quinta-feira, 3 de maio de 2018

Carlos Leite Ribeiro (Aquela Boneca)


(Peça teatral dramática)

Elenco:
- Fernando, 50 anos. Frequentador do café "Ti Pedro" e seu grande amigo ...
- Pedro, 65 anos. A quem o povo chamava carinhosamente, "Ti Pedro" ...
- Joana, 60 anos. A mãe de Américo ...
- Maria do Carmo, 45 anos. Foi ela quem criou a Eunice ...
- Américo, 42 anos. Para que Eunice tivesse oportunidade de ser operada quando era ainda criança e, depois para lhe pagar os estudos, entrou numa de contrabando, e foi preso. Depois, imigrou para o estrangeiro …
- Eunice, 22 anos. Durante muitos anos apreciou e desejou "aquela boneca", nunca pensando que anos mais tarde seria sua ...
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Em todas as pequenas localidades, existe sempre um local, onde se sabe e se discute a vida dos seus habitantes. No local onde se vai desenrolar a nossa história, esse local de encontro era o café do "Ti Pedro". Uma pequena loja com pintura e mobiliário já muito antigo.

Atrás do velho balcão, o seu proprietário, já septuagenário, a quem o povo, respeitosamente e carinhosamente, chamava "Ti Pedro".

Nas poucas prateleiras de vidro que se encontravam por detrás do balcão, na prateleira central e em destaque, encontrava-se uma linda boneca, metida numa caixa de celofane.

Aquela boneca tinha uma história ...

Estávamos em princípios de Junho, quando os dias começam a aquecer. Neste momento entra no café, o Fernando, grande amigo do "Ti Pedro" ...

Fernando: - Boa tarde, Pedro. Os jornais já chegaram ?

Ti Pedro: - Ainda não chegaram, Fernando. O Expresso, como habitualmente, está atrasado. Olha lá, amigo, bebes o costume ?

Fernando: -  Não, hoje apetece-me... nem sei o quê...

Ti Pedro: - Olha, "nem sei o quê", é uma bebida que não tenho cá !

Fernando: - Vejo que hoje estás muito espirituoso. Aproveitando essa tua boa disposição, mais uma vez te peço que me contes a história dessa boneca, que há tantos anos se encontra aí atrás desse balcão.

Ti Pedro: - Qual boneca ?! ... ah, a boneca! Pois está aqui há mais de dezesseis anos, mas por estes dias deve sair daqui.

Fernando: - Nem quero acreditar que vais dar essa boneca ...

Ti Pedro: - Estás completamente enganado, pois eu vou dar esta boneca e com grande prazer e à pessoa certa!

Fernando: - Pedro, tu cada vez estás a ficar mais misterioso. O que se passa contigo, homem? Vá lá, desembucha e diz-me que mistério tem essa boneca?

Ti Pedro: - Podes crer que não tem mistério nenhum. Nenhum mistério...

Fernando: - Então, se não tem qualquer mistério, sê amigo e conta-me a história dessa boneca. 

Ti Pedro: - Amanhã ou por estes dias, conto-te.

(Entra em cena nova personagem)

Joana: - Boa tarde, "Ti Pedro" e Sr. Fernando. Olhe, troque-me esta garrafa vazia por uma cheia de vinho tinto. Se possível, pode ser fresquinho.

Ti Pedro: - Olha a tia Joana! Então, tem tido notícias do seu filho Américo?

Joana: - Tenho, tenho. Ele continua lá pelos "estrangeiros". É a vida dele, sabe?

Fernando: - Vocês desculpem-me de me meter na vossa conversa. Se não me engano, o seu Américo, desde que imigrou para o estrangeiro, nunca mais veio a Portugal, pois não?   

Joana: - O meu filho é um homem de vergonha e, assim que saiu da prisão, foi logo para o estrangeiro, e nunca mais cá voltou.

Fernando: - Que pena! um rapaz tão trabalhador e tão honesto... custa a compreender como é que se meteu naquela embrulhada do contrabando.

Joana: - Nem eu compreendo, Sr. Fernando, pois, o meu Américo sempre foi o que se pode chamar "uma joia de pessoa" e um filho exemplar. Agora é um inválido

Fernando: - O quê? Um inválido?! ... ora diga-me lá o que se passa, tia Joana!

Joana: - Não se passa nada... nada, nada. "Ti Pedro", dê-me a garrafa, pois estou com muita pressa...

Ti Pedro: - É muito curioso. A tia Joana, habitualmente, não vinha aqui comprar vinho, mas, há  uns tempos para cá, vem todos os dias comprar uma garrafa...

Joana: - Sim, sim uma garrafa. Sabe, é para, para temperar a comida ... ganhei agora o hábito de temperar todos as comidas...fazer "vinho d`alhos”... compreende, não compreende ?

Ti Pedro: - Francamente, não compreendo mesmo nada. Mas enfim ...

Joana: - Bem, agora que já estou aviada, tenho que me ir embora.

Ti Pedro: -  Tia Joana, fique mais um pouco, por favor. Disse-nos há pouco que o Américo estava inválido?

Joana: - Mas eu disse isso ?

Ti Pedro: - Pois disse...

Joana: - Então, foi sem querer !

Ti Pedro: - Eu logo compreendi que tinha sido sem querer. Tia Joana, diga-me: o Américo está cá?

Joana: - Ai que chatice... deixe-me ir embora, "Ti Pedro"!

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo está cá?

Joana: - Por favor deixem-me ir embora! Deixem-me, deixem-me. E deixem-no a ele, ao meu pobre filho, pois ele, coitadinho, está inválido!

Fernando: - Tia Joana, o que se passa, ou melhor, o que se passou com o Américo?... Nós somos amigos dele e por isso, temos o direito de saber, para assim o podermos ajudar.

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo sofreu algum acidente?

Joana: - Meu Deus, que infeliz que eu sou... o meu pobre filho sofreu um acidente com a máquina que trabalhava e, ficou sem um braço. Aquele infeliz nunca teve sorte na vida!

Fernando: - Lamento muito. Coitado do Américo!

Ti Pedro: - Mas diga-me lá, tia Joana, o Américo está cá ou não?

Joana: - Está cá, está. Mas tem vergonha de sair de casa. O espectro da prisão persegue-o, e agora pior ainda, pois não tem um braço. Que infeliz é o meu Américo!

Fernando: - Lamento muito, mas mesmo muito. Mas, tia Joana, por favor, acalme-se.

Ti Pedro: - Mas ainda bem que o Américo está cá, pois eu preciso muito de falar com ele.

Joana: - Quem me dera que o meu filho saísse de casa, que convivesse com os amigos. Que saísse daquele quarto escuro, em que voluntariamente se encerrou. Talvez daqui a algum tempo perca os complexos que hoje tem, e então comece a sair. Oxalá que comece novamente a viver a conviver!

Ti Pedro: - Tia Joana, eu hoje sem falta, tenho de falar ao Américo!

Joana: - Falar para quê, "Ti Pedro" ?!... Por acaso, o meu filho ficou a dever-lhe alguma coisa? Se é isso, diga-me por favor, pois eu, apesar de ser muito pobre, com certeza que lhe pagarei.

Ti Pedro: - O Américo não me deve nada, e que eu saiba, não deve nada a ninguém. Mas eu preciso de falar com ele, sobre um assunto pessoal, de interesse comum. Tia Joana, pode crer que é um assunto que interessa a ambos...

Joana: - Se por acaso o meu filho vem a saber que eu contei a alguém que ele está cá, vai ficar muito zangado comigo! E eu não quero que ele fique desiludido comigo, que sou a sua mãe! O Américo tem sofrido muito, muito, e só eu, com o coração de mãe, o posso compreender.
Desculpe-me, "Ti Pedro", mas eu não lhe posso dar o seu recado!

Fernando: - A tia Joana pode-lhe dizer que eu, um dia destes, passei perto de sua casa e que o ouvi falar. Logo fiquei muito desconfiado, e que hoje, por acaso, a encontrei no café e lhe falei no caso. E a tia Joana, sem querer caiu na armadilha que eu lhe montei, para saber se ele tinha ou não regressado a Portugal. Valeu? ...

Joana: - Não sei, Sr. Fernando... Se o meu filho vai aceitar essa desculpa, pois, como é natural, anda muito desconfiado.

Fernando: - Resulta, sim, tia Joana! vai ver que vai resultar. Para mais, o rapaz não pode passar o resto da vida escondido. Lá por ter estado preso por causa de contrabando, e depois, ter ficado sem um braço, quando trabalhava no estrangeiro, não é razão para ele se esconder.

Ti Pedro: - Olha, Fernando. Mudando de assunto, tenho a sensação que vêm aí os jornais.

Fernando: - Tens toda a razão, pois também a mim me parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso ...

Joana: - E eu vou indo para casa. Mas antes, peço-vos que não digam a ninguém que o meu filho Américo, está cá.

Ti Pedro: - Fique descansada, tia Joana!

Fernando: - Tia Joana, peço-lhe que não se esqueça de fazer o que eu lhe disse, está bem?

Ti Pedro: - Assim como também não se esqueça, que eu hoje, sem falta, preciso de falar com o Américo!

Fernando: - Olha que nos enganámos, Pedro. Ainda não é desta vez que chegam os jornais. O barulho que estávamos a ouvir, era de um expresso de excursão, mas...

(Nova personagem entra em cena)

Maria do Carmo: - Boa tardes, "Ti Pedro" e Sr. Fernando! O tempo está a aquecer. O que também não admira, pois já estamos perto do Verão.

Ti Pedro: - Olá, garotona!

Fernando: - Aqui a nossa querida Maria do Carmo, cada vez está mais bonita!

Maria do Carmo: - Ora, ora. O Sr. Fernando está sempre a brincar comigo. Estou a ver que hoje, o expresso, está muito atrasado, não está?

Ti Pedro: - Tens toda a razão, Maria do Carmo.

Fernando: - E os jornais hoje nunca mais chegam!

Ti Pedro: - A tua, ou melhor, a nossa menina, a Eunice, deve chegar ainda hoje, não é verdade, Maria do Carmo?

Maria do Carmo: - Conto que ela venha na próxima carreira, pois já deve ter terminado os exames finais.

Ti Pedro: - Que cabecinha d` ouro que ela tem! Por isso é que ela tem sido uma magnífica estudante e que nunca chumbou nenhum ano!

Fernando: - E só de pensar que ela, por causa daquela doença nos ossos, passou aqueles anos todos num sanatório. Mas, felizmente que hoje, quase não se nota que ela coxeia um pouco.

Maria do Carmo: -  Teve a sorte de ter encontrado um grande cirurgião, além de ter também tido a sorte de uma pessoa desconhecida, que lhe pagou todas as despesas da operação, e também os estudos. Mas Graças a Deus, a esta hora já deve estar licenciada!

Fernando: - Sempre gostava de saber quem foi esse desconhecido que lhe pagou tudo ?

Maria do Carmo: - Eu também não sei e gostava de saber, mas nunca cheguei a descobrir. E parece-me que nem aqui o "Ti Pedro", embora todo o dinheiro que essa pessoa desconhecida mandou para a Eunice, lhe tivesse passado pelas suas mãos. Ou será que o "Ti Pedro" sabe quem é, e não nos quer dizer ...?!

Ti Pedro: - Eu já vos tenho dito muitas vezes que não sei quem é. Por favor não me venham agora com essas conversas, porque eu já vos tenho dito que também não sei quem é essa pessoa; o que também pouco interessa...

Fernando: - Tenho-me questionado se seria algum dos muitos amantes que a mãe teve?

Ti Pedro: - Não, não é esse o caso.

Maria do Carmo: - Também não me parece que seja, pois esses, só a exploraram. Por isso é que a desgraçadinha morreu na pior das misérias!

Tio Pedro: - Já o pai tinha morrido, tragicamente, na chamada Guerra do Ultramar. Se não fosse o tal misterioso benfeitor, o que teria sido da nossa Eunice?

Fernando: - Aqui p`ra nós, vocês não desconfiam mesmo quem possa ser essa misteriosa personagem?

Ti Pedro: - Eu já vos disse que não desconfio de nada nem de ninguém!

Maria do Carmo: - Eu lá desconfiar, desconfio. Mas é assunto só para eu comentar com os meus botões.

Fernando: - Por acaso será que este mistério esteja dentro daquela boneca, que o "Ti Pedro" tem ali naquela prateleira, há tantos anos?

Ti Pedro: - Francamente, por muita vontade que tenha, não vos estou a compreender. Aquela boneca não tem qualquer mistério. Vocês hoje é que se voltaram p`ra aí...

Fernando: - Mas o certo é que tu já me disseste que hoje, aquela boneca, ia sair dali para sempre. Não foi? 

Ti Pedro: - E daí, homem? Em minha casa não poderei dizer o que muito bem queira?

Fernando: - Não é por nada, Pedro, e por favor, não te irrites. Para mais, daqui a pouco deve chegar a Eunice, já com o "canudo" e com o título acadêmico de "doutora".

Ti Pedro: - Cá p`ra mim, tu continuas a tentar esconder alguma coisa ... cada vez te compreendo menos, Fernando!

Maria do Carmo: - Escutem, escutem. Parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso. Vocês, por acaso, não ouvem?

Ti Pedro: - Sim, sim. Também parece que estou a ouvir o motor, do outro lado do vale. Fernando, os teus jornais já devem de estar a chegar...

Fernando: - Como sempre, anseio que eles cheguem, para saber o que vai por esse mundo. Mas, não sei o que sinto, ou melhor, pressinto. Parece-me que hoje vai acontecer qualquer coisa de muito especial

(neste momento entra em cena outra personagem)

Américo: - Boa tarde a todos. A minha mãe disse-me que o "Ti Pedro" me queria dizer qualquer coisa.

Ti Pedro: - Olha, mas és tu, és tu, o Américo, o filho da tia Joana?!

Fernando: - Olha, o Américo! Que saudades já tinha de ti!

Américo: - Sim, vocês não se enganam, meus amigos. Sou eu, o Américo, ex-presidiário e maneta permanente!

Ti Pedro: - Tu, meu rapaz! Que alegria me dás!

Américo: - Alegria... ou piedade ?!

Ti Pedro: - Qual piedade, qual carapuça! Tu, com ou sem um braço, és e serás sempre o mesmo: um grande homem!

Fernando: - Atenção que o expresso, cada vez está a aproximar-se mais.

Ti Pedro: - Américo, por acaso sabes que é que está a chegar no expresso?

Américo: - Como é que eu posso saber, se há tantos anos estou afastado desta terra?

Ti Pedro: - Tens toda a razão Américo, mas eu vou-te dizer: deve vir lá a Eunice, a nossa querida Eunice!

Américo: - De verdade ?!... Então, vou-me já embora, "Ti Pedro".

Ti Pedro: - Não. Tu Não te podes ir já embora, pois ainda não falei contigo!

Américo: - "Ti Pedro", deixe-me ir embora!

Ti Pedro: - Espera um pouco mais, Américo. Olha p`ra aqui: a boneca que há muitos anos deste à Eunice, ainda está aqui. Tu, antes de ires para a prisão, encarregaste-me de ser o seu "fiel" depositário. Pois bem, a Eunice ...

Maria do Carmo: - A nossa menina, a nossa Eunice, finalmente, chegou!

Ti Pedro: - O que vocês querem dizer, é que a nossa querida doutora Eunice, chegou !

(entra em cena outra personagem: a Eunice ...)

Eunice: - Olá!!! Mal estou a chegar e já me estão a ofender. Eu sempre fui e continuarei a ser a Eunice, a vossa menina!

Ti Pedro: - Mas tu agora, tens um curso superior, Eunice!

Eunice: - O que eu tenho é uma valorização pessoal, que muitos podiam ter, se tivessem a sorte de encontrar um benfeitor como eu tive. Mas, com esta barafunda toda, nem sequer ainda os cumprimentei: Boas tardes a todos!... Cheguei, sou a Eunice, aquela menina que vocês bem conhecem desde pequenina !

Ti Pedro: - Senta-te aqui, ao pé do Sr. Américo.

Eunice: - Com todo o prazer. Já há muito tempo que não tinha o prazer de o ver. O Sr. Américo, dá-me licença que eu lhe dê um beijo na sua face?

Américo: - Um beijo?! Um beijo a mim?!

Eunice: - Porque não, Sr. Américo?! Olhe que eu não tenho nenhuma doença contagiosa!

Américo: - Não é isso. È que eu, é que eu ... já estive preso e, além disso, não tenho um braço.

Eunice: - E o que é que isso importa?!... se esteve preso, pagou uma dívida que teve com a Sociedade; se teve um acidente, do qual perdeu um braço, é uma situação que pode acontecer a qualquer pessoa.

Américo: - E também já tenho os cabelos grisalhos.

Eunice: - Ora. Ora. A isso, chama-se vaidade masculina. Vejam lá por ter uns cabelitos brancos, já se considera velho! O Sr. Américo ainda é um belo homem!

Ti Pedro: - Peço desculpa, mas tenho de interromper a vossa agradável conversa, pois, há mais de dezesseis anos que ando como embuchado. Américo, está aqui a boneca que tu, naquele dia em que foste preso, deixaste aqui para quando a Eunice acabasse o curso, a entregar-lhe. Pois bem, entrega-a tu. Eu, estou velho, cansado, mas muito feliz por ter cumprido esta missão.

Eunice: - Esta boneca é para mim?!... E foi o Sr. Américo que me ofereceu?! ... Muito obrigado. Como sabem, eu sempre adorei esta boneca. O "Ti Pedro" deve-se lembrar bem que, quando era pequena, ficava longos minutos a admirá-la. Mas o "Ti Pedro" nunca me disse que a  boneca era para mim!

Ti Pedro: - E também nunca te disse que o teu benfeitor, era o Sr. Américo!

Eunice: - O Sr. Américo?!!! ... Mas, mas porquê?

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", peço-lhe que não fale mais neste assunto.

Eunice: - Desculpe, Sr. Américo, mas eu quero saber tudo - tudo, percebem? Eu tenho o direito de saber, por favor, digam-me!

Ti Pedro: -  É um conto muito longo. Mas eu vou tentar ser o mais sucinto possível, pois encontro-me muito cansado, muito doente. Este meu coração...

Américo: - "Ti Pedro", por favor, não se canse mais, pois não merece a pena estar a falar mais neste assunto.

Ti Pedro: - Merece, merece meu rapaz. Para mais, eu tenho de terminar este trabalho que me deste há dezesseis anos. Eunice, vem cá. O Sr. Américo sempre gostou muito da tua mãe (da tua pobre mãe, que tão cedo nos deixou), mesmo antes de ela ter casado com o teu infeliz pai, que lá ficou naquela maldita Guerra Colonial...

Fernando: - Pedro, tu não estás bem, pois não. Deixa-me pôr esta almofada nas tuas costas.

Ti Pedro: -  Põe lá essa almofada. Assim, estou muito melhor  -  obrigado,  Fernando. Mas como ia a contar, tu eras muito pequenina e já há muito que estavas internada num sanatório, para os lados de Lisboa. Precisavas, urgentemente, de seres operada...

Fernando: - Tu não estás a sentir-te muito bem, pois não, Pedro?... Estás cada vez a ficares mais pálido...

Ti Pedro: - Estou a sentir-me muito cansado... ai, este meu coração... mas vamos ao que interessa. Tu precisavas de ser operada por um grande especialista, mas não havia dinheiro. Foi, para conseguir essa importância, que o Américo se meteu nessa do contrabando, acabando por ser preso. Mas, mesmo assim, conseguiu o dinheiro necessário para a tua operação ...

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", não continue.

Ti Pedro: - Já falta pouco, podes crer... Depois de sair da prisão, o Américo, por vergonha e por necessidade de ganhar dinheiro para os teus estudos, emigrou para o estrangeiro...

Eunice: - Eu, estou tão confusa, tão surpreendida... tão agradecida, que não consigo encontrar palavras adequadas para me exprimir!

Ti Pedro: - Dentro da boneca, encontra-se um papel, que eu quero que o leiam... depois de eu morrer...

Américo: - O "Ti Pedro" está tão pálido...

Eunice: - Atenção !!!... O "Ti Pedro" está a cair!... Por favor, chamem já uma ambulância. Depressa, depressa...

Ti Pedro: - Não se incomodem... Já não merece a pena, meus filhos... ai, este meu coração... Olha lá, Américo...

Eunice: - Um médico por favor, por favor...                                         
Ti Pedro: - A minha missão... está cumprida... parto em paz...

* * * * * * * * * 
Eunice: - Morreu, morreu o "Ti Pedro" - que bondoso velhinho!

Américo: - Eu, um ex-presidiário e um inválido, é que devia ter morrido!

Fernando: - Tu, Américo, ainda não cumpriste a tua missão cá na Terra. Hoje, morreu um grande homem, o "Ti Pedro". Amanhã morrerá outro ...

Américo: - Para o "Ti Pedro", acabou-se tudo!

Maria do Carmo: - Se há funerais bonitos, este foi um deles.

Eunice: - Tanta gente o acompanhou até à sua última morada... ele bem o mereceu, pois sempre foi muito educado e bondoso para toda a gente.

Maria do Carmo: - Descansa em paz, "Ti Pedro"!

Américo: -  E nós vamos embora, pois nada mais fazemos aqui.

Maria do Carmo: - Nenhum familiar dele o veio acompanhar.

Fernando: - Ele, também nunca nos falou que tinha família.

Maria do Carmo: - Então, não deve ter descendentes... 

Eunice: - Pois não. E sendo assim, é uma pena aquele café ficar encerrado. Por falar em café, tenho que lá passar para ir buscar a minha boneca.

Fernando: - E dentro da boneca, como o "Ti Pedro" nos disse, deve de estar um papel com alguma mensagem. Por curiosidade, gostava de saber o conteúdo dessa mensagem.

Eunice: - Então, podemos ir agora todos ao café.

Maria do Carmo: - E até nos calha em caminho.

Américo: - E assim podemos a ficar a saber a última vontade do "Ti Pedro".
* * * * * * * * * 

Eunice: -  Quem havia de dizer que esta boneca um dia seria minha! Madrinha, estou tão impressionada...

Maria do Carmo: - A boneca é muito linda, mas, sobretudo representa um gesto muito bonito de um verdadeiro altruísta, ou seja, o Américo.

Américo: - Por favor, não falem mais em mim. Ainda me obrigam a eu ir-me embora.

Fernando: - Oh Américo, modéstia em demasia, é um grande defeito que deve ser corrigido. Para mais, tu és tão brioso!

Maria do Carmo: -  O Fernando tem toda a razão. O Américo não pode ser tão modesto, pois é um homem que tem muito valor.                                                                                              
Fernando: - Com esta conversa toda, já estou a ficar ansioso por saber qual o teor da mensagem que o "Ti Pedro" deixou dentro dessa boneca.

Eunice: - Tenha calma, Sr. Fernando, pois já vamos ver.

Américo: - A caixa de celofane está deslocada na parte de trás.

Eunice: - Tem razão, e é por esse lado que eu vou tirar a boneca do celofane ... Olhem, cá o papel. O Sr. Américo quer lê-lo? 

Américo: - Eu mal sei ler. Lê tu, Eunice.

Eunice: - Então tomem muita atenção: "A 2 de Janeiro de mil novecentos e tal, no cartório da cidade, fiz o meu testamento, considerando meu herdeiro universal, Américo Araújo. Depois de eu morrer, entreguem esta mensagem ao Américo Araújo, pois, a partir dessa data, este café passa a ser dele ...".

Américo: - Não compreendo... Porque seria que o "Ti Pedro" me fez seu herdeiro universal?!... Mas eu não posso aceitar, para mais, sou um inválido ...

Fernando: - O "Ti Pedro" fez-te seu herdeiro universal, porque te apreciava muito. Agora, meu rapaz, é preciso teres brio, pois capacidade tens tu. E este café não pode fechar...

Eunice: - O Sr. Américo, só é um inválido se quiser. Mas eu, ou melhor, todos nós temos confiança em si, pois temos a certeza que irá reagir. Madrinha, vamos fazer a limpeza ao café? 

Maria do Carmo: -  É p`ra já. O "Ti Pedro", tinha os utensílios de limpeza e os detergentes todos bem arrumadinhos, naquela dispensa. Vou já buscá-los.

Fernando: - E eu também vou ajudar... a limpar o pó, claro!
Américo: - Ai! Aonde eu estou metido!... Um inválido como eu, e além disso, não percebo mesmo nada deste negócio, pois eu sempre trabalhei na indústria metalúrgica.

Maria do Carmo: - Olha Américo, escusas de estar p`ra aí com essas lamúrias, pois ninguém te está a ouvir. Vamos mas é ao trabalho!

Fernando: - Se nós te não conhecessemos tão bem, diríamos que estavas a fugir ao trabalho, e que não querias fazer nada, alegando que estavas inválido!

(Outra personagem entra em cena : Uma Voz mais outra Voz)

Voz: - Boa tarde. Vendo refrigerantes, águas e cervejas - o que é que precisa para a próxima semana ?

Américo: - O senhor é o distribuidor ?
Voz: - Sou o empregado do distribuidor.

Américo: - Então, para a próxima semana pode trazer: três grades de sumos, duas de águas e quatro de cervejas.

Voz: - Muito bem. Então, até p`ra a semana, e obrigado.

2ª Voz: - Vizinho, pode aviar-me um sumo de maçã, sem borbulhas?

Américo: - Pois posso, pois não estou aqui para outra coisa. Olha, queres um copo?

2ª Voz: - Pode ser e, também quero daqueles chocolates.

Américo: - Este aqui?

2ª Voz: - O que está ao lado desse. Está aqui o dinheiro e trocadinho.

3ª Voz: - Um maço de cigarros e uma bica curta. Já chegaram os jornais?

Américo: - Ainda não chegaram, mas o expresso não deve tardar aí. Queres que te guarde algum?

3ª Voz: - Eu espero pelo expresso.

2ª Voz: - Vizinho, o chocolate tem um prêmio.

Fernando: - Chiuu, cheguem aqui. Estão a ver o que eu estou a ver?

Maria do Carmo: - Isto aqui p`ra nós que ninguém nos está a ouvir: o Américo tem muito jeito para o negócio. Até parece que passou toda a sua vida atrás de um balcão.

Eunice: - E sobretudo, muita força de vontade. È um homem brioso. Reparem como ele, apesar de não ter um braço, consegue tirar tão bem as tampas das garrafas!

Fernando: - Temos o homem. O café "Ti Pedro" vai continuar...

Américo: - E vocês aí só falam, falam e não trabalham. Daqui a pouco os clientes começam a reclamar, pois há muito pó no ar!!!

FIM

Peça teatral dramática de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal

Fonte:

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Isabel Furini (Poemas Avulsos) I

O POETA

Sonha com poemas 
e acorda na noite, 
escrevendo com os dedos 
versos no ar.

Adora 
navegar sobre ondas de folhas em branco, 
velejar nos cadernos novos, 
pular sobre areias de palavras, 
correr na praia procurando o Verbo. 
Livros, cadernos, papéis e mais papéis...

Continua a lutar com ondas indomáveis, 
organiza os termos, 
mas só ancora no oceano dos sentimentos. 
Nesse instante, 
o poeta compreende o poder do caos primordial.

TULIPAS

Lateja a vida nos meteoros das cores e das formas.
A artista pinta tulipas
no universo da tela,
e as flores alegram as retinas.

A MAGIA DO POETA

Serpenteiam os versos
de Quintana...
Caravanas de Poemas batem à porta do poeta,
tangem liras,
cata-ventos...
lâmpadas dilaceram a escuridão
dos pensamentos. 
Espelho mágico
reflete
o aprendiz de feiticeiro.

Versos... infinitos versos
acenam,
entoam canções. 
O poeta dança, dança...
Sombras começam a rir
na escuridão.

Os versos flutuam ao luar
e desenham
diadema de diamantes
na testa do poeta. 
Poeta?
Epigramático?
Dono de infinitos roteiros
e mármore e obsidiana...
Serpenteiam os versos de Quintana!..

REFLEXÃO

Fácil é a crítica, 
difícil a auto-crítica.
Fácil é reclamar,
difícil assumir o nosso destino.

POEMAS CORCUNDAS

Estes, meus poemas corcundas, são apenas
lembranças nebulosas, 
alfinetes no oceano de tristezas. 
Transitam famintos de letras e de verbos
e ao esculpi-los nas águas
só permanece erguida a ideia-semente ,
rocha de granito
arranhada pelas garras dos leões 
e  pelas unhas dos suicidas,
chicoteada 
na busca sem descanso das palavras.

META

A poesia é a meta do poeta.
- metida a poeta -
ser poeta   é minha meta.
A poesia é a meta de minha meta.

O VÉU

Na viagem da vida

os poema, as flores
e os sonhos arrasadores
são artifícios da alma para retirar o véu
revelar o seu lado oculto
e surpreender o nosso eu

esse eu
sempre obnubilado
com infantilidades.

O POÇO

a Poesia é poço sem fundo
 (profunda loucura)
às vezes é euforia
e outras vezes é triste agonia

Poesia é trovão
que ensurdece as ruas
ou é vento galáctico
arrasando
o lado escuro da Lua.

OBSCURO RETRATO DE CLARICE

Duas Luas (torrentes impetuosas,
espelhos de paixão)
soterradas nas órbitas dos olhos
e nos lábios
agulhas de palavras (palavras fascinam
os ouvidos e o fluxo do pensamento crava
estacas na areia).

Planta rosas (carmesins e indestrutíveis rosas
que resistem a foice de Cronos).

Enfeitiçados contornos transfiguram a realidade
entre ondas e monólitos de pedra,
A Paixão segundo G.H.
quebra intrincados muros de angustias,
abrem-se perfumadas pétalas artísticas
e no orbe da solidão
é cinzelada a paixão de Clarice.

ISOLADO

o poema faz uma marca na ampulheta
(tenta acelerar o tempo)

o poema ama as flores do jardim
mas odeia ficar isolado no caderno
e fazer parte do conjunto de trastes velhos
esquecidos no porão

LABIRINTO DE PAPEL

sombras sobre o palco
o mundo de papel é destruído
pelas traças
e a realidade quebra a ilusão do mundo

o poeta observa o mundo do avesso
descobre paragens de espanto
avança
desvela o mistério
da criação poética
e dança
no labirinto da subjetividade

nos muros do labirinto
sobrevivem fragmentos do passado
imagens e palavras
e as dúvidas ocultas nas retinas
que em surdina
perguntam sobre amores quase olvidados.

AS NEREIDAS E OS CORVOS

a dama (da ma)drugada
chama um poeta
para poetizar as nuvens
e as ondas do mar
e às belas Nereidas
e cantar às profundezas

o  poeta solicita um copo
de elixir sagrado
elixir criado na Constelação do Corvo

o mar respira e as Nereidas cantam
mas as gaivotas (des)mentem
as palavras veementes
dos duendes
(do outro mundo)

gaivotas e corvos
são amigos no mundo astral
mas somente as Nereidas
guardam as palavras de um mágico funeral

enquanto as Nereidas cantam
os corvos crocitam
aos ouvidos humanos poemas puros e sagrados
que serão cinzelados no momento final.

CHUVA POÉTICA

                                              Dedicado à Cassandra Joerque

os corvos crocitam
nos campos de trigo
sob a Chuva Poética

nesses campos florescem
diversos poemas
que alimentam as almas
com belos perfumes
de rosas, jasmins e alfazemas

porque a Poesia é água
que abençoa a Terra.

Fontes

Vinicius de Moraes (O Amigo Exemplar)

Pois é, compadre. Você, no exagero da sua delicadeza, não quis esperar por mim, eu trançando pela Europa inteiramente por fora do que se passava. E você morrendo sua morte com essa discrição que, melhor que uma prova de refinamento, era uma decorrência normal da sua integridade como homem. Porque eu desconfio muito dos que se deixam engessar em moldes éticos, seja por conveniência profissional, seja por medo de romper estruturas tradicionais impostas.

Você não, querido morto cada vez mais vivo. Você era uno e indivisível como um diamante que tivesse chegado ao limite máximo do seu grau de lapidação. Não havia dinheiro, glória, tentações, comendas capazes de comprar a sua honra. Talvez só a amizade - e isso porque você dava um crédito de confiança total aos seus amigos - pudesse, senão demovê-lo, pelo menos fazê-lo contornar dialeticamente uma posição moral assumida. Você nunca abstraía do humano, meu compadre. Você sabia que o homem só muito raramente é aquilo que ele diz ser; é, muito mais, "esse bicho da terra tão pequeno" de que fala Camões, passível, por amor, fé ou sectarismo, dos piores compromissos; capaz de dizer, no mais enxuto dos estilos, as maiores besteiras ou as coisas mais convencionais - e com a maior convicção. E do mesmo posso tentar realmente penetrar os mistérios do ser humano, da sociedade e da natureza, em sua busca permanente de Deus (ou de uma tábua social comum de salvação).

Você vivia num estado de quase permanente indignação contra os inimigos do homem e do que ele cria no plano da beleza. Você foi o grande e puro leão-de-chácara do nosso humilde patrimônio histórico e artístico, e não fosse você, rodeado de sua belle equipe, não só todos os nossos santos barrocos seriam hoje peças de antiquários, como a pedra sabão em que o gênio do Aleijadinho materializou o verbo austero dos Profetas do Antigo Testamento, estaria coberta de palavrões de mictório. Você, em benefício dessa missão, não só abdicou de uma vocação de escritor, para a qual era dotado dos instrumentos mais aptos, como se deixou envelhecer antes do tempo, vitimado por uma sobrecarga de aborrecimentos inúteis, quais os que lhe eram diariamente despejados em cima pelo natural mau gosto arquitetônico da classe média em ascensão, desservida pela desonestidade profissional de arquitetos de araque ou pela politicagem de alguns prefeitos do interior mais interessados em votos que em ex-votos; em fazer média com obras excêntricas e anti patrimoniais com vistas ao meio ambiente e ao futuro, que na restauração e preservação das autênticas, legadas pelas dores do passado e, de resto, as únicas capazes de fazer progredir, através do turismo, as cidades e regiões sob sua administração. 

Você lutava uma luta miúda contra o mão-de-paca da administração federal, sempre curto de verbas para atender às múltiplas e prementes exigências de restauração de obras do patrimônio sob sua guarda. Essa luta, você a levava para casa, fazia dela participarem sua admirável companheira, seus filhos e seus amigos mais íntimos. 

Houve um tempo - o tempo da rua Bulhões de Carvalho - em que toda quarta-feira nós íamos - Manuel Bandeira, Pedro Nava, eu e, com menos frequência, Afonso Arinos de Melo Franco e Prudente de Morais, Neto - jantar com você e sua Graciema, na casa arrumada com tanto gosto e carinho; e ali ficávamos até altas horas traçando nosso uísque; debatendo os problemas de nossa vida e nossa época; lendo ainda no original os poemas admiráveis de Carlos Drummond; por vezes convivendo com escritores amigos de Minas e Pernambuco, de passagem pelo Rio, e para os quais uma chegada à sua casa, e à de Aníbal Machado, constituía a melhor das obrigações. 

A conversa era inteligente, bem escandida, não isenta de humor negro, no qual, como bom mineiro, você não deixava de se comprazer. Nem faltava, tampouco, lirismo - um tanto macabro, é certo - não fôssemos nós, como diria seu também amigo Otto Lara Resende, inquilinos vitalícios da morte, sempre carregando o eterno Defunto (de Pedro Nava) em nosso cotidiano mais fisiológico. Você ria sua risada levemente dispneica, passando a mão felpuda rosto abaixo e balançando a cabeça de cabelos ralos mas impecavelmente penteados, a cada novo sutil achado de Nava ou de Prudente; ou à lembrança de minhas aventuras em nossa primeira viagem a Ouro Preto, no inverno de 1938, quando fomos com esse caro José Reis debulhar os gavetões da sacristia de São Francisco de Assis à cata de comprovantes de obras de talha do Aleijadinho ainda não autenticadas: e com que sucesso. 

Eu tivera meu primeiro desafio ao violão com o famoso improvisador Zé Badu, provocado por este, que queria brilhar à minha custa, mas por um desses azares da parlenda, estrepou-se em verde e amarelo: e, irado, partiu a dar tiros para o alto que só não mataram a família do dono do restaurante, dormindo no andar de cima, porque bala não sabe o que faz - e é só perguntar aos então jovens arquitetos Carlos Flecha Ribeiro e Vladimir Alves de Sousa, de corpo presente. Ou meu namoro com uma Mariliazinha (mesmo!) de 13 anos, mais linda e meiga que sua antiga homônima, com enormes olhos em calda... E UM CRISTO MAL CRUCIFICADO NO SEIO DE BRINQUEDO.

Ah, eu posso sentir ainda, amigo amado, o frio seco prisioneiro das belas fachadas coloniais da rua São José, e o som de nossos passos nos pés-de-moleque do calçamento. Na nesga de céu acima brilhavam as estrelas mais despudoradas do Brasil, que são as de Ouro Preto. Nós aquecíamos o peito com birita de rico, aguardente bem destilada com que nos regalavam, e resfolegávamos ladeira acima no rastro da beleza sempre a se desdobrar à nossa frente, sempre a nos surpreender a cada esquina, entre sons de serenata. 

Meus olhos, amigos, ainda não choravam sua morte. A gastura da vida que me cerca, e a grosseria dos homens que a povoam, com raras exceções, me têm de certo modo endurecido. Mas eu sei que um dia, no silêncio de uma madrugada, à simples lembrança do seu rosto erosado de rugas; à simples sensação do toque de suas mãos fraternas, no tato breve e discreto da amizade; à simples materialização do seu espectro amado no espaço expectante da minha vontade de rever você - ah, eu sei que elas correrão livres e intermináveis, para que eu possa dessedentar a saudade excruciante que sinto cada minuto, cada hora, da sua presença; do som da sua voz ao telefone a me saudar assim: "Então, querido?..."; do aconchego de sua casa e do carinho da amiga Graciema, a quem ainda não tive coragem de ir ver, para não repisar-lhe as penas. Mas sei que vou chorar, e só então você se incorporará definitivamente ao boca-livre permanente que mantenho em casa para os meus mortos. Onde você chegará, querido retardatário, me pedindo perdão pelo atraso - quando eu é que lhe devia pedir perdão de ainda não ter podido chorar -; e ficará contente de ver tantos amigos comuns que se anteciparam a você : Zé Cláudio, Zé Lins, Gastão Cruls, Mário de Andrade, Jayme Ovalle, Graciliano, Portinari, Aníbal... toda essa linda curriola. E sobretudo - penúltimo a chegar e primeiro em precedência no nosso coração - seu muito amado Manula, meu paizinho Manuel Bandeira, que um dia se perguntou como melhor precisar esta palavra amizade. E sem hesitação respondeu: nomeando o amigo exemplar - Rodrigo M.F. de Andrade.

Falou e disse.

Fonte:
Vinicius de Moraes. in Jornal do Brasil, Rio de Janeiro/RJ, 31/12/1969.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Trova 298 - Joaquim Carlos (Nova Friburgo/RJ)

Fonte: Facebook (Meus Irmãos Trovadores)

Vanilda de Jesus Pereira (Biblioteca com 22 mil livros)

Texto de Bruno Hoffmann

Em 1998, a mineira Vanilda de Jesus Pereira sofreu um derrame cerebral. Impossibilitada de retomar o trabalho de babá, passou a recolher papéis nas ruas. Havia um tipo, porém, que não servia à reciclagem: os livros. Hoje seu acervo reúne cerca de 22 mil títulos, disponíveis na Biblioteca Comunitária Graça Rios, que fundou na Vila Paquetá, em Belo Horizonte.

Desde muito cedo Vanilda manifestava interesse pela literatura, apesar de ter estudado apenas até a sexta série. O pai, analfabeto, achava leitura coisa à toa. Mulher tinha que aprender a cozinhar e a ser boa esposa.

Em 1977, aos 14 anos, a menina foi trabalhar como babá. Certo dia, esqueceu de fazer uma tarefa. A patroa encontrou-a com um livro aberto: “Onde você quer chegar lendo?”, esbravejou. Foi demitida. Com o dinheiro que dispunha, tratou de comprar o livro da discórdia – Escrava Isaura. “Queria terminar de ler a história, uai…”. Quinze dias depois, a prima da ex-patroa a contratou. Além do novo emprego, ganhou passe livre para a biblioteca da casa. “Aqui você pode ler tudo.”

A cada salário, mais livros. Guardava-os embaixo da cama. Com o tempo, o espaço ficou pequeno. Em vez de livrar-se dos títulos, alugou um barraco para abrigá-los. Em 2002 um jornalista descobriu o espaço. Só então Vanilda deu-se conta de que possuía uma biblioteca. Aprendeu a catalogar os livros com a escritora Graça Rios (“Coloquei seu nome na biblioteca para homenageá-la em vida”), e passou a receber doações de outras entidades.

O seu trabalho rodou o Brasil por meio de reportagens de televisão. Em 2015, com a ajuda de doações, foi construída a Casa do Grande Coração, um espaço de convivência com aulas de dança de salão, pilates, ioga, violão, artes marciais, atendimento fonoaudiólogo e psicológico, entre outras atividades gratuitas. Também ajudou a criar 12 bibliotecas comunitárias em outros bairros da capital. “Nada foi planejado. Fui fazendo o que era possível”, reforça a ex-catadora de papel, ex-empregada doméstica e ex-babá.

Em 2017, as admiradoras Luana Ferraz e Marcela Gonzaga resolveram escrever um livro sobre a trajetória da mineira. O título vem de uma frase muito falada pela mulher para explicar sua dedicação nas últimas décadas: Ninguém É Feliz Sozinho – Histórias de Vanilda de Jesus. Ela diz se inspirar também em uma sentença de Madre Teresa de Calcutá: “Não tem pobre que não tem o que dar e nem rico que não precise receber”.

Fonte:

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Faustino da Fonseca Júnior (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.4) I


LIRA DA MOCIDADE

Os versos na mocidade
Todos fazem, e a razão
É serem necessidade
Aos risos do coração.

O futuro cor de rosa,
O mundo cheio de encantos;
A nossa alma jubilosa
Não chorou amargos prantos.

Desde o ar que se respira,
Ao céu da cor de safira,
Tudo ri e diz – Amar!

E contemplando a beleza,
O sorrir da natureza,
Sabemos todos cantar.
_______________

ELA

O busto escultural e primoroso,
O braço torneado, a linda mão,
O rosto aveludado e tão mimoso
Que da rosa assemelha-se ao botão.

O cabelo d'um negro tão lustroso,
A boquinha vermelha, ó perfeição!
O olhar d'um fulgor tão radioso,
Que beleza e ternura d'expressão!

Ao vê–la devaneio, fico louco,
Creio que o meu amor todo inda é pouco
Lembrei-me, e se deixasse de a adorar?

Pode deixar d'amar-se os astros lindos,
Do céu e terra os dons os bens infindos,
A luz doce e tão pura do luar?
____________________

O MAR

Gigante irrequieto, imenso mar,
Inspira-me tão funda nostalgia
O teu sonoro e doce murmurar!

Quando ao sol posto a areia luzidia
Tu vens tranquilamente rebeijar
N'alma despertas maga poesia.

O teu esverdeado transparente
Fala-nos meigamente d'esperança
A ondular poético, dolente,

Beijado pelas auras da bonança;
Parece-me o brincar puro, inocente,
Inofensivo e meigo da criança!
     *     *     *     *     *

Mas quando agitas o teu seio imenso
No voltear das vagas alterosas
Rugindo com fragor enorme, intenso,

Já não tem expressões harmoniosas
Teu palpitar e n'essa hora eu penso
Em coisas bem sinistras, pavorosas.

Ó monstro, no teu seio tens sumido
Vitimas aos milhões, causas terror,
Tens navios, cidades engolido.

Será um coro de vingança e dor
Das vítimas, ó mar, o teu rugido,
Ou do remorso o pávido clamor?
____________________

31 DE JANEIRO DE 1891
Aos Revolucionários do Porto

Foi há um ano já! Leais, ardentes
Filhos do nosso querido Portugal,
Viva, viva a Republica! Valentes,
Bradaram em hosana triunfal,

Ao som da Portugueza revoltados,
Hastearam ao sol nosso pendão,
E pelo Justo Ideal, rudes soldados,
Lutaram sempre até morder o chão!

Os cérberos fiéis da monarquia
Afogaram, porém, a rebeldia
Em ondas de bom sangue, carniceiros!

E os bravos que lutavam com esperança
Caíram a bradar: Ódio! Vingança!
É tempo já! Vingar os Companheiros!
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PORQUE TE AMO

Amo-te porque és tão linda
Como é linda a luz do sol,
Tens o frescor da alvorada,
Tens a cor afogueada
Como os tons d'um arrebol.

Amo-te porque és tão bela
Como é bela a flor mimosa
Que viceja n'um jardim,
A açucena ou o jasmim,
O lírio, o cravo, uma rosa.

Amo-te porque fascinas
Com esse olhar fulgurante
Que asseteia os corações,
D'esses olhos dois carvões,
A graça do teu semblante.

Amo-te porque és bonita
Com esse preto cabelo,
Em anéis fulvos, sedosos,
Cobrindo os ombros formosos
Fulgurante, crespo, belo.

Amo-te enfim porque és meiga
Qual pomba que arrulha mansa,
Porque és boa e carinhosa,
E esta alma angustiosa
Precisa d'amor, criança.

Precisa d'amor! Não sabes
Que é lutar o viver?
O homem sofre amarguras
Por isso busca ternuras
No seio d'uma mulher.
____________________

A SAUDADE

Era de tarde ao pôr do sol, a brisa
Vinha fagueira a remexer as flores,
Iam velozes sobre a fronte lisa
Do Tejo d'ouro de ideais amores,

Ligeiros barcos, avezinhas mansas.
Desferidos em harpas geniais,
Por virgens d'olhar meigo e loiras tranças,
Vinham trenós sublimes, ideais.

O mundo todo pleno d'harmonia.
Eu, só, fitava a solidão do mar
Dominado d'ideal melancolia.

E que buscava então na imensidade?
É que me vinha fundo cruciar*
O acerado** espinho da saudade!
_______________________
NOTA:
* Cruciar: Afligir, atormentar, torturar.
** Acerado: Diz-se do que se assemelha ao aço.
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ESPERANÇA

Fitei o teu retrato tristemente
Cansado do trabalho, sem alento,
O espirito meu n'esse momento
Sofria acerbadamente, amargamente.

Contemplei-o e dei-lhe um beijo ardente
Para desafogar o sofrimento,
Pareceu-me que sorrias, pensamento
Que me passou no cérebro latente.

E fui abandonado p’la tristeza,
Recobrei para a luta mais vigor
Trabalharei tenaz e com firmeza.

Vou-me tornar estóico contra a dor.
Eu vi n'esse sorrir de tal beleza
A firme esp’rança d'um eterno amor!

Poemas de Faustino Fonseca Júnior. Lyra da mocidade Primeiros versos. Angra do Heroísmo/Portugal, 1892
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Faustino da Fonseca Júnior nasceu em Angra do Heroísmo, filho de um militar liberal que havia ficado nos Açores após a Guerra Civil. Concluiu o ensino secundário no Liceu Nacional de Angra do Heroísmo, preparando-se para seguir a vida militar. Na sua cidade natal iniciou-se no jornalismo, dirigindo o Noticiarista e revelando-se adepto das ideias republicanas. Partiu para Lisboa com o objetivo de frequentar o curso preparatório da Escola do Exército, onde se matriculou. As suas convicções republicanas, acirradas pela Revolta de 31 de Janeiro, levaram-no a não prosseguir a vida militar, dedicando-se ao jornalismo, colaborando com jornais como O Século, Correio da Manhã, Mundo e Luta. Em 1895 dirigiu o periódico Vanguarda.
Manteve intensa atividade política, especialmente a partir do ultimato britânico de 1890, distinguiu-se como agitador e membro do Batalhão de Voluntários que se ofereceu para ir defender Lourenço Marques, sendo em consequência preso em diversas ocasiões.
Com a implantação da República Portuguesa foi eleito deputado na Assembleia Constituinte pelo círculo eleitoral de Angra do Heroísmo. Com a aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1911 passou a ocupar o cargo de senador, integrando o primeiro Senado da República. Em 1915 voltou a ser eleito senador pelo mesmo círculo.
Em Março de 1911 foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa, substituindo no cargo Xavier da Cunha. Dirigiu aquela biblioteca até à sua morte, levando a cabo diversas iniciativas visando a democratização cultural.
Pertenceu à maçonaria, tendo sido iniciado em 1895. na Loja Renascença, em Lisboa, adotando o nome simbólico de Vasco da Gama.
Para além de uma extensa obra jornalística, é autor de uma volumosa e diversificada obra literária, abrangendo áreas tão diferentes como a teoria política, a historiografia, o romance histórico e as peças para teatro.

Fonte: