segunda-feira, 21 de maio de 2018

Jose Feldman (Álbum de Trovas) 7


Stanislaw Ponte Preta (Não Sei se Você se Lembra)

ENTÃO, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. 

Lembro-me bem — e não sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de mulher. 

Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas, chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de comer siris. 

Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris maravilhosos, ao cair da tarde. 

Não sei se você se lembra que ele frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro e só é vendido naquelas insípidas casquinhas. Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis e, então, nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo estomacal para eles, após o almoço. 

Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que comeríamos ao sair do Maracanã. 

Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. 

Então — não sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse que o siri já tinha acabado.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Garoto Linha Dura. 
Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.

Nota: a crônica foi originalmente publicada em um só parágrafo,
foi dividida aqui para melhor visualização.

Ester Figueiredo (Buquê de Trovas)


Algemas são os teus braços
que me prendem com ardor...
De alma nova, sem cansaços,
eu vou render-me a este amor!

Amanheci tão contente
por mais um dia de vida,
podendo seguir em frente
com Deus me dando guarida.

As alegres margaridas
enfeitam nosso jardins
jamais ficam às escondidas
parecem até manequins

A vagar por nossas mentes,
sempre tão belas, tão novas,
as palavras são sementes
que dão vida às minhas trovas.

Bem lá no alto a Estrela-Guia...
Na manjedoura, Jesus,
trazendo ao mundo alegria,
bondade, esperança e luz.

A paisagem que desfila
perante este meu viver,
lembra o tempo, lembra a vila,
o amor que me fez sofrer.

Dia de verão, tão lindo...
O sol, teu corpo dourando...
Tua, nua, quase dormindo...
E eu, bem perto, apreciando!

É magia, é sedução,
sempre que meu corpo inteiro,
ao toque da tua mão,
se transforma em um “braseiro”.

És o rumo em minha estrada...
És a luz que me ilumina...
És uma noite estrelada...
És o sol que bem me anima...

Estas rugas no seu rosto
que a deixam amargurada
formam marcas de desgosto 
por amar sem ser amada.

Esta união que é um exemplo
de amor, de fidelidade,
fez dos corações o templo
que acolhe a felicidade.

Este orgulho que carregas,
insano, dentro do peito,
foge, tão logo te entregas
de corpo e alma em meu leito.

E tu seguiste... sozinho...
Aqui fiquei rejeitada...
Prologarás teu caminho,
eu buscarei nova estrada.

Exalando este perfume,
enlaçando-me em teus braços,
eu me esqueço do ciúme
e entrego uma alma em pedaços.

Exploram o trabalhador,
prostituem a mestiça,
e quase sempre este autor
fica impune, sem justiça.

Inverno de frias noites
e também de solidão,
ausências que são açoites
machucando o coração.

Lembrando as chaves das portas,
que abrias de madrugada:
passos lentos, horas mortas...
marcando tua chegada.

Linda manhã de verão,
o sol surgiu radiante,
à noite estrelas virão
abrilhantar meu semblante.

Mãe!... Exemplo de ternura,
coragem, fé, devoção.
A tua face é moldura
que adorna meu coração.

Minha Barra tão amada,
de palmeiras, tradições...
Tu serás sempre lembrada
num século de orações.

Muito te amei... tanto, tanto,
com grande ardor dos quinze anos...
Hoje, se rola o meu pranto,
a culpa é dos desenganos.

Na carícia do teu beijo
e no calor deste abraço,
te demonstro o meu desejo
e, em prazer, me despedaço.

Na contramão desta vida,
a criança, sem saber,
é pelo povo esquecida,
mas luta para viver.

Na corrente dos teus braços,
adormecida e bem calma,
eu te entrego meus cansaços,
torno cativa a mina alma.

Não sofra, não se atormente,
tenha fé, muita coragem,
pois nesta vida silente
nós estamos de passagem.

Nas noites de serenata,
o poeta sonhador,
canta, na triste sonata,
as suas dores de amor.

Neste instante derradeiro
em que nada mais restou
sou errante marinheiro
que na saudade afundou…

Neste momento, calado,
de gestos e olhar bisonho,
penso em você ao meu lado,
nos “amanhãs” dos meus sonhos!

Num bom livro, sem frescura,
devaneio na emoção,
de tanto amor e candura,
dando-me sustentação.

O teu carinho de amante,
tão ardente e sem pudor,
eu desejo a todo instante
que me dês com muito amor.

Partiste com ar tristonho
e repleto de razão...
Fui ingrata, mas proponho:
-Volta! Dá-me o teu perdão.

Pobre menino de rua,
sem amor e sem carinho,
só a clara luz da lua
ilumina o teu caminho.

Por causa dos teus maus-tratos,
indiferença... desdém...
eu rasguei os teus retratos,
mas hoje não sou ninguém!

Por sobre o lençol macio,
desejosos, sem pudor,
brilhos de olhos no cio
clamam momentos de amor.

Quando escrevo minhas trovas,
sem saber como e porque,
sinto que são como provas
do meu amor por você.

Que a minha infância floriu
com os conselhos e cuidados,
saudades de quem partiu
mas deixou muitos legados.

Que me tire todo o breu
e que surja a claridade,
pra que neste mundo meu
reine só felicidade.

São tuas mãos que me afagam
e teus beijos que me aquecem...
E quando as luzes se apagam,
os desejos me enlouquecem...

Segue teu rumo a teu gosto...
E esqueça que eu existi,
pois as rugas do meu rosto
revelam o que já sofri.

Se me olhas, estremeço...
Se me tocas, aí, socorro!
Se me beijas, enlouqueço...
No teus braços, quase morro!

Se o mundo te encheu de dor,
se te feriram a alma,
lembra-te sempre: há o amor...
Espera, conserva a calma!

Sob um velho abacateiro,
revivo os doces amores...
E o violão companheiro
é quem canta as minhas dores.

Somente a fé na justiça
do Supremo Criador
destruirá a cobiça
de quem promove o terror.

Tantas tardes de alegria
e tantas noite de amor!
Hoje, à madrugada fria,
busco, em vão, o teu calor.

Tu finges que não me queres,
percebi tudo, já sei...
Mas nenhuma das mulheres
Vai te amar como eu te amei...

Tu trazes na alma a nobreza
e, por caminhos diversos,
mostra bem toda a beleza
tão presente nos teus versos.

Um mundo melhor seria
se o homem fosse capaz
de, num toque de magia,
converter a guerra em paz.

Um olhar cheio de brilho,
de ternura, de emoção,
é o da mãe ao nascer seu filho,
fruto de amor, de doação.

Vejo um mundo de carinho
neste teu jeito de olhar
como a seta de um caminho
que me conduz a te amar.

Vendo as ondas e os rochedos,
num encontro sedutor,
vi que escondiam segredos
de um belo sonho de amor.

Fontes:
- União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. 
Trovas de Ester Figueiredo e Lávinio Gomes de Almeida 
Coleção Terra e Céu LXX. Porto Alegre/RS: Texto Certo, 2016.

domingo, 20 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 6


Faustino da Fonseca Júnior (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.4) II


Á MEMORIA DE ALFREDO LOPES

Viver! O que é viver! Arrastar a existência
No vasto labirinto onde só reina a dor;
Num pouco de matéria é guia a consciência
Quase a perder-se a força, a faltar o valor.

Morrer! Passar além! Da luta repousar,
Deixar por uma vez do mundo as agonias;
Descer á terra mãe, os lírios fecundar,
Servir de refeição aos vermes nas orgias.

Mas coisa alguma nasce e coisa alguma morre.
Transforma-se a matéria em mil combinações:
Seiva, no vegetal as hastes lhe percorre;
Sangue, faz palpitar os nossos corações.

Tu então não morreste; apenas desta lida
Imensa, em que mostraste o fulgido talento,
Descansas. No teu corpo ha ainda essa vida
Que palpita da terra ao próprio firmamento.

A vida da matéria. Então belas, formosas,
Por cima dessa campa onde agora repousas,
Hão-de brotar de ti as lindas flores viçosas
Na vaga poesia harmônica das cousas.

Rosas a recordar teu risonho futuro,
A tua juventude os cravos em botão,
O martírio o finar na dor tão prematuro,
O cipreste a lembrar teu grande coração!

A REVOLUÇÃO

Campeia a tirania, esmaga, oprime,
E da vontade o déspota faz lei,
Do povo a justa voz cala, reprime,
Ou ditador, ou presidente, ou rei.

Calca aos pés os direitos mais sagrados
E trucida os que querem reagir,
Apoiam-no as baionetas dos soldados
Não teme pois da plebe o rebramir.

Mas de repente os ódios comprimidos
Estalam sanguinosos, em rugidos,
Irrompem como a lava do vulcão,

Fazem voar o trono em estilhaços,
A liberdade impõe com rudes braços,
É a tua grande obra: "Revolução".

ASPIRAÇÕES

Oh! Quem me dera beijar-te
A tua face rosada,
Esses lábios de carmim.
Oh! Quem pudesse abraçar-te
E gozar, ó gentil fada,
Caricias ternas, sem fim.

Quem pudesse contra o seio
Estreitar-te e essa boquinha
Sorve-la num beijo quente,
E sentir-te em devaneio
Palpitar, gozar, louquinha,
Caricias de amor ardente.

Desprezando os preconceitos
Selemos com esse amor
Potente da nossa idade,
Estreitando os nossos peitos,
Em plena vida d'amor,
Mil juras de felicidade!

Que dizes, linda, pois coras?
Antegozas as delicias?
Suspiras rubra de pejo?
Ou na tua mente infloras
Esses milhões de caricias
O amoroso dum beijo?

Pois bem, gozemos, meu anjo,
E sejamos sempre queridos
Um do outro, minha flor,
E das delicias o arcanjo
Venha achar nos sempre unidos
Gozando do nosso amor!

OS CREPES DE CAMÕES

Portugal jaz por terra! Esta pátria querida
Dos fortes, dos heróis, dos rudes marinheiros,
Esta nação valente, homérica, aguerrida
Que soube rechaçar outrora os estrangeiros,

Jaz por terra abatida! A bandeira de gloria
Que fulgurou avante ao sol de cem combates
E sempre ha-de brilhar, aqui, em toda a historia
Que foi desde o Brasil ás regiões do Gates.

Hoje roja-se no pó! De tudo o que tivemos
De brio, heroicidade, altivez e coragem
Nada nos resta já! Parece que viemos
Perdendo tudo, tudo, em fúnebre viagem!

A própria honra se foi! Um insulto cruel
Fez agitar um dia o lodaçal enorme,
Houve gritos de raiva, amarguras de fel
Mas já tudo passou! E o povo dorme... dorme!

O derradeiro arranco! Ao pobre moribundo
Não resta d'esperança um lampejo fugaz,
Hoje existe somente a mostrar-nos ao mundo
Um sepulcro marmóreo, um fúnebre – aqui jaz.

Sintetizou outrora um esperançoso ideal
Em honra do cantor das nossas tradições,
Hoje existe de pé por sobre o tremedal
Um símbolo de morte: O luto de Camões!

A BORDO

Vamos no alto mar, a noite lentamente
Encobre pouco a pouco a abobada celeste;
Ha pálidos clarões das bandas do ocidente
E sopra uma rajada aguda de Nordeste.

Corre a todo o vapor, com impeto potente
O navio rasgando a superfície agreste
Do gigantesco oceano. As ondas febrilmente
Tem o tom verde-negro e triste do cipreste.

Só vemos céu e mar, o horizonte enorme,
Cercados pelo gigante imenso que não dorme
No monótono circo é plena a solidão.

Nessa tremenda luta o pensamento humano
Mostra pujantemente, ao dominar o oceano,
Um cérebro o que vale! o que é um coração!

ROSA EM BOTÃO

Que lindo botão de rosa,
Oh! como é bela esta flor,
E tens inda mais valor
Por seres oferta amorosa.

Gentil, risonha e mimosa
Elvira imitas na cor;
Ela é pura como a flor
E tu como ela és formosa.

Mas, apesar da parecença,
Sempre existe uma diferença
Em que te distingues dela;

É que a rosa tem espinhos,
Elvira ternos carinhos,
Que a tornam inda mais bela.

Fonte:
Faustino da Fonseca Júnior. Lyra da mocidade Primeiros versos. 
Angra do Heroísmo/Portugal, 1892

Sá de Carvalho (Ausência)

Malba Tahan (O Tempo passa)

(Lenda japonesa)

Todos os deuses notaram, naquele dia, que Izanaghi, o Sétimo, preparava-se para partir em companhia de sua adorável esposa Izanami1. Kuni-toko-datis, o Primeiro, senhor do Céu e da Luz, indagou, apreensivo:

    — Pela suprema Vontade, ó Izanaghi!, para onde pretendes partir com a tua formosa companheira?

    Respondeu Izanaghi:

    — Quero observar como vivem, na Terra, os homens — esses seres inferiores, criados pela infinita bondade dos deuses. Minha esposa deseja auxiliar os mortais e torná-los felizes. É por isso que partimos.

    Kuni-satsu-tsu o Segundo, o eterno defensor da Justiça, observou:

    — Não vos esqueçais, ao julgar os homens, que a indulgência faz parte da Justiça.

    — Ensinai aos mortais — acrescentou Toio-Munon-Su, o Terceiro — que o desespero é o maior dos erros.

    Os outros três deuses, Wan-hri-su, Oototsi e Omotaron, nada disseram. Que poderiam eles aconselhar ao poderoso Izanaghi, o mais sábio dos deuses?

    Izanaghi e sua esposa Izanami desceram à Terra e foram ter à ilha de Awadsi. Essa ilha, protegida pelos famosos rochedos de Sikoff, é um dos recantos mais belos do mundo.

    Que felicidade para os homens poderia advir da presença dos deuses entre as montanhas de Awadsi?

    Izanami disse ao seu esposo:

    — Os mortais são simples e bondosos; souberam receber-nos com alegria e afeto. Acha que merecem recompensa.

    — Que desejas fazer, querida? — indagou Izanaghi — em benefício dos homens?

    A deusa respondeu:

    — Já pude observar que o grande terror de todas as criaturas é a morte. Não há um só homem que não se encha de angústia e pavor, ao ver chegar o termo de seus dias. E a morte é consequência fatal do tempo. Façamos, pois, para a felicidade da Terra, que o tempo não passe mais para os homens, embora continue a passar para os outros seres que povoam o Universo.

    — Está bem, querida — respondeu Izanaghi — Assim farei. Deste momento em diante, o tempo não mais passara para os homens.  Ficarão todos  exatamente como estão e permanecerão, assim, inalteráveis, numa existência tranquila e feliz.

    Izanaghi e Izanami continuaram a viver sob céu de Awadsi, entre os rochedos de Sikoff.

 — Está bem, querida — respondeu Izanaghi — Assim farei. Deste momento em diante, o tempo não mais passara para os homens.  Ficarão todos  exatamente como estão e permanecerão, assim, inalteráveis, numa existência tranquila e feliz.

Um dia, afinal, foram os deuses despertados por estranho rumor. Grande multidão, em atitude de protesto, rodeava o palácio.

    — Que deseja essa gente? — indagou Izanaghi.

    Os jovens e adolescentes disseram:

    — Senhor! A vossa decisão sobre o tempo foi, para nós, um castigo tremendo. Se o tempo não passar, jamais chegaremos a viver. Queremos que o tempo passe, para que possamos chegar à idade de casar, constituir família — realizar, enfim, a nossa missão na vida e dela tirar a nossa parcela de felicidade! Que adianta viver sem sentir passar a vida?

    Os homens de meia-idade também falaram ao Sétimo Deus:

    — O tempo, senhor, continua impassível para nós! Como é triste e monótona a vida que não passa! Queremos ver o perpassar dos dias, pois alimentamos a ambição de apreciar os nossos filhos crescidos, trabalhando felizes ao nosso lado!

    — Também nós, senhor! — acudiram os velhos — desejamos que o tempo passe. — Torturados pelos achaques de nossa idade, que pode valer a vida para nós? A nossa felicidade é o reflexo da felicidade daqueles que amamos. Queremos que o tempo passe, pois só o passar do tempo fará a alegria de nossos filhos e de nossos netos!

    Arrebatado pelo desespero (que é o maior dos erros) Izanaghi esqueceu-se de que a indulgência faz parte da justiça. Tomado de vivo rancor contra os homens rebeldes, exclamou:

    — Insensatos! Quereis que o tempo passe para que possais viver cada momento iludidos pelas falazes esperanças do futuro! A lembrança bondosa de minha esposa foi repelida pela ingratidão que vive em vossos corações. Quereis que o tempo passe? Pois bem, o tempo passará!

    E rematou:

    — Mas o passar do tempo será sempre ao contrário de vossos desejos, ao arrepio de vossas aspirações. Será rápido e fugaz nas horas felizes e lento, muito lento, nos períodos de dor e tristeza.

    E o castigo dos deuses caiu impiedoso sobre os homens.

    O tempo passa — esse foi o desejo de todos; passa, entretanto, célebre e fugidio nas horas de alegria e felicidade; vagaroso, tardo e torturante nos minutos infindáveis de angústia e sofrimento.
__________________
Nota:
1- Izanami — Todos os deuses citados nesta lenda, faziam parte da mitologia dos primitivos habitantes do Japão. Vide A. Humbert — “Le Japon”.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

sábado, 19 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 5


Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) I

A lua saudosa e abstrata,
vive à espera, inutilmente,
que retorne, em serenata,
o encanto de antigamente.

A passos mirabolantes,
caminha o mundo de agora,
e o suave encanto de antes
dorme nas dobras de outrora.

Carente, o animal ferido,
recebe ajuda, e do chão,
seu olhar enternecido
é a imagem da gratidão.

Chá-da-tarde… requintado…
mas em teus gestos, servindo,
com jeitinho e com agrado
tu me descartas, sorrindo.

Como a brisa que engalana
as ondas, ao sol poente,
a cançoneta italiana
põe galas na alma da gente.

Coração deixado vago
lamenta ter que informar:
fizeram-lhe tanto estrago,
que não dá mais pra morar.

Em cada tarde a cair,
vejo a vida, em agonia,
aos poucos se despedir
na morte de mais um dia.

Em gaveta esvaziada,
persiste um, cheiro envolvente
como de fruta apreciada
de que se guarda a semente.

Itália, quanta beleza,
quantos romances vividos,
os teus canais de Veneza
nos segredam aos ouvidos!

Mais do que encanto e beleza,
a Música e a Poesia
sofrem conosco a tristeza,
vibram com nossa alegria.

No rescaldo de uma vida
que o destino destruiu,
entre escombros, encolhida,
somente a fé resistiu…

O amor, ao termo da vida,
deixa na pauta apagada
uma só nota sentida,
canto de cisne… mais nada.

O ramo seco de hera
entre páginas guardado
é um marco da primavera
que me restou do passado.

Quando me entrego ao passado,
sinto-o tão perto e envolvente,
que – esquecido e enevoado -
longe, de fato, é o presente.

Sertanejo, na viola,
é a voz da terra gretada,
suplicando pela esmola
da chuva há tanto esperada.

Ternas lágrimas descendo
num triste rosto enrugado,
parecem chuva escorrendo
num velho muro gretado.

Velha Itália, sempre bela,
não tens idade aparente.
Desfilas na passarela
como eterna adolescente.

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da Tarde: trovas.
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.

Nilto Maciel (Calvário)

Faca no cós, blusa aberta, calça arregaçada, João chegou à estrada, olhou para cima e para baixo e tomou o rumo da direita. Muito adiante, antigamente, havia uma cruz fincada no chão, junto à cerca, a indicar o lugar onde seu pai sofreu morte sangrenta. Não sabia quem, mas um espírito de porco, um cabra sem-vergonha, um filho de uma égua teve a petulância de arrancá-la e quebrá-la em dez pedaços.

Coitado do velho Luiz, não sossegava nem depois de morto. Primeiro mataram seu irmão José, de emboscada. Vingou-se, matando um dos criminosos. Nem bem se satisfez, o povo do morto o matou.

– Sina mais desgraçada!

João olhava para os destroços da cruz de seu pai. Pedaço aqui, pedaço ali. Então para que morrer, ser enterrado e ter uma cruz? Para quê?

O sol do meio-dia crestava o mundo, a cabeça de João, e seus olhos ardiam e se empapavam de água salgada, suor. Correu, correu, correu. Outra cruz remexia-se à sua frente. Deu-lhe um chute, quebrou-a. Abaixou-se para arrancá-la de vez. E lançou os pedaços no meio da estrada. Ferido nas mãos, seguiu a gritar blasfêmias e porcarias. Um caminhão cobriu tudo de poeira e buzinadas. Tropicou na segunda cruz. Arrancou-a, quebrou-a.

E durou léguas sua insânia.

À entrada da cidade, quando se voltava contra mais um entrançado de varas, o jipe dos soldados o cercou. E o agarraram, aos socos e pontapés.

Amarrado ao carro, o cortejo seguia. Nenhuma cruz carregava João, escoltado pelos inimigos, que o açoitavam e riam.

Tanto tempo durou o trajeto que ainda no meio do caminho se acercaram do jipe a molecada e o povo de João. Sua mãe gritava, chorava, agarrava-se a ele, mordia os soldados, e caía, desgrenhava-se, feria-se. Seus irmãos lutavam para livrá-lo das cordas e nunca João devia chegar à delegacia.

Despertada pelo fuzuê, aos poucos toda a cidade se juntou para ver de perto a perversidade dos soldados. Os tantos olhos fitos naquele horror buscaram então as pedras da rua e os galhos das árvores. E se deram pedradas e pauladas a torto e a direito. Os mais zangados buscaram foices e facões, espingardas e bacamartes. Golpes mais fundos e tiros mais doidos se cruzaram no meio da rua.

Na confusão, ninguém sabia contra quem brigava, a quem feria, matava, porque já os soldados haviam tombado, João e seus parentes não viviam. E uns corriam, gritavam, outros gemiam moribundos, pisoteados, a arrastarem-se inutilmente pelo chão coberto de trapos e sangue.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.