terça-feira, 14 de junho de 2016

Sérgio Alves Peixoto (São Francisco de Assis e a Poesia Brasileira) Parte 2


A poesia brasileira “erudita” também acolheu São Francisco. Se começarmos pelo Barroco, quando a literatura brasileira passa a existir como tal, vemos que, por exemplo, Botelho de
Oliveira a ele dedicou um soneto, seu livro Lira sacra . Um soneto blasfemo, como gostavam os barrocos, já que Botelho vê, no sofrimento do santo, sofrimento maior que o do próprio Cristo:

A São Francisco 

Soneto XV 

Excelso patriarca que ordenastes 
Melhor arca no mundo em graças certas 
Se esta foi ordenada em três cobertas 
A vossa com três ordens fabricastes. 

Como a paixão de Cristo tanto amastes 
Vos deu no corpo as chagas descobertas 
E estando vivas nele, estando abertas, 
No mesmo Cristo em Cruz vos transformastes. 

Tivestes melhor Cruz que Cristo amado 
Nesta impressão das chagas, porque nisto 
A Cristo pareceis avantajado. 

Visto pois o favor, o empenho visto, 
Cristo em um lenho foi crucificado, 
Francisco foi crucificado em Cristo. 

De Humberto de Campos, poeta parnasiano hoje totalmente esquecido, selecionamos a passagem em que São Francisco fala às aves, excerto do longo poema sobre o qual falamos acima. Neste trecho, São Francisco “passa um sermão” nas aves, que, parece, não dão valor à felicidade que têm, principalmente quando se assiste a tanto sofrimento humano:

O apóstolo das aves 

No cimo do Subásio, ante a áspera caverna, 
Em lugar que somente o sol visita e banha, 
São Francisco de Assis sonha a vida ampla e eterna 
Falando ao céu azul e às cousas da montanha.

Ante a morte do Sol fecha as asas o Dia. 
O Vale, em derredor, é um turíbulo que arde; 
Sobem, leves, da terra, entre a diurna agonia, 
A alva bruma da fonte e os suspiros da Tarde. 

São Francisco, entretanto, a loura barba ao vento, 
Olhar vago, a beber o fogo o horizonte, 
Mandando a asas e céus a voz e o pensamento, 
Continua a pregar aos pássaros do monte. 

Para ouvi-lo falar, tudo em roda se aquieta; 
O vento, ainda a fugir, atenta o ouvido, e escuta. 
A ave pára; a flor cisma; e aos seus surtos de poeta, 
Trepida o coração da própria pedra bruta. 

E ele fala, a voz doce: “Asas, irmãs desta alma, 
Aves que me escutais neste alto de montanha, 
Sede boas, cantai e amai, na vida calma 
A árvore que vos dá fruto e a áurea luz que vos banha. 

Sede humildes, e amai; a árvore anosa e o ramo 
Do arbusto fraco, amai; amai a terra, cheia 
De doçura e de paz; e amai, como eu vos amo, 
A água que Deus dá à fonte e o grão que Deus semeia. 

E amai-vos. A ninguém, Deus, o senhor do Espaço, 
O criador do que hoje há nas águas e arvoredos, 
Como a vós, dando a fronde, ergue um lar com o seu braço 
E o alimento vem dar nas pontas dos seus dedos. 

Olhai o homem rebelde, olhai o tigre, a fera 
Sanguinária; acordai na alta noite tristonha, 
E escutai o subir da queixa humana e austera, 
As palavras de Dor do homem que vela ou sonha. 

Escutai: tremereis ante o clamor que expande 
A angústia humana; e haveis de abençoar a humildade, 
Vendo, enfim, como é bela, alta, límpida, grande, 
Junto à mágoa dos mais, vossa felicidade.

Por que os homens não são como vós sois? A gruta 
Não seria, talvez, lar mais doce e risonho 
Que o castelo e o palácio, onde morrem na luta 
Que destrói todo Amor, que extingue todo sonho? 

A mão sábia que abriu este velário pela 
Altura, e a árvore pôs sobre o solo atro e bruto, 
Se a terra tinha luz, por que pôs no alto a estrela? 
E se o sangue é melhor, por que a bênção do fruto? 

Não sereis, porventura, aves do espaço, amando 
E cantando pelo ar, mais que os homens, felizes? 
Pois, se tínhamos nós de viver batalhando, 
Por que o ramo dá sombra e o tronco tem raízes? 

O homem morre faminto, e vós, no entanto, vede: 
Cantando a Sua glória e exaltando o Seu nome, 
Já vistes um pardal a queixar-se de sede 
Ou um frágil rouxinol expirando de fome? 

Doces aves do céu, amai, portanto, a Vida, 
Louvai, portanto, a Deus, que vos dá, neste monte, 
Grande e anônimo, a abrir a ampla mão comovida, 
A luz do sol, o grão da terra, a água da fonte!...” 

E, assim, transfigurado, a loura barba ao vento, 
São Francisco, a surgir da luz que o envolve e o banha, 
Mandando a asas e céus a voz e o pensamento, 
Continua a pregar às cousas da Montanha...

O momento simbolista no Brasil, nos deu, por exemplo, dois poemas “franciscanos”. O primeiro deles, um soneto de Durval de Moraes, tematiza os estigmas no Monte Alverne:

São Francisco 

Mãos e pés a sangrar; o flanco, aberto; o gosto 
Do fel no coração, e na alma a solitude... 
À bruta bofetada, impassível o rosto! 
O espírito sereno, ante o insulto mais rude! 

O escarro, a negação, o abandono, o desgosto: 
Dá-me tudo, Senhor, para que se transmude, 
Na minha alma de vil, a amarugem do mosto 
Fervente do Pecado, em vinho da Virtude!... 

São Francisco, chorando, em êxtase exclama. 
Desce, para colher-lhe as pérolas do pranto, 
Vibrante Serafim de seis asas de chama! 

Jardineiro do Amor, que abre em flores as fragas, 
Jesus vinha plantar pelo corpo do Santo 
O celeste rosal das Suas Cinco Chagas!

O segundo, poema à la Rimbaud de Pethion de Vilar, intitulado “Poema das Vogais”, insere o sofrimento de São Francisco quando vai “colorir” a vogal U: 

U – lúgubres clarões agônicos de enxofre; 
Cor do Mistério; cor das paixões sem consolo; 
Soluço há muito preso, estourando de chofre; 
Último beijo, olhar vesgo e triste de goulo. 

Olheiras de Saudade; olheiras de Ciúme; 
Chagas místicas de S. Francisco de Assis; 
Clangores d’órgão que poeta algum resume; 
Desilusões de amor que nenhum verso diz.

continua...

Fonte:
Revista do Centro de Estudos Portugueses. v. 29, n. 42. Belo Horizonte/MG: UFMG, jul./dez. 2009.

domingo, 12 de junho de 2016

Sérgio Alves Peixoto (São Francisco de Assis e a Poesia Brasileira) Parte 1


Fernando Sabino nem se lembrava. Mas em 1932, 
com 7 anos de idade, ele fez um poema dedicado a 
São Francisco de Assis. No texto, descoberto por 
um amigo mineiro, dizia que queria ficar amigo de 
verdade do santo. Tão íntimo que passaria a chamar 
São Francisco de “Chiquinho” e o santo trataria Sabino 
de “Nandinho”.

Conhecido, também, como São Francisco das Chagas e São Francisco Seráfico, São Francisco de Assis é um dos santos católicos mais populares da cultura brasileira. Sendo assim, não é de se estranhar que poetas escrevessem sobre ele ou, até mesmo, com ele se identificassem, já que o Santo também, diz mais a lenda do que a verdade histórica, foi poeta. 

Na pesquisa que fizemos, encontramos duas biografias do santo: uma, em prosa, e dedicada à juventude, do alagoano Jorge de Lima, escritor do nosso modernismo; outra do mineiro Augusto de Lima, em forma de um longo poema.  Os trovadores brasileiros o elegeram como patrono e, na Literatura de Cordel, sua pobreza e sofrimento são temas recorrentes do imaginário do povo nordestino, como atestam a romaria e os festejos de Canindé, no Ceará.

Do trovadorismo, selecionamos a seguinte “interpretação” de autor desconhecido da famosa “Oração de São Francisco”:

1-Faze-me agente, Senhor, 
De vossa radiosa Paz! 
Permiti que eu leve Amor, 
Onde o ódio esteja a mais... 

2-Por onde estiver a Ofensa, 
Que eu leve sempre o Perdão... 
Onde houver Discórdia, intensa, 
Que eu sempre faça a União. 

3-Onde a dúvida existir 
Que eu possa levar a Fé, 
E onde o erro persistir, 
Toda a Verdade da Sé. 

4-Ó Mestre-Amor singular, 
Concedei seja meu fado, 
Consolo a todos levar, 
Mais do que ser consolado. 

5-E que eu possa Compreender, 
Mais do que ser compreendido. 
Possa AMAR, com todo o Ser, 
Muito mais que ser Querido. 

6-Pois, dando é que se recebe, 
Ao irmão necessitado, 
Perdoando é que se percebe 
Que também se é perdoado. 

7-Dai-me Senhor, a Esperança, 
Pela maneira mais terna, 
Pois morrendo é que se alcança 
A glória da Vida eterna

Quanto à Literatura de Cordel, descobrimos o seguinte texto de Wellington Vicente: 

Giovanni Bernardone 
Foi jovem muito feliz 
E enquanto adolescente 
Fez da vida o que bem quis, 
Por “Francesco” apelidado, 
Depois, por Deus transformado 
Em Francisco de Assis. 

Em mil, cento e oitenta e dois 
Nasceu este italiano, 
Pietro e Picca Bernardone 
Foram pais deste ente humano, 
Que numa lição de amor, 
Rejeitou ser mercador 
Para seguir outro plano. 

Como era moda na época, 
Desejou ser cavaleiro, 
O pai doou-lhe armadura 
E um cavalo ligeiro, 
Ele daí animou-se, 
Neste instante transformou-se 
Num combativo guerreiro. 

Combatendo com Perugia 
Assis não via os perigos 
E mandava seus habitantes 
Enfrentar os inimigos, 
Nesses confrontos guerreiros, 
Fizeram prisioneiros 
Francisco e alguns amigos.

Assim Francisco passou 
Quase um ano na prisão, 
Mas seu pai, homem abastado, 
Decidiu entrar em ação: 
Gastou enorme quantia 
Mas livrou da enxovia 
Seu filho do coração. 

Numa noite em que estava 
Com seus amigos na rua 
Fazendo uma serenata 
Sob a beleza da lua, 
Sentiu que algo o tocava 
E bem sutil penetrava 
No fundo da alma sua. 

A partir deste episódio 
Nasceu Francisco de Assis 
O pai de toda a pobreza, 
Protetor do infeliz, 
O amante dos animais, 
Inspira a quem sofre mais 
A uma vida feliz. 

Oitenta anos após 
Cabral descobrir a gente, 
A Ordem dos Franciscanos 
Radicou-se em São Vicente, 
Com um pensamento nobre: 
Transformar o homem pobre 
Em cristão bem diferente. 

Dali pra outros Estados 
A ordem se espalhou, 
Inspirada no seu Mestre 
E no que ele pregou: 
A justiça, dignidade, 
Compreensão, caridade, 
Pelas quais tanto lutou.

Os devotos de São Francisco 
Quando se acham doentes, 
Imploram pelos milagres 
Do Santo dos Penitentes, 
Ele, com sua bondade, 
Retira a enfermidade 
Do corpo desses viventes. 

Inspirados em Francisco 
E nas leis da Santa Sé, 
Transformaram as romarias 
Numa Profissão de Fé, 
Onde a maior louvação 
Percebe-se na procissão 
Existente em Canindé. 

Por são Francisco das Chagas 
Este Santo é conhecido, 
Pois Canindé lembra bem 
O mal por ele sofrido, 
Quem se achar adoentado, 
Pedindo será curado 
Por este Santo querido. 

Em Porto Velho, Rondônia, 
Este Santo é venerado: 
Dia 4 de outubro 
É esse dia marcado, 
Onde o povo em cada canto 
Reza, agradecendo ao Santo, 
Mais um milagre alcançado. 

Mas ao falar em Francisco 
Sinto-me na obrigação 
De relembrar seus discípulos:
 Bernardo, Pedro e Leão, 
Filipe, Egídio e Rufino, 
Clara, no mesmo destino 
De Masseo, na pregação.

Seja de Assis ou das Chagas 
É o Santo mais popular, 
Quem for devoto que reze 
Pra nosso mundo mudar: 
Mais justiça social 
E a consciência geral 
Do perigo nuclear. 

Para a paz reinar nas ruas 
E pra chover no sertão, 
Pra melhorar da coluna 
E curar-se do coração; 
Quem pediu foi atendido, 
É isto que tem trazido 
Milhares à procissão. 

Como o provo brasileiro 
Tem fé e convicção, 
Roga ao Santo que auxilie 
Nas horas de aflição, 
Porto Velho ou Canindé: 
Irmanados pela fé, 
Unidos na devoção. 

Porto Velho – RO, outubro de 1996. 

continua...

Fonte:
Revista do Centro de Estudos Portugueses. v. 29, n. 42. Belo Horizonte/MG: UFMG, jul./dez. 2009.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 5a. Parte, final

www.veja.abril.com.br

Já em A serpente, encontramos apenas elementos trágicos, tanto no sentido acadêmico quando no senso comum. Aqui é um exemplo prático de que o segundo constitui o primeiro, pois a peça é repleta de situações trágicas, o que vai confluir na fundamentação de uma tragédia. O clima é de tensão do início ao fim da peça, causando até um certo desconforto e mal estar em quem a lê. Já de início, Décio e Lígia discutem, enquanto Décio arruma as malas para ir embora:

(É a separação. Décio está fechando a mala. Fecha, levanta-se e vira-se para Lígia, a mulher, que olha com maligna curiosidade.)
DÉCIO – Pronto.
LÍGIA – Você não vai falar com papai?
DÉCIO – Pra que falar com teu pai? Não falei com a principal interessada, que é você? Perde as ilusões sobre teu pai. Teu pai é uma múmia, com todos os achaques das múmias.
LÍGIA – Então por que você não desaparece? Pode deixar que eu mesma falo. Como é suja a nossa conversa.
DÉCIO – Não me provoque, Lígia!
LÍGIA – Acho gozadíssima sua insolência. Não se esqueça que nós estamos casados há um ano e que você.
DÉCIO – Para!
LÍGIA – Me procurou só três vezes. Ou não é?
DÉCIO – Continua e espera o resto.
LÍGIA – Três vezes você tentou o ato, o famoso ato. Sem conseguir, ou minto?
(Décio avança para a mulher. Segura Lígia pelo pulso.) (Idem, ibidem:57)

Esse é o clima no qual transcorrerá toda a ação da peça, com brigas, discussões. Como toda a peça é composta assim, logo a sua estrutura é também de uma tragédia. Dialeticamente, ela é composta pela esfera do “inter”, pois toda a ação é decorrente das vontades das personagens: tanto de Lígia quanto de Guida e de Paulo. Inclusive o fim trágico, quando Paulo mata sua esposa Guida por causa do seu ciúme doentio, jogando-a do alto do prédio onde moram, era uma vontade iminente de Paulo e Lígia. A peça se desenvolve toda no presente, pois desde o início da ação até o seu final é tudo o que precisamos para compreendê-la e ela se forma. Apesar desta peça ser a que mais deixa a desejar, tanto na questão estética quanto temática, ela não escapa do seu lado moderno. Algumas vezes percebem-se cenas forçadas, diálogos simples numa temática que exige mais recursos do autor. Em relação à esfera do “inter”, ela não é pura como no teatro expressionista, apenas podemos nos remeter às vontades intrínsecas das três personagens que movem a ação da peça: Guida deseja Paulo, que deseja Lígia, que deseja Paulo. Como uma quadrilha, os desejos recíprocos de cada um são responsáveis pelas atitudes deles, e, consequentemente, conduzem a trama da peça. O diálogo também não tem sua constituição pura, pois há momentos em que as personagens vêm à boca da cena para um aparte monologado.

(Lígia cai de joelhos. Guida vai fazer sua ária.)
GUIDA – Você foi sempre tudo para mim. Um dia, eu te disse: – “Vamos morrer juntas?” E você respondeu: – “Quero morrer contigo”. Saímos para morrer. De repente eu disse: – “Vamos esperar ainda”. E eu preferia que todos morressem. Meu pai, minha mãe, menos você. E se você morresse, eu também morreria. Mas tive medo, quando você se apaixonou e eu me apaixonei.(Idem, ibidem:61)

Quanto ao tempo, ele sim é absoluto. Linearmente narrada, a peça transcorre unicamente no tempo presente, sem recursos adicionais ou inovadores.
 
Por fim, Toda nudez será castigada, encenada em 1965, foi chamada, por Nelson, de obsessão. Talvez, ao lado de A falecida e Beijo no asfalto, essa seja a peça mais bem estruturada e desenvolvida do dramaturgo. Nessa peça, o herói – Herculano – é casado com uma prostituta, Geni.

Considerando-se que toda a narrativa acontece em flashback, contada por Geni a partir de uma fita cassete gravada, poder-se-ia dizer, num primeiro momento, que tal peça não pertence à gama dos dramas modernos, tal qual descrito por Peter Szondi. Porém, se formos atentar mais detalhadamente em sua estrutura, verifica-se que todo o passado narrado torna-se presente a partir da reconstituição em cena dos acontecimentos descritos pela prostituta. Ou seja, sob uma estrutura dialética interna do texto, os fatos transcorrem coerentemente num tempo presente, pois se tornam conhecidos naquele momento em que são representados em cena. Sendo assim, o terceiro elemento necessário à constituição do drama está presente nesta tragédia. Ao segundo, o diálogo, creio que não seja necessário me ater muito, visto que todas as Tragédias Cariocas de Nelson são construídas a partir do diálogo das personagens, e essa não foge à regra. Além disso, são diálogos criativos e dinâmicos, conforme já foi explicitado antes. Sendo assim, restaria verificar o primeiro elemento do drama, que é a ação intersubjetiva. Vejamos bem: toda a narrativa parte da voz de Geni. Então, tudo o que acontece é sob a ótica de Geni, na perspectiva dela, representando o que ela sofre e o que ela pensa. Assim, as ações da peça são desenvolvidas em uma esfera interna, própria da personagem, ou como preferiu chamar Szondi, de esfera do “inter”.

Mas é esta tragédia uma peça moderna? Evidentemente. Nelson foi, literariamente, moderno. Principalmente no que concerne à estrutura, falando-se de dramaturgia. Vários são os exemplos da sua modernidade, desde os elementos dos sentimentos trágicos até o isolamento do herói e a condução da ação trágica por meio do herói.

Em vários momentos da peça a ação é levada à tensão máxima, provocando um sentimento trágico recorrente no desenvolvimento. Já no início, as tias estão pesarosas com a sanidade de Herculano. Devido ao falecimento de sua esposa, as tias têm medo de que ele se mate, pois está em estado de choque e depressão. Um dos momentos mais trágicos da peça é quando uma das tias revela a Herculano o estupro de seu filho na cadeia:

TIA (contida mas tiritando) – Estou dizendo coisa com coisa. Serginho bebeu e brigou.
HERCULANO – Mas está vivo? Está vivo?
TIA – Prenderam o menino. Botaram o menino no xadrez junto com o ladrão boliviano. O outro era muito mais forte. (Exaltando-se) E, então (tem um verdadeiro acesso), o resto não digo! Vocês não vão saber! (Recua diante de Geni) – Essa mulher não vai ouvir de mim, nem mais uma palavra.
HERCULANO – Mas está vivo?
TIA (incoerente, cara a cara com o sobrinho) – Teu filho foi violado! Violado! Não é isso o que você queria saber? (Vai até Geni e repete para Geni) Violado! Violaram o menino!
HERCULANO (soluçando) – Não! Não!
TIA (mudando de tom. Um lamento quase doce) – O menino serviu de mulher para o ladrão boliviano! Gritou e foi violado! O guarda viu, mas não fez nada. O guarda viu. Os outros presos viram.(Idem, ibidem:208)

Podemos perceber que as ações giram em torno das personagens e do que elas sentem e sofrem. E uma das marcas do moderno é justamente a ação se centrar na necessidade individual do herói. Assim vemos em Toda nudez será castigada a necessidade de Herculano em liberar-se de um enquadramento sexual determinado pela instituição do casamento; ou então, a necessidade de Geni de satisfazer-se, não somente com Herculano, mas com Serginho. O desejo de Serginho de vingar-se do pai o transforma em amante da madrasta. Logo, vemos que as ações são conduzidas pelas vontades das personagens, assim como nas outras peças aqui analisadas também o são. No caso de Toda nudez, principalmente pela necessidade de Patrício se vingar de Herculano.

Nelson Rodrigues, ao extrapolar alguns conceitos do trágico – e até mesmo do moderno –, fundou o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano. O dramaturgo conseguiu, ao menos no ciclo das Tragédias Cariocas, mesclar objetos do trágico antigo e do moderno, mas, não satisfeito, foi buscar recursos de outros gêneros dramáticos para embasar o seu próprio estilo, trágico, tragicômico, melodramático. E, ironicamente, é esse misto de gêneros que o faz grande, complexo e, contraditoriamente, unânime.

 3. Referências bibliográficas
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução e notas de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Teatro completo de Nelson Rodrigues. vol. 3. 6. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
______. Teatro completo de Nelson Rodrigues. vol. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
ROSENFELD, Anatol. Introdução. In: Schiller. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991.
SALOMÃO, Irã. Nelson, feminino e masculino. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
SCHILLER, Friedrich. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991.
WILLIAMS, Raymond. Trágico moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.


Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Carlos Lúcio Gontijo (Sentimento do mundo)


Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas... Há muito se ouve essa frase de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, que parafraseou ensinamento de Jesus Cristo: “Não lanceis pérolas aos porcos”. E que, mais modernamente, está em música cantada pela banda Titãs: Só quero saber/ Do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder.

Os ditados e filosofias vão sofrendo mudanças de linguagem, mas a essência é alicerce permanente e, no caso em pauta, nos sugere que nosso tempo de vida terrestre é breve e que não devemos desperdiçá-lo com questões imutáveis, como canta Chico Buarque na música À flor da pele: “O que não tem conserto nem nunca terá.../ O que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo”.

Nunca foi tão difícil editar livros e dar-lhes a eficiente circulação, contudo os autores que têm literatura e poesia no sangue e as abraçam como o próprio ar que respiram não encontram outra saída que não seja enfrentar os custos gráficos, a indiferença, falta de gosto pela leitura da população e a inexistência de incentivo oficial à propagação da leitura como fator fundamental para a elevação da qualidade educacional, que não tem como ser ampliada sem a moldura da cultura dando sentido prático, emocional e, ao mesmo tempo, sensibilizando os alunos de todos os níveis de ensino, do ensino fundamental aos cursos universitários.

Ir aonde o leitor está e evitar a perda de esforço, além de possíveis decepções, é a meta de todo autor independente, mas como alcançar essa busca, se os leitores estão dispersados de maneira tão rarefeita Brasil afora: temos gente com diploma de curso superior que nada lê, enquanto pessoas de pouco estudo adoram livros; assistimos a gente de alto poder aquisitivo que não passa nem perto de livro, ao passo que trabalhador assalariado faz todo sacrifício para ter acesso à literatura e à poesia. 

Dessa forma, pelo menos no caso da atividade de escriba (maior ou menor) não há como ele evitar a possibilidade de, uma vez ou outra, passar sua obra literária a mãos ignaras que não darão o menor valor ao empenho intelectual e ao dispêndio financeiro carreados na trabalhosa materialização de produto cultural gráfico, seja ele um livro, uma revista ou até um jornal. Entretanto, são os ossos do ofício e, a bem da verdade, tais dificuldades é que garantem aos poetas e escritores carregarem no peito o "Sentimento do mundo", terceira obra poética de Carlos Drummond de Andrade, na qual o poeta nos revela sua limitação e impotência perante este mundão de meu Deus, onde as supostas certezas se perdem no caudaloso mar do contraditório em que banham os seres humanos: "Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo". 

Por outro lado, “Sentimento do mundo" pode ser entendido também como um poema sobre o próprio fazer literário ("minhas lembranças escorrem"), onde os poemas ("escravos") surgem como armas ("havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento"). É nesse digladiar contra a realidade perversa e injusta que os poetas e escritores vão enchendo-se de sentimento do "sentimento do mundo", que dão origem a uma visão pessimista tão magnificamente grafada pelos versos de Drummond, clareando-nos a mente, metaforicamente, com um amanhecer "mais noite que a noite".

Engana-se, porém, quem imagina que o poeta maior deixou algum dia o pessimismo lhe sufocar as luzes de esperança que povoam toda escuridão. Foi ele quem um dia, recebendo o meu primeiro livro, cometeu o humano sentimento de mundo, ao me ungir com a possibilidade de algum horizonte em meio às pedras do caminho: ”Rio de Janeiro, 15 de junho de 1977. Prezado Carlos Lúcio Gontijo: Ventre do Mundo está aqui sobre a mesa, com a sua carta informativa e simpática. Obrigado pela lembrança gentil. Um livro de poemas e aforismos que se esgota em quinze dias é sinal de que o seu autor soube dar o recado. E você o fez numa forma gráfica elegante e nova. Deve estar contente. Parabéns, e vá em frente, xará. O abraço e a simpatia cordial de Carlos Drummond de Andrade”.

Fontes:
Colaboração do autor
Imagem do Livro = www.carlosluciogontijo.jor.br

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 4a. Parte



Já Boca de Ouro, escrita em 1959 e encenada em 1961, é caracterizada como tragédia carioca.  Dentre as oito peças que compõem o ciclo das Tragédias Cariocas, somente esta e Beijo no asfalto (escrita e encenada em 1961) são denominadas assim. Tanto uma como a outra são peças que não possuem elementos nem do farsesco, nem da comédia. São, enfim, coerentes com o intento de Nelson quando da denominação de tragédia. E, mais do que nunca, são cariocas, representadas tendo como pano de fundo o cenário carioca, em geral, suburbano.

A respeito da primeira, Boca de Ouro, podem ser encontrados alguns elementos evidenciados tanto por Schiller quanto por Williams. Se Schiller diz que para um fim moral a tragédia não pode apresentar um herói virtuoso, assim, então, identificamos os heróis rodrigueanos: por mais heróis que eles sejam, nunca são virtuosos, mas, ao contrário, sempre carregados de falhas e fracassos. Justamente por isso eles são representantes da sociedade. Boca de Ouro é o herói da peça, nada virtuoso, ao contrário, tido por um cafajeste sem caráter, inescrupuloso, que mata sem piedade. Mesmo na segunda versão da história, em que D. Guigui diminui a cafajestagem do ex-amante, ele aparece como um homem malandro, sem muitos elogios. D. Guigui também não aparece como uma mulher virtuosa em si, apenas como uma mulher suburbana normal, carregada de desejos e anseios, que muda de versão da história a cada impacto emocional provocado por alguma notícia.

Mas antes de tudo, devo ater-me aos elementos que constituem o moderno dentro do trágico rodrigueano. Em Boca de Ouro, a heroína (D. Guigui) é quem vai conduzir a ação trágica. Ela é a responsável pelas três versões dos fatos a respeito de Boca de Ouro, pois toda a narrativa provém de suas emoções. Assim, tudo o que acontece está de acordo com o que Szondi chamou de esfera do “inter”: dentro da psicologia da própria personagem e coerente com sua estética interna. Cada detalhe do texto não é escrito em vão, mas como parte integrante do todo trágico, que por sua vez é coerente com a intenção do autor em escrever uma tragédia carioca.

Porém, em Beijo no asfalto, as coisas transcorrem diferentemente. Os fatos não vão acontecer somente na psicologia de um herói, mas se centram no isolamento de Arandir, devido ao seu sofrimento, necessário enquanto consequência de um erro moral – que não foi necessariamente dele, mas que se tornou dele por imposição da mídia. Erro moral porque, na sociedade retratada na peça e na qual Arandir está inserido, beijar outro homem na boca é proibido, um crime contra a moralidade. No entanto, Arandir baseia-se no princípio da bondade, pouco se importando com o que é considerado certo ou errado na sociedade. E é aí que se encontra o seu maior erro, maior mesmo do que ter beijado outro homem: ter ignorado as regras impostas pela sociedade.

Não são muitas as cenas trágicas que evidenciam sofrimentos pessoais em Boca de Ouro. Elas são mais evidentes em Beijo no asfalto, pois Arandir carrega seu fardo por ter beijado outro homem na boca. E não somente ele sofre, mas também sua esposa Selminha, que, violentamente interrogada pelo delegado Cunha e pelo repórter Amado Ribeiro, exalta-se e revela estar grávida, numa tentativa de provar a masculinidade do marido. Então, como forma de amedrontá-la, Amado manda que ela fique nua. Um outro exemplo é o desfecho trágico, na última cena, quando Aprígio revela-se apaixonado por Arandir e, em seguida, mata o genro com dois tiros. Ainda que este final carregue um fundo apelativo, voltado ao melodramático, isso não diminui a qualidade estética da peça, muito menos a reação catártica do público.         

A morte de Arandir pode ser vista por dois ângulos que se convergem: o primeiro, a questão do sofrimento do herói enquanto fator de emoção do público, conforme explicado por Schiller. Arandir é o herói virtuoso que sofre impiedosas injustiças e que, consequentemente, comove o espectador/leitor com sua morte. Segundo, porque esse aniquilamento pode ser visto também como a destruição do herói expressionista, que está fadado ao sofrimento e total anulação.

Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária e A serpente formam, juntas, o pequeno conjunto de peça. A primeira, encenada em 1962, é chamada de peça em três atos. Já a outra, escrita em 1978 e encenada somente em 1980, é chamada de peça em um ato (a única peça de Nelson escrita concisamente em um ato). Bonitinha é uma peça que perpassa do cômico grotesco à mais alta tensão trágica em poucas cenas, passando ainda pelas características da comédia de costumes, sem, no entanto, dominar as características de um só gênero. Logo no início da peça, apresenta-se uma atmosfera etílica, na qual estão Edgard e Peixoto numa conversa que não é propriamente tensa, mas que tende à tensão. Eles discutem a frase do Otto Lara Resende, que percorre toda a peça: “O mineiro só é solidário no câncer”. Segundo a explicação de Edgard, não é apenas o mineiro, mas toda a raça humana que não se solidariza com nada. Então, com a frase do Otto acompanhando-o, ele pode fazer qualquer coisa para ganhar dinheiro. Aqui já está lançado o objeto da peça: conseguir dinheiro a qualquer custo. Incluem-se neste caso Ritinha, Edgard e Peixoto, que precisam de dinheiro e são capazes de tudo para conseguir. Já na cena seguinte, na casa de Ritinha, ela está brigando com as irmãs, reclamando que elas não fazem a higiene pessoal corretamente e, numa atitude com total falta de poesia – como diria o próprio Nelson -, Ritinha passa a franja da toalha na orelha da irmã, conforme indica a rubrica. E nessa mesma cena, com algumas inclusões grotescas, há uma tensão no final, quando Ritinha briga com a irmã:

(Estupefata, Ritinha avança para Aurora, que recua, com a cara desfigurada pelo ódio e pelo medo.)
RITINHA (arquejando) – Eu me mato por vocês. Faço uma ginástica. Dou aula até altas horas. Qualquer dia, sou assaltada no meio da rua. E você ainda tem a coragem? Dizer que eu flertei! Agora você vai repetir. Eu flertei?
(As duas irmãs, cara a cara.)
AURORA – Flertou!
(Ritinha esbofeteia. Continua batendo.)
RITINHA – Sua descarada!
(Aurora recua circularmente, debaixo de bofetadas.)
AURORA (aos soluços) – Você vai me pagar! Juro! Você vai ver, Ritinha! Quero que Deus me cegue se. Você vai ver! (RODRIGUES, 1990:254-5)

Nessa cena, há uma rápida transposição do grotesco ao trágico. É evidente que, desde o início da peça, há uma tensão que, se continuada, pode levar a alguma ação trágica. No entanto, provavelmente para quebrar a tensão e provocar o riso, Nelson inseriu numa cena bem cotidiana um fato grotesco, grosseiro, que é Ritinha limpar a orelha da irmã com a ponta da toalha.

Logo adiante, há o que podemos chamar de uma das características da comédia de costumes: o retrato da diferença social existente e o estudo do caráter no ser humano. Edgard, jovem suburbano, aceita se casar com Maria Cecília por causa do dinheiro dela. Então, ele vai até a casa de Werneck para conversar sobre o casamento.

(Passagem de cena. Sala do Dr. Werneck. Ele, exuberante, barrigudo, está enchendo um copo. Presentes também o Dr. Peixoto e a esposa do velho, D. Lígia. Edgard aparece por fim. Senta-se.)
WERNECK (para Edgard) – Você já sabe de tudo?
EDGARD (que ia começar) – De fato.
PEIXOTO (interrompendo) – Contei o caso, por alto.
WERNECK – Bem. Portanto, você sabe que a moça. A moça que sofreu o acidente. Foi um acidente. Assim como um atropelamento, uma trombada. Pois a moça é minha filha. Quer dizer, a filha do seu patrão. Isso é importante. A filha do seu patrão. Entendido?
EDGARD – Sim, senhor.
WERNECK (com uma satisfação brutal) – Gostei da inflexão. Um “sim, senhor” bem, como direi.(Idem, ibidem:266)

Nessa peça, ao contrário das outras desse ciclo rodrigueano, o final não é trágico, não é tenso e não é triste. É, por incrível que pareça, um happy end, bem atípico aos finais de Nelson Rodrigues. Suprimidos os contraventores da peça, Peixoto e Maria Cecília, o final feliz está livre para Ritinha e Edgard, que se libertam de tudo e, numa cena quase cômica para a peça onde está inserida, os dois correm até a praia, onde Ritinha confessa que nunca teve prazer com homem nenhum e que com Edgard será a primeira vez. Porém, por mais contraditório com o estilo rodrigueano que possa ser esse desfecho, encontramos no decorrer da trama personagens que sofrem para manter uma adequação moral, conforme Schiller vê um dos elementos da tragédia. Assim é o caso de Ritinha, que se prostitui para ver as irmãs casadas na igreja, de véu e grinalda.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Belvedere Bruno (Quando as Pessoas Partem)

E as pessoas partem / tão inesperadamente, / sem nenhum sinal.
Fica apenas / o sabor amargo / do não dito,
e a certeza plena / do nunca mais.

Quando uma pessoa se vai, inesperadamente, seja através da morte ou por voltas que a vida dá, muitos se deparam com a consciência gritando em desespero: “Por que não disse o quanto era importante para mim? Por que me foi difícil elogiar aquela gravatinha borboleta que ele usava? Por que não disse a ela o quanto era corajosa por cada mês aparecer com o cabelo de uma cor? Por que nos calamos e omitimos nosso bem querer?”

Sinto muito, mas não faço parte desse time. Sempre fui efusiva, de dizer “te amo” aos que realmente amo, elogiar as qualidades, e até os defeitos pequeninos das pessoas, defeitos esses, que, no fundo, têm seu encanto.

Por isso, quando alguém se vai, sempre estou em paz comigo mesma. Nunca sinto o remorso a corroer minhas entranhas. Fica, e forte, uma saudade boa.

Sempre gostei de exercitar o amor, nas suas mais variadas nuanças.

Lembro-me de um fato ocorrido há muitos anos, quando eu ainda era uma mocinha, cheia de sonhos com finais cinematográficos. Apaixonada por Edson Alvarenga, e não sendo correspondida, tive uma briga feia com ele, prometendo a mim e a todos os amigos que jamais voltaria a olhá-lo. O mundo parecia que havia ruído, tamanha a minha dor! Meus olhos viviam inchados e eu a dizer : - Mil vezes a morte!

Os anos passaram. Numa tarde de verão, caminhando no calçadão da praia, encontrei-o. Fiquei tão feliz que não me contive e abracei-o, falando da minha saudade. Vibrava com o encontro. Havia, ainda, amor dentro de mim, porém diferente, mais amadurecido, sem possessividade Fiquei em estado de graça com a felicidade do amado. Como estava belo, risonho como nos velhos tempos. Havia casado e tinha um casal de filhos, me contou cheio de orgulho. Fiquei absurdamente feliz com a felicidade dele.

Poucos meses depois, soube da partida de Edson, vitimado por uma terrível forma de leucemia, aos vinte e cinco anos.

Fiquei em paz. Na minha concepção, partira com as asas íntegras, pois eu não as havia ferido naquele último e inesquecível encontro na orla.

Fontes:
A Autora
Imagem: http://poetadiogoramalho.blogspot.com

Roberto Tostes (A Marca do Escritor)


Em época de tanta informação e em velocidade cada vez maior, como deixar um sinal pessoal de sua existência, seus textos e de suas palavras na web?

Criar uma assinatura pessoal é fundamental para ser reconhecido e identificar tudo que você produzir em textos, livros, contos, ensaios, entrevistas e outras formas de expressão.

Seja que estilo de escritor você for, deixar a sua marca é fundamental para ter certeza de que seu trabalho possa ser reconhecido e valorizado.

Seguem algumas dicas para criar e consolidar essa identidade digital:

1) Seu nome é sua assinatura, sua identidade, sua palavra-chave

Aquilo que você escolher como assinatura vai ficar associado a você para sempre. Em tempos digitais ter que alterar algo significa recomeçar tudo ou perder um esforço significativo. Nome real ou pseudônimo, faça uma única escolha e não mude mais.

2) Trabalho lento e a longo prazo

A não ser que você tenha muita sorte, seja famoso ou com muitos recursos para investir em sua carreira, sua reputação será resultado de muito esforço. E de muita guerrilha, de insistência, de constância. Para conhecer e ser conhecido, é preciso tempo e esforço. A curto prazo não se consegue nada duradouro.

3) Suas palavras, seu valor

Tudo que você produzir tem sempre por trás uma ideia, uma intenção, um valor. Portanto, saiba o que está produzindo e o porquê. Se acha que sabe pouco, pesquise mais, leia, troque ideias, viva mais experiências. Se está inseguro no que escreveu, espere mais, reescreva.
Só publique o que você tem certeza de ser bom. Não se sinta culpado de largar rascunhos e ideias pelo caminho. Mas se for até o fim e gostar do resultado, lute por isso e divulgue o que você produziu com vontade.

4) Boas opiniões valem muito

Além de desenvolver sua carreira e aprimorar seu texto, é importante se relacionar. Você pode precisar muito dos amigos, leitores, família e até mesmo de estranhos para poder avaliar melhor sua trajetória e sua obra.
Claro que é importante aplicar um filtro, no mundo real ou virtual. Selecione aqueles que dialogam com você de forma crítica e positiva, ajudando a melhorar seu trabalho e indicando caminhos ou soluções.

5) Sua postura, sua verdade

Você é o que escreve, mas também o que lê, o que comenta e divulga. Seja uma frase, texto, foto, vídeo ou texto na web as coisas perduram e você pode se arrepender de alguma atitude impensada.
Como sua própria vida e suas atitudes, seu conteúdo é de sua responsabilidade. Procure sempre um equilíbrio entre vida criativa e pessoal. Tente fazer as duas coisas da melhor forma, escrever e viver.

6) Foco e energia

Dúvidas e imprevistos sempre surgem mas nesta jornada leva vantagem quem sabe o que quer e consegue se manter no trilho. Não devemos depender só da inspiração ou do prazer, por isso achar sua rotina e seu jeito de fazer as coisas ajuda muito.
Concentre o foco naquilo que você realmente quer e vá até o fim. Desvios e imprevistos no seu caminho surgirão mas o pior é adiar escolhas ou não decidir. Siga sua intuição, saiba começar mas também saiba terminar as coisas. Errar e falhar às vezes faz parte do processo.

7) Decisões e persistência

Por mais que você escute e valorize outras opiniões, a decisão final será sempre sua, de alguma forma. Por isso é tão importante acreditar em algo, seguir seu próprio caminho.
Nunca esqueça daqueles ideais e sonhos que ficaram para trás, as referências e influências que definiram e ainda mostram quem você é.
Eles podem ser o melhor apoio nas horas de desespero, desânimo e vazio existencial. Ser fiel a si mesmo é também reconhecer erros, se autocriticar, saber recomeçar e evoluir.

8) Seu nome, seu legado

Quando escrevemos a mão, cada um tem a sua própria letra. Quando você escreve de verdade aquilo que sente, vive, imagina e sonha, produz uma coisa só sua.
Suas palavras são sua memória, sua vida. Elas tem vida própria, emoções, sabor, cheiro e som. Basta que apenas uma pessoa entenda e goste para você ter cumprido sua missão.

Cuide bem de sua marca e escolha bem suas palavras.
Aos poucos, você perceberá que um pouco disso ficará de alguma forma gravado em tudo que você escrever e criar.
Um rastro de mão, dedos, suor e palavras.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=5143, 22 janeiro 2015.

Olivaldo Júnior (Os Peixinhos do Mar)


Era uma vez um menino que morava pertinho do mar. Seus pais, ribeirinhos, viviam do que o mar oferecia aos que nele colhiam o sustento da casa. A casa, para quem pesca, tem dois lugares. Um deles, é claro, é o mar, que não tem pista, nem pouso, mas decola no peito de quem voa nos barcos, sol a sol, até se pôr... Por tanto ver o pai sair cedinho, aquele menino se pôs a imaginar de onde vinham os peixes, peixinhos do mar. Sabia que eram postos por Deus no verde frio das ondas e trazidos até as redes quentes do pai, dos amigos do pai e do padrinho, para que pudessem viver. Mas, na cabecinha do menino, tão fértil quanto aquele naco de mar à beira deles, um anjinho os desenhava, outro os coloria, Deus os animava e... tchibum! Caíam aos milhares lá do céu, quando ninguém estava olhando!... Claro que nunca tinha visto isso, nem poderia. Dormia cedo, assim como o pai e a mãe, que Deus ajuda quem cedo madruga (e quem sai pra pescar). Um dia, se pudesse aguentar, veria os peixinhos, cada peixe do mar, chover do céu no mar aberto, reluzentes, furta-cores, com escamas inda virgens, sem o sal que encharca a alma e cai dos olhos de quem assiste a essa cena. "Quem te ensinou a nadar? / Quem te ensinou a nadar?"... Dorme, menino, dorme... A vez é sua. Amém, amém, amém.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://dar-a-tramela.blogspot.com

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 3a. Parte

Representada em 1957, Perdoa-me por me traíres foi denominada por Nelson como tragédia de costumes. Para um moderno como Nelson Rodrigues, era de se esperar que houvesse um misto de gêneros em seus textos, o que aqui, mais uma vez, se consolida com a mistura de tragédia e comédia de costumes. Importante observar o conceito de comédia de costumes: “Estudo do comportamento do homem em sociedade, das diferenças de classes, meio e caráter.”(PAVIS, 1999:55) Ora, o estudo que aborda o conceito pode ser encontrado em várias peças de Nelson, mesmo aquelas denominadas como farsas, tragédias, ou tragédias de costumes, pois essa é uma característica evidente na obra do dramaturgo. E essa peça não deixa de ter elementos da farsa, do trágico e também da comédia de costumes, bem como na peça analisada anteriormente.

No início da peça, Glorinha vai a uma casa de meninas com sua amiga Nair. Lá se deparam com duas figuras que compõem o grotesco – elemento da farsa – na tragédia em questão: Pola Negri, um típico “garçom de mulheres”, ou seja, um homossexual, e Madame Luba, dona da casa de meninas. Ambas as personagens são caracterizadas grosseiramente pelo dramaturgo, numa espécie de sátira de determinados elementos sociais. Pola Negri, por exemplo, é descrito da seguinte forma: “Na sua frenética volubilidade, ele não pára. Desgrenha-se, espreguiça-se, boceja, estira as pernas, abre os braços.” (RODRIGUES, 1985:128) Tal observação está em uma rubrica, bem como a descrição de Madame Luba: “Madame Luba é uma senhora gorda, imensa, anda gemendo e arrastando os chinelos. Dá a impressão de um sórdido desmazelo.”(Idem, ibidem:129) Esta última é lituana e carrega consigo um pesado sotaque nas falas.

MADAME LUBA (melíflua) – Como vai, Nair? Como está passando?
(fala com Nair mas não tira os olhos de Glorinha.)
NAIR – Bem. E a senhora?
MADAME LUBA (com violento sotaque) – Eu sempre vou muito bem, nunca ter uma dor de dentes...
NAIR – Trouxe-lhe aqui...
MADAME LUBA – Oh, sim, seu colega de colégio, Glorinha!(Idem, ibidem:129)

Um outro exemplo é a atitude do médico que faz o aborto em Nair. Pago por Madame Luba, mas sem anestesia, o aborto ocorre numa clínica clandestina, onde o médico “aparece, chupando tangerina e expelindo os caroços”(Idem, ibidem:141). Mas além desses elementos grosseiros, que evidenciam o lado cômico desta tragédia, há também os elementos específicos da comédia de costume, ou seja, elementos que demonstram o comportamento do homem dentro de um meio social, evidenciam as diferenças de classes. Como em A falecida havia Pimentel, um homem milionário, que demonstrava a diferença social entre Tuninho e o empresário, em Perdoa-me por me traíres há o deputado, Dr. Jubileu de Almeida, que frequenta a casa de meninas e que oferece à Glorinha um emprego em troca de seus serviços. Tanto na primeira quanto na segunda peça, os homens dotados de poder, superiores, têm domínio sobre as personagens com poder econômico inferior. Estes são bons exemplos para a união entre sujeito e objeto do drama moderno. Personagens que, aparentemente, são dotadas de arbítrio por seguirem suas próprias vontades, mas, ao mesmo tempo, servem de objeto para outras personagens, num ciclo que se repete a cada nova personagem.

Assim como há essa demonstração das diferenças de classes sociais, Nelson utiliza desses elementos da comédia de costumes para ironizar convenções sociais impostas. No caso, Dr. Jubileu é um deputado velho, velhíssimo, como diz a rubrica, que procura serviços da casa de meninas – com meninas de 14, 15 ou 16 anos que estão lá por dinheiro – e que os jornais chamam de “reserva moral”. Do mesmo modo, a casa de meninas, um lugar onde só entram “imunidades”, onde a polícia não aparece, pois está sob controle de Madame Luba.

Mas dentre os três, o elemento mais importante aqui é o trágico. Fatores que compõem a tragédia, enquanto uma tragédia moderna, na peça em questão. Bem mais evidente do que na peça anteriormente analisada, a partir do segundo ato a peça se constituirá basicamente de elementos trágicos, misturados ao cômico, fortalecendo a estrutura tragicômica.

Há vários momentos trágicos na peça, conforme a percepção de Raymond Williams. Ou seja, encontram-se várias passagens em que situações trágicas, carregadas de sofrimento são transcritas para a realidade da peça, como no final dos atos. Logo no primeiro ato, na cena final, é o momento em que o aborto de Nair dá errado e ela está com hemorragia. Num clima tenso, Nair está sofrendo na cadeira e o médico não pode fazer nada. Como único remédio, manda que sua enfermeira reze. Apesar de ser uma cena que carrega em si o sofrimento trágico, é inevitável que a relacionemos à ironia e ao grotesco, bem ao estilo do autor.

(Assombrado diante do destino, o Médico está falando com uma calma imensa, uma apaixonada serenidade.)
MÉDICO – Mas não adianta gaze, nem Pronto Socorro, nada!
NAIR – Não posso mais... Glorinha... vamos morrer... nós duas... Glorinha....
MÉDICO (tem nova explosão. Berrando) – Mas isso nunca aconteceu comigo, nunca! Não sei como foi isso! (para a Enfermeira) Reza, anda reza, ao menos isso, reza!
(A Enfermeira cai de joelhos, une as mãos no peito.)
MÉDICO (berrando) – Não rezas?
ENFERMEIRA – Estou rezando!
MÉDICO (enfurecido) – Mas não reza só para ti! Pra mim também! Eu quero ouvir! Anda! Alto! Reza, sua cretina!
(A Enfermeira ergue-se e rompe a cantar um ponto espírita. O médico soluça.) (Idem, ibidem:144)

No final do segundo ato, a cena está transcorrendo em flashback, rememorando como Judite, mãe de Glorinha, morreu. Na cena final, Tio Raul força Judite a tomar o veneno, logo depois de ela ter confessado que teve vários amantes, que se entregou até por um “bom dia”. Judite bebe todo o conteúdo do copo de uma vez só e cai agonizante no chão. A sequência tensa que converge para o final do ato trágico, unido a outros atos que também carregam o trágico em si – apesar de vinculados ao cômico – fortalecem a estrutura da tragédia, evidenciando uma linha coerente, até então, dentro do conjunto Tragédias Cariocas. Semelhante cena trágica acontece no final do terceiro ato, mas agora quem protagoniza são Tio Raul e a sobrinha Glorinha. Depois de uma cena bastante tensa, em que Tio Raul ameaça Glorinha, os dois combinam de morrer juntos. Mas eis que Glorinha não bebe o veneno e deixa Tio Raul morrer agonizante no chão enquanto ela volta à casa de meninas.

As cenas são compostas basicamente do trágico, sem grande menção a elementos cômicos, que desfaçam a tensão do momento. Mas, por mais que sejam momentos trágicos, eles são apenas parte de um todo que compõe a tragédia enquanto gênero. O trágico é um elemento que se tornou constitutivo da tragédia ao longo de uma tradição, e hoje já é quase indissolúvel, embora também apareça em vários outros gêneros. Assim como em A falecida, e em grande parte das peças desse ciclo, Nelson utilizou o recurso do flashback. Pela perspectiva de Szondi isso poderia ser um problema, pois passado não deve estar mais em cena. No entanto, para o dramaturgo esse recurso é a solução do problema, pois é utilizado justamente para preenchimento de alguma lacuna que, eventualmente, possa ficar no texto. Mas isso não diminui o moderno de Nelson, ao contrário, torna-o ainda mais moderno pelo uso de recursos inovadores. Sendo assim, quando apresentado em flashback, é o presente evidenciado em relação ao passado.

Sete gatinhos, encenada em 1958, foi descrita como divina comédia. Irônico da parte de Nelson ou não, esta é a peça que talvez possua menos elementos cômicos, que evidenciam o riso. Se as três características da comédia são, opostas às da tragédia, provocar o riso no espectador, ter um final feliz e possuir personagens modestas (PAVIS, 1999), esta peça de Nelson não se enquadra nesse gênero. Muito menos faz jus a um “divino”, no sentido restrito da palavra [6]. A peça inteira é composta de elementos trágicos, com algumas referências aos elementos da farsa, mas não à comédia.  Assim como em Perdoa-me por me traíres, há cenas trágicas em sua essência que, unidas aos outros elementos, constituem a tragédia em um todo. Principalmente, por se tratar de uma peça em que a ação é centrada na necessidade individual do herói (de Silene), e que a ação trágica acontece por meio desse herói – ou, no caso, a heroína. Silene é uma menina mimada e se torna o fundamento central desta família – ou melhor, o seu casamento é o objetivo da família. É em torno de sua virgindade que a trama transcorrerá, pois essa é a salvação da família de “Seu” Noronha.

Como referência de ação trágica, pode ser retomada a cena em que Dr. Bordalo, médico da família, revela a “seu” Noronha que Silene está grávida. Neste momento, todo o enaltecimento da jovem menina cai por terra e inicia-se uma sequência de atos trágicos: as irmãs já não veem mais motivos para continuarem se prostituindo para juntar dinheiro para o enxoval da irmã mais nova, revelam-se os podres da família. Descobre-se que “seu” Noronha é o responsável pela prostituição das filhas e, como consequência, há o desfecho trágico: ele é assassinado pelas próprias filhas.

Unindo esses fatores do trágico ao fato de que a peça desenvolve-se em torno de si mesma, como absoluta, sem utilizar-se de nenhum fator externo, a peça se caracterizará como drama moderno. Isto porque, dentro desse absolutismo dramático, reina o diálogo como fator linguístico escolhido para carregar todas as informações necessárias para o desenvolvimento da peça, e ela transcorre num tempo presente, dado o início da ação até o desfecho, com a morte de Bibelot e “Seu” Noronha.
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NOTA

[6] Por outro lado, “Divina Comédia” também pode ser uma alusão ao poema de Dante.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores