... (mas nenhuma foi acesa! )

... e as flores como parte da surpresa...
e alguém ansioso pelo teu carinho...
e a música ambiente... e o som baixinho...
e as duas taças de cristal na mesa...

... e as dobra, com amor, nos guardanapos,
cheias de ardis para teus dedos, guapos...
e as iniciais bordadas num cantinho...

... e a lareira onde o fogo já não arde...
Chove e faz frio... e tu não vens...( É tarde! )
Soubesses como dói jantar sozinho?!..

CONVITE PARA JANTAR

Ela e a Tristeza, sim há semelhança,
ambas estão no pensamento agora.
E a chuva chove... Chove e não se cansa...
Muito solícita a vidraça chora.

O meu relógio diz, de hora em hora,
Uma palavra só: - Desesperança!
E a chuva chove lenta, fria e mansa
e mansa e fria não se vai embora.

A minha amada, longe, não me escreve...
Corre em meu rosto a lágrima, de leve
e vem borrar o retratinho antigo.

A solidão renova o olhar sizudo...
Chove... Silêncio... ( e o telefone mudo)
 Pois bem, Tristeza, janta aqui comigo!

DOMINGO...(DE LICOR E AÇÚCAR CÂNDI)

Manhã de sol...A luz passeia a toa...
Explode a primavera em frenesi.
Meu bairro, todo chique, não destoa,
parece um ogro alegre que se ri.

Mignon, gentil, arisco, sobrevoa,
a namorar a rosa, um colibri...
...e perfumes no ar...-Que coisa boa!
O céu está pertinho...É logo ali!

Meu domingo é grande (- Muito grande!)
Cheinho de licor e açúcar cândi.
Estou de bem com toda a humanidade.

Minha amada virá...(telefonou-me)
e ela não quer que lhe revele o nome,
que tem dez letras...(é ?... -FELICIDADE!)

ESTOU SÓ!... (DUVIDO)

Estou só?...(Não tão só: eu tenho esta caneta
que adora conversar. É discreta, fiel
e sempre me quis bem. Depois tem o papel
que apóia o meu trabalho e veste a camiseta.)

Eu, só?...(Só se quiser. A ideia, meu corcel,
se parece um “Sputnik”, vai a qualquer planeta,
não cansa de falar, toca flauta e trombeta
e traz ao meu silêncio, amadas em tropel).

Estou só?...Um pouquinho. (Aprendi que a saudade
desfaz da solidão, ao menos a metade
e o resto que sobrar, com jeito, vira pó)

Estou triste, é verdade. Entanto (quem diria?)
uma lágrima só, pode ser companhia.
Duvido, sendo assim, que eu esteja só.

NOITE SEM AURORA

A noite de um adeus não tem aurora
mas tem silêncios longos por recheio;
tem farpas arranhando, bem no meio...;
tem desesperos mil vagando fora...

A noite de um adeus, eu sei que chora
ao ver a sepultura de um anseio.
Não a censuro e até a manuseio
com estes versos que componho agora.

A noite de um adeus ensina a gente
ter dias sem relógio...e alguém já disse
que nunca cicatriza totalmente.

A noite de um adeus...só bem depois
expõe a solidão, numa velhice,
em que murchamos tristes nós, os dois.

ORAÇÃO DO POETA

– Que me darás, Senhor, pela jornada
de dores, privações e misereres?
– Eu te darei a noite salpicada
de estrelas e silêncio. Que mais queres?

– E para a solidão da madrugada?
– Já fiz o mundo cheio de mulheres.
procura e encontrarás a tua amada.
Faz os mais lindos versos que puderes.

– Mas como irei, Senhor, reconhecê-la?
– Há no céu, entre todas, uma estrela
que apenas tu verás. Que mais perguntas?

– E este frio e esta angústia que ora sinto?
– Quando ela penetrar em teu recinto
a primavera e a paz hão de vir juntas.

OUTONO EM MEIO

O vento desistiu de seus andares,
cansou-se e resolveu dormir mais cedo.
As folhas, nem balançam no arvoredo.
Borboletas...algumas pelos ares.

Nuvenzinhas solteiras e sem medo
buscam no céu seus noivos ou seus pares.
Cá por dentro borbulham os cismares
numa ausência de rumos e de enredo.

(- Ó tardes, de domingo, ensolaradas!...)
O silêncio murmura uma cantiga
para ouvirmos a sós...mas de mãos dadas.

Deixemos, por enquanto o lábio mudo!
E o relógio, deixemos que prossiga...
Conversar?...Para que, se sabes tudo?!.

PROMESSAS
 

Estava eu só Passou... Sorriu... Olhei-a...
Estremeceu. Estremeci. Sucede
que o imprevisível manda e a gente cede.
No céu azul brilhava a lua cheia.

Depois... as consequências... — Quem as mede
se a razão, sem razão, já titubeia?
E o mar acariciando o ardil, na areia:
"O vinho é bom sorver antes que azede!"

Vai-se o verão. Agora é frio e neva.
Palavras sem valor, o vento as leva.
As juras antecedem as desditas.

Um instante de amor — eternidade!
Dois instantes de amor — fidelidade'
... Nem todas as mentiras foram ditas.

RECEITA DE SAÚDE E FELICIDADE

Não antecipe nunca o sofrimento!...
Diga “Bom Dia!” ao sol que lhe saúda.
Seja qual um discípulo de Buda:
- É mister se gozar cada momento.

No “que será...será” que não se muda,
se abrigam primaveras...(mais de um cento!)
os “depois” nem podem ser tormento
se os “agoras” lhe derem boa ajuda.

“Cara feia” - sinal de enfermidade -
com certeza, costuma sobrepor
mais pesos aos obstáculos da idade.

"Alegre-se e sorria, por favor!
Um sorrisinho dá felicidade,
pois contagia e ativa o bom humor"

TARDE NEVOENTA... EM JULHO

Domingo sem ninguém...A casa está vazia.
O silêncio no horror persistente blasfema.
Quer se fazer ouvir. Ó tolo estratagema!...
Eu posso ouvi-lo bem, mas qual a serventia?

A solidão nem quer me servir como tema...
...e a tarde se espezinha imensamente fria...
Ó Tristeza, vem cá! Se queres companhia
ajuda-me a cerzir pedaços de um poema

Talvez assombrações que possuam prestígio
se queiram embutir em tercetos, com zelo,
para dar-lhe feições de soneto-prodígio.

Alguém se desmanchou em brumas do passado
e quer ressuscitar de cor, num atropelo.
Se lembrar é viver, eu devo estar errado.
=
Fonte da Imagem = Libreria Fogola Pisa (Facebook)

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) As Fiandeiras

Recolhido no Algarve

Era uma mãe que tinha uma filha e só pensava em casá-la bem. Foi a casa de um mercador que vendia linho, e pediu-lhe para que lhe vendesse uma pedra de linho, porque a filha fiava tudo num dia. Trouxe o linho para casa e disse à filha:

– Tens de me fiar esta pedra de linho hoje mesmo, porque amanhã vou buscar mais. Quando voltar a casa quero achar o linho todo fiado.

A pequena foi sentar-se à porta, a chorar, sem saber como obedecer à mãe. Passou uma velhinha:

– A menina o que tem, que está a chorar desse modo?

– O que hei de ter! É minha mãe que quer à força que lhe fie num dia uma pedra de linho, e eu não sei fiar.

– Deixe a menina estar que eu lhe fio tudo se me prometer que no dia do seu casamento me há de chamar três vezes tia.

A menina olhou para dentro de casa, e viu o linho remexido, e todo fiado. No dia seguinte a mãe foi à loja, gabou muito a habilidade da filha, e pediu outra pedra de linho para ela fiar. A pequena foi sentar-se à porta, a chorar, esperando que passasse a velhinha da véspera.

Passou uma outra:

– A menina o que tem, que está a chorar dessa maneira?

A pequena contou-lhe as ordens que tinha recebido da mãe.

– Pois se a menina me promete que no dia do casamento me há de chamar três vezes sua tia, o linho há de aparecer fiado.

A pequena prometeu que sim, e olhando para dentro de casa deu com o linho remexido e pronto.
   
A mãe foi buscar mais outra pedra de linho, e repetiu-se o mesmo caso; até que passou uma terceira velhinha que lhe fez tudo com a mesma promessa. O comerciante sabendo daquela habilidade quis ver a rapariga, achou-a bonita e esperta e quis casar com ela; a mãe ficou bem contente porque o noivo era muito rico. O comerciante mandou-lhe um grande presente, com muitas rocas e fusos, para que quando casassem, as suas criadas todas fiassem. No dia do casamento fez-se um grande jantar, e todos os seus amigos assistiram; quando estavam à mesa bateu à porta uma velhinha:

– Ai! É aqui que mora a noiva?

– Entre minha tia; sente-se aqui, minha tia; coma alguma coisa, minha tia.

Ficaram todos pasmados de verem uma velha tão corcovada com um nariz muito grande. Mas calaram-se. Instantes depois, bateram à porta; era outra velhinha:

– É aqui que mora a noiva que se casou hoje?

– É, minha tia; entre, minha tia; jante conosco, minha tia.

A velha sentou-se e todos ficaram pasmados do grande aleijão que ela tinha nos queixos. Mas continuaram a jantar. Bateram outra vez à porta; era outra velhinha, que fez a mesma pergunta.

– Ora entre, minha tia; cá a esperávamos, minha tia; há de jantar conosco, minha tia.

Também não causou menos pasmo esta velha toda corcovada e com as costelas embicadas para fora; mas desta vez os curiosos, principalmente o noivo, perguntaram porque tinham aquelas tias tamanhos aleijões.

Disse a primeira:

– Tenho assim o nariz, porque fiei muito, muito, e as arestas do linho puseram-me assim.

– E eu, meu sobrinho, tenho assim os queixos, porque fiei muito, e fiquei assim por tanto riçar os tomentos.

– E eu, sobrinho, fiquei com estas corcovas por estar sempre para um canto com a roca à cinta.

O marido assim que ouviu aquilo, levantou-se e foi pegar nas rocas, fusos, sarilhos, dobadouras e tudo e atirou-os para a rua, e disse que na sua casa nunca mais se havia de fiar, porque não queria que lhe acontecessem à sua mulher tais desgraças.
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Notas Comparativas

Nas The Fireside Stories of Ireland, de P. Kennedy, acha-se este conto, e traduzido por Brueyre com o título A preguiçosa e suas tias. (Contes populaires de la Grande Bretagne, n.º XXII, pág. 159).

Entre as diferentes fontes, cita a versão escocesa da coleção de Chambers, Whooppity storie (op. cit, p. 245, de Brueyre); há uma lição francesa Histoire du Ric Din-Don de M.lle L'Héritier; no Pentamerone de Basile, o conto italiano, e na Novelline di Santo Stefano, de Gubernatis, La Comprata.

No Norske Folkeeventyr, de Asbjørnsen e Moe, As Três Tias;

e na coleção sueca de Cavallius e Stephens. A Rapariga Que Não Podia Fiar Ouro com Lama e Palha, e As Três Corvinhas.

Jacob Grimm, nos seus Kinder und Hausmärchen, n.º 14, traz As Três Fiandeiras; traduzido nos Contes choisis, de Fred. Baudry, p. 128.

Há alguns vestígios em Rumpelstilzchen; na coleção de Bürching, Volksagen, Märchen, und Legenden, é o das Três Fiandeirinhas.

Há uma outra versão portuguesa traduzida por G. Ralston nos Portuguese Folk-Tales, de Consiglieri Pedroso, n.º XIX, com o título As Tias. Na Mythologie des plantes, t. 11, p. 212, Gubernatis traz um conto popular da Calábria, cujo maravilhoso versa sobre o poder de fiar concedido pelas fadas a uma mulher.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_Tradicionais_do_Povo_Portugu%C3%AAs/As_fiandeiras

Jangada de Versos do Ceará (7) Artur Eduardo Benevides

Artur Eduardo Benevides
(Príncipe dos Poetas Cearenses)
Pacatuba, 1923

Soneto inglês


Na divina tolice dos que amam,
Quando se traçam rumos sem sentido.
Algumas cousas belas se proclamam
Do acontecido ou do inacontecido.
De repente, fiquei enamorado!
Será, talvez, na idade, uma loucura.
Mas, se é destino meu mudar o fado,
Já sei que o desatino não tem cura.
Por que somente agora vejo tudo?
Por que guardas em ti tanta poesia?
Com tua luz ficou feliz e mudo
Um coração que a morte pressentia.

Mas, esse amor, que agora em mim se enflora,
Será por certo, o último, Senhora.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Soneto em Recife

Tão leve qual capulho de algodão
Que a brisa da tarde transportasse
Sinto o doce luar de tua face
Sobre o azul dos gestos em canção.

Mesmo distante, vem-me tua mão
Trazendo a flor que agora despertasse
Na manhã de teu sonho, de que nasce
A paz das verdes relvas pelo chão.

Que fazes por aí? Aqui, eu teço
Uma saudade enorme. Não te esqueço.
Se te, esquecesse, já estaria morto.

Muito tempo custou-me a travessia
Até te achar, nas ilhas da Poesia,
Iluminando as noites do meu porto.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Elegia cearense

1.
Longo é o estio.
Longos os caminhos para os pés dos homens.
Longo o silêncio sobre os campos. Longo
o olhar que ama o que perdeu.
Já não vêm as auroras no bico das aves
nem se ouve a canção de amor
dos tangerinos.
A morte nos apóia. Exaustos, resistimos.
Se se acaso caímos os nossos dedos
começam a replantar a rosa da esperança.
Ai Ceará
teu nome está em nós como um sinal
de sangue, sonho e sol.
Chão de lírios e espadas flamejantes,
território que Deus arranca dos demônios,
mulher dos andarilhos, dálida da canícula,
em nós tu mil rorejas. Pousas. És canção.

2.
Para cantar-te me banho em tua memória
e ouço a voz enternecida
diante de esfinges soluçando.
Oh! ver-te apunhalada — e o sol
roubando tua frágil adolescência
e ponto em tua face o esgar
de quem se sente, súbito, perdido.
Teus pobres rios secam
os galhos perdem os frutos
as aves bicam o céu
fogem as nuvens.
Então ficamos escravizados
à tua sede austera, ao teu desejo
de um dia seres bela igual às noivas
que se casam no fim dos teus invernos.

3.
Triste é ver as crianças finando-se nos braços
de mães alucinadas que vendo-as à morte
inda cantam de amor canções do tempo antigo.
E ficas desesperada vendo os filhos
ao longo das estradas onde há pouco
trabalhadores cantavam ao entardecer.
Mudas a voz, então: és cantochão
és réquiem crescendo à sombra dos degredos
és rouca como presos que murmuram
palavras dos dias em que foram
jovens e felizes.
Para cantar-te, Bem-Amada telúrica,
seria feliz se vez de vãs palavras
tivesse em minha boca chuvas e sementes.
Ai, viúva do inverno, flor violentada,
teu sol não brilha: queima. Mas um luar
renasce sempre no olhar
dos homens.
Ó grande olhar de pedra, sede e solstício:
te dessem um novo reino e nunca aceitarias!

4.
Belos são os teus frutos porque difíceis.
Em cada sepultura nasce uma rosa.
Em cada filho teu o amor é como o inverno.
Jamais tu morrerás. Não seríamos fortes
se por ti não estivéssemos em vigílias cruéis, ó mãe!
Mas se as chuvas te querem
como louco partimos
para o amanho da terra.
Os campos então ficam maduros
qual ventre de mulher,
e as bocas
— tranqüilas e felizes —
gritam
palavras de amor
que erguem
primaveras.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
A sombra das palavras

As palavras nos recriam.
Às vezes, belas, nos reconciliam
com o voo das cousas em mistério
ou o magistério
da solidão das nuvens do Sião.

Elas guardam a prenhez
de lobas solitárias. A lividez
das cousas fontanárias.
E as albas e os montes
cobrindo o descolor de velhos horizontes.
Ou de nossas feridas e súbitas partidas
para o nunca mais.
E tudo nelas é um velho cais
onde tentamos amar. E ancorar.

Podemos ir a Tebas, dançar em Babilônia,
ou ter uma alma dórica ou jônia.
E partir para o desconhecido.
Ou sermos apenas um gemido
por não havermos beijado os seios da Donzela
em sua cidadela.

As palavras são fendas
de onde vemos palomas descerem sobre lendas
e canções emoldurarem as moças nas varandas,
ou as plumas da tarde, as cousas mais brandas
e as pedras sagradas
em que se escondem as cartas das Amadas.

Em ritmo e verdade celebram a desventura
de nosso desviver e a incessante loucura
do entardecer fatal da Poesia.
Às vezes, têm o cristal puríssimo do dia,
mas chegam com leveza de pés de bailarinas
ou de róseas algas vespertinas
dormindo sobre espumas. E são brumas
abrindo-se no verso como rosas,
frágeis e formosas,
quais luzes de estrelas num rondó.
E mesmo poucas e loucas
estão nos sete anos de Jacó.

Os poetas são seus turiferários,
que êxtases ofertam, nos itinerários,
com um canto a prolongar
por terras de Aragão, ou às margens do Jordão,
fazendo do sonho uma estrela polar.
Em seu ir e vir
pelos campos desertos ou as tardes de Ofir,
tentam limpar a pátina e o bolor
do tempo interior.
Ou fazem renascer o perfume e o lume
da espera e da vida.
E essa é sua glória. Sua lida.
Seu barco, a descer, lento
pelos rios de nosso pensamento,
enquanto em sedução e solidão
transformam-se em abismo ou alumbramento.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Soneto autobiográfico

O meu modo solene, o jeito vago,
A metódica forma de enfrentar
Os problemas, as lutas, o deixar
E as outras cousas que em silêncio trago,

Nasceram quais nenúfares no mar,
Ou serenas visões de um grande lago.
Mas nunca os procurei, tampouco afago.
A minha face externa, singular.

Habito etérea torre em decadência,
Mas essa é minha marca de existência.
O meu destino. Ou sorte. Ou meu fanal.

No coração, contudo, vos abraço
E sigo pelo sonho passo a passo,
Tentando ser moderno e provençal.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Momento

O vôo dos pássaros prolonga
a beleza das tardes.
E há, em nosso olhar,
um vasto
dealbar.
Tudo, em grandeza, torna-se possível.
O visível nasce do invisível.
As nuvens acenam, de repente.
E aquilo que emergiu
é o emergente.
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Num sonho

Em minhas mãos tomo teu rosto agora
E não sei se esse gesto vai ferir-me.
Não sei se fico aqui, pensando em ir-me,
Ou se a teus pés sucumba sem demora.

Tenho medo de amar! Vou demitir-me
Desse ofício de sonhos. Vou-me embora.
Mas, o Amor me chama e nele ancora
O meu jeito de ser e de exprimir-me.

Tomo teu rosto, então, por um minuto.
Um grande amor, do eterno claro fruto,
Envolve-me de todo e com loucura.

Entregue fico então ao meu desejo
E ficas em meus braços e te beijo
E morres de prazer e de ventura.
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Fonte:
http://www.revista.agulha.nom.br/artur4.html#soneto

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 32 – 18 de outubro de 1887

Tudo foge; fogem autos,
Fogem onças, foge tudo.
Ó guardas moles e incautos!
Ó corações de veludo!

Uma onça, que vivia
Em casa de uma senhora,
Viu aberta a porta um dia
Da gaiola, e foi-se embora.

Na roça? Não; na cidade.
Que cidade? É boa! a tua.
Dou mais esta claridade:
Era na rua... na rua...

Rua da América... Pronto!
Mas, se não leste a notícia,
Cuidarás que é isto um conto,
É talvez conto e malícia.

Não, amigo. Era uma onça,
Tinha aos três anos chegado;
Vivia discreta e sonsa
Em casa, num gradeado.

Vai senão quando, — um descuido —
Deixaram-lhe aberta a porta,
E a onça sentiu um fluido
Que não sente onça já morta.

Sentiu passar-lhe no lombo
O fluido da liberdade,
E, ligeira como um pombo,
Deixou a casa da grade.

Nenhum liberal, que o seja
Como deve, achará livro
De tantos da sua igreja
Que condene este carniv’ro.

Pois se foge o papagaio,
O macaco, a patativa,
Seja outubro, seja maio,
Tenha ou não tenha mãe viva,

Que muito é lá que uma nobre
Onça das brasílias matas,
Logo que possa, recobre
O uso das sua patas?

Lá por viver entre gente
E canapés delicados,
Não acho suficiente
Para condená-la a brados.

Certo é que fugiu. Bem perto,
Duas casas logo abaixo,
Achou como que um deserto,
E resolveu:”Lá me encaixo”.

Era casa em obras. Passa
Todo o sábado e domingo,
Sem comer sombra de caça,
Sem beber de sangue um pingo.

Na segunda-feira, cedo
Sobe ali um operário,
Despido de qualquer medo:
Vai ganhar o seu salário.

Casualmente (bendito
Seja Deus!) o desgraçado
Vê o olhar da onça fito
De dentro de um tabuado.

Foge; muita gente acode
Armada, e com laço e rede,
A ver se apanhá-la pode;
Ela, com fome e com sede,

Fere o pé a um bom valente,
Mas é já laçada, e morre
Á faca da demais gente,
Que ali bravamente corre.

E porque não era grave
A ferida recebida,
Fechou-se com dura chave
A história, e mais a ferida.

E disse alguém, que não erra
Ocasião de uma vasa:
— “Que há mais natural na terra
Que criar onças em casa?

“Quando muito, demos graças
Aos deuses, que esta podia
Matar duas ou três praças,
E toda um inspetoria.

“Não há onças espanholas?
Não há onças desgraçadas
Estas não rugem nas solas
Das botas acalcanhadas?

“Virá tempo em que não ande
Pessoa que se respeite
Sem uma onça já grande,
Ou, pelo menos, de leite.

“Que toda a senhora fina,
De passeio ou de passagem,
Tenha uma onça menina
Ao lado, na carruagem.

“Que algumas fujam, que trinquem
O pé a qualquer pessoa,
Ou por mal, ou porque brinquem
Pode acontecer, é boa!

“Mas quem já viu neste mundo
Progresso sem sacrifício?
Sangue que corre é fecundo,
E há virtude que foi vício.

“Cavalo que anda direito
Já foi bravio e inquieto,
Onça que morde um sujeito,
Talvez não lhe morda o neto.

“Vamos, pois, encomendemos
Onças, muitas onçazinhas,
E nos quintais as criemos,
Como se criam galinhas”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Tércia Montenegro (Linha Férrea)

Não conseguia mais dormir. Observava o sono do velho: braços e pernas estirados, inúteis. Apenas a cabeça permanecia viva, para dar ordens em alta voz e lançar olhares cheios de fúria.

No começo, quando era um menino, o velho quis educá-lo; funcionou como uma família inteira, com todos os cuidados. Era rico, sem herdeiros __ foi fácil apegar-se àquela criança magra e suja que se divertia improvisando armadilhas para aves, pelo simples prazer de segurá-las e ir arrancando, uma a uma, as penas de suas asas.

Depois do desastre, tudo mudou. O menino, já adolescente, via-se obrigado a cuidar daquele homem transformado em estranha carcaça, que bem se poderia jogar num canto esquecido, não fossem os gritos que ecoavam pela casa.

“É como uma linha férrea desativada” __ o médico lhe mostrava o raio-X, levantando a chapa contra a luz. Lá estava a coluna vertebral, na estrada completa, com todos os seus ossinhos aparentemente em perfeito estado. Mas agora não servia para mais nada, os membros paralisados, a teia dos músculos já frouxa. O velho precisaria de atenção constante: para ir ao banheiro, para passear na cadeira de rodas (estofada como um sofá), para mudar os canais da televisão... E os gritos a cada momento. Chamava o rapaz por qualquer motivo, um copo d'água que era preciso levar aos lábios, a mosca que lhe zumbia sobre a testa.

Ele quis contratar um enfermeiro, mas não conseguiu convencer o velho __ era seu filhinho, não podia abandoná-lo na mão de qualquer pessoa. A partir daí nasceram os olhares de ódio, única ameaça do pai adotivo, intimidação silenciosa que dizia o que a voz não arriscava.

Os dias eram todos iguais, e a rotina lhe trazia certa habilidade com as tarefas. Fazia tudo no horário certinho: comida, banho, barba. Escovava os dentes do boneco de carne, penteava o cabelo escasso. E os assuntos repetidos, que ele respondia com silêncio, mas não podia deixar de escutar, desesperado com as mesmas histórias, as queixas. Por que o velho não fazia como os pássaros, que nem piavam nem nada, com as penas extraídas como dentes e as asas ao final completamente peladas, dois bracinhos tortos e nus, pingados de sangue?

O velho, porém, falava. Os olhos, se os buscasse, eram sempre iguais, inflamados de raiva, ódio de estarem ali, presos, enquanto o rapaz poderia passeá-los por onde quisesse, qualquer paisagem, qualquer corpo __ era livre, móvel. A cada momento poderia deixá-lo, aproveitar a vida... mas ele não permitiria que aquilo acontecesse. Havia a herança, uma fortuna em dinheiro e terras. Certa vez mesmo disse o valor de seu testamento, incentivou o filho a falar, e foi das poucas vezes em que o rapaz conversou com ele. Os olhos então ficaram alegres __ o seu menino fazia planos, ia comprar um carro belíssimo, hein? E uma fazenda, que tal? O dinheiro dá e sobra. Fazendona cheia de bichos. E viagens __ poderia viajar para onde quisesse, sair daquele fim-de-mundo. Verdade que tinha enriquecido ali, as terras eram boas e o povo, ingênuo. Mas para os jovens aquilo devia ser uma cidadezinha de merda, sem diversão nenhuma, hein? Se era!

O rapaz chegou a rir, excitado pelos projetos. Dava palmadinhas na coxa do velho, que também se exaltava, esticando o pescoço. Ainda falaram de bebidas e mulheres, parecendo antigos companheiros de bar, até que o homem tossiu uma, duas vezes __ e se calou. Depois o olho ficou novamente sério, a voz agravou-se:

__ Mas isso tudo, eu lhe digo, só depois da minha morte. Até lá, você fica comigo, é sua obrigação.

Sinal de cabeça, afirmativa a contragosto. Como se um forte vento tivesse destruído a armadilha de gravetos e o passarinho emplumado já voasse bem longe... De volta às tarefas de sempre, tudo no horário certo. Mas ele não conseguia se concentrar mais em nada, nem dormir.

Caminhava pela sala silenciosa, dissolvido na penumbra, sem formas. Sala ampla, com a coleção de relógios antigos respirando metalicamente. Tão jovem, ele. Bonito, até __ olhava-se no espelho, às vezes, e gostava do rosto moreno, de feições firmes. Tão distante da velhice, daquele cheiro adocicado que o tempo traz. A pele bamba despregando pouco a pouco da carne e da vida: tudo inútil, depois. Abre a porta da frente __ o jardim está quase morto, repleto de folhas secas. Agora observa outra vez a chapa contra a luz. Uma linha férrea, sim. Sem ligações nervosas, sem circuitos, o trenzinho parado não se sabe em que canto do corpo, enferrujando.

Naquela cidade, a estação fica distante, os trilhos são longos e cortam as principais ruas e a praça. Lembra-se do primeiro encontro com o velho: ali perto, ao pé da ferrovia, ele menino, vendo aquele homem que andava normalmente e tinha descido do trem sem precisar de ajuda, sem imaginar que ficaria inválido. Um convite para almoçar: ele, tão magro e sujo, adorou o bife com batatas. Depois, quando o homem o chamou para a casa, pensou que ia ser sempre assim, todo dia, filhinho-e-papai.

Entrou no quarto do velho. O sono custoso, sufocado, lábios soltos preparando ordens. Amordaçá-lo, sim. Como a um cão raivoso. Nunca mais ouvir seus gritos chamando, lá da cozinha, do banheiro. O homem se tornou essa cabeça aflita que não pára de ordenar. O resto do corpo é indiferente __ poderia encostar ferro em brasa na pele: tudo morto.

Pela noite, o passeio na cadeira-sofá; ele vai empurrando por trás e assim não vê os olhos do velho, de boca amordaçada, braços e pernas acorrentados na própria paralisia. “Vamos rever o local do nosso encontro, papai” __ a voz baixa, só ela, no escuro.

Amanhã será livre. Dinheiro, terras, viagens __ por que o velho foi falar? Talvez ele nunca tivesse pensado naquilo. O trem das onze chega logo. Sente um arrepio: a luz do poste iluminou o rosto do homem, o mesmo que descia na estação, anos atrás. Não podia imaginar que um dia estaria deitado na linha do trem, com o menininho lhe ajeitando os membros, cuidadoso como se buscasse o equilíbrio entre as madeiras de uma gaiola.

Afasta-se. Pensa em voltar rápido para casa; a cadeira de rodas leve, ágil. Mas não resiste a um impulso: o de ver os vagões correndo, correndo, atravessando a linha férrea e correndo, correndo.

 (Tércia Montenegro, Linha Férrea)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Tércia Montenegro

Tércia Montenegro Lemos (Fortaleza, 1976) tem graduação em Letras, mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Publicou os livros de contos O Vendedor de Judas (Fortaleza: Edições UFC, 1998; 2 ed, Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003), que recebeu o prêmio Funarte; Linha Férrea (São Paulo: Lemos Editorial, 2001), que recebeu a Bolsa para Escritores Brasileiros da Biblioteca Nacional e venceu o Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela Revista Cult, em 2000; e O resto de teu corpo no aquário (Fortaleza: Secult, 2005), Prêmio Secretaria da Cultura do Estado do Ceará em 2004. Em 2005, recebeu os prêmios Osmundo Pontes e Fran Martins, pela Academia Cearense de Letras. Escreveu ainda o ensaio biográfico Oliveira Paiva (Fortaleza: Demócrito Rocha, 2003) e participou das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004), Contos Cruéis (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (São Paulo: Garamond, 2006). Tem dois livros infantis, Um pequeno gesto (Fortaleza: Demócrito Rocha/ APDMCE, 2006) e O gosto dos nomes (Fortaleza: Seduc, 2006).

No mais das vezes, os primeiros livros, mesmo de escritores menos jovens, demonstram imaturidade de seus autores, quando não são notórios a falta de leituras, sobretudo dos clássicos, e de exercício da escrita, imprescindível ao seu aprimoramento.

“O Vendedor de Judas”, conto que dá título ao volume, mostra que pelo menos em dois pilares da cultura a nova contista fincou os pés (ou a cabeça): os textos bíblicos e o folclore. Para intitular o livro, valeu-se do conto inspirado no mito bíblico da traição. O conto, porém, se centra no folclore de Judas, as comemorações profanas do Sábado de Aleluia, em que o “personagem” é um boneco, para ser vendido. Mercadoria, portanto. Não chega, pois, a personagem. Ou seja, os papéis se invertem: Judas, o vendedor de Cristo, se transforma em boneco a ser vendido e queimado. O protagonista do conto é, na verdade, um fabricante e vendedor de “bonecos esculpidos em madeira clara”.

Mas vejamos alguns aspectos da carpintaria da contista. Comecemos pelos personagens, sempre poucos em cada história. Tão poucos que em alguns contos estão em completa solidão. Em “A Espera”, o preso à espera da visita de uma filha que lhe promete levar fotos de outra filha, morta, e “o abraço impedido pelas grades”. Em “Um Poeta”, os três personagens “sentados no jardim, pensando em morrer.” Em “A Longa Espera”, o velho que “ficou só, no casarão alpendrado, com as terras diminuídas e a esposa cada vez mais magra, resmungando sozinha.” A solidão dele e a dela, mesmo vivendo na mesma casa. Em “A Inspetora”, D. Mozarina, vivendo apenas de lembranças: “fecha as janelas, arreia-se numa cadeira, abanando o pescoço com o decote.”  Em “Himalaia”, o menino órfão no farol abandonado, “aquele fio de terra, herança de três gerações.” Em “O Mestre”, um pobre coitado que já viveu na riqueza e terminou mendigo: “na maior parte do tempo, o mestre fica mesmo é calado, com seu ar prepotente, olhando as páginas abertas dos muitos livros.” E o que dizermos do velho viúvo à procura da esposa, pelos povoados, enlouquecido, angustiado (“A Longa Espera”)? São personagens sofridos, quase sempre às voltas com fantasmas do passado.

Há uma relevância do passado no contexto de algumas narrativas, o que se contrapõe às lições de teóricos da ficção menor. Em “A Espera” o marido esfaqueara a esposa, “numa crise de ciúmes”, e, em consequência, a mãe da jovem também morrera, poucas horas após a consumação do crime. Alguns contos lembram os de Moreira Campos, pela carga de sofrimento, angústia, solidão das personagens, assim como pelo andamento dos incidentes, os diálogos, a caracterização das personagens, o desfecho. Essa narração de fatos do passado é absolutamente necessária ao entendimento do leitor, sob pena de o conto se tornar ilegível. Isso se repete em “Vitorina”, uma aleijada que nutrira paixão por um rapaz, depois feito padre e morto no mar. Um dos melhores contos do livro.

Em alguns dos contos de TM o tempo narrado se alonga, sem prejuízo dos incidentes centrais da trama. De qualquer forma, quase todas as narrativas principiam no passado, quando não descrevem traços do protagonista ou o ambiente. Vejamos: “A cidade era pequena” (“O Vendedor de Judas”); “Era longo o caminho de terra e mato” (“O Franciscano”, no qual a trama esconde o homossexualismo do protagonista); “Ninguém se lembra mais de quando ele apareceu” (“O Mestre”); “Dos três, João é o mais inquieto” (“Um Poeta”) e outros.

No desenrolar das tramas, Tércia se serve ora de narração ora de diálogos, estes sempre bem dosados, curtos, sem apelos a gírias, modismos ou regionalismos. Vale ressaltar que os espaços das ações nunca são nominados, sejam cidades ou logradouros, sendo perceptíveis, porém, o espaço das pequenas cidades nordestinas. Num conto há um Mercado Central, que pode ser o de Fortaleza. Em outros há referências a um botequim da esquina, a uma padaria da esquina, a “uma barraquinha tosca, cheirando a peixe”, talvez referência às praias de Fortaleza. Em outras histórias aparecem peitoril da janela, anões de jardim, estátuas de gesso, bibelôs de porcelana, mesa de jantar, chapéu, banquinho, roupas molhadas no varal, mocinhas à calçada, “desfazendo as tranças”, tudo a lembrar casas, velhas casas, ruas de cidadezinhas. Os “crimes de faca”, a “surra de cinturão grosso”, porcos e galinhas soltos no quintal ou no terreiro conduzem ao interior.

São raros os contos em que o espaço da ação principal está circunscrito a quatro paredes. Em “O Tapete Vermelho” é um convento de freiras, onde Irmã Querubina, “a mais ingênua de todas”, se vê a final catalisadora de um milagre. Em “O Poeta” três personagens numa casa em clima de sonho, como nos contos fantásticos. É uma das narrativas mais profundamente poéticas, uma das mais bem realizadas do livro. Linguagem bem elaborada, sem gorduras, como em outras. A praia, o farol, “a escadinha enferrujada do velho farol” em “Himalaia”. Em “Carnaval de antigamente” cabe ao leitor escrever as entrelinhas do enredo, completar o quadro. Em “Morte às Escondidas” menina vê avô morrendo, num quarto.

Em alguns contos o espaço da ação é difuso, como em “O Vendedor de Judas”. O protagonista ora se encontra no meio da rua a caminhar, ora num bar, ora num hotel, ora a caminho de volta, “perto da Serra Branca, a minúscula figura do homem montado num cavalo marrom.” Nesse conta a linguagem semelha a do cinema.

O ponto de vista é, nos dois últimos do volume, na 1.ª pessoa; nos demais, o narrador é onisciente. Em “Réquiem” um tom fantástico perpassa a narrativa. Professor particular de música recebe telefonema de amigo espírita, que teria psicografado réquiem em mensagem de  certo André Luís, um espírito. Em “O Sobrevivente” o clima é mais fantástico ainda. Uma peste assola a cidade. “A doença corrói por dentro, chegando ao coração.” A linguagem é profética, bíblica. Todos cairiam nas garras da pestilência.”

Há momentos de intensa poesia, especialmente em “Dois Búzios ao Mar”. Um casal indo ao mar, como num sonho de amor trágico. No entanto, não pode ser confundido com poema, por presentes todos os requisitos da ficção menor.

O Vendedor de Judas é uma demonstração do talento de Tércia Montenegro, assim como de sua dedicação à leitura de obras fundamentais da Literatura e ao exercício do ato de escrever e reescrever. Um exemplo a ser seguido, no que for possível, pelos que se iniciam nas Letras.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.