domingo, 6 de agosto de 2017

Charles Dickens (A História dos Duendes que Raptaram um Coveiro)

Numa velha cidade clerical, situada nesta parte do Condado, há muito, muito tempo — tanto tempo que a história deve ser verdadeira, de vez que nossos bisavós nela acreditaram implicitamente —, oficiava como sacristão e coveiro no cemitério da igreja um certo Gabriel Grub. De modo algum, porém, se infira que, pelo fato de ser coveiro e viver constantemente cercado de símbolos mortuários, deva um homem tornar-se taciturno e melancólico; os agentes funerários são os sujeitos mais alegres do mundo e, certa feita, tive a honra de privar com um deles que, na vida particular, e quando não em serviço, era um sujeitinho cômico e jocoso, capaz de trautear uma canção burlesca sem qualquer lapso de memória, ou de esvaziar um bom copo de um só fôlego. Todavia, apesar de tais precedentes em contrário. Gabriel Grub era rabugento, taciturno, azedo — um homem ensimesmado e solitário, que não se dava com ninguém, a não ser consigo mesmo e com uma velha garrafa, encapada de vime, que lhe cabia no amplo e fundo bolso do colete — e que fitava cada rosto alegre que por si passasse com um olhar de malícia tão torva e mal-humorada que ninguém lhe suportaria o escrutínio sem sentir arrepios.

Pouco antes da meia-noite, certa véspera de Natal. Gabriel colocou a pá ao ombro, acendeu a lanterna e encaminhou-se para o velho cemitério, pois tinha de preparar uma cova para o dia seguinte; sentindo-se muito deprimido, pensou que seu ânimo melhoraria se se pusesse logo a trabalhar. Enquanto caminhava pela velha rua, viu a luz alegre dos fogoscrepitantes brilhar através das janelas antigas, e ouviu os risos altos e os gritos jubilosos daqueles que se haviam reunido à volta deles; observou os alvoroçados preparativos para a festa do dia seguinte e aspirou os numerosos aromas apetitosos deles resultantes, escapando-se pelas janelas das cozinhas, em nuvens. Tudo isso era fel e absinto para o coração de Gabriel Grub; e quando bandos de crianças saltavam para fora das casas e, aos saltos, atravessavam a rua e encontravam-se, antes de terem tido tempo de bater à porta fronteira, com meia dúzia de moleques de cabelo encaracolado, que se agrupavam em torno deles enquanto subiam para passar a noite em folguedos natalinos. Gabriel sorria torvamente e apertava o cabo da pá com mais força, ao pensar em sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche e muitas outras fontes semelhantes de consolação.

Nesse feliz estado de espírito. Gabriel caminhava, respondendo aos cumprimentos bem-humorados dos vizinhos que por ele cruzavam com um grunhido lacônico e rabugento; por fim, enfiou-se pela escura viela que levava ao cemitério. Gabriel estivera ansioso por chegar à viela porque o lugar era, de modo geral, ermo e funéreo, e a gente da vila não se arriscava a andar por ali senão durante o dia, quando brilhava o sol; por consequência, o coveiro ficou assaz indignado ao ouvir uma voz infantil entoando uma alegre canção de Natal no mesmo santuário que era chamado "Beco dos Caixões" desde os dias da velha abadia e dos monges de cabeça raspada. À medida que Gabriel caminhava e que a voz se tornava mais próxima, descobriu pertencer a um menino que corria a juntar-se a um dos grupinhos da velha rua e que, em parte para sentir-se acompanhado, em parte para preparar-se para a ocasião, berrava a canção com toda a força dos pulmões. Gabriel esperou até que o menino passasse por ele e, encurralando-o num canto, deu-lhe cinco ou seis pancadas na cabeça com a lanterna, apenas para ensiná-lo a modular a voz. E enquanto o menino fugia, com as mãos na cabeça, entoando canção bem diversa da anterior. Gabriel Grub casquinhou sozinho, alegremente, e entrou no cemitério, fechando o portão atrás de si.

Tirou o casaco, pôs a lanterna no chão e, dirigindo-se à cova inacabada, nela trabalhou durante uma hora ou mais, com gosto. Mas a terra estava endurecida pela geada e não era coisa fácil cavá-la nem atirá-la para cima; embora houvesse lua, era lua muito nova, que pouco iluminava a cova imersa na sombra da igreja. Em qualquer outra ocasião, tais obstáculos teriam feito Gabriel Grub sentir-se muito triste e miserável, mas estava tão satisfeito por ter acabado com a cantoria do menino, que mal se deu conta dos pequenos progressos que fazia e, terminado o trabalho da noite, olhou para dentro da cova com soturna satisfação, murmurando, enquanto reunia seus apetrechos:

Bom quarto para a última dormida:
Sete palmos de terra, finda a vida;
Pedra aos pés e também à cabeceira,
Petisco para os vermes da valeira;
Relva em cima, de argila emparedado,
Belo quarto em terreno consagrado!

— Ho! ho! — riu Gabriel Grub, sentando-se num túmulo liso, que era seu lugar de descanso favorito, e sacando a garrafa de vime. — Um esquife no Natal! Um caixão natalino! Ho! ho! ho!

— Ho! ho! ho! — repetiu uma voz as suas costas.

Gabriel interrompeu, algo alarmado, o ato de levar a garrafa à boca e olhou à volta de si. As profundezas do túmulo mais antigo ali existente não estavam mais tranquilas e silenciosas do que o próprio cemitério à pálida luz da lua. A branca e fria geada brilhava nas lousas tumulares e cintilava, qual fieira de gemas, por entre os entalhes de pedra da velha igreja. Havia uma camada de neve dura e crespa sobre o chão, amortalhando os montículos de terra com um lençol tão alvo e macio, que mais pareciam estes uma fileira de cadáveres cobertos apenas com suas mortalhas. Nenhum ruído, por leve que fosse, quebrava a profunda tranquilidade da paisagem solene. Tão frio e quieto era o ambiente que até o próprio som parecia ter-se enregelado.

— Foram os ecos — concluiu Gabriel Grub. levando novamente a garrafa à boca.

— Não foram, não — disse uma voz profunda.

Gabriel ergueu-se assustado e ficou interdito de espanto e de terror quando seus olhos deram com uma aparição que lhe gelou o sangue nas veias. Sentada numa tumba alta, perto dele, havia uma estranha figura supraterrena, que Gabriel constatou, desde logo, não ser gente deste mundo. Suas pernas longas e fantásticas, que bem poderiam chegar ao chão, estavam encolhidas e cruzadas de maneira esquisita e espantosa; trazia nus os braços nervosos; suas mãos descansavam sobre os joelhos. O corpo curto e roliço estava vestido de roupas apertadas e acuchiladas; uma capa curta pendia-lhe das costas; a gola estava recortada em bicos curiosos, que serviam de gravata ou de golilha ao duende, e os sapatos tinham longas pontas reviradas. Trazia na cabeça um chapéu em forma de pão de açúcar, enfeitado com uma pena solitária, e coberto de branca geada; o duende parecia estar sentado muito à vontade, na tumba, havia mais de duzentos ou trezentos anos. Permanecia imóvel, com a língua zombeteira de fora, careteando para Gabriel Grub com uma expressão que só os duendes são capazes de assumir.

— Não foram os ecos — repetiu o duende.

Gabriel Grub estava paralisado e não soube responder.

— Que fazes aqui na véspera de Natal? — perguntou o duende, com voz severa.

— Vim cavar uma cova, sir — balbuciou Gabriel Grub.

— Que homem é este que anda em meio a covas numa noite assim? —
exclamou o duende.

— Gabriel Grub! Gabriel Grub! — berrou um doido coro de vozes, que parecia encher o cemitério. Gabriel olhou temerosamente à volta, mas não viu ninguém.

— Que trazes aí nessa garrafa? — perguntou o duende.

- Genebra, sir — respondeu o sacristão, mais trêmulo do que nunca, pois havia comprado-a de contrabandistas e julgou que talvez seu interlocutor pertencesse ao departamento fiscal dos duendes.

— Quem bebe genebra sozinho num cemitério, numa noite como esta? — exclamou o duende.

—Gabriel Grub! Gabriel Grub! — gritaram as doidas vozes novamente.

O duende olhou maliciosamente para o coveiro aterrorizado e, alçando a voz, exclamou:

- E quem é, então, nossa boa e legítima presa?

A tal pergunta, o coro invisível replicou, num uníssono que vibrava como as vozes de muitos meninos cantando ao som poderoso do órgão da velha igreja; um uníssono que, aos ouvidos do coveiro, parecia transportado por um vento selvagem, e que, conforme passava, ia morrendo; mas o estribilho era sempre o mesmo:

— Gabriel Grub! Gabriel Grub!

O duende fez uma careta maior do que as anteriores e disse:

—Bem. Gabriel, que achas disso?

O coveiro arquejou.

— Que achas disso. Gabriel? — repetiu o duende, atirando as pernas para o ar, de cada lado do túmulo, e olhando para as pontas reviradas dos sapatos com tanta satisfação quanto se admirasse os mais elegantes calçados vendidos em Bond Street.

— É... é... muito curioso, sir — replicou o coveiro, semimorto de terror. -  Muito curioso e muito bonito, mas acho que vou voltar ao trabalho para terminá-lo, sir, se mo permitirdes.

— Trabalho! — exclamou o duende. — Que trabalho?

— A cova, sir; abrir uma cova — tartamudeou o coveiro.

— Oh!, a cova, hein? — disse o duende. — Quem é que se compraz em abrir covas numa ocasião em que todos os outros homens se divertem?

Novamente, as vozes misteriosas repetiram:

— Gabriel Grub! Gabriel Grub!

— Receio que meus amigos te desejem. Gabriel — disse o duende, pondo toda a língua de fora (e que língua. Santo Deus!). — Receio que meus amigos te desejem. Gabriel.

— Por favor, sir — replicou o coveiro aterrorizado —, creio que não, sir; eles não me conhecem, sir; não acredito que esses cavalheiros me hajam visto antes, sir.

— Oh!, viram-te, sim — replicou o duende. — Bem conhecemos o homem de cara amuada e cenho franzido que desceu a rua hoje à noite, olhando as crianças com olhar maldoso, e apertando, raivoso, o cabo da pá. Bem conhecemos o homem que, com o coração cheio de inveja e maldade, surrou um menino, só porque esse menino podia ser alegre e ele não. Bem o conhecemos, bem o conhecemos.

Nesse ponto, o duende riu um riso esganiçado, que os ecos devolveram multiplicado, e, atirando as pernas para o ar, equilibrou-se, de cabeça para baixo, ou melhor, sobre a ponta do chapéu em forma de pão de açúcar, à beirada estreita do túmulo, de onde, numa cambalhota extremamente ágil, foi cair bem aos pés do coveiro, assumindo a posição de um alfaiate entregue ao seu ofício.

— Acho... acho que tenho de ir-me embora, sir — disse o coveiro, fazendo um esforço para mover-se.

— Ir embora! — exclamou o duende. — Gabriel Grub vai embora. Ho! ho! ho!

Enquanto o duende ria, o coveiro, olhando de relance para a igreja, viu-lhe as janelas iluminadas, como se estivessem acesas todas as luzes do edifício; a luz desapareceu, o órgão pôs-se a tocar uma melodia saltitante, e grupos inteiros de duendes, perfeitas reproduções do primeiro, derramaram-se pelo cemitério e começaram a saltitar sobre as tumbas, jamais detendo-se, um instante que fosse, para tomarem fôlego, mas cabriolando cada vez mais alto, um depois do outro, com maravilhosa destreza. O primeiro dos duendes era um saltador espantoso, e nenhum dos outros o ultrapassava; mesmo no auge do terror, o coveiro não pôde deixar de observar que, enquanto seus companheiros se contentavam em saltar por cima das tumbas de tamanho ordinário, o primeiro piruetava sobre os jazigos familiares, com grades de ferro e tudo, tão facilmente quanto se estes fossem marcos de estrada.

Por fim, a brincadeira chegou ao cúmulo da excitação; o órgão tocava cada vez mais depressa, e os duendes pulavam cada vez mais rápidos, enrodilhando-se sobre si mesmos, dando cambalhotas sobre o chão e saltando sobre as tumbas quais bolas de futebol. O cérebro do coveiro girava com tanta rapidez quanto a da agitação que contemplava, e suas pernas vergavam conforme os espíritos lhe passavam diante dos olhos; subitamente, o rei dos duendes, atirando-se sobre ele, agarrou-o pelo colarinho e com ele desapareceu pela terra adentro.

Quando Gabriel Grub conseguiu recuperar o fôlego, que a descida vertiginosa lhe fizera perder, encontrou-se no que parecia ser uma vasta caverna, circundado de todos os lados por multidões de duendes feios e zombeteiros; no centro da caverna, num assento elevado, estava seu amigo do cemitério e, logo atrás dele, sem poder mexer-se, o próprio Gabriel Grub.

— A noite está fria — disse o rei dos duendes —, muito fria. Tragam-lhe algo quente para beber!

A esta voz de comando, meia dúzia de duendes oficiosos, com um perpétuo sorriso nas faces, que Gabriel Grub imaginou fossem cortesãos por causa disso, desapareceram num átimo e logo voltaram com uma taça de fogo líquido, que apresentaram ao rei.

— Ah! — exclamou o duende, cujas faces e garganta faziam-se transparentes à medida que ia engolindo o líquido chamejante —, como isto esquenta! Tragam uma caneca para Mister Grub.

Foi em vão que o coveiro protestou não ser de seu hábito tomar o que quer que fosse de quente à noite; um dos duendes segurou-o, enquanto outro lhe derramava a beberagem incendiada pela garganta abaixo; toda a assembleia torcia-se de rir ao vê-lo tossir, engasgar-se e enxugar as lágrimas que lhe corriam abundantemente dos olhos, depois de ter engolido a causticante bebida.

— E agora — disse o rei, enfiando, num gesto fantástico, a ponta do seu chapéu afunilado nos olhos do coveiro e provocando neste dor agudíssima —, e agora mostrem ao homem da desgraça e da tristeza algumas pinturas do nosso grande depósito!

A medida que o duende dizia tais palavras, uma nuvem espessa, que obscurecia a extremidade mais remota da caverna, dissipou-se gradualmente e pôs a descoberto, muito ao longe, segundo parecia, um aposento pequeno e pobremente mobiliado, posto que limpo e bem-arrumado. Um bando de crianças comprimia-se em torno do fogo alegre, agarradas às saias da mãe e saltitando-lhe ao redor da cadeira. A mãe erguia-se, de quando em quando, e descerrava as cortinas da janela, como se aguardasse a chegada de alguém; uma refeição frugal estava servida sobre a mesa e uma cadeira de braços fora disposta perto do fogo. Uma batida à porta fez-se ouvir; a mãe abriu-a, e as crianças, acorrendo para lá, puseram-se a bater palmas de alegria ao verem seu pai entrar. Estava molhado e tinha ar fatigado; sacudiu a neve das roupas, enquanto as crianças, apinhando-se em volta dele, tomaram-lhe a capa, o chapéu, a bengala e as luvas e, com ar azafamado, levaram tudo para fora da sala. Depois, quando o recém vindo se sentou à mesa, ao pé do fogo, as crianças treparam-lhe sobre os joelhos, a esposa acomodou-se ao seu lado, e tudo se fez felicidade e aconchego.

Mas uma alteração, quase imperceptível, ocorreu no quadro. A cena era agora um pequeno dormitório, no qual o mais lindo e o mais jovem dos filhos jazia agonizante; o róseo havia-lhe desaparecido das faces e a luz fugira-lhe dos olhos; enquanto o coveiro o olhava com um interesse que jamais havia conhecido ou experimentado até então, a criança morreu. Seus pequenos irmãos e irmãs rodearam-lhe o leito minúsculo e tomaram-lhe as mãozinhas frias e lânguidas, mas estremeceram ao toque e olharam medrosamente para o seu rosto infantil: era calmo e tranquilo e revelava paz, mas a linda criança estava morta e eles souberam que era agora um anjo a olhá-los e a abençoá-los lá do céu luminoso e feliz.

Uma luz brilhante passou de novo pelo quadro e o seu tema alterou-se outra vez. O pai e a mãe estavam agora velhos e alquebrados e o número de filhos a rodeá-los diminuíra de mais da metade; todavia, a felicidade e a alegria brilhavam em todas as faces e reluziam em todos os olhos enquanto, agrupada em volta do fogo, a família ouvia e contava velhas histórias dos dias idos. Lenta e tranquilamente, o pai desceu ao túmulo e, logo depois, a companheira de seus cuidados e aflições acompanhou-o àquele lugar de repouso. Os poucos sobreviventes ajoelharam-se ao lado de seus túmulos e regaram de lágrimas a verde relva que os recobria; ergueram-se, depois, e afastaram-se, tristes e enlutados, mas não com gritos amargos ou com lamentos desesperados, pois sabiam que os encontrariam, novamente, algum dia; mais uma vez, mergulharam na azáfama do mundo, e o contentamento e a jovialidade lhes voltaram. A nuvem desceu sobre o quadro e ocultou-o dos olhos do coveiro.

— Que achas disso? — perguntou o duende, voltando seu rosto largo para Gabriel Grub.

Gabriel murmurou algo a respeito de ter achado o quadro muito bonito, e pareceu ficar um tanto envergonhado quando o duende o fitou com seus olhos candentes.

— Tu, miserável criatura! — disse o duende, num tom de absoluto desprezo. — Tu!

Parecia resolvido a acrescentar mais alguma coisa, mas a indignação sufocou-o; erguendo uma de suas flexibilíssimas pernas, e agitando-a acima da cabeça para firmar a pontaria, descarregou um belo pontapé em Gabriel Grub; a esse exemplo os duendes se comprimiram em torno do pobre coveiro e castigaram-no sem clemência, de acordo com o costume estabelecido e invariável dos cortesãos deste mundo, que dão pontapés em quem a realeza dá, e agradam a quem a realeza agrada.

— Mostrem-lhe algo mais! — ordenou o rei dos duendes.

A estas palavras, a nuvem dissipou-se e uma bela e rica paisagem fez-se
visível — a mesma que se contempla até hoje, a meia milha da velha cidade clerigal. O sol refulgia no céu límpido e azul; a água cintilava sob os seus raios; as árvores pareciam mais verdes e as flores mais alegres a sua benéfica influência. A água murmurejava com um ruído agradável; as árvores farfalhavam à leve brisa que lhes agitava as folhas; os pássaros cantavam nos ramos, e a cotovia, lá no alto, saudava o amanhecer. Sim, era manhã — uma clara e balsâmica manhã estival; a menor das folhas, o mais diminuto dos talos de grama palpitavam de vida. A formiga saía para seu labor cotidiano; a borboleta, revoluteando, aquecia-se aos cálidos raios de sol; miríades de insetos estiravam as asas transparentes e gozavam a breve, posto que feliz, existência. O homem caminhava, enlevado pela cena, e tudo era brilho e esplendor.

— Tu, miserável criatura! — exclamou o rei dos duendes, em tom de maior desprezo ainda. E, novamente, fez um floreio com a perna e castigou os ombros do coveiro; novamente, os duendes circundantes imitaram o exemplo do chefe.

Muitas e muitas vezes a nuvem apareceu e desapareceu; e muitas e muitas lições foram ensinadas a Gabriel Grub, que, embora lhe doessem os ombros, devido ao reiterado castigo neles aplicado pelo pé do duende, assistia a tudo com um interesse que nada lograva diminuir. Viu os homens que trabalhavam arduamente para ganharem o escasso pão de cada dia, alegres e felizes; viu que, mesmo para os mais ignorantes, o doce aspecto da Natureza era fonte inesgotável de prazeres e alegrias.

Viu aqueles que haviam sido criados com mimos e que tinham crescido em meio a carinhos, alegres, malgrado as privações, e superiores a sofrimentos que teriam esmagado outros de mais rude constituição, porque traziam dentro do peito as próprias fontes da felicidade, da alegria e da paz. Viu que as mulheres, as mais ternas e frágeis entre todas as criaturas de Deus, eram frequentemente superiores à tristeza, à adversidade e à desgraça, porque traziam, no fundo do coração, um manancial inesgotável de afeto e devoção. Viu, sobretudo, que homens como ele, sempre a escarnecerem da jovialidade e da alegria alheias, eram o pior joio que existia sobre a bela superfície da terra; e, confrontando todo o bem do mundo com o mal nele existente, chegou à conclusão de que o mundo, no fim das contas, era um lugar muito decente e respeitável. Mal chegara a tal conclusão quando a nuvem que envolvera o último quadro pareceu envolver-lhe também os sentidos, convidando-o ao repouso. Um por um, os duendes desapareceram de sua vista e, quando o último se desvaneceu, o coveiro mergulhou em sono profundo.

O dia já havia nascido quando Gabriel, despertando, se achou estirado sobre a laje lisa do cemitério, tendo ao lado, vazia, a garrafa de vime, e o casaco, a pá e a lanterna, recobertos da geada alvacenta da véspera, espalhados no chão. A lousa sobre a qual vira o duende sentado pela primeira vez erguia-se diante dele, e a cova em que trabalhara na noite anterior não distava muito dali. A princípio, duvidou da realidade de suas aventuras, mas a dor aguda que sentiu nos ombros, quando tentou erguer-se, convenceu-o de que os pontapés dos duendes não haviam sido de modo algum imaginários.

Titubeou, novamente, ao observar que não havia pegadas na neve que os duendes tinham pinoteado, mas logo achou explicação para o fato, ao lembrar-se de que, sendo eles espíritos, não haveriam de deixar impressão visível atrás de si. Destarte, Gabriel Grub pôs-se de pé, tão bem quanto lho permitiu a dor nas costas, e, limpando a geada do casaco, vestiu-o e voltou o rosto para a cidade.

Era, todavia, um homem mudado, e não suportava a ideia de retornar a um sítio onde seu arrependimento seria objeto de motejo e sua transformação, de dúvida. Hesitou por alguns momentos; decidiu-se, depois, a buscar outro lugar onde pudesse ganhar o pão.

A lanterna, a pá e a garrafa de vime foram encontradas no cemitério naquele mesmo dia. Houve a princípio inúmeras conjecturas quanto ao destino do coveiro, mas logo se concluiu que ele havia sido levado pelos duendes; não faltaram, mesmo, algumas testemunhas dignas de crédito que o haviam visto, muito distintamente, transportado pelo ar no lombo de um cavalo castanho, cego de um olho, com os quatro traseiros de leão e a cauda de urso. Com o passar do tempo, chegou-se a crer piamente em tudo isso, e o novo coveiro costumava exibir aos curiosos, em troca de insignificante propina, um bom pedaço do cata-vento da igreja que havia sido derrubado acidentalmente pelo referido cavalo em sua fuga aérea, e que ele, coveiro, encontrara no cemitério, um ou dois anos mais tarde. Infortunadamente, estas histórias ficaram algo desmoralizadas pelo inesperado aparecimento de Gabriel Grub em pessoa, mais ou menos dez anos depois; estava velho, reumático, esfarrapado e feliz. Contou sua história ao vigário e também ao prefeito; com o tempo, sua narrativa passou a ser aceita como fato histórico, forma sob a qual se perpetuou até hoje. Os que acreditam no conto do cata-vento, tendo sido iludido na sua boa-fé, não se mostravam mais dispostos a deixar-se iludir novamente, e assumindo ares de sabidos, encolhiam os ombros, tocavam a fronte e murmuravam algo a respeito de Gabriel Grub ter bebido toda a genebra e adormecido sobre a lápide lisa; ofereciam explicação para o que ele havia visto na caverna dos duendes, dizendo que, depois de haver corrido o mundo. Gabriel tornara-se mais esperto. Mas tal opinião, que não chegou nunca a se popularizar, foi-se extinguindo aos poucos. Seja como for, tendo Gabriel Grub padecido de reumatismo até o fim de seus dias, sua história tem, ao menos, uma moral, à falta de coisa melhor — a de que, se um homem ficar mal-humorado e beber sozinho na véspera de Natal, pode ter a certeza de que não tirará muito proveito disso, ainda que os espíritos da bebida sejam menos fortes ou estejam tantos graus acima do normal quanto aqueles que Gabriel Grub viu na caverna dos duendes.

Fonte:
http://nefasto.com.br/historia-dos-duendes-que-raptaram-um-coveiro-charles-dickens/

sábado, 5 de agosto de 2017

Francisco J. Pessoa (Se eu pudesse eu comprava a mocidade/Nem que fosse pagando à prestação)


Conto Africano (Tamina, cor do sol)

Hoje, o céu desabou sobre o coração de Tamina. À volta dos olhos de azeviche, pairam duas nuvens e, nas faces de ébano, dois pequenos riachos deslizam silenciosamente e pousam nos lábios um beijo com sabor a sal. Tamina corre a refugiar-se atrás do loureiro, ao fundo do jardim. Por detrás da folhagem espessa, os ramos abrem os braços para acolherem todos os segredos. Escondida no meio da ramagem, Tamina explica ao arbusto de onde vem este seu desgosto. Ela não compreende por que é que não tem a pele clara das manhãs de Inverno, como as outras crianças.

O arbusto não sabe o que responder. Conhece bem os amigos de Tamina, que vêm muitas vezes brincar no jardim. Acha que são todos parecidos: as roupas coloridas, os rostos alegres e os olhos travessos. Diferente, talvez apenas a cor da pele, mas não vê em que é que isso poderia ter importância.

Um melro curioso deslizou por entre a folhagem. Ao esgravatar a terra à procura de algum bichinho para comer, de saltinho em saltinho acabou por se aproximar. Tamina reconhece-o, é ele que costuma vir regalar-se com os frutos caídos, debaixo da macieira.

Em poucas palavras, o arbusto explica-lhe o problema da pequena. O melro declara que, quanto a ele, está totalmente satisfeito com a cor da sua plumagem porque o amarelo do bico sobressai muito mais no preto do que no branco.

Tamina ficou na mesma. Não tem nenhum bico amarelo para justificar a vantagem de ter a pele negra. E depois, é muito bonito, pensa ela, mas todos os melros são pretos. Se fosse o único melro branco no meio de melros pretos, talvez pensasse de outra maneira!

A poucos batimentos de asas do local, o pássaro conta à sua amiga pega o que viu e ouviu debaixo do loureiro.

A pega vai contar ao gaio, o gaio repete-o à gralha-das-torres, a gralha-das-tores presta contas ao corvo, o corvo transmite-o imediatamente à toutinegra.

Correndo assim de bico em bico, de ramo em ramo e de nuvem em nuvem, o assunto depressa chegou aos ouvidos do sol.

Com a ponta dos dedos de luz, o sol ergue delicadamente uma folha do silvado, afaga o rosto de Tamina e, uma a uma, bebe todas as pérolas do seu desgosto.

— Quando vieste ao mundo — diz-lhe o sol — eras linda, tão linda… Acho que eras o bebê mais lindo que a terra algum dia conheceu. Eu passava dias inteiros a olhar para ti mas, de tanto te admirar, a tua pele ficou dourada, tal como acontece com a espiga de trigo. À noite, não conseguia ir deitar-me, mantinha-me na linha do horizonte, porque os meus olhos não eram capazes de te deixar. Quanto mais fixava o meu olhar na tua beleza, mais a tua pele tomava a cor do café. Se eu imaginasse todo o sofrimento que isso viria a causar-te, teria pedido às nuvens que te protegessem. Foi tudo culpa minha, serás capaz de me perdoar?

Na palma das mãos, Tamina faz uma grinalda de beijos. Pede ao vento que a leve.

E no rosto de Tamina, um sorriso desenha finalmente a curva da felicidade, porque o segredo da sua cor brilha agora bem dentro do seu coração.

Fonte:
Ghislaine Biondi; Laurent Corvaisier. Tamina Couleur Soleil. Paris, Hachette Livre/Gautier-Languereau, 2001. Disponível em Contos de Encantar

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Marco Hruschka (Poemas Escolhidos)

 Empréstimo

Emprestei estas palavras
Do baú das ideias esquecidas
Para escrever uns versos
Desambicionados
Sem sede, sem meta, sem norte

Na gênese, não sabia ao certo
No que podia dar
E agora já não sei de mim
Se serei capaz de versejar

Às vezes, a poesia se apresenta
E é tão encantadora
- Sereia de cantos enfeitiçados -
Que deixo que me possua
Já não sendo mais capaz de evitar

De repente sou um servo,
Um escravo,
Um criado,
E me deixo levar pela inspiração
Que me explora,
Me usa por inteiro,
Me transmuta
E então me guia
Por uma mágica alameda
De oportunidades e
De sonhos
Que me elevam
Ao topo do mundo

E de repente sou o Sol
======================

 Boa nova

A palavra é vida
É a mãe de todas as ideias
E quando o poeta escreve
Dá à luz um sentimento novo
Capaz de transformar o mundo

O poema é a palavra ao extremo
É a potência
Latência
Paixão

Linguagem erigida
Castelo de significação
Mensagem decodificada
Comunicação

Um verso é uma lição de vida
Um ensinamento
Uma doutrina
Que o poeta constrói
Com sua própria alma
E espalha pelo mundo
Feito um apóstolo

A semear a boa nova
==========================

Mirante

Calo-me diante do insólito
Daquilo que não faz parte de mim
Do desconhecido
Do intruso
Do invasor
Pois nem tudo é capaz de construir
Nem tudo é edificante
Fico entre o limbo e o torpor
Amordaçado por mim mesmo
À parte de mim

E em mim permaneço
De olhos abertos,
Bem abertos e vigilantes,
Pés firmes no chão.
Sou o próprio belvedere:
Mirante!
Mirante!
Um voyeur em posição privilegiada
Separando o joio do trigo
Fazendo a triagem...
Desinfectando-me!

Meu inimigo, esse mundo
Insano e arrogante, insistirá!
E com sua arma,
Incansável e idealista arma,
Arremessará com força
Toda a podridão do mundo...
Mas eu sou sentinela
Imponente, imutável, perseverante!
Guardarei meu templo
Com unhas e dentes,
Pois é aqui,
Na minha fortaleza, meu forte,
Dentro de mim que pretendo me salvar,
Sou a minha terra,
Minha própria pátria,
Meu lar!

Fonte:

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

José Roberto Balestra (Papelzinho de bala)

Lembro-me da primeira vez que vi você caminhando pela minha rua. Era manhã duma quinta-feira, fazia um pouco de frio, um arzinho gelado, chato, e você ia com pressa, mas pisava tão leve que sequer eu ouvia o som de seus sapatos tocando o chão enquanto passava perto de mim. Com sua roupa simples e bonita, parecia flutuar, mas muito além de ser só bonita sua roupa; caia-lhe especial. Sem me dar conta do tempo, do portão fiquei te olhando, te olhando, você indo já lá longe, quase no fundo da rua, foi ficando menor, menor, até que sumiu num cruzamento.

Voltei para dentro de casa, retomei a ordinariedade das coisas tão triviais da vida; o arrumar da cama, o dobrar minhas roupas que usava em casa, o escovar e o guardar dos sapatos na gaveta. Assim ia eu meu dia. Todavia, de repente vi que sua imagem andando fincara-me, fixada como um painel de rua no breu da noite chamando sua presença: iluminava-se, crescia, eu olhava, via, e depois tudo ia sumindo afunilado. Em pouco, como as ondas de um lago em dias de vento brando, voltava. Sinceramente, não entendi o porquê daquilo comigo.

Mas saí também à minha faina; era preciso trabalhar. Sem perceber o meu projetor daquele filminho desligou-se. As coisas da cidade, os carros passando, a vida corrida, meus anseios de vitória, o trabalho, os bancos, a escola, contas pra pagar, o namoro rápido às vitrines das lojas com a moda chegando, tudo isso me reconduziu à normalidade, à velha ordinariedade de que falei.

A semana acabou, veio o domingo. Fui à missa das sete na catedral, lugar mágico que a gente, esquecendo as vaidades tão vãs, acha que fica mais perto de Deus de verdade. À saída do templo assustei-me: vi você de novo. E como uma caixa de tarol à frente duma fanfarra, meu coração rufou acelerado. Pensei que ia morrer. Mas se fosse, teria sido muito bom ter morrido daquele jeito, feliz, te vendo! De novo você, sem perceber nada que comigo acontecia, se misturou ao povo que respeitosamente deixava a igreja. Desapareceu como bruma ventilada...

Parei na escadaria da catedral, olhei para os lados para te achar, e por fim conclui: sumira mesmo dos meus olhos, que pena! Resolvi ir pra casa. Misturei-me também à pequena multidão. E quando parei na calçada para olhar os carros e atravessar a rua, novamente outro luminoso susto me invadiu; você estava ali, pertinho de mim, até ao alcance de minhas mãos, desenrolando o papel duma bala de cereja.

Como se conhecidos fôssemos de muito tempo, meus olhos cruzaram-se com os seus. Você me sorriu. Depois é que percebi que eu, ao impulso do coração rufando, houvera lhe sorrido primeiro. Você apenas me respondera. Ou correspondera? Atacou-me essa dúvida insana. Fingi esperar um pouco, e assim que você atravessou a rua, discreta e rapidamente abaixei-me e peguei o papelzinho de bala, da sua bala. O vento repentino dum carro que passava o soprou para mais longe de mim, mas apressei-me e pude recolhê-lo sem você ver. Enrolei-o em borboleta, com carinho. Por algum tempo fiquei olhando pr’aquilo. Depois, levantei os olhos. Não mais lhe vi. Então guardei comigo o meu troféuzinho do coração.

Os ventos da vida fizeram seus itinerários sobre mim, até que num sábado de manhã, enquanto eu comprava uma revista na banca, sem que eu visse você chegou bem perto de mim e disse bom dia! Pensei que fosse alguém cumprimentando o dono da banca, e continuei olhando as capas expostas, distraidamente. Mas aí, mais perto de mim, você me desmontou ao repetir: 

– Bom dia! Como vai? 

E antes que a resposta presa na minha garganta saísse você quase me matou do coração:

– Ainda está guardado?

– O quê?

– O papelzinho de bala?!

Sem palavras, naquel’instante meus olhos correram-lhe o corpo de cima a baixo. Sorri sem graça, disfarcei um olhar sobre as revistas e jornais expostos e, perdoe-me aquele meu atrevimento, mas eu não pude me conter quando meus braços, como um autômato, levantaram-me as mãos e foram encontrar-se com as suas que estavam tão quentinhas. Foi mais que um aperto de mãos aquele cumprimento: eu te abracei sem você saber...

Um fiozinho de raio de sol bateu em meus olhos. À estranha sensação, acordei. Olhei para o teto, reviajei comigo:

– Que coisa? Sonho? Que sonho lindo eu tive? Dá um conto, ou mais... Puxa!...

Então sentei-me na beira da cama, pisei o macio do tapete de algodão trançado, esfreguei o rosto com as mãos, enchi os pulmões com o ar novo do dia, espreguicei-me, e só então foi que vi sobre o criado-mudo:

- ...um papelzinho de bala? Borboleteado? Então não foi um sonho?...

.. e senti quando todas aquelas maravilhas se recolheram pro mais fundo do meu coração, na sua morada perpétua.

Fonte:
http://zerobertoballestra.blogspot.com/2016/11/papelzinhode-bala-12.html

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A. A. de Assis (Microcrônicas) Parte II


33
Cada mês que passa vai passando
a ser passado. Nós também.
34
Santo mesmo é o peixe. Sequer
precisou da arca para se salvar.
35
Casal de velhinhos na janela
olhando a Lua. Tão longe a de mel...
36
Futuro adiado. Ainda há gente
que namora escrevendo cartas.
37
Doce portuñol. Para los niños
los nidos... y los abuelos.
38
Do dente por dente ao voto
por dentadura. A lei da mordida.
39
Flores na enxurrada. Vão ter afinal
bom hálito as bocas de lobo.
40
Veja a parasita: parece gente
que a gente acha até bonita...
41
Teste de audição. Canta ao longe
um passarinho... e eu posso escutar.
42
Ouro, incenso e mirra. Que será
que fez Jesus com tais luxozinhos?
43
Tens que ter estudo.
Sem estudo és nada.
44
Cubram-se as estrelas. Tem gente capaz
de ao vê-las lhes roubar as pilhas.
45
Tão meninas elas, as meninas
dos teus olhos. Pedem colo, ainda.
46
Garrincha e Pelé. Depois deles
nunca mais houve igual olé.
47
Crocante e cheiroso, com garapa,
na feirinha. Pastel de saudade.
48
Um pulo, medalha. Milhões
de cabeças boas tão longe das loas.
49
Chovem meteoritos. Enxame
de pirilampos na noite da roça.
50
Na fila de idosos, troca-troca
de sintomas. Quem não tem inventa.
51
Nós e os nossos rios, cada qual
segue o seu curso. Reencontro na foz.
52
Labor, ciência e ternura. Quanto mais
amado, mais produz o chão.
53
Viva a companheira... Valeu
perder por ela o jardim do Éden.
54
Zunzunzum... zunzum... É um pernilongo
brincando de fórmula um.
55
Menina se abaixa, acaricia a flor,
sorri. Amigas se entendem.
56
Apressados passos passam
nas pistas do parque. Por que não passeiam?
57
Era transromântica. A poesia
hoje se nutre na física quântica.
58
Homo erectus. Não nasci para ser
vírgula; sou ponto de exclamação.
59
Um homem ao relento no gelado
chão. Por que não samaritamos?
60
Tinha um pé de pinha no quintal vizinho.
Tinha. Nem quintal tem mais.
61
Era um frango assado, e além de assado
era assim. Teve à mesa um fim.
62
Velhinhos na praça jogando
conversa fora. Também jogam damas.
63
Era uma era em que o neto
ouvia histórias do avô. Aí veio o celular...
64
Matuto, matuto... chego enfim
à conclusão: que matuto eu sou...
65
Nunca fui à Lua. Tampouco a Viena.
Porém amo as duas.
66
O Sol que se cuide. Volta e meia
a meia-lua chega em casa cheia.
67
Ave, avós. Hão de um dia
devolver a vós a voz.
68
Amor é isto e tão só: ou dá certo
e é fogo vivo, ou dá curto e vira pó...
69
Mataram Jesus.
E Jesus queria apenas acender a luz.
70
"Deixai vir a mim, em paz e sãs,
as criancinhas." Não estão deixando.
71
Serra-serra, será dor.
Cessa a serra, será flor.
72
Que bom ver de novo o verde.
Ver de novo a vida.
73
No cosmo, a cosmética: o puro,
a verdade e o bem. A perfeita estética.
74
“Pedro, tu és pedra”. Empresta
uma a Francisco pra reconstrução.
75
Um pingo... dois pingos... não parou
mais de pingar. E se fez o mar.
76
Nobre flamboyant. O facho que traz
nos cachos acende a manhã.
77
Branquinhas, branquinhas,
voam as garças em V. Vitória da paz.
78
Profissão de fé: eu creio
que Deus existe porque Deus existe.
79
Infinda é a esperança. Os galos
cantam ainda na aurora de cada dia.
80
Bem-aventurados os que sonham.
Chama-os Deus poetas.

Fontes:
Microcrônicas enviadas pelo autor.
Imagem: criação por J.Feldman

domingo, 30 de julho de 2017

A. A. de Assis (Microcrônicas) Parte I


1
No princípio era a paz.
Até que uma vez uma cerca se fez.
2
Tão simples, meu santo: “Ame e faça
o que quiser”. O resto é discurso.
3
Terra prometida. A fé abre ao meio o mar
para o amor passar.
4
Estrela cadente. Vaga-lumes
se alvoroçam cobiçando a vaga.
5
Ao luar, no Paraíso, o primeiro jantar
a dois. Que deu no que deu.
6
Posso viver sem ter nada;
porém jamais sem ter-nura.
7
Florzinha silvestre no jardim
do shopping-center. Êxodo rural.
8
Assanhadas rosas. Disputam
a preferência de um raio de sol.
9
Quem foi que afinal tantas florestas
derrubou? Foi o pica-pau?...
10
No meio do pasto um ponto
de exclamação. Último coqueiro.
11
Nobre girassol. Como podem,
no mercado, chamá-lo commodity?
12
Mosca na parede. Avisem
à lagartixa que o jantar chegou.
13
Mão de jardineiro. Num leve toque
faz do esterco a flor.
14
Me explique, violeta, explique: como pode,
tão humilde, ser você tão chique?
15
Corrija-se a tempo. Mais de mater
que magistra necessita o mundo.
16
Se tiver apoio, bem que pode
um dia virar trigo o joio.
17
Li num alfarrábio: de pobre se sobe
a rico, porém não de rico a sábio.
18
Na Idade da Pedra talvez já se
comentasse: – É uma pedra a idade.
19
Sabiá caçando. Nem só
de gorjeios vive, mas também de insetos.
20
Perdoa, Platão. Transformamos
a Kallipolis numa Bad City...
21
Outrora havia banda no coreto
do jardim. Onde mora o outrora?
22
Pra lá e pra cá. Enfim,
de que lado ficará o pêndulo?
23
Dizem que a cigarra nada faz
senão cantar. Ah, é indispensável.
24
Troca de alianças.
O futuro escolhido a dedo.
25
Curvada, a velhinha cata
o cocô do cãozinho. Civilização.
26
Ah, espelho meu. Cada vez
que em ti me vejo, vejo menos eu.
27
Na segunda, até os segundos
seguem devagar.
28
Maringá feliz. Abriga e escuta ainda
sabiás e bem-te-vis.
29
Um pingo de luz no topo do
arranha-céu. Brincando de estrela.
30
Parábola bela. Mas e a mãe
do filho pródigo, onde estava ela?
31
Balança o palanque. O peso
na consciência do nobre orador.
32
As rosas no cio. Sedutoramente
esperam pelo beija-flor.

Fontes:
Microcrônicas enviadas pelo autor.
Imagem: criação por J.Feldman

sábado, 29 de julho de 2017

Anibal Beça (Poemas Escolhidos)

ARS POÉTICA

Nesse afago do meu fado afogado
as águas já me sabem nadador.
A rês na travessia marejada
gado da grei de um mar revelador.

Vou e volto lambendo o sal do fardo
língua no labirinto, ardendo em cor
furtiva, enquanto messe temperada,
da tribo das palavras sou cantor.

Procuro em frio exílio tipográfico
o verbo mais sonoro em melodia
o ritmo para a cal de um pasto cáustico.

Sou boi e sou vaqueiro dia a dia
no laço entrelaçado fiz-me prático
catador de capins nas pradarias.

BOLERO DAS ÁGUAS

O passo no compasso dois por quatro
acode meu suplício de afogado
afastando de mim sedento cálice
em submerso bolero de águas tantas.

A sede dança seca na garganta
curtindo signos, fala ressequida
para a língua de couro, lixa tântala,
alisando palavras rebuçadas.

Quanto alfenim no alfanje que se enfeita
para montar as ancas de égua moura.
Lábia flamenca lambe leve as oiças,

é rito muezim ditando a dança:
no dois pra cá me levo em dois pra lá,
nas águas do regaço vou-me e lavo-me.

JOROPO PARA TIMPLES E HARPA

Em duas asas prontas para o voo
assim se foi em par a minha vida
e com rilhar de dentes me perdoo
trilhando as horas nuas na medida

Bilros tecendo rendas amarelas
bordando em vão um tempo já remoto
no sol dos girassóis da cidadela
canto um recanto que me faz devoto

A dor que existe em mim raiz que medra
no rastro mais sombrio as minhas luas
talvez não fora Sísifo ou a pedra

que encontro todo dia pelas ruas
ao revirar as heras nessa redra
trilhando na medida as horas nuas

MALA COM ALÇA

É da lama essa mala que retiro
para subir a encosta (como a pedra
que Sísifo ainda empurra todo dia)
numa viagem cheia de sequelas.

Não há como negar tantos espinhos
na travessia turva de mistérios
que vão-se descobrindo nos caminhos:
a mão negada, a fome, o vitupério,

o rito solidário que esquecemos
em troca a vaidade transitória.
Somos do barro e ao barro voltaremos.

A verdade do Homem e de sua Hora
vem com mala e alça, disto sabemos,
mais o peso do corpo e sua história.

MANHÃ

A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede  dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.

Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.

Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência

num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.

NOSSA LÍNGUA
(para o poeta Antoniel Campos)

O doce som de mel que sai da boca
na língua da saudade e do crepúsculo
vem adoçando o mar de conchas ocas
em mansa voz domando tons maiúsculos.

É bela fiandeira em sua roca
tecendo a fala forte com seu músculo
na hora que é preciso sai da toca
como fera que sabe o tomo e o opúsculo.

Dizer e maldizer do mel ao fel
é fado de cantigas tão antigas
desde Camões, Bandeira a Antoniel,

este jovem poeta que se abriga
na língua portuguesa em verso e fala
nau de calado ao mar que não se cala.

PARA QUE SERVE A POESIA?

De servir-se utensílio dia a dia
utilidade prática aplicada,
o nada sobre o nada anula o nada
por desvendar mistério na magia.

O sonho em fantasia iluminada
aqui se oferta em módica quantia
por camelôs de palavras aladas
marreteiros de mansa mercancia.

De pagamento, apenas um sorriso
de nuvens, uma fatia de grama
de orvalho e o fugaz fulgor de astro arisco.

Serena sentença em sina servida,
seu valor se aquilata e se esparrama
na livre chama acesa de quem ama.

PROFISSÃO DE FÉ

Meu verso quero enxuto mas sonoro
levando na cantiga essa alegria
colhida no compasso que decoro
com pés de vento soltos na harmonia.

Na dança das palavras me enamoro
prossigo passional na melodia
amante da metáfora em meus poros
já vou vagando em vasta arritmia .

No voo aliterado sigo o rumo
dos mares mais remotos navegados
e em faias de catraias me consumo.

É meu rito subscrito e bem firmado
sem o temor do velho e seu resumo
num eterno retorno renovado.

OLHAR

As grades que me prendem são teus olhos,
aquática prisão, cela telúrica,
liana que me enrosca e me desfolha
no tronco tosco dessa árvore lúbrica.

No sol de Gláucia apenas me recolho
e, sendo assim, o sido se faz público
num pelourinho aberto com seus folhos
zurzindo seu chicote em gestos lúdicos.

Perau de feras, circo de centelha
regendo as águas tépidas de escamas
no fogo da (a)ventura da parelha.

Tudo em suor e sal o amor proclama:
No mar do teu olhar a onda se espelha
na chama que me queima e que te inflama.

Olivaldo Junior (Pequeno conto de estrela)

O menino se chamava João. Tinha sete anos e meio. Um detalhe: queria alcançar as estrelas. Já lhe haviam dito que, se quisesse mesmo isso, tinha que ser astronauta. "'Astronáutico'?", dizia ele para si mesmo, que não entendia bem o que uma coisa tinha a ver com outra. Não queria ser nenhum "astronáutico", nem nada, só queria uma coisa: alcançar as estrelas. Seria pedir muito, seria?!

Assim, depois de um tempo, adolescente, seu desejo de alcançar as estrelas foi se diluindo no universo interior de quem tem mais o que fazer que só sonhar com o (im)possível. A mente do pequeno João já fixara bem os mandamentos da vida em duo, em trio, em quarteto, em quinteto, em múltiplos coletivos. A vida em sociedade era o seu alvo. Aliás, de quem não é? Onde seu quorum?

João não tinha muitos amigos. Nunca os teve. Tinha muitos, inúmeros conhecidos. Quantos contatos mesmo no Face? Não sei, não sei. O que sei é que, certo dia, numa noite sem lua, bem preta, um vagalume adentrou o quarto do jovem e, no meio da tela do computador, pousou sua esperança. Um vaga-lume? Sim, um vaga-lume, um resistente. Não se viam muitos mais ultimamente. Será que os pesticidas também estão acabando com eles? João não sabia. O que sabia é que, enfim, sua primeira estrela o alcançara.

Fonte:
O Autor

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Trovador Homenageado (Zelito Magalhães)


A brisa que embala o galho,
a flor que brota do chão,
as gotas puras de orvalho,
tudo tem de Deus a mão.

Agi errado, não minto   
cometi tanta faceta!
Por isso, agora me sinto
um Romeu sem Julieta.

A moral de muita gente
é como um rio profundo:
Por cima tão transparente
com tanto lodo no fundo.

A pátria dos desgraçados
não tem bandeira nem nome,
pra que tantos rebuscados
onde se morre de fome?

Bendita sejas, ó trova!
Floresces os dias meus...
Em ti eu vejo a prova
de que estou perto de Deus.

Brincar de amar é brincar
com fogo – toma cuidado!
Porque tu podes queimar,
com o risco de ser queimado.

Buscando novo horizonte
na vida de pecador,
procuro fazer a ponte
que liga a paz ao amor.

Devolvo as cartas a quem
em meu amor não quis crer,
restando os beijos, porém,
que não posso devolver.
   
Eficaz, útil e perfeita
é a dádiva que seja
dada com a mão direita,
que a esquerda não veja.

É linda, é pura, é bela
nossa amizade de irmão,
que liga meu nome ao dela
por um traço de união.

É Natal! Sinos dobrando
em emoção diferente,
parece os anjos cantando
dentro de nós, docemente.

É por demais curioso
ver a lua o mar flertando:
Na cheia – é furioso.
No minguante – fica brando.   

Merece ser imitado
o gesto do mar bravio;
aceita, sem salgado
a água doce do rio.

Na cidade de Natal
vi moça alegremente
usando fio-dental
em lugar que não tem dente.

Nos olhos do sertanejo
que pede ao céu bom inverno,
o sertão sofrido eu vejo
ardendo qual um inferno.

Ó mãe que me deste a vida,
que por mim tanto sofreu.
Em troca, minha querida:
- Vivas tu – que morra eu!

O nosso amor decantei
em feitio de oração,
sendo tão puro, não sei
porque ruiu, veio ao chão.

Ontem passeei com ela,
era noite enluarada.
Eu não sei qual a mais bela,
se a lua ou a namorada.

O Papa Paulo Segundo
ao nos deixar, eu garanto
perdeu um justo o mundo,
mas ganhou o céu um santo.

O poeta é vidente,
inspirado nas estrelas,
pois nem precisa ser crente,
ele acredita sem vê-las.

O poeta, minha gente
não é de todo feliz,
pois nunca diz o que sente,
nem sempre sente o que diz.

O poeta nasce feito,
bem diz o velho refrão:
As rimas lhe saem do peito
forjadas no coração.

Para nos manter de pé   
nesta vida de maldade,
é preciso termos Fé,
Esperança e Caridade.

Passa mais um carnaval,
quantos disfarces... enganos...
Sob a máscara original
a mesma de todos os anos.
 
Quão triste é o ofício
desse coveiro que vai
no auge do sacrifício
enterrar o próprio pai.

Quem bondade mostrar quer
às vezes, perde o que tem,
pois violão e mulher
nunca se empresta a ninguém.

Sempre fiz o meu escudo
desta verdade sagrada,
o pouco com Deus é tudo,
o tudo sem Deus é nada.
                   
Tal qual as nuvens passando
no imenso azul do céu,
também vou assim vagando
por este mundo ao léu.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Olivaldo Júnior (Dois microcontos sobre amizade)

A lanterna da amizade

O Poeta jamais podia supor que encontraria um amigo. Mas, numa esquina de sua vida, num dezembro longínquo, o Músico apareceu em seu caminho e acendeu a luz.

Desde então, por onde quer que vá, uma lanterna, flutuante e amarela luz, o acompanha, dando a ele um sol só seu, mesmo quando a chuva cai, mesmo a interior.

Faz muito tempo que o Músico não visita o Poeta. Mas a lanterna da amizade ainda pisca em certas datas, na esperança de que o Músico, lá de longe, a redescubra.
______________________________________

O olhar daquele homem

Éramos dois homens e um elo eterno a nos ligar: o da amizade. Havíamos nos encontrado por acaso (se é que existe mesmo o acaso). Seu olhar me dizia tudo de si.

Assim, por um tempo, nos víamos sempre que dava, e quase nunca era fácil. Agendas difíceis, amigos sem Face, fomos ficando longe, você na “China”, e eu, só.

O olhar daquele homem, no entanto, se entranhou no meu e, durante o meu dia, várias vezes é com os olhos dele que eu vejo a vida. Poderia chorar... Mas, hoje, não.

Fonte:
O Autor

terça-feira, 18 de julho de 2017

José Feldman (O Trovador)


O Trovador

         Hoje é o Dia Nacional do Trovador. E, em homenagem a este dia, tantas e tantas trovas são colocadas. Mas, afinal quem é o trovador?
         Trovas são os nossos sonhos, nossos momentos de tristeza, de revolta, de solidão, de alegria, de amor, de fé.
         Os trovadores carregam dentro de si uma bagagem enorme de suas realizações, decepções, sonhos e principalmente, doação.
         O trovador doa-se, para poder compartilhar o momento com os outros. É como se recebesse um pão e deste fizesse brotar tantos e tantos pãezinhos para que pudesse saciar a nossa fome de esperança.
         O trovador é coração, é alma, é sangue, é lágrima, é riso.
         O trovador busca em cada cantinho escondido da vida um mínimo que seja de um grão de areia para poder mostrar ao mundo, e transformar este grão em uma praia enorme para que todos possam aproveita-la e se encantar com a maravilha que é um mero grão.
         O trovador é luz. É luz que ilumina o caminho de muitos que vivem nas trevas. É luz daqueles que a perderam nas encruzilhadas da vida.
         O trovador é sonho. Tantos sonhos são sonhados, e o trovador carrega nestes quatro versos sonhos que se perderam na névoa do tempo.
         Enfim, o trovador é amor. É o amor dos apaixonados, o amor dos casados e dos que ainda um dia irão amar. É o amor de amigos, o amor ao próximo, o amor aos animais.
         O trovador foi, é e sempre será VIDA!
         Meus parabéns a todos os trovadores, todos que batalharam e batalham para manter esta chama acesa.
         São tantos nomes, por isto deixo os meus parabéns a TODOS OS TROVADORES E AMANTES DA TROVA.
         E em especial o meu muito obrigado a Luiz Otávio, nosso mestre maior, o estopim do movimento trovadoresco.
(José Feldman)
 

Artur de Azevedo (Poemas Escolhidos)


AS ESTÁTUAS

No dia em que na terra te sumiram,
Eu fui ver-te defunta sobre a essa*,
Fechados para sempre — oh, sorte avessa!
Aqueles olhos que me seduziram.

À luz do sol uma janela abriram,
E o jardim avistei onde, oh, condessa,
Uma noite perdemos a cabeça,
E as estátuas de mármore sorriram...

Saíste por aquela mesma porta
Onde outrora os teus lábios me esperaram,
Cheios do amor que ainda me conforta.

Quando o jardim saudoso atravessaram
Seis homens com o esquife em que ias morta,
As estátuas de mármore choraram!
________________
*estrado alto sobre o qual se coloca o ataúde ou a representação de um morto a quem se deseja prestar honras

ETERNA DOR 

Já te esqueceram todos neste mundo...
Só eu, meu doce amor, só eu me lembro,
Daquela escura noite de setembro
Em que da cova te deixei no fundo.

Desde esse dia um látego iracundo
Açoitando-me está, membro por membro.
Por isso que de ti não me deslembro,
Nem com outra te meço ou te confundo.

Quando, entre os brancos mausoléus, perdido,
Vou chorar minha acerba desventura,
Eu tenho a sensação de haver morrido!

E até, meu doce amor, se me afigura,
Ao beijar o teu túmulo esquecido,
Que beijo a minha própria sepultura!
________________

MUSA INFELIZ

Todo o cuidado nestas rimas ponho;
Musa, peço-te, pois, que me remetas
Versos que tenham rútilas facetas,
E não revelem trovador bisonho.

Meia noite bateu. Sai risonho...
Brilhava - oh, musa, não me comprometas! -
O mais belo de todos os planetas
N'um céu que parecia um céu de sonho.

O mais belo de todos os prazeres
Gozei, à doce luz dos olhos pretos
Da mais bela de todas as mulheres!

Pobres quartetos! míseros tercetos!...
Musa, musa infeliz, dar-me não queres.
O mais belo de todos os sonetos!...
________________

O MURO

Com justa maldição já te não falto,
Desalmado pedreiro, que tão alto
Fizeste o muro de jardim que cerca,
A habitação da minha namorada!

Baldado esforço! Qual o quê! Não salto!
Não quero espapaçar-me neste asfalto!
Fortuna, amor, prazer, tudo se perca!
Ah, maldito pedreiro, alma danada!

Furioso diante das paredes altas,
Consolação debalde vos procuro,
Peito que saltas, perna que não saltas!

Que lamente, que chore o fado escuro,
Quem fora o mais ditoso dos peraltas,
Se não fosse tão alto aquele muro!
________________

O RELÓGIO

Quando não vens, formosa desumana,
E, saudoso de ti, sem ti me deito,
Fica tão esperançoso o nosso leito,
Que me parece o campo de Sant'Ana!

Quando não vens, oh, pálida tirana,
Torna-se lúgubre o quartinho estreito!
Com muitas flores, flor, debalde o enfeito:
Falta-lhe a flor das flores soberana.

Se vens, é natural que isso me apraza;
Mas, se não vens, quanta amargura, quanta!
As próprias coisas sentem n'esta casa!

É o relógio, porém, que mais me espanta,
Pois, se não vens, o mísero se atrasa,
E, se vens, o ditoso se adianta!
________________

SONETO DRAMÁTICO

"O Incesto". Drama em 3 atos. Ato primeiro:
Jardim. Velho castelo iluminado ao fundo.
O cavaleiro jura um casto amor profundo,
E a castelã resiste... Um fâmulo matreiro

Vem dizer que o barão suspeita o cavaleiro...
Ele foge, ela grita... — Apito! — Ato segundo:
Um salão do castelo. O barão, iracundo,
Sabe de tudo... Horror! Vingança! — Ato terceiro:

Em casa do galã, que, sentado, trabalha,
Entra o barão armado e diz: "Morre, tirano,
Que me roubaste a honra e me roubaste o amor!"

O mancebo descobre o peito. — "Uma medalha!
Quem ta deu?!" — "Minha mãe!" — "Meu filho!" Cai o pano...
À cena o autor! à cena o autor! à cena o autor!
________________

TERTULIANO, O PASPALHÃO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?
Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!
________________

33 GRAUS À SOMBRA

Calor que os colarinhos me descolas,
Vê como tenho as roupas ensopadas!
Já tomei não sei quantas cajuadas!
Já gastei não sei quantas ventarolas!

Canícula que a toda a gente amolas
E me privas de algumas namoradas.
As pobres ficam; as remediadas,
Perseguidas por ti, vão dando as solas!

Do nosso "high-life" as pálidas donzelas,
Como um bando travesso de andorinhas
Para as montanhas vão, batendo as asas...

Sem me dizer adeus, voou com elas
A mais gentil das namoradas minhas!
Dize, meu anjo, é certo que te casas?
________________

VEM

Escrúpulos?...Escrúpulos!...Tolice!...
Corre aos meus braços! Vem! Não tenhas pejo!
Traze o teu beijo ao encontro do meu beijo,
E deixa-os lá dizer que isto é doidice!

Não esperes o gelo da velhice,
Não sufoques o lúbrico desejo
Que nos teus olhos úmidos eu vejo!
Foges de mim?... Farias mal? .... Quem disse?

Ora o dever! - o coração não deve!
O amor, se é verdadeiro, não ultraja
Nem mancha a fama embora alva de neve.

Vem!... que o sangue férvido reaja!
Amemo-nos, amor, que a vida é breve,
E outra vida melhor talvez não haja!