quinta-feira, 1 de maio de 2014

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 1

 Este texto foi elaborado com base em pesquisa desenvolvida por ocasião da minha permanência em Oxford, de abril a junho de 1998, como Visiting Fellow, junto ao Centro Brasileiro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford e como Senior Assistant Member (SAM) junto ao St. Antony’s College, na mesma Universidade de Oxford.

Para aprender o meu nome.
Cecília Meireles

Até que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
Clarice Lispector
 
 Construir e desconstruir nomes ou sistemas de identidade feminina. Esta é uma via trilhada pelas mulheres que escrevem no Brasil. E pode ser um possível caminho para se ler a produção cultural literária feita por mulheres no Brasil.

NO NÚCLEO DA QUESTÃO

Sob tal perspectiva de leitura, Macabéa, a personagem do breve romance intitulado A hora da estrela, da escritora judia (russa/ucraniana) e brasileira (nordestina/carioca) Clarice Lispector[1], constitui um ponto-chave, pois encarna, no seu estado de miserabilidade da identidade pessoal e social, grande parte das mulheres no Brasil. Sem acesso a qualquer bem de produção, essa personagem nordestina parte do sertão de Alagoas para uma grande capital, a cidade do Rio de Janeiro, onde vive na mais completa miséria, sem ter acesso à cultura de bens materiais, intelectuais e afetivos. Não tem condição de construir uma história, já que, à margem dos trilhos que direcionam os acontecimentos, a personagem vive da cultura de sucata: sobras dispensadas pelos outros, os que têm. Por isso resta-lhe apenas, por exemplo, a beleza rosada de outra mulher, Marilyn Monroe, em foto recortada de página de revista velha que ela prega na parede do seu quarto sujo de pensão.

No entanto, vive em estado de pureza. Não tem noção nenhuma a respeito do mundo desumano que a cerca. E o que bem poderia ser, noutro contexto de obra, uma “má consciência”, é, neste romance, um estado de humanismo latente. Macabéa vive, incólume às perversidades do mundo, um estado de condição humana utópica, que desconcerta o leitor: é ao mesmo tempo (sem saber que estava sendo) um pouco cômica e trágica, mas, ao mesmo tempo, eficaz luz de consciência crítica.

Essa moça vive como milhões de outras moças pobres e anônimas da cidade grande. Até que é atropelada e morre. E justamente logo depois que a cartomante lhe anunciara, mentirosamente, a realização de um sonho – o casamento com um rico e belo rapaz alemão. O detalhe de construção da cena fica por conta da contundente ironia de Clarice Lispector: Macabéa é atropelada justamente por um Mercedes Benz…Nessa hora da morte, caída na sarjeta da rua, lugar simbólico, aliás, de onde nunca saiu, Macabéa tem seu único momento de brilho e glória: a morte. É a sua hora da estrela.

Como os macabeus -  de que, aliás, Clarice Lispector, como judia, descende – e tal como os nordestinos, que Clarice Lispector também de certa forma foi, pois na pobre região do nordeste brasileiro viveu toda a infância até a puberdade – Macabéa vive como imigrante, em permanente estado de exílio e, concomitantemente, em permanente estado de resistência contra forças adversas.

A autora Clarice Lispector e a personagem Macabéa encarnam uma situação típica de impasse da mulher brasileira. Encontram-se numa encruzilhada de opções diante do que um “destino de mulher” lhes confere e do que a prática de um determinado olhar feminista revê, seja da perspectiva ingênua e naturalmente humanizada, como em Macabéa, seja da perspectiva lucidamente desconstrutiva, como em Clarice, embora a autora tenha sempre negado tal procedimento como compromisso de vinculação política. De qualquer forma, ambas se encontram num momento crítico da história do contexto de vida da mulher no Brasil, promovido por preconceituosas e injustas desigualdades sociais, pela consideração das diferenças de sexo e pelas múltiplas implicações das questões de gênero, problematizadas no corpo mesmo da representação ou construção simbólica, sob a forma da metalinguagem em arte literária.

Pretende-se, neste texto, determinar alguns momentos mais significativos dessa história da literatura brasileira feita por mulheres, bem como da história dos estudos referentes à mulher no campo da literatura. A exposição parte da seleção de determinadas situações experimentadas pelas mulheres nesse percurso de construção e desconstrução de imagens de si, examinando-as na sua condição de personagens, na sua condição de narradoras e autoras e na sua condição de pesquisadoras e críticas da literatura.

A VISÃO DOS VIAJANTES
 

A condição de subordinação da mulher brasileira, numa sociedade patriarcal de passado colonial, tal como noutros países da América Latina colonizados por europeus, deixou as suas marcas. Talvez a mais evidente delas seja a do silêncio e a de uma ausência, notada tanto no cenário público da vida cultural literária, quanto no registro das histórias da nossa literatura.

Num dos artigos pioneiros no sentido de mapear as “Características da história da mulher no Brasil”, escrito por Maria Beatriz Nizza da Silva, a autora afirma: “não temos acesso direto ao discurso feminino senão tardiamente no século XIX e até então temos de nos contentar em conhecer os desejos, vontades, queixas ou decisões das mulheres através da linguagem formal dos documentos ou petições, manejada pelos homens. A linguagem masculina dos procuradores e advogados sobrepõe-se, deformando-a, a uma linguagem feminina original e inatingível.”[2]

Também os depoimentos de viajantes que estiveram no Brasil no século XIX registram a presença das mulheres que aqui viram – ou não conseguiram ver. Alguns destes textos, reunidos pela historiadora Miriam Moreira Leite, referem-se ao isolamento da mulher no meio doméstico, se mulher branca; e aos vários ofícios que exercia, se mulher negra. Realçam, em ambos os casos, pelo menos em início do século XIX, o baixo rendimento cultural, já que não tinham acesso à educação que lhes garantisse a leitura e a escrita.

É o que afirma, por exemplo, um dos viajantes, B. Debret: “Desde a chegada da Corte ao Brasil tudo se preparara, mas nada de positivo se fizera em prol da educação das jovens brasileiras. Esta, em 1815, se restringia, como antigamente, a recitar preces de cor e a calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. Somente o trabalho de agulha ocupava seus lazeres, pois os demais cuidados relativos ao lar são entregues sempre às escravas.”[3]

Pouco tempo antes, um comerciante inglês, John Luccock já observara que, entre as mulheres da classe alta e média, e especialmente as mais moças, “a ignorância entre elas predominava”, o que era estimulado, pois “não se desejava que escrevessem” para que não fizessem “um mau uso dessa arte”. Observa ainda que tais mulheres viviam “muito mais reclusas que em nossa própria terra.”[4]

E é o próprio Debret que nota mudanças a partir de 1820, quando a educação começou a tomar impulso de tal modo que “não é raro encontrar-se uma senhora capaz de manter uma correspondência em várias línguas e apreciar a leitura, como na Europa.”[5] Quanto às mulheres negras escravas, ocupavam-se do trabalho em âmbito doméstico ou em oficinas, sem receberem qualquer instrução, numa situação que haveria de se prolongar por muito tempo. Eram artesãs: faziam flores, rendas, roupas. Ou eram aguadeiras, quitandeiras, amas-de-leite. Conforme observa Ida Pfeiffer, em 1846, “são mantidos de propósito numa espécie de infância (…) pois o despertar desse povo oprimido poderia ser terrível” e então “a população branca poderia tomar o lugar que é hoje ocupado pelos infelizes negros”.[6]

A primeira legislação referente à educação feminina apareceu apenas em 1827, assegurando os estudos elementares. E o ingresso de mulheres em escola normal de São Paulo aconteceu apenas em 1876, embora desde os anos 40 essa escola recebesse alunos de sexo masculino.[7] Mesmo em meados do século XIX, portanto, a mulher permanece isolada de ambiente cultural. E permanece isolada até do convívio de pessoas na sua própria casa. O Conde de Suzannet, em viagem ao Brasil, no ano de 1845, observa que, se no Rio “as mulheres tomam parte da vida social”, “no interior, uma pessoa pode passar semanas inteiras sob um teto sem nem ao menos entrever a mulher e as filhas do dono da casa.”[8] Outras mulheres, caso recusassem casamento de conveniência com rapaz escolhido pela família, eram depositadas no convento, como o convento da Ajuda, e lá ficavam às vezes até à morte, conforme relata o viajante Thomas Ewbank, em 1846.[9]

Em 1865, o viajante Agassiz reitera: “o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado”, pois se desenvolve dos sete ou oito aos treze ou quatorze anos, quando, então, são retiradas dos colégios e logo se casam. Embora tenha conhecido mulheres de “alta cultura”, considera que são exceções, pois, “efetivamente, nunca conversei com as senhoras brasileiras com quem mais de perto privei no Brasil sem delas receber as mais tristes confidências acerca de sua existência estreita e confinada.”[10] E complementa:

“Não há uma só mulher brasileira que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo. A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de Francês e Música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o mundo dos livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras portuguesas que lhes permitem ler, e menor ainda o das obras a seu alcance escritas em outras línguas. Pouca coisa sabem da história do seu país, quase nada da de outras nações, e nem parecem suspeitar que possa haver outro credo religioso além daquele que domina no Brasil(…) Em suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe para elas.”[11]

Portanto, o viajante ou não vê a mulher, ou a vê, mas naquilo que, para ela, não existe. Tal olhar, do que vem de fora, estranha e critica a reclusão social e a ignorância intelectual da mulher, ressaltando nela o seu não-estar (ausência no lugar social de prestígio) e o seu não-saber (falta de instrução). Assim sendo, o que efetivamente existia para a mulher, ou seja, o universo feminino que se desenrolava nesse espaço doméstico, para além da descrição da superfície dos gestos vistos como vitimizados, permanece intocado pelo olhar estrangeiro masculino.

 A VISÃO DA ESCRITORA E CRÍTICA LÚCIA MIGUEL PEREIRA

Na tentativa de analisar o contexto cultural da mulher brasileira de modo sistemático, a escritora brasileira Lúcia Miguel Pereira, que escreveu quatro romances problematizando a questão da mulher no Brasil no século XX e que foi também uma estudiosa e crítica da literatura[12], escreveu artigo publicado em 1954, intitulado “As mulheres na literatura brasileira”, em que descreve a condição feminina no Brasil[13].

Aí percorre vários textos que se referem ao papel da mulher na sociedade brasileira, tentando fazer no Brasil o que Virginia Woolf fizera trinta anos atrás na Inglaterra, com as  conferências de 1928, depois revistas e publicadas com o título de A room of one’s own[14]. A ficcionista e crítica, que lera e cita a Virginia Woolf da conferência dirigida para moças de um colégio inglês, procura nomes de escritoras brasileiras nos volumes de histórias da nossa literatura e recorre a algumas obras de escritores renomados para examinar como a mulher aparece aí representada.

Nas histórias de literatura brasileira, encontra poucos nomes. Sílvio Romero, na sua História da Literatura Brasileira, de 1882, mencionou apenas sete. E Sacramento Blake, no seu Dicionário bibliográfico editado em 1889, menciona 56. As referências poderiam se estender a outras histórias de literatura.

Além da ausência da mulher no registro, feito por homens, de produções literárias ao longo da história de nossa literatura, a pesquisadora detém-se em alguns exemplos de ausência da mulher no campo social das atividades artísticas, detectando preconceitos que norteiam o comportamento da mulher no Brasil.

Da obra Compêndio do Peregrino da América, escrita por Nuno Marques Pereira[15], de nacionalidade provavelmente portuguesa, a crítica cita trecho em que o narrador dá conselhos aos homens: que eles não permitam que mulheres “filhas, irmãs, parentas e pessoas honradas de sua obrigação, que estiverem debaixo de sua proteção, vão ver comédias nem semelhantes farsas (…)”, pois “sairão de tais funções distraídas e com pensamentos tão estragados que não se poderá reformar (tais pensamentos) em muitos dias”.[16] Aconselha também a proibição do teatro e da ‘poesia cantada’, como as modinhas de Domingos Caldas Barbosa, “porque grande força faz no sexo feminino”, o qual consegue “perverter e abrasar em um incêndio amoroso”.[17]

Embora reconheça exceções, o quadro geral da condição da mulher no século XVIII prolonga-se até o século XIX, que a escritora bem conhecia, enquanto leitora de Eça de Queiróz e de Machado de Assis; deste último, fez, aliás, renomada biografia.[18] Um agudo ceticismo aparece no comentário que a escritora faz referente às mulheres dos oitocentos.

“Dessas doces donzelinhas, ariscas e sonsas, das ácidas donzelas que, não encontrando marido, se agregavam a parentes, em suas casas vegetando quase como aias, dessas casadas tementes aos maridos ou sorrateiramente os traindo, dessas matriarcas decididas, não raro despóticas, compunha-se a sociedade real, e a que povoava a ficção”.[19]

E depois do romantismo e do realismo, já no final do século XIX, segundo ainda a mesma escritora, tudo parece mudar. Mas não muda. As mulheres tornam-se mais ousadas na valorização do amor físico, que substitui o amor sentimental, mas não há, aí, revolução. Esses casos, de Evas arrebatadas, são considerados mórbidos e excepcionais. Não se altera a estrutura da família, baseada na continência feminina.

Nos seus próprios romances, escritos nos anos 40 e 50 do século XX, a escritora problematiza a questão dos papéis sociais da mulher, detectando preconceitos e censuras, que causam frustrações e retrocessos no percurso das opções por comportamentos e atitudes a serem assumidas pela mulher numa sociedade fechada e altamente codificada. No entanto, a visão que tem a escritora ao acompanhar a história da mulher na literatura brasileira ao longo dos séculos – do século XVIII aos inícios do século XX – parece se pautar por uma crítica severa não dos mecanismos cerceadores, mas dos procedimentos adotados pela mulher imune a ações de uma prática de mudança. O discurso crítico parece crispado por um certo rancor, na denúncia impaciente dos tipos de mulheres oitocentistas que seguem, com disciplina, os papéis institucionalmente impostos e aceitos.

Faltaria, ainda, reconhecer uma outra linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política através sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que poderíamos chamar de estética feminista.
 
AS PRIMEIRAS ESCRITORAS: DE TEREZA MARGARIDA A NÍSIA FLORESTA

São do século XIX os primeiros textos escritos por mulheres brasileiras que têm alguma divulgação entre o público letrado. Até lá, nos tempos coloniais, a mulher nada escreve, ou escreve mas os textos não aparecem, ou aparecem como exceção, entre maioria quase absoluta de textos escritos por homens. A razão é simples: apenas os homens tinham acesso à educação formal, fornecida não em universidades – cuja criação em terras brasileiras foi proibida pelo reino português – mas em seminários de várias ordens religiosas.

Assim mesmo, nem todos podiam freqüentar os seminários. Em certos casos, lá estudavam desde que não fossem “pardos”. Poderiam também, sobretudo a partir da expulsão dos jesuítas, em 1759, receber as chamadas aulas régias, educação oficial com apoio do rei português, mas em “ensino escolar eloquente, retórico e imitativo – e, de resto, elitista e ornamental”, numa educação “voltada para a perpetuação de uma ordem patriarcal, estatumental e colonial”.[20] Havia, ainda, a possibilidade do autodidatismo, forma de educação não formal, em ambiente doméstico. E ainda em território doméstico, havia distribuição da matéria de acordo com o sexo. De modo geral, ao homem era de praxe se “ensinar a ler, a escrever e contar”, e à mulher, “a coser, lavar, a fazer rendas e todos os misteres femininos”[21], que incluía a reza. Se muitas mulheres, sobretudo irmãs “fêmeas” e sem dote, eram depositadas no convento, muitas também passaram a manter escolas no próprio espaço privado, aí ensinado leitura, música, corte e costura.[22]

No mais, aparecem nomes isolados de escritoras. É o caso de Tereza Margarida da Silva e Orta, filha de um português e uma brasileira, que viveu desde os cinco anos em Portugal. Escreveu obra de cunho moralista, intitulada Aventuras de Diófanes, considerada por alguns como o primeiro romance brasileiro, já que a escritora nasceu no Brasil, e, por outros, como obra portuguesa, já que a autora foi quando menina para Portugal e nunca mais voltou ao Brasil.

O livro, publicado em Portugal em 1752 e que teve outras edições, portuguesas e brasileiras, traduz o gosto clássico, sob a inspiração das Aventuras de Telêmaco, de Fénelon. Revela erudição da mulher que teve acesso à educação, iniciada em Portugal, junto às freiras do convento das Trinas, onde aprende, por exemplo, além do desenho e bordado, idiomas antigos e modernos, letras, história, música, astronomia, filosofia, teologia. E revela também dose de experiência de vida movimentada, de mulher corajosa que enfrenta certos preconceitos. A moça, contrariando a vontade da família, que, aliás, fez fortuna no Brasil, foge de casa para se unir ao jovem e pobre professor alemão. Por isso é deserdada, cabendo a fortuna do pai ao irmão, também escritor, Matias Aires da Silva de Eça, autor de Reflexões sobre a vaidade dos homens, publicado em Lisboa também em 1752. Com 12 filhos, fica viúva, em 1753. É perseguida pelos jesuítas, rebelando-se contra eles no texto Relação abreviada. Fica, no entanto, e por causas desconhecidas, presa durante sete anos, até a queda do Marquês de Pombal, quando morre D. José e sobe ao trono D. Maria I. Já livre da prisão, vive na pobreza, em casa de um cunhado, até morrer, em 1793.[23]

Tais circunstâncias de vida comprovam o contexto europeu em que a escritora se formou e escreveu. Entre o colonizador e o colonizado não existe ainda, praticamente, nenhum embate, pois o que a escritora parece carregar da terra é apenas, além da fortuna do pai, de quem, aliás, nada recebeu porque foi deserdada, a marca de uma nacionalidade em cinco anos de vida aparentemente diluídos na marcante experiência de vida europeia.

Num contexto de cultura colonial em que a fundação de universidades era proibida e em que o analfabetismo imperava, em que as tipografias passam a funcionar livremente apenas depois de 1808, quando a Família Real chega ao Brasil, os textos feitos por mulheres, se existiram, devem ter circulado oralmente: se assim foi, encontram-se na tradição da poesia e contos e cantos populares, território de cultura que merece ainda cuidadosa investigação. Outros textos por elas escritos fariam parte de um contexto de cultura bem específico: o espaço doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas, simples anotações, orações, pensamentos, lista de deveres e obrigações, que também, efêmeros, quase na sua grande maioria, desapareceram. Quanto aos textos de caráter mais artístico, constituiriam exceção. E são poucas as exceções. Uma delas refere-se aos textos escritos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, considerada a primeira feminista brasileira.

Nascida no Rio Grande do Norte, no nordeste, em 1810, a menina Dionísia Gonçalves Pinto[24] logo passa por uma primeira e malfadada experiência de casamento, aos 13 anos de idade. Mora também em Recife, onde o pai é assassinado, e onde se casa novamente, com um acadêmico liberal. Recife era, nesta fase de Independência em relação ao trono português, grande centro de comércio açucareiro e também palco de sucessivas rebeliões que incentivavam a imprensa para a divulgação das propostas liberais. E foi lá que a então jovem escritora iniciou uma militância política e jornalística, de caráter republicano, favorável à liberação dos escravos e à luta pelos direitos da mulher.

Um dos seus mais importantes trabalhos é uma adaptação do livro da inglesa Mary Wollstonecraft (ou Mistriss Godwin), o livro Vindication of the rights of woman, que intitulou Direito das mulheres e injustiça dos homens, publicado em 1832, que assina já como Nísia Floresta Brasileira Augusta.[25] Segundo Constância Lima Duarte, a autora faz uma “tradução livre”, adaptando o texto às circunstâncias da realidade brasileira, tendo como resultado “o texto fundante do feminismo brasileiro”. Afirma a crítica:

“Nísia não realiza, propriamente, uma tradução do texto da feminista. Ela realiza, sim, um outro texto, o seu texto sobre os direitos das mulheres. Mary Wollstonecraft lhe dá a motivação ao colocar em letra impressa questões pertinentes à mulher inglesa, voltadas naturalmente para o público de seu país. Nísia como que realiza uma “antropofagia libertária”. E poderíamos ainda acrescentar: não como opção, mas até como fatalidade histórica. Na deglutição geral das ideias estrangeiras, era praxe promover-se uma acomodação de tais ideias ao cenário nacional. É o que ela faz. Assimila as concepções de Mary Wollstonecraft e devolve um outro produto, pessoal (…) extraído da própria experiência (…)”.[26]

Assim sendo, há pontos em comum: “tanto na denúncia da mulher como classe oprimida como na reivindicação de uma sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos direitos. Também são pontos comuns as denúncias da superioridade feminina apoiada na força física, a educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual o seu rumo, segundo as motivações das autoras, o público a que se destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar”.[27]

A escritora inglesa menciona a necessária “revolução”, incluindo a exigência de uma independência econômica, mais tarde configurada no “quarto próprio” da também inglesa Virginia Woolf. Já a brasileira reivindica direitos para mostrar que as mulheres têm também grandeza de alma e que o sexo feminino “não é tão desprezível quanto os homens querem fazer crer”.[28] Conforme explicita Constância Lima Duarte, esta separação entre educação e emancipação marca a posição ambígua da mulher brasileira, posição, aliás, que teria continuidade no final do século XIX e até nos inícios do século XX: a mulher admite e empreende o movimento de luta pela educação sem admitir mudança nos papéis sociais tradicionais da mulher enquanto “mãe” e “rainha do lar”.[29]

A “tradução livre” da obra da escritora inglesa não é atitude isolada e inconsequente. Pelo contrário, faz parte de uma longa carreira dedicada às letras e à educação da mulher. Depois de morar no sul do país, em Porto Alegre, onde fica viúva, a escritora muda-se, com suas duas filhas, para o Rio de Janeiro, onde funda uma escola que mantém durante dezessete anos e que foi severamente criticada por suas propostas educacionais avançadas. E dá continuidade à sua produção literária, reunindo objetivos pedagógicos, moralistas e ficcionais. Com tal intenção, publicou Conselhos à minha filha, em 1842, que teve muitas edições, e Fany ou O modelo das donzelas, de 1847. Escreveu também um poema indianista, A lágrima de um caeté, em 1849, baseado na luta entre brancos e índios que gerou a Revolução Praieira, em Pernambuco, em fevereiro de 1849, e em que, contrariando o estereótipo do bom selvagem, retrata o índio dividido e potencialmente rebelde.

No início de 1850, já na França, frequenta os cursos e conferências pronunciadas pelos positivistas, incluindo aí Auguste Comte. Volta ao Brasil em 1852 e, no ano seguinte, são publicados artigos sobre educação feminina, o Opúsculo Humanitário, no Rio de Janeiro.[30] Para a autora, a educação vincula-se ainda a um projeto de realização pessoal da mulher no universo familiar e doméstico. Mas anuncia também propostas avançadas para a época: a educação deveria ser dirigida a todas as mulheres, incluindo aí as pobres, como meio de livrá-las da miséria, proclamando a necessidade, por si só já revolucionária, de “que todas sejam bem educadas em suas respectivas situações”.[31]

Em 1856 viaja novamente para a Europa e aproxima-se de Auguste Comte, com quem mantém correspondência que traduz a amizade existente entre os dois. Publica ainda tanto o relato de suas viagens pela Alemanha, Itália e Grécia, quanto proclama, em visão ufanista e saudosa, as belezas da cidade do Rio de Janeiro (“Passeio ao Aqueduto da Carioca”), ou as belezas das cidades de Recife e Olinda (“O Brasil”), este último, numa primeira edição italiana, em Florença, com mais um ensaio sobre “A Mulher” e mais três textos, num volume intitulado Cintilações de uma alma brasileira, recentemente editado em português.[32] Volta ao Brasil no decorrer da década de 70. Mas permanece na Europa até morrer, com 76 anos, em 1885.[33]

A obra de Nísia Floresta, de variado assunto e gênero, mostra sensibilidade e lucidez ao abordar não só a beleza da terra brasileira e de tantos países europeus, mas a rebeldia do índio, a educação da mulher e a luta pelos seus direitos, mantendo um fio de coerência intelectual e demarcando, assim, um território preciso e seu, no espaço de construção da mulher brasileira a caminho da sua emancipação cultural.
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Notas

[1] O romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, foi publicado em 1977, ano da morte da escritora, que ocorreu em dezembro desse ano.

Clarice Lispector nasceu em Tchechelnik (Ucrânia), em 1920, quando viajava para o Brasil, onde viveu durante dois anos na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, e em seguida, até os seus 12 anos, na cidade de Recife, capital do estado do Pernambuco. As duas cidades estão situadas no nordeste do Brasil, região muito pobre sobretudo no interior (sertão), em que a miséria se agrava devido a longos períodos de seca. (Cf.: Nádia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta. São Paulo, Ática, 1995.)

[2] Maria Beatriz Nizza da Silva, “Características da História da Mulher no Brasil”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 17:75-91, 1987, p. 87. Trata-se de trabalho pioneiro no sentido de se tentar um mapeamento dos estudos referentes à ‘história das mulheres’ no Brasil na área das ciências sociais.

[3] Miriam Moreira Leite (org.), A condição feminina no Rio de Janeiro. Século XIX. São Paulo, Hucitec/INL, 1984, p. 68.

[4] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.68.

[5] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.69.

[6] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.71.

[7] June E. Hahmer, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 33.

[8] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob.cit., p. 43.

[9] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p. 63-65.

[10] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.74.

[11] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.74-75.

[12] Os romances publicados por Lúcia Miguel Pereira (1903-1959) são: Maria Luíza, 1933; Em surdina, 1933 (reeditado em 1949); Amanhecer, 1938; Cabra-Cega, 1954. Além desses romances, escreveu também livros de literatura infantil.

[13] Lúcia Miguel Pereira, “As mulheres na literatura brasileira”. Anhembi. Rio de Janeiro, Ano V, vol. XVII, n. 49, dez./54, p.19.

[14] O livro de Virginia Woolf foi traduzido para o português em edição brasileira com o título de Um teto todo seu (Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, ed. Nova Fronteira, 1985).

[15] Nuno Marques Pereira (1652-1731?) publica o seu Compêndio do Peregrino da América em 1728, contando as aventuras de um peregrino que parte pelo sertão brasileiro para converter ao bom caminho moral e religioso, os ambiciosos exploradores de minas, bem como outras pessoas que o peregrino ia encontrando pelo seu caminho.

[16] Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, c.1740 - Lisboa 1800), mestiço, músico, tocador e cantador de viola, compunha e acompanhava modinhas e lunduns. Foi fundador da Nova Arcádia, academia para cultivo da poesia e da oratória. Escreveu, com pseudônimo de Lereno, uma obra intitulada Viola de Lereno, que teve um primeiro volume publicado em 1798 e um segundo, em 1826. Segundo Antonio Candido, “seus versinhos são interessantes, pela candura e amor com que falam das coisas e sentimentos da pátria, definindo de modo explícito os traços afetivos correntemente associados ao brasileiro na psicologia popular: dengue, negaceio, quebranto, derretimento”(Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 5.ed., Belo Horizonte/Itatiaia, São Paulo/Edusp, 1975, tomo I, p. 155). Introduziu a modinha brasileira nos salões de Lisboa, onde cantava seus versos acompanhando-os com viola.

[17] Lúcia Miguel Pereira, ob. cit., p. 20.

[18] Lúcia Miguel Pereira escreveu duas biografias: Machado de Assis, publicada em 1936, com várias reedições; e A Vida de Gonçalves Dias, publicada em 1943. Publicou também uma História da Literatura Brasileira:  Prosa de ficção, de 1870 a 1920, em 1950.

[19] Lúcia Miguel Pereira, ob. cit., p. 22.

[20] Cf. Luiz Carlos Villalta, “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”. História da vida privada no Brasil, v. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.331-385.

[21] Cf. Luiz Carlos Villalta, ob.cit., p.351.

[22] Mary Del Priore, “Ritos da vida privada”. História da vida privada no Brasil, v. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 275-330.

[23] Para bibliografia referente à atividade literária de Teresa Margarida da Silva e Orta, ver: Nelly Novaes Coelho, “A imagem da mulher no século XVIII: Aventuras de Diófanes, de Teresa Margarida”. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 35 (“Imagens da mulher”), jan.-dez. 1995, p. 25-36.

[24] Nasceu a 12 de outubro de 1910, no sítio Floresta, perto de Papari (estado de Alagoas). Cf. Constância Lima Duarte, Nísia Floresta. Vida e obra. Natal, UFRN Editora Universitária, 1995, p.16.

[25]Nísia Floresta Brasileira Augusta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens. (Tradução livre do original Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft). Introdução, notas e posfácio: Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989.

[26] Constância Lima Duarte, “Nos primórdios do feminismo brasileiro”. Em: Nísia Floresta Brasileira Augusta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens. (Tradução livre do original Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft).Introdução, notas e posfácio: Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989, p.107-108.

[27] Constância Lima Duarte, ob. cit., p.108.

[28] Constância Lima Duarte, ob. cit., p.121.

[29] Cf. Maria Thereza Caiuby Crescenti Bernardes, Mulheres de ontem? Rio de Janeiro, Século XIX. São Paulo, T. A. Queiroz editor, 1989.

[30] Nísia Floresta Brasileira Augusta, Opúsculo Humanitário. Introdução e notas: Peggy Sharpe-Valadares. São Paulo/Cortez, Brasília/INEP, 1989.

[31] Nísia Floresta Brasileira Augusta, ob. cit., p. 65.

[32] O ensaio “A Mulher” foi traduzido para o inglês pela filha de Nísia Floresta e publicado com o título “Woman”, em Londres, em 1865, por G. Parker, Little St. Andrew Street, Upper, St. Martin Lane. (Cf. Constância Lima Duarte, “Introdução”, em: Nísia Floresta Brasileira Augusta, Cintilações de uma alma brasileira, Trad. de Michele A Vartulli, Florianópolis, Editora Mulheres-Editora da Unisc, 1997, p. XIX.).

A Editora Mulheres, responsável por esta publicação, tem reeditado outros textos escritos por mulheres, privilegiando as escritoras brasileiras do século XIX (é o caso do romance Lésbia, por  Maria Benedita Borman ou Délia, de 1890; e do volumeMulheres Illustres do Brazil, de D. Ignez Sabino, de 1899) e início do século XX (é o caso de A Silveirinha, romance de Júlia Lopes de Almeida, de 1914, por exemplo). A editora tem no prelo uma Antologia de escritoras brasileiras do século XIX, organizada por Zahidé L. Muzart. Também com esta finalidade, o Instituto Nacional do Livro iniciou em 1987 uma coleção intitulada “Resgate”, que publicou, por exemplo, em co-edição com a Presença edições, Correio da roça, de Júlia Lopes de Almeida, romance epistolar de 1913, e Voleta, romance de Albertina Berta, de 1926.

[33] Ver: Constância Lima Duarte, Nísia Floresta. Vida e Obra. Natal, UFRN Editora Universitária, 1995.


Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Regina Bertoccelli (Revoada de Rondéis )

TRANSPARÊNCIAS

Nada em mim é tristonho,
nem o olhar, nem o sorriso.
Por acreditar no meu sonho
vou em busca do paraíso.

Vendo bem por onde eu piso
os obstáculos eu transponho.
Nada em mim é tristonho,
nem o olhar, nem o sorriso.

Uma canção eu componho
contente e de improviso.
Minh'alma eu exponho
deixando aqui um aviso:
Nada em mim  é tristonho.

SEPARAÇÃO

Sem ti, minh'alma vagueia
pelos becos escuros da solidão.
É grande em meu peito a agonia,
dói demais o meu coração.
 
Perdi o rumo, estou sem direção,
foi embora toda a minha alegria.
Sem ti, minh'alma vagueia
pelos becos escuros da solidão.
 
Volta amor, dá-me a tua poesia
que cantarei pra ti uma canção.
Se o meu sorriso te contagia,
não vaciles, põe fim à separação.
Sem ti, minh'alma vagueia…

NAS ASAS DA POESIA

Vou voar nas asas da poesia,
deixar o vento levar minha mente.
O momento é de pura magia,
o coração feliz bate contente.
 
A alma confortada vibra e sente
a chegada de minha alegria.
Vou voar nas asas da poesia,
deixar o vento levar minha mente.
 
No embalo de uma suave sinfonia
a inspiração se fez presente.
Revigorada e cheia de energia
vou compor meus versos novamente.
Vou voar nas asas da poesia…

CÚMPLICES

Quero-te sempre ao meu lado,
dividir contigo minha alegria.
Posso ser o sonho desejado
de tua noite fria e vazia.
 
Farei pra ti uma poesia
depois do amor consumado.
Quero-te sempre ao meu lado,
dividir contigo minha alegria.
 
Vem, deita aqui do meu lado,
logo surgirá um novo dia.
Descansa teu corpo cansado,
entre nossas almas há sintonia.
Quero-te sempre ao meu lado.

ATRAVÉS DA VIDRAÇA

Através da vidraça vejo o céu nublado
e os respingos da chuva na calçada.
Sozinha, penso no meu amado
com a alma angustiada.
 
Em breve virá a madrugada
e muito já terei chorado.
Através da vidraça vejo o céu nublado
e os respingos da chuva na calçada.
 
Sopra um vento forte e gelado
que estremece a janela molhada.
Com o coração triste e encarcerado
repouso minh'alma extenuada.
Através da vidraça vejo o céu nublado…

ERA UMA VEZ...

Era uma vez o amor,
Um belo sonho ruído,
Na triste face da dor
Desse amor destruído!

Saji Pokeo


Era uma vez um amor que findou
e que destruiu um lindo sonho.
Por isso, tudo em mim mudou
e meu sorriso ficou tristonho.

Minha dor agora eu exponho
porque em mim você não acreditou.
Era uma vez um amor que findou
e que destruiu um lindo sonho.

O meu coração você atingiu e abalou,
tornou meu viver triste e medonho.
Mas agora que tudo passou e acabou,
terei um novo sonho...eu suponho...
Era uma vez um amor que findou.

ESQUECIMENTO

Jaz em cova profunda tua lembrança,
as promessas vãs e o tempo perdido.
Em tuas palavras perdi a confiança,
nada mais entre nós faz sentido.

 De luto meu coração está vestido,
espera ele por uma nova mudança.
Jaz em cova profunda tua lembrança,
as promessas vãs e o tempo perdido.
 
Depois da tempestade vem a bonança,
todo o mal que vivi será esquecido.
Vou procurar sem perder a esperança,
hei de encontrar um amor querido.
Jaz em cova profunda tua lembrança.

COISAS DO CORAÇÃO

Meu coração anda descompassado,
bate assim...meio sem jeito.
Talvez ele esteja cansado
de viver em meu peito.
 
Preciso encontrar o defeito,
saber o que está errado.
Meu coração anda descompassado,
bate assim...meio sem jeito.
 
Tenho pena do pobre coitado,
sem ritmo vive insatisfeito.
Para tê-lo feliz e sossegado,
qualquer conselho eu aceito.
Meu coração anda descompassado…

ABRAÇADA COM A SAUDADE

Adormeci  abraçada com a saudade,
vestida com as cores do passado.
Com a alma em liberdade,
sonhei com o meu amado.
 
Meu coração está apaixonado,
esta é minha realidade.
Adormeci abraçada com a saudade,
vestida com as cores do passado.
 
Por instantes vivi a felicidade
de ter meu desejo realizado.
Despertei feliz, é verdade,
meu coração está  consolado.
Adormeci abraçada com a saudade…

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?pag=2&id=5527&categoria=L

Angelica Villela Santos (Uma cena de amor)

I Troféu Falando de Amor (Categoria Prosa) Medalha de Ouro
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Uma comprida fila de formigas vinha todas as noites banquetear-se na lixeirinha que tenho sobre a pia da cozinha, onde entravam, mesmo estando tampada. Observei  onde se abrigavam e de lá saiam para o banquete. Resolvi, então, tampar o buraquinho com miolo de pão umedecido, como aprendi a fazer com minha avó materna.

– Demora algum tempo, mas elas acharão outro caminho e um dia voltarão, principalmente se o lixo lhes for apetitoso.  Mesmo que você tampe o buraco com cimento, isto vai acontecer em outro ponto qualquer da parede ou do chão. Esses bichinhos são danadinhos! E não fique pensando que ficarão sufocadas dentro do buraco tampado, como você, que ama todos os animais, já deve estar pensando. As espertinhas devem ter alguma outra saída ou até mais de uma, para escaparem, atraídas por outra guloseima.  Então, use o miolo de pão, que é barato e fácil de ser colocado,  dizia vovó.

Quando cheguei em casa à noite, resolvi por em prática a operação., mas não ia fazer a maldade de tampar o buraquinho antes delas irem embora.

Quando levantei a tampa da lixeira, foi aquela debandada geral!  Coloquei o miolo de pão, mas vi, logo em seguida, que uma delas – talvez a mais gulosa – havia ficado para trás e estava toda agitada, fazendo ziguezagues na parede azulejada, pois encontrara o buraco fechado.

Imediatamente, tirei a massinha e daí a instantes, saíram duas, desceram pela parede e, encontrando a companheira, encostaram as cabecinhas contra a dela, num colóquio que só elas ouviram – mas eu entendi – e, muito ligeiras, partiram em direção ao abrigo, com a outra seguindo logo atrás. Aquela cena de amor, de solidariedade entre as formiguinhas, me tocou profundamente,  principalmente tendo em vista o mundo atual, onde o amor está tão distante e o   lema dos humanos é: “Salve-se quem puder!”     

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 8


Machado de Assis (D. Paula)

Não era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala exatamente quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se o assombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última foi pelo Natal passado, e estamos em maio de 1882. Desceu ontem, à tarde, e foi para casa da irmã, Rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias, abriu a porta da sala de visitas, e entrou.

- Que é isto? exclamou.

Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de conforto e pediu, e quis que lhe contasse o que era, se alguma doença, ou...

- Antes fosse uma doença! antes fosse a morte! interrompeu a moça.

- Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi?

Venancinha enxugou os olhos e começou a falar. Não pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixá-las correr primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando as luvas. Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos grandes, que deviam ter sido infinitos. Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns minutos, Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o que era.

Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a falar de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados. Voltou amuado para casa de manhã, acabado o almoço, a cólera estourou, e ele disse-lhe coisas duras e amargas, que ela repeliu com outras.

- Onde está teu marido? perguntou a tia.

- Saiu; parece que foi para o escritório.

D. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda o mesmo, e disse-lhe que descansasse, que não era nada, dali a duas horas tudo estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente.

- Titia vai lá?

- Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom, são arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam.

Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e doçura. Calçadas as luvas, pôs o mantelete, e a sobrinha ajudou-a, falando também, jurando que, apesar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais a ponto. De caminho, parece que ela encarou o incidente, não digo desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a paz doméstica.

Chegou, não achou o sobrinho no escritório, mas ele veio logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe dissesse o objeto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vício. Em relação à pessoa de quem se tratava, não tinha dúvida de que eram namorados. Venancinha contara só o fato da véspera; não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no teatro, onde chegou a haver tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade os desazos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria.

D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também. Concordava que a sobrinha fosse leviana; era próprio da idade. Moça bonita não sai à rua sem atrair os olhos, e é natural que a admiração dos outros a lisonjeie. Também é natural que o que ela fizer de lisonjeada pareça aos outros e ao marido um princípio de namoro: a fatuidade de uns e o ciúme do outro explicam tudo. Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas sinceras, deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera. E se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por que não proceder com cautela e doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as ocasiões, apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma senhora as aparências de acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?

Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas coisas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não resvalar na indulgência, declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a cabeça para deixar passar a onda, e surgia outra vez com os seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então que D. Paula propôs um meio-termo.

- Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai estar comigo, na Tijuca, um ou dois meses; uma espécie de desterro. Eu, durante este tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espírito. Valeu?

Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a palavra, despediu-se para levar a boa nova à outra, Conrado acompanhou-a até à escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a dele sem lhe repetir os conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão natural:

- E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um minuto dos nossos cuidados...

- É um tal Vasco Maria Portela...

D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um velho, antigo diplomata, que... Não, esse estava na Europa desde alguns anos, aposentado, e acabava de receber um título de barão. Era um filho dele, chegado de pouco, um pelintra... D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos, com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia. Chegou mesmo a olhar para o chão, refletindo. Saiu, foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.

Dois dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia menos alegre do que prometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som remoto e brando, alguma coisa que parecia vir do tempo da Stoltz e do ministério Paraná. Cantora e ministério, coisas frágeis, não o eram menos que a ventura de ser moça, e onde iam essas três eternidades? Jaziam nas ruínas de trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.

Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante alguns anos, e, como o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não há meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta última fase que fez a opinião. Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração.

A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado. Foi a presença de uma situação análoga, de mistura com o nome e o sangue do mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que elas estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia à outra; era tentar e desafiar a memória

- Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo? perguntou Venancinha rindo, no outro dia de manhã.

- Já estás aborrecida?

- Não, não, isso nunca, mas pergunto...

D. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto negativo; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu que nenhumas; e para dar mais força à resposta, acompanhou-a de um descair dos cantos da boca, a modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na carta, D. Paula tinha o bom costume de não ler às carreiras, como quem vai salvar o pai da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre as letras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo.

"Eles amam-se!" pensou ela.

A descoberta avivou o espírito do passado. D. Paula forcejou por sacudir fora essas memórias importunas; elas, porém, voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara das sobrinha como sendo a mais graciosa coisa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos; mas tudo isso - e esta é a situação - tudo isso era como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história. Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro, a ver se sentia alguma coisa além da pura repetição mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Coisas truncadas!

Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha, pode ser que achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta idéia penetrou no espírito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vê-la restituída ao marido. Na constância do pecado é que se pode desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o pecado já não existia. D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou aterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim era; mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento de restauração. O próprio desterro não pôde tanto.

Vai senão quando, dois dias depois daquela visita, estando ambas ao portão da chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atrás do muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali a dois ou três minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo jeito da cabeça, um pouco à direita, os mesmos ombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos.

Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que ele chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe coisas amigas, que ela era a mais bonita moça do Rio, e a mais elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas senhoras da família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas palavras sentidas, como ninguém. Não falava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam, batia-lhe muito o coração, pode ser que ele lhe visse então, no rosto, a impressão que fazia.

D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.

- Já vês que teu marido tinha razão, dizia ela; foste imprudente, muito imprudente...

Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo acabado.

- Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?

- Titia...

- Tu ainda gostas dele!

- Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei... Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que a princípio um pouco fascinada... Mas que quer a senhora?

- Ele declarou-te alguma coisa?

- Declarou; foi no teatro, uma noite, no Teatro Lírico, à saída. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me até o carro, e foi à saída... duas palavras...

D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias palavras do namorado, mas imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar, com o quadro, um pouco das sensações dela; e pediu-lhas com interesse, astutamente.

- Não sei o que senti, acudiu a moça cuja comoção crescente ia desatando a língua; não me lembro dos primeiros cinco minutos. Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentava sorrindo, dava-me idéia de estar caçoando. Desci as escadas não sei como, entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha sono, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não sei que diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por pouco tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fora através dos vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as idéias baralhadas, confusas, uma revolução em mim...

- Mas, em casa?

- Em casa, despindo-me, é que pude refletir um pouco, mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer que estava alegre nem triste, lembro-me que pensava muito nele, e para arredá-lo prometi a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e estremecia. Cheguei a lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos frouxos, e sentia, não sei como diga, uma espécie de arrependimento, um medo de o ter ofendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me, titia; a senhora é que quer que lhe conte tudo.

A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma coisa de outro tempo, ao contato daquelas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio cerrados, na sonolência da recordação, - ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo, dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha a princípio lhe ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de saudade, de medo, de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de uma criatura em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade insaciável da tia. Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo, - interessante e violento.

Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se estar metida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe falou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhe poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao marido, de respeito público; foi tão eloqüente que Venancinha não pôde conter-se, e chorou.

Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a comoção. D. Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito, e apenas ficou só, foi encostar-se à janela, que dava para a chácara.

Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, conquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: "Paula, você lembra-se do outro tempo?" Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as coisas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo?

Lembrar, lembrava, mas aquela sensação de há pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, coisas truncadas. O coração empacara de novo, o sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contato moral da outra. E continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:

– Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!

Fonte:
Machado de Assis. Várias Histórias.

Thalita Moraes Guimarães (Análise do conto machadiano D. Paula)

O conto D. Paula, de Machado de Assis, escrito em 1884, foi publicado na obra Várias Histórias e percebe-se neste relato um tema que j fora desenvolvido em O Enfermeiro e outros contos: a desconexo entre o externo e o interno, pois se dizia e pregava o moralismo, no seu íntimo desejava, ou pelo menos deliciava-se com algo imoral.

Em D. Paula, Machado descreve o ambiente propício às abordagens amorosas “...o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes...”

Na obra em análise, o narrador faz uma focalização externa de Venancinha, com a intenção de mostrar ao leitor que algo estava acontecendo: “a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar”, mas não revela o porquê de tantas lágrimas da moça, fazendo assim uma paralipse que representa um recurso retórico em que a narrativa não salta, como na elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um lado.
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Dessa forma a paralipse causa um breve enigma, pois não revela o motivo de tantas lágrimas derramadas pela sobrinha quando D. Paula a encontra. Nesse instante o enunciador volta-se para o leitor instigando-o a desvendar o que realmente teria acontecido, “quando Venancinha atirou-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo”. Mas em seguida, o leitor recebe a informação de que quando a senhora envolveu a moça em um jogo de gestos carinhosos e de palavras doces e confortáveis, Venancinha confiou à tia tudo o que havia acontecido. Trata-se de uma briga que a moça teve com o marido porque este achava que ela cometera adultério.

Esta crença do marido é revelada sumariamente:

Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados.

O sumário aumenta a velocidade discursiva, distanciando o leitor dos fatos, pois não se sabe até então se era “birra” do marido ou algo semelhante.

D. Paula, agora envolvida na situação em que o casal encontrava-se, decide ajudá-los. A princípio ela vai ao escritório de Conrado para conversar e ver se há possibilidades, entre o casal, de reconstituir a paz conjugal. Quando a senhora está de partida, a sobrinha acrescenta-lhe que: “apesar de tudo” adorava-o, gerando aí uma ambiguidade, permitindo ao leitor pensar que ela realmente traiu o marido ou estava dissimulando para se mostrar arrependida de tal situação, diante da tia. Neste momento, o narrador instiga o enunciatário a refletir se realmente houve ou não adultério, criando assim uma postura depreciativa sobre a moça em relação ao seu caráter. Esta passagem pode ser identificada quando a jovem jura que “apesar de tudo, adorava o Conrado”.

Na verdade o que se nota é que o discurso toma um rumo, quando na verdade seu foco é outro. Ou seja, o sujeito da enunciação também é um dissimulador, pois focaliza o adultério de Venancinha sendo que a trama está em volta da figura de D. Paula. Porém, isso está latente na narrativa.

D. Paula segue o seu destino a caminho do escritório do rapaz, para que possa tentar promover a paz entre a moça e Conrado, “não digo desconfiada, mas curiosa”, esta focalização interna não é tão reveladora assim, pois a tia, a partir de então, passa a possuir dúvidas a respeito da traição da sobrinha e fica instigada em saber se houve, ou não o adultério.

Quando a senhora chegou ao escritório não precisou explicar o motivo de sua visita, porque o sobrinho adivinhara tudo e em seguida “confessou que fora excessivo em algumas cousas”. Por intermédio do narrador o leitor descobre que Conrado tinha certeza de que sua mulher o traía devido a pessoa de quem se tratava. Sendo assim, pode-se observar que o moço tinha certo conhecimento do caso, para afirmar com tanta firmeza sobre a situação. Ou ainda, pode ser que ele conhecesse o caráter do sujeito; levando em consideração também a leviandade de sua esposa, e chegou a esta conclusão de que eram namorados.

Após uns minutos de conversa, a senhora propõe ao moço que a jovem passasse alguns dias com ela, em sua casa, para a recuperação de caráter. E ainda deu-lhe conselhos de brandura e prudência e também alertou-o de que esse homem não merecia todo esse cuidado que estavam tomando.

Percebe-se então que nesta circunstância a senhora não tinha o conhecimento de quem se tratava, pois até neste ponto o enunciador não estava completamente voltado para D. Paula, e sim para Venancinha. Ou seja, o narrador prende a atenção do enunciatário que está concentrado na situação em que a moça se encontra, mas isso é até o momento em que a tia descobre de quem se tratava, pois, a partir daí o sujeito da enunciação volta-se para a senhora.

Na continuidade da narrativa o narrador conta que na hora da despedida, de D. Paula com Conrado, o nome do rapaz envolvido na separação temporária entre o casal, é pronunciado e de imediato “D. Paula empalideceu”. Diante desta reação mostrada através de uma focalização externa o leitor prossegue com um mistério em mãos. Afinal por que D. Paula ficou pálida? Que valor tem o nome do rapaz na vida dela? Neste momento do enunciado começa o enigma em torno da personagem.

Para reafirmar o grande significado que este nome representa para a senhora, o sujeito da enunciação associa o modo pelo qual ela retira-se do local, usando uma focalização externa: “com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia”. Em relação a este tipo focalização, pode-se dizer que ela é geradora de significados para o leitor, pois a personagem age na frente do enunciatário sem que ele tenha o conhecimento dos seus sentimentos ou pensamentos.

Na sequência do conto o narrador utiliza outra paralipse, mas desta vez omitindo os sentimentos da tia quanto ao Vasco Maria Portela, sendo este o nome revelado na despedida. Com isso gera outro enigma na diegese, só que agora em relação à senhora.

Então D. Paula após o choque que tomara, foi encontrar-se com a sobrinha para notificar-lhe a sentença final, a moça por sua vez aceitara tudo. Após este fato o narrador utiliza a elipse para omitir o que acontece nos dois dias que antecede a ida de Venancinha para a casa da tia. Finalmente a jovem segue para a casa da senhora, que com ajuda desta, tem a intenção de modificar-se e reconciliar-se com o marido.

Quando a tia e a sobrinha estão a caminho da casa, o enunciador usa outra estratégia para que o leitor possa imaginar o que teria acontecido nos dias anteriores.

Através do discurso modalizante da ordem do crer na expressão “pode ser também que algumas saudades”, o narrador sabe o que realmente se passa na cabeça da moça, mas não afirma e ainda não identifica de quem são estas possíveis saudades sentidas, se pelo marido ou pelo amante.

Na proporção em que o nome do Vasco foi revelado, D. Paula não teve sossego em seus pensamentos, pois a partir daí começou a escutar espécies de ecos, que a conduziam a seu passado, às suas aventuras do tempo de moça. Entende-se nesse momento, que a senhora também foi leviana, assim como a sobrinha é no presente; e que agora a tia é: “uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração”. Com isso D. Paula deparava-se com as lembranças do passado identificando-se com Venancinha na situação em que está vivendo.

Na sequência dos fatos o narrador revela ao leitor o que de fato aconteceu com D. Paula e Vasco Maria Portela, que consiste em uma aventura com sucessões de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, e que foram momentos vividos intensamente. Com a intenção de anunciar que foi apenas uma aventura, o sujeito da enunciação nos fornece, em seguida, a informação do fim do relacionamento entre a tia e Vasco, e revela também que a senhora mantinha este caso “à sombra do casamento, durante alguns anos”. Aqui no tempo da enunciação o narrador sugere que no passado, no tempo da diegese, a personagem, D. Paula, não era uma figura prestigiada devido à postura que apresentava, mas que no tempo presente constitui-se de um caráter sério, digno de considerações.

Desta forma o enunciador caracteriza duas personalidades distintas referentes à senhora, sendo uma de quando era jovem e apresentava atos de leviandade; e a outra, a de agora que adquiriu experiências da vida e compõe-se de uma postura séria. Considerando este aspecto podemos chegar a conclusão de que a tia na sua juventude, mantinha uma postura não recomendável em que descaracterizava os “bons costumes” da época e consequentemente, colocava em risco sua reputação. Por outro lado nota-se o oposto, porque D. Paula atribuiu outro caráter, em relação ao que tinha, fazendo assim com que o leitor tenha uma visão apreciativa sobre ela, no presente, com isso o enunciatário passa a depositar mais confiança na senhora em relação a recuperação de caráter de Venancinha.

Na proporção em que a sobrinha relatava os fatos para a tia, esta voltava, em seus pensamentos, para o tempo passado relembrando, ou até mesmo revivendo, as suas aventuras. Diante deste processo pode-se afirmar que a moça é quem levou a senhora a recuar-se para as emoções ocorridas.

Durante uma conversa com a sobrinha, a tia percebe a dissimulação da jovem quando lhe responde uma pergunta que diz respeito às saudades da Tijuca, e a moça para dar mais intensidade à resposta faz gestos que D. Paula acompanhou, observando cada detalhe com seus olhos sagazes. Os mesmos que se mostram na conversa com Conrado, reafirmando, portanto, que ela está sempre atenta ao que acontece ao seu redor.

Diante da dissimulação de Venancinha, a senhora chega a concluir que: ”eles amam-se”. Esta descoberta fez com que avivasse ainda mais suas lembranças. Apesar de lutar contra esses pensamentos, nada adiantou, pois o passado voltara de manso ou de assalto. Desta maneira o narrador faz uma analepse sumarizada, registrando alguns momentos vividos pela tia:

D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara da sobrinha como sendo a mais graciosa cousa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos.

Desde que a tia retornou ao tempo passado não pôde mais concentrar-se totalmente em sua missão para atingir seu objetivo, isso porque ficava dividida entre o presente e o passado. Contudo:

D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Na continuidade do discurso o narrador utiliza uma elipse que é caracterizada como “um segmento nulo de narrativa que corresponde a uma qualquer duração da história.”. “Nove dias depois”, Conrado fez a sua primeira visita à sua esposa e à tia. Durante essa visita ele manteve a mesma conduta de quando chegou até a sua saída; caracterizando-se em uma postura fria. Esse procedimento do marido resume-se em uma dissimulação para atingir os sentimentos de Venancinha, e assim aconteceu pois ela ficou sem reação ao vê-lo daquele jeito, que até temeu a perda do marido e a partir daí tornou o seu principal motivo de sua transformação, ou seja, quando viu o marido naquele estado, decidiu lutar pelo seu casamento.

Após dois dias do ocorrido, a jovem e a senhora vão para um passeio, como de costume, e viram em suas direções, um cavaleiro, em que Venancinha após fixar seus olhos nele, escondeu-se atrás de um muro enquanto D. Paula manteve-se em seu lugar observando-o. Com a reação da mocinha a tia pôde perceber de quem se tratava e que este relacionamento chegou a um grau perigoso, porque a reputação de sua sobrinha estava em risco.

Na mesma noite em que a jovem avistou o rapaz, a senhora com toda a sua experiência manipulou a sobrinha para lhe contar tudo o que aconteceu. O sujeito da enunciação faz neste instante um sumário caracterizando a história da moça, acelerando o tempo do discurso.

O sumário em questão mostra ao leitor o quanto a jovem se encantou com o sujeito, a ponto de comentar dele para o marido que ao escutar “franziu o sobrolho” e que “foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha”. Ou seja, a mulher falou com tanta graça sobre o rapaz, que despertou em Conrado uma certa desconfiança que antes não tinha.

Ainda na residência da tia, Venancinha continuava a revelar à D. Paula os fatos e a senhora escutava-os prestando atenção em cada detalhe pronunciado, fazendo assim com que voltasse a seu espírito jovem, criando, no entanto, mais confiança à moça. Nestas circunstâncias a sobrinha “achou ali uma confidente e amiga”. Na verdade o não julgamento pela tia era mais um ato egoísta do que humano, pois ela encontrou naquele momento em seu passado, mesmo que por alguns instantes. Para melhor exemplificar esta passagem o narrador compara a senhora “a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas”. É como se a senhora tentasse perdoar ela mesma.

Ao longo da confissão Venancinha contou à tia que gostou do rapaz, mas agora estava arrependida e assim foi contando-lhe mais coisas. À medida em que a sobrinha revelava os acontecimentos, D. Paula deliciava-se com as confissões retornando ao seu passado, e no final do discurso da jovem a senhora conclui que esta situação não passava de um prólogo (começo), interessante e violento. Enfim, a tia consegue colocar na cabeça da sobrinha a ideia do erro que quase cometera. Mas para a senhora esta história ainda se passava em sua mente fazendo-a viajar no tempo, isso pode ser notado quando ela “gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito”.

Em seguida o narrador faz uma alegoria que refere-se exatamente ao que se passou com D. Paula: “esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as cousas que viram”, que neste caso a senhora viveu a mesma situação em que a sobrinha vive atualmente. Porém D. Paula prefere dissimular ao invés de revelar à sobrinha que passou por experiência similar.

Voltando ao início do conto nota-se uma frase interessante: “Não era possível chegar mais a ponto”, que se repete no decorrer da história. No entanto com esta expressão pode-se observar que Venancinha e D. Paula encontram-se em um ponto em comum. Ou seja, ambas as personagens têm uma história semelhante, a diferença é apenas temporal, uma aconteceu no passado e a outra ocorre no presente.

Partindo da análise do conto referido, verifica-se que o adultério cometido pela personagem que protagoniza o conto foi mais extenso do que da moça, pois este foi apenas um começo e com a ajuda da senhora não foi prolongado.

Contudo, nota-se que apesar de D. Paula ter solucionado o caso de Venancinha, fica para ela a incômoda, inquietante e impossível de ser “resolvida” lembrança do passado.

Tendo em vista nosso interesse em compreender a construção ambígua da personagem D. Paula, percebemos no conto analisado que a perspectiva que prevalece para gerar efeito ambivalente ao comportamento da personagem, que nomeia o conto, é a focalização externa, permitindo assim a visualização do aspecto físico em que se encontra a personagem analisada, o que consequentemente, contribuiu para o estudo do seu comportamento.

Neste texto também foram usados os recursos anisocrônicos, como os sumários e as elipses, com a finalidade de economizar tempo e espaço, simplificando os fatos da diegese. A presença das anacronias e modalidades básicas acrescentam-se também no decorrer do conto em quantidade mínima.

Em relação aos estudos realizados em D. Paula, podemos encontrar uma chave de interpretação para o clássico Dom Casmurro e uma preocupação central da obra de Machado de Assis. Ora, se inicialmente (como em Dom Casmurro) pensamos ser a questão central do conto um dado de enredo (o adultério), logo percebemos o interesse real do escritor que se caracteriza-se em deslocar a atenção do leitor para o efeito que este dado provoca na vida interior da personagem. Ou seja, Machado de Assis direciona o conto, e paralelamente ao que acontece, há sempre o que parece estar acontecendo.

Fonte:
Créditos: Thalita Moraes Guimarães, Letras UEMG, in Passeiweb

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Nilto Maciel (A Fila)

Esbaforido, Luís se aproximou do fim da fila e se postou atrás de um homem. Ah! Se tivesse chegado antes! Mas o ônibus rodou devagar pelas ruas, repleto de passageiros. Meia hora atrás talvez encontrasse apenas vinte pessoas na fila. Tentou contar as cabeças: uma, duas, três... Homens e mulheres, cabelos negros, loiros e até brancos. Ora, o que faziam aquelas pessoas idosas numa fila para emprego? Melhor assim. Seriam eliminadas de pronto. A empresa não trocaria um jovem saudável e disposto a trabalhar dia e noite por um senhor grisalho, já sem forças, talvez doente, cheio de catarro, pernas bambas. Boa ideia para trocar com o homem à sua frente. Quem teria mais chance de ganhar a vaga: ele ou aqueles senhores de cabelos brancos? O homem virou a cabeça para trás: vaga de quê? Ora, do emprego de encarregado de distribuição de senhas. Não era isto que constava do anúncio no jornal? O homem não sabia de anúncio nenhum. E estava ali pensando tratar-se de quê? Luís olhou para trás. Mais de dez pessoas atrás dele. O mais próximo quis saber se a fila não andava. Queixou-se da demora do ônibus. Carros passavam diante da calçada. Luís coçava a orelha. Aquele barulho contínuo o deixava impaciente, nervoso. Nem sabia mais por que se chamava Luís. Às vezes pensava besteiras. As pessoas dentro dos automóveis olhavam para as filas como quem olha para as pernas das moças. O rapaz sorriu. Também se chamava Luís. Poderiam chamar aquilo de fila dos luíses. Eu sou o Luís I e você o Luís II. Quem seria o terceiro? E os outros também se chamavam Luís? E se fizessem a pergunta a cada um? Besteira! Luís II sorriu de novo. Carros passavam em disparada. Ao pé do meio-fio acumulavam-se pontas de cigarro, papéis rasgados e sujos, latas. Se o emprego fosse para gari? Luís I quis saber se o outro sabia distribuir senhas. A moça atrás de Luís II olhava atentamente para ele e para Luís I. Não havia tarefa mais fácil do que distribuir senhas, mas preferia não fazer nada. Como se chamava? Luzia da Silva. A mãe fizera promessa a Santa Luzia: se ela, a menina, nunca ficasse cega, a mãe jamais olharia para o Sol. Ela pagou a promessa? Não, e já morreu, a coitadinha. E você sabe distribuir senhas? Não sabia e não queria saber. Quando lhe entregassem a senha, entraria correndo no teatro. Havia dias só pensava naquela peça. Quando chegava a vez dela, as portas se fechavam. Sempre assim. Mas hoje contava com a sorte. O homem à frente de Luís I se irritou. Parassem com tanta conversa besta. E saiu da fila, a gesticular. Pareciam doidos. Os luíses e a moça riram. Fosse então embora, deixasse a vaga para quem queria trabalhar. Fosse embora, deixasse a vaga para quem gostava de teatro. Luís II esfregou os olhos com as mãos. Por que a fila não andava? Ou o velório já tinha se encerrado? Quem morreu? O governador. Luís I arregalou os olhos e se retirou. Ia averiguar direito aquilo. Atrás de Luiza um rapaz falou em exposição de fotografias. Os jornais falavam em fotos de guerra. Luís se dirigiu a outro. Queria jogar numa loteria. Ou aquela não era a fila da loteria? Luís II e Luiza conversavam animadamente. Todos mentiam. Ou inventavam histórias para engabelar os idiotas. Riram de novo. Outros também riram. Luís I voltou para perto de Luís II. Sentia fome. Guardassem o seu lugar. Em quinze minutos estaria de volta. A moça falava de teatro e parecia num palco: To be or not to be, that is the question. Os carros passavam em disparada pela rua. A fila andava lentamente. Homens e mulheres pediam licença e furavam a fila: precisavam entrar na loja cuja porta não conseguiam ver. Luiza repetia Hamlet: Vamos, vamos, sentai-vos: não vos movereis, nem saireis daqui, sem que eu vos ponha aos olhos um espelho onde vejais o fundo de vossa alma. Houve vaias e aplausos. Luís I apareceu no meio da rua, entre os carros. Procurava Luís II e Luiza. Andava para lá e para cá, a fazer perguntas irrespondíveis. Onde se achava a moça do teatro? Riam dele. Correu em busca do início da fila. À porta um guarda impedia a entrada de quem não fosse chamado. Por favor, é preciso preencher alguma ficha? O guarda se irritou: procurasse o final da fila. Luís se exasperou e correu pela calçada. Chegou ao fim da fila. Quem viu Luís II e Luíza? Riam, respondiam com gestos, chamavam-no de doido. Voltou devagar, a olhar demoradamente para os rostos. Fila para comprar ingressos para o jogo de futebol. Andou, andou, andou, voltou ao guarda, recebeu ameaças. Fila para marcar consulta médica. Coçava a cabeça, puxava as orelhas, amassava o nariz. Ia ser entregador de senhas. Luiza surgiu do outro lado da calçada. Gritou por ela. Os carros passavam entre ele e ela. Luís quis atravessar a rua. Gritou por Luiza. Depois não a viu mais. Voltou-se de novo para a fila. E se fosse para o fim?

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 7


Marcelo Spalding (Figuras de Linguagem e a Escrita Criativa)

Figuras de linguagem: algo fundamental para quem quer escrever um texto com literariedade (o que não se aplica apenas para escritores, pois de um texto jornalístico, publicitário ou acadêmico também se requer alguma literariedade).

Figuras de linguagem, como se sabe, são estratégias/recursos que o escritor pode aplicar no texto para conseguir um efeito determinado na interpretação do leitor. São formas de expressão mais localizadas em comparação às funções da linguagem, que são características globais do texto. Reconhecer figuras de linguagem, ainda que sem saber os seus nomes técnicos, ajuda a compreender a linguagem literária e o que torna um texto mais criativo.

A grosso modo, podemos dividir essas figuras em quatro grandes grupos, as de construção, de som, de palavra e de pensamento. A lista das figuras é inesgotável, mas compartilhamos alguns dos mais importantes com nosso leitor.

    Figuras de construção:

Paralelismo sintático:
encadeamento de funções sintáticas idênticas ou encadeamento de orações de valores sintáticos iguais. Exemplo: Funcionários cogitam nova greve e isolamento do governador. Observe que a construção "Funcionários cogitam nova greve e isolar o governador" está errada devido à falta de paralelismo.

Elipse:
consiste na omissão de um termo facilmente identificável pelo contexto.
Exemplo: "Na sala, apenas quatro ou cinco convidados." (omissão de havia)

    Zeugma:
consiste na elipse de um termo que já apareceu antes. Exemplo: "Ele prefere cinema; eu, teatro." (omissão de prefiro).

    Anáfora:
consiste na repetição de uma mesma palavra no início de versos ou frases. Exemplo: "Amor é um fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer". Este poema de Luís de Camões tem quase 500 anos e até hoje é considerado um dos melhores poemas de amor da história da literatura de língua portuguesa.

  Polissíndeto:
consiste na repetição de conectivos ligando termos da oração ou elementos do período. Exemplo: "E sob as ondas ritmadas / e sob as nuvens e os ventos / e sob as pontes e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito (...)"

    Inversão:
consiste na mudança da ordem natural dos termos na frase. Exemplo: "De tudo ficou um pouco. Do meu medo. Do teu asco."

    Silepse:

consiste na concordância não com o que vem expresso, mas com o que se subentende, com o que está implícito. A silepse pode ser: de gênero: Vossa Excelência está preocupado; de número: Os Lusíadas glorificou nossa literatura; de pessoa: O que me parece inexplicável é que os brasileiros persistamos em comer essa coisinha verde e mole que se derrete na boca.

    Anacoluto:
consiste em deixar um termo solto na frase. Normalmente, isso ocorre porque se inicia uma determinada construção sintática e depois se opta por outra. Exemplo: A vida, não sei realmente se ela vale alguma coisa.

    Pleonasmo:
consiste numa redundância cuja finalidade é reforçar a mensagem. Exemplo: "E rir meu riso e derramar meu pranto.".

    Figuras de som:

    Aliteração:
consiste na repetição ordenada de mesmos sons consonantais.
    Exemplo: "Esperando, parada, pregada na pedra do porto."

    Assonância:
consiste na repetição ordenada de sons vocálicos idênticos.
    Exemplo:
    “Sou um mulato nato no sentido lato
    mulato democrático do litoral."

    Paronomásia:
consiste na aproximação de palavras de sons parecidos, mas de significados distintos. Exemplo: "Eu que passo, penso e peço."

    Figuras de palavra:

    Metáfora:
empregar um termo com significado diferente do habitual, com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido figurado. A metáfora implica, pois, uma comparação em que o conectivo comparativo fica subentendido. Exemplo: "Meu pensamento é um rio subterrâneo."

    Metonímia:
como a metáfora, uma palavra que usualmente significa uma coisa passa a ser usada com outro significado. A metonímia explora sempre alguma relação lógica entre os termos. Exemplo: Não tinha teto em que se abrigasse. (teto em lugar de casa)

    Catacrese:
ocorre quando, por falta de um termo específico para designar um conceito, torna-se outro por empréstimo. Exemplo: O pé da mesa estava quebrado.

    Antonomásia ou perífrase:
consiste em substituir um nome por uma expressão que o identifique: Exemplo: ...os quatro rapazes de Liverpool (em vez de os Beatles)

    Sinestesia:
trata-se de mesclar, numa expressão, sensações percebidas por diferentes órgãos do sentido. Exemplo: A luz crua da madrugada invadia meu quarto.

    Figuras de pensamento:

    Antítese:
consiste na aproximação de termos contrários, de palavras que se opõem pelo sentido. Exemplo: "Os jardins têm vida e morte."

    Ironia:
é a figura que apresenta um termo em sentido oposto ao usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico ou humorístico. Exemplo: "A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças."

    Eufemismo:
consiste em substituir uma expressão por outra menos brusca; em síntese, procura-se suavizar alguma afirmação desagradável. Exemplo: Ele enriqueceu por meios ilícitos. (em vez de ele roubou)

    Hipérbole:
trata-se de exagerar uma ideia com finalidade enfática. Exemplo: Estou morrendo de sede. (em vez de estou com muita sede). A música "Exagerado", do Cazuza, é quase um hino da hipérbole.

    Prosopopéia ou personificação:
consiste em atribuir a seres inanimados predicativos que são próprios de seres animados. Exemplo: O jardim olhava as crianças sem dizer nada.

    Gradação ou clímax:
é a apresentação de ideias em progressão ascendente (clímax) ou descendente (anticlímax). Exemplo: "Um coração chagado de desejos / Latejando, batendo, restrugindo.”

    Apóstrofe:
consiste na interpelação enfática a alguém (ou alguma coisa personificada). Exemplo: "Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus!"

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4049/figuras-de-linguagem-e-a-escrita-criativa

I Troféu Falando de Amor (Categoria: Poesias)

LÚCIA PÉRISSÉ

Só ilusão  


Te vejo em meu sono
  te sinto no ar;
  teu rosto tão meigo em meu peito...
  é lindo te amar...

  Te quero tão perto,
  te sonho tão doce,
  tuas mãos em meus dedos,
  te toco com amor...

  Mas...
  não tenho teu rosto,
  não tenho teu corpo,
  não tenho sequer um só pensamento teu.
  Te lembras de tudo
  mas nunca de mim...

  Te vejo no sol
  e o sol se escondeu...
  te vejo na lua
  e é noite de chuva,
  nas nuvens, no céu
  na azul melodia
  que embala meu sonho
  que é pura magia...
  que é pura ilusão...
  que é apenas
  sonhar...

LUCIANE VIANA BRAGA DE CARVALHO

Ainda hoje



 Ainda hoje
Houve um momento,
em que tudo parecia singelo

Todo ato ou gesto seu
me deixava em devaneio
Meu pensamento era só seu
Pertencia-lhe por inteiro

Você sorria e me agradava
Ao mesmo tempo me deixava
Pairando em expectativas

Dias felizes. Noites tão tristes
Você foi embora... Sem mim
Procurei um motivo. Árduo desatino
Minha sina começava, enfim

Partida em duas em suas mãos
Vi minha alma escorrer pelo chão
Em forma de lágrimas

Eu chorei...Indubitavelmente... Chorei
Nada na vida havia me preparado para aquele momento
Uma parte de mim foi com você...
Eterno tormento

As lágrimas, enfim, secaram
Venci a mim mesma, superei essa etapa
Tudo que começa tende a um fim

Jurei esquecer todos aqueles dias
A alegria do primeiro reconhecimento
O tormento da expectativa
A dor da despedida

E falhei...

Falhei miseravelmente
Ainda hoje, amo você

MARÍA CRISTINA DRESE

Vestimenta

 

Teu corpo e o meu
se fundem
crisol
estátua
metade cobre, metade prata

fogaréu inapagável
cárcere  de sonhos

prata-cobre
derretida
derramada
lava acesa que endurece

seremos caminhos
rocha
prata
cobre
eternidade.

FERNANDO CATELAN

Amor maior


Amor maior, qual se em pauta difuso,
na música derramas teu ardil, gemido
Se o pouco em mim havido ora eu uso
já isso ido não me faz de culpa remido!

Amor maior, dum algo em ti selenita,
como se o próprio São Jorge detiveste
Vê, se nos era certa essa tua saga finita,
agora aberto o teu mundo, o teu Leste!

Amor maior, ‘inda careço desses lábios
beijos que deem à lida o sabor, feitiço
que misturem aos teus vaticínios sábios
o quanto de crepitante venho, lhes atiço!

Amor maior, se bem entendes pecado
um tal ardor puxado dessa comunhão,
tenho pântanos d’alma tanto vadeado
a ver como seres quais tu e eu se dão!

Amor maior, muito faz que te conheço,
quando, a meus pés, tu ’inda a criança,
que se grande nasceste em teu começo
jamais deste com minh’alma algo rança!

Amor maior, me sendo tu o pleno gozo
te busco onde habitam os nossos cernes
Estás no âmago dum alguém estrepitoso,
conquanto em meu seio, vê, hibernes!

Amor maior, se me avultas tu escudeiro,
que traduzir de algo em céu esperançoso?
Me és amado amor maior, e por inteiro,
face a amores menores gigante colosso!

Fonte:
http://www.reinodosconcursos.com.br

Machado de Assis (Elogio da Vaidade)

Logo que a Modéstia acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse: I Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais pêca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste.

Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mais na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.

Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.

II Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!) ; mas, em geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo.

Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior? III Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve.

Ouve-me, ouve-se; eis tudo. Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar a esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou.

— Não me fales nesse maroto.

— Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.

— Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero? — Confessa que não conhece poeta maior.

— Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez Poeta enorme, disse ele? — O maior de todos.

— Não creio. O maior? — O maior.

— Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.

Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.

Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se o amor de mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.

IV Vede estoutro que palestra com um homem público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o vêem, se o admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença, quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo: — São íntimos; o homem público é familiar deste cidadão; talvez parente. Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo.

Agora, contemplai aquele que tão apressadamente oferece o braço a uma senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o braço do cavalheiro, ele cumprira o seu dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros olhos. Por que não? Ela é bonita, graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril. Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se? Não vos iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma intimidade elegante! Não deveríeis crer que me é vedada a sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela grave dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela sente-se melhor, mais excelsa, mais sublime do que esse outro ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que não há de ser assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que voltear de cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe as rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste; colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.

V Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los, arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar os meneios da outra.

Oh! a outra! Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a charrua do seu Cincinato, ao pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.

Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas! Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal, vidro de aumento.

Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, a fraternidade.

Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento, o vinculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem não é nada. E reparai que nenhum grande vício se encobriu ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Órgon, dá um lenço a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim, se ela ali está de olhos baixos, rosto caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque ninguém lhe vê o coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase nada anuvia, que outro quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente o sol e as estrelas? VI O quê? Credes que não é assim? Querem ver que perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Tiradentes em Trovas


ALMIRA GUARACY REBÊLO

Herói de sonhos ardentes,
de liberdade e de glória,
o nome de TIRADENTES
ficou gravado na História.
----
ARLINDO TADEU HAGEN

TIRADENTES, tua glória
com teu corpo não morreu
e, em torno de tua história,
nossa história se escreveu.
----
CAMPOS SALES

Seus carrascos inclementes
não suspeitaram, suponho,
que matando TIRADENTES,
davam mais vida ao seu sonho.
----
CAROLINA RAMOS

No rol dos inconfidentes,
fiel à sua verdade,
deu a vida TIRADENTES
por amor à Liberdade!
----
FLORESTAN JAPIASSÚ MAIA

Ainda forte na lembrança,
como a luz na escuridão,
TIRADENTES é a esperança
que ilumina o coração!
----
FRANCISCO ASSIS MENEZES

TIRADENTES, de alma pura,
morre, crendo na verdade::
"Nem mesmo a força segura
o ideal de liberdade!
----
GENY NAGEN ASSAD SABBAGH

Tendo ideal, confiança,
TIRADENTES em verdade
foi um mártir de esperança,
com sonhos de liberdade...
----
HELOÍSA ZANCONATO PINTO

TIRADENTES foi o laço
de uma corda, e teu fanal...
E o corpo, em cada pedaço,
tornou-se um nome imortal!
----
JOAMIR MEDEIROS

Vencendo a força ultrajante
e a vileza da traição,
foi TIRADENTES gigante
doando a vida à Nação!
----
MARCÍLIO NASCIMENTO FERNANDES

O sangue de TIRADENTES
não foi derramado em vão...
Fertilizou as sementes
da nossa libertação!
----
MARIA DA GRAÇA O. SIKORSKI

Pensaste sonhos valentes,
sonhaste dias de glória,
serás sempre, TIRADENTES,
o exemplo de nossa História.
----
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO

Que o exemplo de TIRADENTES,
ao morrer por liberdade,
germine eternas sementes
de civismo... e lealdade!
----
MARIA REGINATO LABRUCIANO

Quando subiu ao patíbulo,
TIRADENTES teve a glória
de atravessar o vestíbulo
do augusto Templo da História.
----
MARLÊ BEATRIZ J. DE ARAÚJO

TIRADENTES, tua imagem
atesta a notoriedade
de Herói de extrema coragem,
de garra e brasilidade!
----
NEOLY DE OLIVEIRA VARGAS
Herói dos Inconfidentes,
não conheceste a vitória,
mas teu nome, TIRADENTES,
ficou gravado na história.
----
NEWTON MEYER AZEVEDO

Lampeja em cada soldado,
que o Brasil defende agora,
um brilho do gesto ousado
do TIRADENTES de outrora!
----
OSCAR VIEIRA SOARES

No patíbulo medonho,
- fronte erguida, peito aberto -
TIRADENTES vive o sonho
de ver seu povo liberto!
----
OSWALDO EVANDRO C. MARTINS

Prosseguindo a trajetória
que leva aos Inconfidentes,
abrem-se as portas da glória
para o mártir TIRADENTES.
----
REBECCA LAVRADOR S. CARVALHO

TIRADENTES - monumento
do herói que não vacilou
e até seu último alento
ao Brasil glorificou!
----
SANTOS TEODÓSIO

Que estejam sempre presentes
na memória nacional,
os feitos de TIRADENTES,
o grande herói imortal!
----
SÉRGIO BERNARDO

TIRADENTES guarda a imagem
de uma verdade cabal:
- Jamais se enforca a coragem
nem se esquarteja o ideal!
----
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

TIRADENTES não duvida
que a sua morte, em verdade,
apaga a chama da vida
e acende a da liberdade!
----
THEREZINHA ZANONI FERREIRA

O sangue que TIRADENTES
derramou pela cidade,
foi irrigando as sementes
de justiça e liberdade.

Fonte:
I Concurso de Trovas do Clube Militar do Rio de Janeiro/RJ, 1996.

Wagner Marques Lopes/MG (Poema histórico: As gerais minas de uma estrada real)

Catas Altas – 
um das localidades da Estrada Real
(Instituto Estrada Real) 
foto Luiz Mascarenhas

Vem lá dos campos de Piratininga
um audaz bandeirante, intemerato:
Fernão Dias Paes Leme, um sonhador!...
Logo ao sul, o primeiro arraial vinga:
Ibituruna – o marco fundador.

Para além do Rio Grande, Paes avança
para alcançar ao norte o Sumidouro...
Esmeraldas!...  O sonho que trazia,
guardando para si toda a esperança
de se apossar da verde pedraria...

Eis a Vila Real de Nossa Senhora
da Conceição de Sabarabussu!...
Na Roça Grande de suaves colinas
a lei é Borba Gato, àquela hora
do nascer social de toda a Minas!...

Em solos de ouro, sob os mesmos céus,
gentes de muitas terras e etnias:
aportam os reinóis, com altas vistas...
São índios, angolanos e guineus...
Baianos, cariocas e paulistas...

Eis Ivituruí – o “Serro Frio” –
na língua dos indígenas locais!...
Lavras do Serro Frio!... Um sino em dobre!...
Há timbres de ouro nas fainas a fio!...
Eis a Vila do Príncipe, tão nobre!...

As bandeiras na Serra do Lenheiro:
lado norte – há ouro, e mais... Ao sul.
Avançam sobre o chão de Tomé Portes
Del Rey – quem por ali chegou primeiro...
Arraial Novo do Rio das Mortes!...

Serro, Diamantina, Pitangui...
Caminhos e picadas a ligá-los -
os núcleos do ouro e dos diamantes!...
Caminho do Sabarabussu ali...
Passagem de Caeté mais adiante.

Caminho Novo!... Ouro em nova estrada -
distante de São Paulo e Paraty.
Em tempo bem mais curto vai-se ao Rio.
Abrevia-se em muito as cavalgadas.
Mais depressa o metal chega aos navios!...

Fulguram Vila Rica, Mariana...
E a Barbacena de sustentação!...
Na Estrada Real, ouro a se escoar...
Lisboa... Londres... Muito se engalana -
“barões assinalados além-mar”!...

A Estrada Real que viu transitar
para o desterro nossos insurgentes,
agora, dá caminho à Humanidade,
que busca conhecer cada lugar
(que o ouro perdeu)... Não a liberdade!...

Fonte:
O Autor