domingo, 12 de julho de 2015

Folclore Indígena Brasileiro: Tribo Krahó (Koioeré, o machado cantante)



Os índios krahós, do rio Tocantins, possuíam outrora um machado mágico chamado koieré. Sua lâmina era feita de pedra, em formato de âncora, e ele era usado tanto na guerra quanto nas cerimônias religiosas da tribo.
Os krahós viviam em guerra com seus vizinhos. O seu maior desafeto eram os krolkametrás, uma tribo rival.
Certa feita, as duas tribos estavam se enfrentando, quando uma flechada certeira abateu o portador do machado cantante. O valente guerreiro krahó caiu para um lado, e o machado, para o outro.
Como um raio, o matador correu e apoderou-se da arma.
– Agora o koieré pertence aos krolkametrás! – urrou ele, brandindo no ar o machado.
Finda a matança, todos voltaram satisfeitos para as suas casas, cada lado levando os inimigos mortos para serem assados nas grelhas.
Mas quem ia feliz mesmo era o novo portador do koieré, que era casado com uma bela índia. Antes mesmo de chegar em casa, decidiu que, agora que se tornara um personagem importante da aldeia, deveria arrumar coisa ainda melhor do que a sua bela índia.
Não demorou muito, apareceu uma candidata, e o índio se mudou para a oca dela. Na pressa, porém, acabou esquecendo o machado dependurado em cima da sua rede.
Durante a noite, a índia abandonada escutou por entre os intervalos dos seus soluços o machado falar-lhe:
– Mamãe, vamos passear!
Índias são muito maternais. Por algum motivo, o machado passara a chamá-la de mamãe, e bastara isso para ela ficar enternecida com o objeto.
Tomando-o nos braços, ela saiu porta afora para passear.
Durante a noite inteira a índia enjeitada embrenhou-se pelas matas, enquanto o machado lhe ensinava todas as canções de amor e de guerra dos krahós.
Logo, toda a aldeia ficou sabendo do caso, e a notícia se espalhou, chegando à aldeia dos krahós. Então, o irmão do primitivo dono do machado decidiu recuperá-lo.
A esta altura, o novo dono já havia retomado o objeto e foi com raiva que recebeu a visita do emissário.
– De forma alguma o restituirei! – bradou ele.
Mas o cacique da tribo disse que havia regras que o obrigavam a restituir o objeto aos inimigos.
– Anhangá e maldição! – rosnou o novo dono. – Pois saibam que só o restituirei àquele que me vencer na corrida de toras!
Corrida de toras era uma competição que os índios disputavam tendo atravessada às costas uma tora de madeira de cerca de um metro de comprimento.
– Quem me vencer poderá não só levar de volta o machado como me matar e comer a carne do meu corpo! – disse o desafiante, seguríssimo.
O emissário retornou aos krahós e repetiu ao pretendente o desafio.
– Corrida de toras nenhuma! – disse este. – Vamos reaver o koieré à força!
Então os krahós armaram-se de flechas e porretes e rumaram para a aldeia dos krolkametrás, prontos para mais uma bela dança das flechas. Quando chegaram à divisa da aldeia inimiga, foram lançados ao ar os brados de guerra das duas tribos valorosas, e as flechas assoviaram de novo, para valer. Mas quem mais trabalhou foi, como sempre, o machado mágico, que não parou de cantar um segundo enquanto levava adiante a sua obra guerreira de ceifar vidas, desta vez as dos krahós, seus antigos donos.
A certa altura, porém, o novo dono do machado viu-se cercado por algumas dezenas de adversários e não teve alternativa senão correr com machado e tudo. Não sabemos que espécie de canção o machado entoou na fuga, mas o fato é que, ao enfiar o pé num buraco de tatu, o krolkametrá foi ao chão e perdeu, além do machado, a própria vida, estraçalhado pelas lanças adversárias.
E foi assim que o koieré voltou à tribo dos índios krahós.

Fonte: Franchini, Ademilson S. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro. Porto Alegre/RS: L&PM, 2011.

Folclore Sem Fronteiras (Finlândia)



A PROMESSA CUMPRIDA EM PARTE

     Luohi viu chegar magicamente o ferreiro Ilmarinen a sua casa e quase não se surpreendeu quando soube que se tratava dele. Ordenou imediatamente que lhe preparassem a melhor acomodação e até fez com que a sua bela filha virgem se adornasse com as melhores galas, para ser depois mostrada a Ilmarinen e oferecida como recompensa em troca do sampo ansiado.
     À vista da preciosa criatura Ilmarinen foi procurando por Pohjola o lugar onde realizar o seu trabalho e pôs-se a trabalhar febrilmente na construção daquela forja, primeiro, e na realização do sampo pedido, depois. Ilmarinen demorou três dias em preparar a forja e três dias em forjar o moinho de tampa suntuosa, que era moinho de farinha por um lado, moinho de sal por outro e moinho de moenda pelo terceiro. No seu primeiro trabalho, o sampo moeu uma medida para ser comida, outra medida para ser vendida e uma terceira para ser guardada.
     Entregue o moinho a Luohi, esta guardou-o no lugar mais recôndito da sua casa. Foi nessa altura, cumprida o seu parte, que Ilmarinen reclamou aquela virgem prometida, mas ela negou-se a acompanhá-lo, porque não estava disposta a ser sua esposa. Ilmarinen abateu-se, sem forças para nada, até tal ponto que a mãe da virgem, a anciã Luohi, se compadeceu da sua tristeza e o enviou numa barca de regresso para o sul, envolvido na força mágica de um vento que ela convocou para que fosse transportado sem perigo em três singraduras até à sua ansiada Kalevala. Lá, na margem, esperava-o o velho e ele disse que o sampo tinha sido construído e entregue a Luohi, segundo se tinha acordado, mas também fez saber que a donzela prometida não cumpriu a sua parte do pacto e que ele, Ilmarinen, tanto como Vainamoinen, tinham sido duplamente burlados pela virgem de Pohjola.

LEMMINKÄINEM, O AMANTE

     Ahti Lemminkäinen nasceu em Kauko e foi um jovem tímido até que pescou uma tenca e esta, para salvar a sua vida, prometeu ensinar-lhe a palavra encantada que o tornaria no homem mais amado pelas mulheres. Mas não havia tal palavra, era necessário comer o peixe para conseguir esse encanto e Ahti comeu-a. Certamente, em breve Ahti começou a ser querido por todos, especialmente pelas mulheres, como o demonstra a sua primeira aventura com Kylliki, a preciosa jovem de famosa beleza que rapta e apaixona; mas Ahti Lemminkäinen pensa que a sua mulher não lhe guardou a devida ausência e vai para Pohjola, pretendendo desta vez a filha de Louhi e tendo que cumprir uma dura prova para conseguí-la: a captura do alce de Hiisi, caça que lhe custaria a vida nas águas do rio Tuoni, assassinado pela vingança de um velho que tinha humilhado.
     Ahti caiu no reino da morte, no reino de Tuoni e Tuonetar, no meio do horror e o sofrimento. Desaparecido Ahti, a sua mãe inicia a penosa procura do filho perdido, submergindo-se nas águas, cruzando as terras do norte, perguntando à Lua e, por fim, ouvindo o que o Sol lhe contava, que Ahti tinha sido arrastado para o Tuoni. A mãe pediu a Ilmarinen que forjasse um ancinho de cem braças para tirar o seu filho do fundo do rio; com ele resgatou o seu amado filho e, com o seu amor, devolveu-lhe a vida.
     Voltaram para casa, mas Kylliki tinha-se ido embora para sempre. Então Ahti partiu de novo para Pohjola, esta vez irado por não ter sido convidado às faustosas celebrações da casamento da filha de Louhi com Ilmarinen. Chegado ao norte, Ahti Lemmikäinen vai provocar o Filho do Norte, o anfitrião, desafiando-o para um duelo à morte, no qual vence Ahti, mas a satisfação pela sua vitória é breve, porque tem que fugir, dado que todos os homens de Pohjola, ao saber que o seu chefe morreu pelas mãos de Ahti, se lançam na sua perseguição.
     Durante três anos refugiou-se na Ilha das Mulheres, sendo amado por todas e amando quase todas, mas chegou a hora de voltar para junto da sua mãe e não houve mais remédio que abandonar tão doce refúgio. Quando conseguiu chegar às suas terras, viu só destruição e cinzas mas o que via não era tudo; também pôde ver, pouco tempo depois, a sua doce mãe, escondida entre as ruínas, sempre à espera do seu regresso, convencida de que ele voltaria junto da ela outra vez, sabendo que ainda restava muito que fazer ao filho, o alegre herói Ahti Lemminkäinen.

VAINAMOINEM E A ILMARINEN

     Vainamoinen construía um barco e estava a ponto de terminá-lo, mas faltavam-lhe três palavras mágicas para terminar de lhe dar forma; não havia maneira de recordar como eram e Vainamoinen desesperava-se, pensando que era uma tarefa impossível, até que se aproximou um pastor e lhe disse que o gigante Antero Vipunen sabia tudo o que ele necessitava de saber. Vainamoinen foi a Ilmarinen, para que o ferreiro lhe forjasse o equipamento de ferro que devia levar para chegar até a morada de Antero Vipunen; então soube, por boca do ferreiro, que Antero tinha morrido há muitos anos. Mas nem isso parou o Vainamoinen, que, equipado com a armadura que lhe permitia atravessar as agulhas das mulheres, as espadas dos homens e os machados dos heróis, chegou ao lugar onde jazia Vipunen com a sua magia.
     Meteu a sua maça na garganta do gigante e ordenou-lhe erguer-se. Vipunen levantou-se imediatamente, com a boca imobilizada pela maça de Vainamoinen. Aproveitando a surpresa, o velho saltou para a sua garganta e meteu-se no seu ventre, montando dentro dele uma forja para atormentar Antero, comendo as suas entranhas e batendo no seu corpo. Assim até que conseguiu que o gigante lhe ensinasse toda a sua imensa sabedoria.
     Quando conseguiu o seu propósito, o imperturbável Vainamoinen voltou para casa e terminou o seu barco. Com ele queria navegar para o norte, para pedir de novo a mão daquela virgem que não podia esquecer.
     Terminado de construir o seu navio, Vainamoinen botou-o no mar e foi feliz a caminho de Pohjola, mas a virgem Anniki aproximou-se dele para lhe perguntar a razão da sua viagem. Vainamoinen mentiu uma e outra vez, provocando a dúvida em Anniki, que o ameaçou com uma tremenda tempestade se Vainamoinen não dizia imediatamente a verdade.
     O velho confessou e a virgem foi a correr a dizer a Ilmarinen que o velho tinha decidido ir sozinho à procura da virgem de Pohjola. Ilmarinen preparou-se para ir à procura do velho e conseguiu alcançá-lo, após três dias de corrida no seu trenó.

O PACTO DOS DOIS AMIGOS

     Após acordar que já não haveria mais lutas pela virgem de Pohjola e fartos de serem inúteis rivais por esse difícil amor, Vainamoinen e Ilmarinen decidem seguir por separado o seu caminho para Pohjola, este por terra, aquele por mar, à procura daquela virgem tão bela e tão desejável como esquiva, sempre prometida como recompensa ao velho e ao ferreiro e nunca recebida. Mas agora vão fazendo com que ela diga, de uma vez por todas, por qual dos dois se decide a escorregadiça donzela.
     A escolha é rápida desta vez, pois a virgem prefere Ilmarinen, por que não é um velho como Vainamoinen, embora antes o tivesse rejeitado de um modo tão definitivo. Mas Louhies uma velha retorcida e soberba, que agora quer tornar tudo mais difícil ao bom ferreiro, propondo-lhe novas provas a cada momento.
     Ilmarinen vê-se obrigado a decifrar os complexos (e absurdos) problemas propostos mas a velha não conta com a cumplicidade antagonista da sua própria filha, da virgem sem nome que tantas páginas da história do Kalevala encheu . Com ela a seu lado, a vitória é segura e o casamento vai celebrar-se com todas as honras.
     Só ficam de fora Vainamoinen, pela sua tristeza, e Lemminkäinen, que não foi convidado, o que vai ser motivo da sua ira e do início daquele duelo à morte com o Filho do Norte que já relatamos antes. Mas com o casamento não vai chegar a felicidade por muito tempo ao apaixonado Ilmarinen: a sua esposa, a sua bela e ansiada esposa, é uma mulher malvada e a cruel brincadeira que faz ao bom escravo Kullervo, ao dar-lhe uma pedra como única comida, faz que este ponha em marcha a sua vingança (mágica, com certeza) com a cumplicidade do lobo e do urso, matando quem o humilhara.
     É a desolação para Ilmarinen, ao ver morta a sua amada Kullervo, já antes atraiçoado pelo seu irmão Untamo, que a tinha vendido como escrava, e agora castigado pelo destino, ao saber que a virgem com quem se deitou é a sua própria irmã. Kullervo, ainda mais enfurecido, mata o seu irmão Untamo, mas esta morte também não lhe serve de consolo, e só descansará quando se tire a vida com a sua própria espada.

O DESESPERO DE ILMARINEN

     O ferreiro pensou que poderia encontrar consolo numa nova esposa que ele próprio forjasse à imagem da desaparecida e pôs-se a trabalhar incansavelmente na sua forja, até que conseguiu a mais bela mulher nunca construída em ouro e prata; mas fria era a sua companhia, muda a sua presença, inútil a sua existência.
     Ilmarinen quis oferecer a mulher de ouro e prata a Vainamoinen, mas ele não a quis e recomendou a Ilmarinen que a voltasse a fundir, pois ninguém se devia deixar deslumbrar pelo ouro ou pela prata. Ilmarinen compreendeu que devia procurar uma nova esposa de carne e osso e pensou em Pohjola, noutra filha de Louhi que lhe recordasse a sua perdida mulher. Mas nada conseguiu de Louhi e teve que raptar a sua segunda filha. Também o rapto não serviu de muito, pois na primeira noite já se deitou ela com um desconhecido.
     Ilmarinen, ao despertar, viu a cena e quase que a matou, mas a sua espada negou-se a terminar com a vida daquela vaidosa e o desgraçado Ilmarinen contentou-se com ordenar que a infiel raptada fosse converter-se em solitária gaivota, condenada a viver sobre um penhasco, entre as frias águas do mar. Mais sozinho do que nunca, o ferreiro seguiu o seu interrompido caminho para o lar.
     No caminho saiu-lhe o velho Vainamoinen e juntos propuseram-se resgatar de Pohjola aquele sampo construído para conseguir a pretendida felicidade e que tão tristes frutos tinha deparado a ambos. Construíram um navio poderoso, forjaram uma espada vencedora e partiram à procura do sampo mágico, colhendo pelo caminho o retirado herói Lemminkäinen, que se somou à expedição, feliz de poder voltar a lutar contra a gente de Pohjola, da qual tão penosas recordações guardava a sua memória.

Rubem Braga (Noite de Luar)



O táxi ia rodando devagar pela rua mal iluminada, para que eu pudesse ir vendo os números das casas. Quando vi o 118, mandei parar. Tinha de ir ao 227 e perguntar por dona Maria de Sousa. Era quase certo que não me seguiam; de qualquer modo não convinha parar o táxi diante da casa para não chamar a atenção. Tive, além disso, o cuidado de deixar o carro se afastar sem que o chofer pudesse ver a casa em que eu entrava. Naquele tempo viviamos cercados de precauções, porque o perigo estava em toda a parte. O menor descuido era a prisão, e as noticias que vinham "lá de dentro" eram de fazer tremer.
     Andei pela calçada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente viviam famílias ricas. Agora os ricos viviam em outras partes da cidade e aqueles casarões envelhecidos, com seus parques de grandes arvores, pareciam dormir. Uma vez ou outra passava um auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.
     Apertei a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim, ao lado da casa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.
     Ao bater, ouvi um rumor lá dentro. Depois senti alguém me espiava pela veneziana, sem dizer nada. Bati outra vez. Ouvi ainda uns rumores dentro do quarto, e, por fim, uma voz nervosa perguntou:
     - Quem é?
     Marina não me havia reconhecido e, com certeza, estava inquieta. Tranquilizei-a:
     - Sou eu, Domingos.
     A porta abriu-se.
     Tinha visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua. Nunca havíamos trocado mais de duas ou três palavras ocasionais. Não se podia dizer que fosse bonita, mas era agradável, com seu ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seu jeito de vestir-se com certa severidade. Agora estava diante de mim e não pude deixar de sorrir quando a vi metida em um macacão.
     - O macacão do Alberto? Trago notícias dele.
     Dei o recado que um político solto no dia anterior havia trazido. Alberto mandava dizer que estava bem, que há muito tempo já não o interrogavam, e que não tinha nenhuma esperança de sair tão cedo. Era melhor que ela tentasse sair da capital, onde podia ser presa a qualquer momento, e fosse para um pequeno Estado do Nordeste onde morava sua família. A viagem por mar seria impossível. O melhor era ir até Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo São Francisco. Havia uma pessoa que podia arranjar uma parte do dinheiro e um endereço em Belo Horizonte onde talvez conseguisse mais. Era preciso abrir o caixote de livros e queimar um papel que estava dentro das "Poesias" de Olavo Bilac. Dei-lhe um numero para onde devia telefonar.
     - Acha que eles vão deixar o Alberto preso muito tempo?
     Dei-lhe minha opinião com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando o pegou, a policia não sabia grande coisa dele, mas lá dentro sua situação tinha piorado muito. Parece que tinham aparecido umas historias velhas, de São Paulo...
     - E você como vai?
     Ela fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito a comida, mais oito dias. Não tinha mais dinheiro, nem para cigarros. Ofereci-lhe dos meus:
     - Não sabia que você fumava.
     Não fumava antes. Mas ali, obrigada a ficar dentro do quarto dias e dias, semanas e semanas, começara a fumar. Há mais três meses não saia à rua. Andava apenas pelo velho e pequeno parque, nos fundos da casa, quando não chovia. Havia lido todos os livros que tinha, e estava cansada de ler.
     - Isso aqui é pior do que estar presa. Às vezes tenho vontade de sair, tomar um ônibus, andar por aí, ir a um banho de mar...
     Arriscara-se certa vez a ir a um cinema do bairro e quase morreu de medo. Na volta, um homem a seguiu. Teve a certeza de que ia ser presa. Quando estava perto de casa, o homem, mal encarado, apertou o passo e a deteve, tocando-lhe o braço com a mão. Parou tremula e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando, em um desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa...
     Contava essas coisas sentada na cama, um pouco excitada e estava engraçada assim metida no macacão do marido, com uma régua na mão, contando o seu susto. Rimos, mas logo ela se pôs a andar no quarto para um lado e outro, batendo com a régua na coxa.
     - Que é que você acha que devo fazer?
     Acendi um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse, de um pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar alguém que fosse amigo do Governo. Talvez o doutor Antunes conseguisse...
     - Também está preso.
     - O dr. Antunes? Não é possível!
     Vi que estava mal informada do que acontecia e lhe dei varias noticias. Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a régua no joelho. Ficamos em silencio. Achei que devia despedir-me, mas ela me deteve:
     - Espere, quero saber de uma coisa...
     Perguntou-me pelos Amaral, era verdade que a mulher se tinha suicidado. Era boato, ou pelo menos parecia. Havia quem dissesse que o casal estava no Paraguai; outros diziam que ele estava preso no Norte do Paraná, em Londrina...
     Surgiram outros nomes. Eu quase não podia dar informações sobre ninguém, e muitos eu não conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a falar de Alberto. Ela havia perdido o nervosismo; falava agora em seu tom habitual, um pouco seco, um pouco distante. Falava do marido e de si mesma como se estivesse examinando um problema alheio, com frieza e lógica. Tinha na gaveta um velho guia Levi, e consultou preços de passagens e horários. Certamente deveria tomar o trem em alguma estação do Estado do Rio, se resolvesse ir para o Norte.
     - Vai?
     - Isso é que estou pensando. Em Alagoas posso ficar na fazenda de minha tia, perto de São Miguel. Ali não haveria nenhum perigo, mas... Voltou a perguntar se não havia mesmo nenhum jeito de fazer alguma coisa pela libertação de Alberto. Talvez aquele ex-deputado amigo dos Amaral, pudesse...
     Balancei a cabeça. A policia não estava soltando ninguém. Prendera gente demais, inocentes e culpados, e enquanto não interrogava todo mundo, não apurava as coisas, não queria soltar ninguém. Uma ou outra pessoa conseguia sair quando tinha proteção muito forte e estava completamente inocente . Alberto já fora preso antes, era um elemento "marcado"... A única esperança estava numa mudança que diziam que ia haver no Ministério. Mas estavam sempre dizendo essas coisas, e ninguém saia do Governo. Dava a impressão de que ia ser assim eternamente...
     - Que coisa!
     Voltou a falar de Alberto, contou detalhes de sua prisão. Ela havia escapado por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa... Começou quase a lamentar-se e, subitamente, pareceu de novo tranquila. Os cabelos despenteados e o macacão lhe davam um ar ao mesmo tempo gracioso e cordial de rapazola. Devia ter uns trinta anos. Agora sua voz parecia ter cinquenta.
     - A situação é esta: se não fosse por causa do Alberto eu poderia ter fugido para o Sul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na hora de alugar este quarto, estive quase me resolvendo outra vez a fugir. Mas queria esperar Alberto... Está visto que posso ficar esperando a vida inteira. O senhor acha que há possibilidade...
     Era engraçado que me chamasse de "senhor", quando começara me tratando de "você". Mas logo na frase seguinte, com uma pequena hesitação na voz, voltou a me chamar de "você".
     Levantei-me e procurei com a vista um cinzeiro para pôr o cigarro. Não havia. Abri uma banda da janela para jogá-lo no jardim.
     - Posso deixar a janela aberta? Está quente... Sentada na cama ela ficou em silencio. Resolvi ir-me embora e fiquei pensando se devia lhe dar dez mil reis que tinha no bolso. Eu voltaria de bonde. Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente, e me deu um aperto de mão rápido. Sua voz era tranquila, quase fria:
     - Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, apareça outra vez. Meu nome aqui é Maria de Sousa.
     - Sei. Tem telefone?
     - Não. Ah, um momento! Pode pôr uma carta no correio para mim? Tirou uma carta da gaveta, envelope e começou a escrever o endereço. Junto à janela lá fora eu via as grandes arvores gordas, beijadas pelo luar enquanto ouvia o ranger da pena no papel.
     Comentei ao acaso:
     - Bonito luar...
     Ela acabara de escrever o endereço e respondeu dando um olhar rápido a janela:
     - É
     Foi um "é" tão seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse dito alguma coisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela veio para junto da janela, onde eu estava. Para ver melhor lá de fora abri o outro lado da janela e a lua apareceu, redonda, branca, entre as copas das arvores. Foi apenas um instante. Ela fechou os dois lados da janela com brutalidade:
     - Não faça isso! Estúpido! Não vê que eu não posso com isso? Que estou sozinha há quase um ano desde que Alberto foi preso? Ficou um momento diante de mim pálida, os lábios trêmulos; eu não sabia o que dizer.
     - Vá-se embora! Lançou-se na cama, escondeu a cabeça nas mãos e começou a chorar. Os soluços agitavam seu corpo magro e nervoso sob o macacão azul.