domingo, 22 de abril de 2018

Lourdes Gutbrod (Trovas Seletas)


1
Amor que não se revela,
aprisionando carinhos,
é como a rosa, tão bela,
mas guardada por espinhos!
2
A vida - sempre tão cheia
de labutas e batalhas -
para alguns é bela ceia,
para muitos... só migalhas!...
3
Como noiva prometida,
lírios na fronte e na mão,
eu te esperei toda a vida
no altar da minha ilusão!...
4
Com teu ar de indiferença
foste um vento, em minha vida,
que entrou sem pedir licença
e saiu sem despedida!...
5
Coragem!... Se Deus nos testa,
também nos cura as mazelas,
e a Vida é linda seresta
para quem abre as janelas!!!
6
Ele a “embroma”: nova data!...
E o casamento é adiado.
Vão fazer bodas de prata
pelo tempo de noivado!
7
Em cada vã tentativa
de arrancar-te da memória,
tua imagem mais se aviva
nas cenas da minha história!... 
8
É quando tu ficas mudo,
e assumes um ar lascivo,
que teu corpo fala tudo
do modo mais expressivo...
9
Felizes os que despendem
seu tempo com a educação:
esculpem almas e acendem
luzeiros na escuridão!
10
Gostava desta ousadia:
amar sem rédeas nem laços.
E acabei, por ironia,
prisioneira, nos teus braços… 
11
Grite, revele o que pensa,
com ira ou mesmo agressão!
Suporto a mais dura ofensa,
mas esse desprezo... não!
12
Já fui tua… foste meu…
Não faz mal se hoje padeço:
– Quem um grande amor viveu
acha justo qualquer preço.
13
Juras de amor… Uma rosa…
Recomeça tudo, enfim!
E, nessa hora venturosa,
já não sou dona de mim!…
14
Liberdade!... Infelizmente
muitos a buscam no vício,
forjando a própria corrente
que os arrasta ao precipício!
15
Mentir era tão frequente
- por brincadeira, vaidade… -
que a mentira, finalmente,
tornou-se a minha verdade.
16
Na minha vida sombria,
que só conhece empecilhos,
sou um trem sem serventia,
parado... fora dos trilhos!...
17
Não julgue, ao perder a calma,
que o mundo é uma grande arena
e, abrindo as janelas d’alma,
diga à vida: - Vale a pena!
18
Não sabes... não adivinhas,
lendo as cartas que te escrevo,
que digo, nas entrelinhas,
tudo aquilo que não devo...
19
Nas vãs promessas que fazes
não suponhas que acredito:
Queres prazeres fugazes...
e eu busco amor infinito!
20
Navegante sem destino,
ante um naufrágio medonho,
eu me agarro, em desatino,
aos destroços do meu sonho!...
21
No espaço, além, fui buscar-Te
sem que, ó Deus, Te revelasses...
e estavas em toda parte
sob as mais diversas faces.
22
Passam céleres as horas,
tudo é mutável e obscuro...
O tempo engole os agoras
e tem fome de futuro!
23
Passo momentos felizes
vivendo só de ilusão,
pois as mentiras que dizes
são, na verdade, meu pão.
24
Pedes perdão... e eu, vencida,
com teus beijos me deleito,
e ouço a música da vida
tocar de novo em meu peito!
25
Qual de nós dois nesta trama
é mais falso ou desonesto:
– Você... ao dizer que me ama?
Eu... ao gritar que o detesto?
26
Quando a volúpia me invade,
eu me entrego em cada gesto...
Perco o nome, a identidade.
Sou tua! Que importa o resto?...
27
Quando eu partir, não precisa
louvar-me... expor-me em retratos:
lembre, só, que fui poetisa
e apaixonada por gatos!!!
28
Quando voltas, não te acanhas:
pedes desculpa e me agradas...
E eu me rendo às artimanhas
dessas conversas fiadas!...
29
Quantas cenas de ternura,
se estamos juntos, a sós!
Sem timidez nem censura,
em nosso palco... só nós!
30
Que importa se me sorrís,
às vezes, por compaixão?
Prêmios me fazem feliz,
mesmo os de consolação.
31
Quem conhece o desencanto
e os desgostos por que morro
percebe sempre, em meu canto,
muitos gritos de socorro!
32
Quem diz ter sabedoria
e os seus talentos exalta,
revela, por ironia,
justamente o que lhe falta!
33
Quis arrancar brutalmente
do meu passado as raízes,
mas você está presente
mesmo em minhas cicatrizes!...
34
Se aos infelizes dás sobras
com desdém, indiferença,
há, decerto, nessas obras,
não bondade... mas ofensa.
35
Sem me curvar à derrota,
nenhum desalento esboço.
E à esperança mais remota
respondo bem alto: Eu posso!!!
36
Se o homem romper a grade
que o fecha em seu egoísmo,
será a Fraternidade
uma ponte sobre o abismo.
37
Sou um verbo transitivo
que nunca encontrou objeto,
condenado, sem motivo,
a ser assim: incompleto...
38
Tamanha paixão eu tinha,
e há tanto que te aguardava
que, ao me elegeres raínha,
eu me entreguei como escrava!
39
Tu chegas...e, em vez de paz,
trazes dúvida e aflição,
pois sei que é o pouso fugaz
de uma ave de arribação...
40
Tu chegaste sem rodeio,
fingindo paixão por mim...
E eu apenas fui um meio
para atingires teu fim.
41
Tu vens, ardoroso e amante...
e sempre partes, ligeiro.
Qual relâmpago, és vibrante,
mas de fulgor passageiro.
42
Um mundo humano e decente
eu sempre buscava a esmo...
até saber que era urgente
mudar, primeiro, a mim mesmo!
43
Usas, para conquistar-me,
fogoso e avassalador,
uma máscara de charme
e os ardis de um sedutor!
44
Vendo-te à luz da Razão,
com a máscara caída,
descubro o grande vilão
que encarnaste em minha vida!
45
Voltar para mim?… Não tente,
tudo está morto e enterrado.
Rompi, de vez, a corrente
que me prendia ao Passado!…
46
Voltas… e, ouvindo os teus passos,
cheia de amor e esperança,
eu, de novo, te abro os braços,
sem condições nem cobrança!

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 57 a 60









57 — SOLANO LOPEZ NÃO GOSTOU

Mas... Francisco Solano Lopez, ditador do Paraguai não gostou de ver o Brasil metendo o bedelho nos negócios do Uruguai. Sem declarar guerra prendeu no Rio Paraguai o vapor brasileiro Marquês de Olinda que levava a bordo o presidente nomeado para o Mato Grosso. Em seguida uma força paraguaia invadiu esta Província brasileira. Outra se meteu República Argentina a dentro.

Estava acesa a guerra.

Brasil, Argentina e Uruguai uniram-se e formaram a Tríplice Aliança para guerrear o Paraguai. No Brasil criaram-se os Corpos de Voluntários da Pátria.

Tibicuera vendeu o sítio, despediu-se das galinhas, lançou um olhar de adeus para os livros e para o milharal crescido — e se alistou no Exército. 

Travou-se o combate naval do Riachuelo. Francisco Manuel Barroso da Silva, comandante da nossa divisão naval, conseguiu uma grande vitória. Estigarríbia à frente de seu Exército invadia o Rio Grande. Mas 100 dias depois, se entregava em Uruguaiana. E D. Pedro II, que tinha vindo em pessoa ao Rio Grande, assistiu à rendição do chefe inimigo.

Os aliados invadiram o território paraguaio, passando pelo Uruguai e o território argentino de Corrientes. O Brig. Manuel Luís Osório comandava nosso Exército. Que era um homem valente e impetuoso eu vi. Não li nem ouvi dizer. Vi. Vocês hoje falam na 1.ª Batalha de Tuiuti... Mas não imaginam o que ela foi na realidade. Eu estava lá, eu a sinto ainda no meu peito, nos meus ossos, no meu sangue.

Não quero contar o que foi aquela campanha que ficou na História com o nome de Guerra contra o Governo do Paraguai. Ferido duas vezes, passei muito trabalho, sofri horrores.

Curupaiti, Humaitá, Tuiuti, Itororó, Lomas Valentinas, Angostura... São nomes que lembram tiros de canhão e de espingarda, baionetas relampejando, homens gritando e caindo, sangue empapando o chão. Cada nome desses recorda uma batalha. É claro que não estive em todas elas. Mas, oh!, como desejei estar em toda a parte onde se lutava! Argentinos e uruguaios guerrearam com bravura a nosso lado. Valentes, e muito, eram também os paraguaios.

Estive no Cerro Corá com os soldados que cercaram Lopez. O ditador não se quis render. Um dos nossos o matou. A guerra terminou. Durara mais ou menos cinco anos.

Consegui ser transferido para um regimento do Rio de Janeiro. Em princípios de 1871 voltei para a Capital do Império. Tirei a farda e de novo me vi sozinho e pobre, indeciso e inquieto, diante do mar, do velho mar da minha saudade e das minhas aventuras.

58 — MOTINS...

Um dia ia caminhando por um largo, na cidade, quando vi grande aglomeração em torno de um homem que, de pé em cima dum banco, fazia um
discurso entusiasmado. Aproximei-me e escutei. Era um propagandista da República. Gostei do que ele dizia. Eram palavras bonitas. Promessas agradáveis. 

Comecei a me interessar pela República e frequentei o Clube Republicano que fora fundado no ano anterior por Saldanha Marinho, Aristides Lobo e Cristiano Otoni. Foi lá que, no decorrer dos anos da propaganda, travei relações com homens inteligentes e entusiastas, alguns deles muito jovens.

Lembro-me de Quintino Bocaiuva, Silva Jardim, Rui Barbosa, Campos Sales, Demétrio Ribeiro, Joaquim Nabuco, Assis Brasil, Eduardo Wandenkolk...

Por aquele tempo o Imperador foi fazer uma viagem à Europa. Na sua ausência a Princesa Isabel ficou como regente do Império. No clube comentamos com muita satisfação a lei do “ventre livre que declarava livres os filhos nascidos das escravas.

O tempo passou. Progredi na vida. Consegui ótima colocação. Voltei-me de novo para os livros. Em 1875 tivemos notícia de motins em algumas Províncias do Norte. Em Pernambuco o povo atacou e invadiu casas de negócios, por causa da lei do governo que mandava adotar o sistema métrico decimal. Ninguém queria saber de comprar as coisas aos quilos. Vejam que engraçado! Mas os quebra-quilos tiveram de amoitar, porque o governo agiu com energia.

No Rio as coisas não andavam boas. Fora criada uma taxa de vinte réis sobre cada passagem de bonde. Era o Imposto do Vintém!

Lopes Trovão, um jovem propagandista da República, fez comícios na rua e falou contra a odiosa taxa. No dia em que a lei ia ser posta em vigor, o povo falava em revolta. 

Comecei a ficar inquieto. E, a despeito de todos os esforços que fiz para me portar com discrição, não pude resistir ao desejo de fazer uma baderna. Foi num bonde. Quando me vieram cobrar a passagem, soltei um “Viva a República!”.

Veio a polícia. Socos, pontapés, gritos. Depois, tiros. Naquele dia houve barricadas nas ruas, travaram-se verdadeiros combates. Foram mobilizados os corpos de linha, os imperiais marinheiros, os bombeiros.. .

Cheguei a meu quarto de madrugada, empoeirado, esfolado, esfarrapado. Contemplei meus livros com tristeza. Eu era mesmo um caso perdido.

59 — ZUMBI, TEU POVO ESTÁ LIVRE!

Fiz-me amigo de José do Patrocínio. Tenho dele as melhores recordações. Não poderei mais esquecer-lhe a figura imponente. Era um negro de ombros largos, olhar chispante. Jornalista e orador, seus artigos e discursos eram vibrantes e entusiastas. Batia-se a favor do abolicionismo: queria acabar com a escravatura no Brasil. Ele próprio era neto de escravos.

Tivemos por aquela época um caso complicado conhecido como “a questão militar”. Houve discussões pela imprensa. As opiniões se dividiram. O ministro da guerra repreendeu os oficiais que haviam escrito nos jornais sem licença. Mas o Mar. Deodoro da Fonseca e o Ten. Gen. Visconde de Pelotas se manifestaram a favor desses oficiais.

Eu via o governo pouco seguro. A República não tardaria em ser proclamada. Na noite de 13 de maio de 1888 me vi na rua no meio duma multidão que, louca de alegria, gritava, cantava e ria, dando vivas à princesa regente. D. Isabel, que acabava de assinai a lei abolindo definitivamente a escravatura. Deixei-me levar pelo povo, fui arrastado, olhando para o céu, lembrando-me de meus companheiros mortos nos quilombos. E não pude deixar de dizer baixinho: “Zumbi, teu povo está livre!”

Todos os sonhos dos homens do passado se realizavam. À cabeça de Tiradentes decerto sorria lá do alto do poste infame, contemplando a pátria libertada. Quem sabe se agora lá duma estrela remota o Zumbi não estava sorrindo também para a regente do Império?

60 — 15 DE NOVEMBRO DE 1889

A todas ESTAS a questão militar continuava acesa. Aproveitando um boato de guerra entre Paraguai e Bolívia, o governo mandou ao Mato Grosso uma força comandada pelo Mar. Deodoro da Fonseca. Um meio hábil de afastá-lo do Rio…

Um dia, já ele de volta à Corte, correu pela cidade o boato de que o marechal ia ser preso juntamente com o Ten. Cel. Benjamin Constant. Uma brigada de São Cristóvão se rebelou. Deodoro e Benjamin Constant puseram-se à frente dessa força. 

O momento é de sensação. Todos os ministros — menos o da Marinha — se encontram reunidos no edifício do Ministério da Guerra. Nervosismo geral. Deodoro marcha à frente das brigadas revoltadas. O almirante Barão de Ladário, Ministro da Marinha, aproxima-se. Vem de carro, com o fim de se reunir ao Ministério. Deodoro manda prendê-lo. O barão resiste à voz de prisão e é ferido por uma descarga.

Deodoro entra no pátio do Ministério da Guerra onde se encontram as tropas do governo... Como vão recebê-lo? Como inimigo? Há momentos de terrível angústia. Deodoro entra. As forças do governo lhe prestam continência. É a revolução.

Os ministros se entregam aos revoltosos e telegrafam ao Imperador, que se acha em Petrópolis, apresentando-lhe seus pedidos de demissão. Quando vi o rebrilho das baionetas e ouvi o som das charangas, não pude deixar de acompanhar as tropas que desfilavam pelas ruas.

Naquela mesma tarde de 15 de novembro de 1889, José do Patrocínio levou ao Mar. Deodoro da Fonseca um manifesto declarando que o povo havia proclamado a República. Formou-se o governo provisório. Estava proclamada a República dos Estados Unidos do Brasil. Quatro dias depois eram adotadas uma nova bandeira e as armas nacionais. E o Imperador? Ninguém lhe queria mal. Era uma grande alma, cheia de bondade e tolerância. Eu até simpatizava com ele. O que me seduzia na ideia republicana era o que ela tinha de novo, de revolucionário, de vibrante.

D. Pedro II foi intimado a partir para a Europa. Fui ao cais espiar seu embarque. Eram três horas da madrugada. O imperador veio num carro negro, puxado por uma parelha de cavalos. Pouca gente o acompanhava. Uma lancha o conduziu até o paquete Alagoas que devia levá-lo para o exílio.

Olhei o vulto encurvado. Tive pena. Vi o vapor partir e não sei por que me lembrei daquele dia distante em que as caravelas de Pedro Álvares Cabral se fizeram ao mar.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 

sábado, 21 de abril de 2018

Trova 293 - Jessé Nascimento (Angra dos Reis/RJ)


Carolina Ramos (Poesias Esparsas)

Pescador de Sonhos

Ante o fluxo e o refluxo desta vida,
jogo a rede buscando uma esperança.
A vida é mar revolto que intimida,
mas, recompensa a quem jamais se cansa.

Pude provar, em minha intensa lida,
que nem sempre é melhor a maré mansa.
E que a onda bravia, impressentida,
pode levar à areia, que descansa.

O poeta é um pescador sempre à procura
de pérolas, no mar da vida, esparsas…
Se a rede não vem cheia e a noite é escura,

o poeta-pescador, mesmo tristonho,
abre as asas liberto como as garças
e alegra-se ao pescar um simples sonho!
___________________________

Um dia..
a um falso amigo

Não importa buscares, por despeito,
cobrir a luz, envolto pela sombra!
Que importa apagues todo o bem que é feito,
dando ênfase à mentira e ao mal que assombra!

O que importam malícias e trapaças,
perfídias que a calúnia hoje divulga,
se um dia tudo acaba… e também passas…
e Deus, então, há de julgar quem julga!
__________________________

Orquídea

Presa ao tronco, sob alta ramaria,
Fidalga, a orquídea viça. Ao seu encanto,
pasmam os colibris e se extasia
a noite que a abrilhanta com seu pranto!

Espiritual, ao solo repudia
ansiando pelo espaço, no mais santo
desejo de ser pura. A fantasia
lhe esmera a forma e lhe colore o manto.

Flor sonhadora, em busca do infinito,
reclusa em seu páramo selvagem,
guarda o fascínio e a sedução de um mito!

E em sua altiva solidão de asceta,
retrata a orquídea a mais perfeita imagem
da alma utópica e lírica do poeta!
_____________________________

O Inventor

Desde cedo, sonhara ser, um dia,
um inventor famoso de verdade!
E alimentava a doce fantasia,
no enlevo de servir à humanidade!

Cresceu ao acalanto da poesia.
E ao vê-la sucumbir à realidade,
sentiu que a fibra, aos poucos, lhe fugia,
dando morada aos sonhos e à saudade.

Velho e cansado, em fuga da amargura,
acomodou-se a conquistar afetos
e a descobrir tesouros da ternura!

E na humilde renúncia às próprias glórias,
rodeado de filhos e netos,
nada mais foi que um inventor de histórias!…

Fonte:
RAMOS, Carolina. Destino: poesias. 
São Paulo: EditorAção, 2011

Oscar Wilde (O Amigo Dedicado)

Certa manhã o velho Rato d'água pôs a cabeça fora do buraco. Tinha uns olhos redondos muito vivos e uns duros bigodes cinzentos, e sua cauda parecia um comprido elástico negro. Os patinhos estavam a nadar na lagoa, semelhantes a um bando de canários amarelos, e a sua mãe, toda branca com patas vermelhas, esforçava-se por ensinar-lhes a manter a cabeça dentro d'água.

- Vocês nunca poderão frequentar a boa sociedade, se não aprenderem a manter a cabeça dentro d'água - dizia-lhes. E de vez em quando mostrava-lhes como devia ser feito. Mas os patinhos não lhe prestavam atenção alguma. Eram tão jovens que não sabiam que vantagens existem nisso de frequentar a sociedade.

- Que criaturas desobedientes! - exclamou o velho Rato d'água. - Mereciam realmente afogar-se.

- Nada disso - replicou a Pata -, todos têm de ter aprendizagem e nunca é demais a paciência dos pais.

- Ah! Não tenho a menor ideia a respeito dos sentimentos paternos - disse o Rato d'água.

- Não sou pai de família. Na verdade, nunca me casei e nunca pensei em fazê-lo. Indubitavelmente, o amor é uma boa coisa, à sua maneira, mas a amizade vale mais. Asseguro-lhe que não conheço no mundo nada mais nobre ou mais raro do que uma amizade dedicada.

- E diga-me, rogo-lhe: que ideia forma o senhor dos deveres de um amigo dedicado? - perguntou um Pintarroxo verde que tinha escutado a conversa, pousado num salgueiro retorcido.

- Sim, é isto precisamente o que eu desejaria saber - disse a Pata. E nadou para o extremo da lagoa, de cabeça erguida, a fim de dar um bom exemplo ao seus filhos.

- Pergunta tola! - gritou o Rato d'água.

- Como é natural, entendo por amigo dedicado aquele que a mim se dedica.

- E que fará o senhor para retribuir-lhe? - perguntou o passarinho, balançando- se num ramo prateado e agitando as suas asinhas.

- Não o compreendo - respondeu o Rato d'água.

- Permita-me que lhe conte uma história a respeito deste assunto - disse o Pintarroxo.

- Refere-se a mim essa história? - falou o Rato d'água. - Se assim for, eu a escutarei, pois sou doido por ficção.

- É aplicável ao senhor - respondeu o Pintarroxo, que abriu as asas e desceu, pousando na beira do tanque, e contou a história do Amigo Dedicado.

- Era uma vez - disse o Pintarroxo -, um honrado rapaz chamado Hans.

- Era um homem verdadeiramente distinto? - perguntou o Rato d'água.

- Não - respondeu o Pintarroxo -, não creio que fosse absolutamente distinto, exceto pelo seu bom coração e pela sua cara redonda, morena e afável. Morava numa pobre casinha de campo, sozinho, e todos os dias trabalhava no seu jardim. Em toda a região não havia jardim tão bonito como o dele. Cresciam nele cravinas, goivas, bolsas-de-pastor, saxífragas. Havia rosas de Damasco e rosas amarelas, açafrões cor de lilás e cor de ouro, violetas roxas e brancas. E, segundo os meses e por sua ordem, floresciam rosas silvestres e cardaminas, manjeronas e manjericões silvestres, a primavera e o íris, o narciso e o cravo vermelho. Uma flor substituía a outra, de modo que havia sempre ali coisas bonitas para ver e odores agradáveis para aspirar.

«O pequeno Hans tinha muitos amigos, porém o mais dedicado de todos era o corpulento Hugo, o Moleiro. Na verdade, tão dedicado era o rico Moleiro ao pequeno Hans que nunca andava pelo jardim dele sem inclinar-se sobre os canteiros e colher um grande ramalhete ou um punhado de ervas-doces, ou encher os bolsos com ameixas e cerejas, quando era tempo de frutas.

«Os amigos verdadeiros repartem tudo entre si - costumava dizer o Moleiro e o pequeno Hans balançava a cabeça e sorria, sentindo-se muito orgulhoso por ter um amigo com tão nobres ideias.

«Algumas vezes, na realidade, achavam os vizinhos estranho que o rico Moleiro nunca desse nada em retribuição ao pequeno Hans, embora possuísse centenas de sacos de farinha armazenados no seu moinho, seis vacas leiteiras e um grande rebanho de carneiros com muita lã. Mas Hans nunca se preocupava com essas coisas e nada lhe dava maior prazer do que escutar todas as coisas maravilhosas que o Moleiro costumava dizer a respeito da solidariedade dos verdadeiros amigos.

«De modo que cultivava o pequeno Hans o seu jardim. Na primavera, no verão e no outono sentia-se muito feliz, mas quando chegava o inverno e não tinha nem frutos nem flores que levar ao mercado, padecia de muito frio e muita fome e muitas vezes tinha de ir para a cama sem qualquer refeição, a não ser umas peras secas ou algumas nozes duras. Também no inverno, ficava extremamente solitário, uma vez que o Moleiro nunca ia vê-lo então.

«- Não está bem que eu vá ver o pequeno Hans, enquanto duram as neves
- costumava o Moleiro dizer à sua mulher -, pois quando as pessoas se acham em apuros, devem ser deixadas sozinhas e não serem incomodadas com visitas. Esta é, pelo menos, a minha opinião a respeito da amizade e estou certo de que é uma opinião bem acertada. Por isso esperarei que a primavera chegue e então irei visitá-lo, podendo ele dar-me um grande cesto de primaveras, coisa que bastante o alegrará.

«- És realmente bastante solícito para com os outros respondia-lhe a mulher, sentada na sua cômoda cadeira de braços, junto a um bom fogo de pinheiro. - És realmente bastante solícito. É um verdadeiro prazer ouvir-te falar a respeito da amizade. Estou certa de que o próprio senhor Cura não poderia dizer coisas tão belas como tu, embora viva numa casa de três andares e use um anel de ouro no dedo mindinho.

«- Mas não poderíamos convidar o pequeno Hans a vir aqui? - perguntava o filho mais novo do Moleiro. - Se o pobre Hans se acha em apuros, dar-lhe-ei a metade da minha sopa e mostrar-lhe-ei os meus coelhos brancos.

«- Que menino pateta és tu! - gritou o Moleiro.

- Na verdade não sei para que serve mandar-te à escola. Parece que não aprendes nada. Ora, se o pequeno Hans viesse aqui e visse o nosso ardente fogo, a nossa boa ceia e a nossa grande barrica de vinho tinto, poderia sentir inveja e a inveja é um coisa terrível que deita a perder os melhores caráteres. Não permitirei, certamente, que o caráter de Hans venha a ser prejudicado. Sou o seu melhor amigo e velarei sempre por ele e terei todo o cuidado em não expô-lo a nenhuma tentação. Além disso, se Hans viesse aqui poderia pedir-me que lhe desse, fiado, um pouco de farinha e isto eu não poderia fazer. A farinha é uma coisa e a amizade é outra e não devem ser confundidas. Ora, estas duas palavras escrevem-se de maneira diferente e significam coisas completamente diferentes. Toda gente pode ver isto.

«- Como falas bem! - disse a mulher do Moleiro, servindo-lhe um copo de cerveja quente. Sinto-me até como que adormecida. O mesmo que se estivesse na igreja.

«- Muita gente age bem - replicou o Moleiro -, muito poucos, porém, sabem falar bem, o que mostra que falar é das duas coisas a mais difícil, bem como a mais bela das duas. - E olhou severamente por cima da mesa para o seu filho que se sentiu tão envergonhado, que baixou a cabeça, ficou totalmente vermelho e começou a chorar dentro do seu chá. Contudo, era tão jovem que não se podia deixar de desculpá-lo».

- É este o fim da história? - perguntou o Rato d'água.

- - Decerto que não, respondeu o Pintarroxo. - Isto é o começo.

- Então você está muito atrasado em relação à sua época - replicou o Rato d'água.

- Hoje em dia, todo bom contador de histórias começa pelo fim, depois passa para o começo e conclui com o meio. Este é o novo método. Ouvi tudo isto, outro dia, de um crítico que estava passeando em redor da lagoa com um rapaz. Tratava do assunto magistralmente e estou certo de que devia estar com razão, porque usava óculos azuis e tinha a cabeça calva. E quando o rapaz fazia alguma observação sempre respondia: «Patetice!» Mas rogo-lhe que prossiga com a sua história. Estou a gostar muito do Moleiro. Eu mesmo possuo toda espécie de belos sentimentos, de modo que existe entre nós uma grande simpatia.

- Bem - disse o Pintarroxo, saltitando, ora sobre uma, ora sobre outra das suas pernas -, assim que o inverno passou e as primaveras começaram a abrir as suas pálidas estrelas amarelas o Moleiro disse à sua mulher que iria visitar o pequeno Hans.

«- Ah! Que bom coração tens tu! - exclamou a Mulher.

- Tu estás sempre a pensar nos outros. Não te esqueças de levar contigo o cesto grande para trazer as flores.

«Depois o Moleiro amarrou umas nas outras as aspas do moinho com uma forte corrente de ferro e desceu a colina com o cesto no braço.

«- Bom dia, pequeno Hans - disse o Moleiro.

«- Bom dia - disse Hans, apoiando-se na sua enxada e sorrindo largamente.

«- Como passaste o inverno? - perguntou o Moleiro.

«- Bem, na verdade - exclamou Hans. - É muita bondade da sua parte perguntar-me isso, muita bondade mesmo. Receio ter passado uns maus bocados, mas agora a primavera chegou e sinto-me completamente feliz... além disto as minhas flores estão indo bem.

«- Falamos frequentes vezes de ti, durante o inverno, Hans - disse o Moleiro -, imaginando como estarias a passar.

«- Foi bondade do senhor - disse Hans. - Estava quase com medo de que o senhor me tivesse esquecido.

«- Hans, surpreende-me ouvi-lo falar desse modo - disse o Moleiro. - A amizade nunca esquece. Esta é a coisa maravilhosa que nela existe, mas receio que não compreendas a poesia da vida... A propósito, como estão bonitas as tuas primaveras!

«- Sim, estão verdadeiramente muito bonitas - disse Hans - e é para mim uma grande sorte ter tantas. Vou levá-las ao mercado e vendê-las à filha do Burgomestre e com este dinheiro comprarei outra vez o meu carrinho de mão.

«- Comprar outra vez o teu carrinho de mão? Queres dizer então que o vendeste? Mas que coisa estúpida fizeste!

«- Bem, o fato é que fui obrigado a fazê-lo - disse Hans. - Como o senhor sabe, o inverno é uma estação muito má para mim e, na realidade, não tinha dinheiro algum para comprar pão, de modo que vendi primeiro os botões de prata da minha roupa domingueira, depois vendi a minha corrente de prata, em seguida vendi a minha grande flauta, e por fim vendi o meu carrinho de mão. Mas vou comprar tudo de novo agora.

«- Hans - disse o Moleiro -, dar-te-ei o meu carrinho de mão. Não está em muito bom estado. Na verdade, um dos lados está a faltar e estão um tanto torcidos os raios da roda, mas a despeito disso, dar-te-ei o carro. Sei que é uma grande generosidade de minha parte e muita gente pensará que foi uma loucura extrema da minha parte desfazer-me dele, mas não sou como o resto do mundo. Creio que a generosidade é a essência da amizade e, além disso, eu mesmo comprei um novo carrinho de mão. Sim, podes estar tranquilo, dar-te- ei o meu carrinho de mão.

«- Bem, na verdade, é muita generosidade da sua parte - disse o pequeno Hans, e a sua redonda e engraçada carinha brilhou toda de prazer. - Poderei facilmente consertá-lo, pois tenho um pedaço de tábua na minha casa.

«- Um pedaço de tábua! - exclamou o Moleiro. - Muito bem! É disso precisamente que preciso para o telhado do meu paiol. Está com uma grande brecha e se não o tapar, todo o trigo ficará molhado. Que felicidade teres mencionado essa tábua! É realmente de notar como uma boa ação engendra sempre outra. Dei-te o meu carrinho de mão e agora tu vais dar-me a tua tábua. É claro que o carrinho de mão vale muito mais do que a tábua: mas a verdadeira amizade nunca repara coisas como essas. Dá-me logo a tábua e hoje mesmo porei mãos à obra para consertar o meu paiol.

«- Sem dúvida - gritou o pequeno Hans, que foi a correr para o telheiro donde trouxe a tábua.

«- Não é uma tábua muito grande - disse o Moleiro, examinando-a -, e receio que, uma vez feito o conserto do telhado do paiol, não sobre madeira suficiente para o conserto do carrinho, mas, é claro, isso não é minha culpa... E agora, uma vez que te dei o meu carrinho de mão estou certo de que haverás de querer dar-me algumas flores em troca. Aqui tens o cesto: procura enchê-lo completamente.

«- Completamente? - exclamou o pequeno Hans, bastante aflito, porque o cesto era mesmo muito grande e sabia que, se o enchesse, não lhe sobrariam flores para o mercado e estava bastante ansioso por poder resgatar os seus botões de prata.

«- Bem, na verdade - respondeu o Moleiro -, uma vez que te dou o meu carrinho de mão, não penso que seja demasiado pedir-te algumas flores. Posso estar equivocado, mas deveria ter pensado que a amizade, a verdadeira amizade, estivesse completamente isenta de egoísmo de qualquer espécie.

«- Meu querido amigo, meu melhor amigo - exclamou o pequeno Hans -, todas as flores do meu jardim estão à sua disposição, porque me importa muito mais a sua estima do que os meus botões de prata.

«- E correu a colher as lindas primaveras e a encher com elas o cesto do Moleiro.

«- Adeus, pequeno Hans - disse o Moleiro, subindo de novo a colina com a tábua ao ombro e o seu grande cesto na mão.

«- Adeus - disse o pequeno Hans, que se pôs a cavar alegremente, pois estava contentíssimo por ter um carrinho de mão.

«- Na manhã seguinte, quando estava pregando umas madressilvas no seu alpendre, ouviu a voz do Moleiro que o chamava da estrada, pulou da escada e desceu a correr o jardim, indo espiar por cima do muro.

«Ali estava o Moleiro com um grande saco de farinha nas costas.

«- Querido Hans - disse o Moleiro - quererias levar-me este saco de farinha até ao mercado?

«- Oh! Sinto muito! - disse Hans -, mas na verdade estou muito ocupado hoje. - Tenho que pregar todas as minhas trepadeiras, tenho de regar todas as minhas flores e cortar toda a relva.

«- Bem, na verdade - disse o Moleiro -, penso que, levando em conta que vou dar-te o meu carinho de mão, é pouco amistoso da tua parte essa recusa.

«- Oh! Não diga isso - exclamou o pequeno Hans. - Por coisa alguma do mundo haveria eu de esquecer-me da minha amizade pelo senhor.

« E correu a buscar o seu chapéu e partiu com o grande saco nos ombros.

«Era um dia muito quente e a estrada estava terrivelmente empoeirada, e antes de ter Hans alcançado o marco que indicava a sexta milha, achava-se tão cansado, que teve de sentar-se para descansar. Não obstante, continuou corajosamente o seu caminho, chegando por fim ao mercado. Depois de ter esperado ali algum tempo, vendeu o saco de farinha por muito bom preço e regressou à sua casa imediatamente, porque temia encontrar algum salteador no caminho, se se atrasasse muito.

«- Foi na verdade um dia duro! - disse Hans a si mesmo, ao ir deitar-se -, mas alegra-me muito por não ter recusado um favor ao Moleiro, que é o meu melhor amigo, e além disso vai dar-me o seu carrinho de mão.

«Bem cedo na manhã seguinte, apareceu o Moleiro para buscar o dinheiro da venda do seu saco de farinha, mas o pequeno Hans estava tão cansado que ainda não se havia levantado da cama.

«- Palavra de honra - disse o Moleiro -, és muito preguiçoso. Na verdade, quando penso que vou dar-te o meu carrinho de mão, acho que podias trabalhar com mais ardor. A preguiça é um grande pecado e eu certamente não gostaria de que algum dos meus amigos fosse preguiçoso e apático. Não te zangues, se te estou a falar completamente sem rodeio. É claro que não te falaria assim, se não fosse teu amigo. Mas de que servirá a amizade, se não se pudesse dizer claramente o que se pensa? Toda a gente pode dizer coisas encantadoras e tentar agradar e lisonjear; mas um amigo sincero diz sempre coisas desagradáveis e não receia causar pesar. Pelo contrário, se é um amigo verdadeiro, prefere isso, porque sabe que assim está fazendo o bem.

«- Sinto muito - respondeu o pequeno Hans, esfregando os olhos e tirando o barrete de dormir -, mas eu estava tão cansado que pensei que poderia ficar na cama um pouco mais e ouvir os pássaros a cantarem. Sabe o senhor que sempre trabalho melhor depois de ouvir os pássaros cantarem?

«- Bem, tanto melhor - disse o Moleiro, dando uma palmadinha nas costas de Hans -, pois necessito de que venhas ao moinho, assim que te tiveres vestido, para consertar-me o telhado do paiol.

«O pequeno Hans tinha grande necessidade de ir trabalhar no seu jardim, porque havia dois dias que não regava as suas flores, mas não quis dizer não ao Moleiro, que tão bom amigo era para ele.

«- Pensa que seria pouco amistoso da minha parte, se dissesse que tenho muito que fazer? - perguntou ele com voz humilde e tímida.

«- Bem, realmente - respondeu o Moleiro -, não creio que seja demais pedir-te isso, levando em conta que vou dar-te o meu carrinho de mão; mas, sem dúvida, se recusares, eu mesmo irei fazer o trabalho.

«Oh! De modo algum! - exclamou o pequeno Hans, que saltou da sua casa, vestiu-se e correu para o paiol.

«Trabalhou ali o dia inteiro, até o pôr do sol e, ao crepúsculo, o Moleiro apareceu para ver até que ponto tinha ele chegado.

«- Já tapaste o buraco do telhado, pequeno Hans? - gritou o Moleiro, em tom alegre.

«- Está completamente tapado - respondeu o pequeno Hans, descendo da escada.

«- Ah! - exclamou o Moleiro. - Não há trabalho mais delicioso do que o que se faz para outro.

«- É certamente um grande privilégio ouvir o senhor falar - disse o pequeno Hans, sentando-se e enxugando a testa -, um grande privilégio mesmo. Creio que jamais terei tão belas ideias como tem o senhor.

«- Oh! Haverás de tê-las - disse o Moleiro -, mas deves esforçar-te mais. Por ora tens apenas a prática da amizade. Algum dia possuirás a teoria também.

«- Acha realmente que eu terei? - perguntou o pequeno Hans.

«- Não tenho dúvida alguma - respondeu o Moleiro -, mas agora que consertaste o telhado, farias melhor indo para casa descansar, pois quero que leves os meus carneiros para pastar na montanha amanhã.

«O pobre Hans não se atreveu a protestar e no dia seguinte, ao amanhecer, o Moleiro conduziu os seus carneiros até perto da casinha de Hans que partiu com eles para a montanha. Entre ir e voltar passou-se o dia, e, quando regressou, estava tão cansado que adormeceu na sua cadeira e só veio a acordar bem entrada a manhã.

«- Que delicioso tempo para trabalhar no meu jardim! - disse ele, pondo-se a trabalhar imediatamente.

«Mas seja como for, não teve tempo de dar uma olhadela às suas flores, pois o seu amigo Moleiro sempre aparecia a mandá-lo fazer recados bem longe ou a pedir-lhe que o ajudasse no moinho. Algumas vezes, o pequeno Hans ficava muito angustiado, receando que as suas flores pensassem que ele as havia esquecido, mas consolava-se ao refletir que o Moleiro era o seu melhor amigo.

«Além disso», costumava dizer, «ele vai dar-me o seu carrinho de mão e isto é um ato de pura generosidade».

«E o pequeno Hans trabalhava para o Moleiro e este dizia coisas muito bonitas a respeito da amizade, coisas que Hans copiava para o seu livro de notas e que costumava reler à noite, pois era um grande estudioso.

«Pois bem: aconteceu que uma noite, estando o pequeno Hans sentado junto ao fogo, ouviu fortes batidas à sua porta. Era uma noite muito tempestuosa, o vento soprava e rugia em torno da casa tão terrivelmente que a princípio pensou ele que fosse aquele rumor apenas o da tempestade. Mas soou uma segunda pancada e depois uma terceira, mais alto do que as outras.

«- Deve ser algum pobre viajante - disse o pequeno Hans para si mesmo, e correu para a porta.

«O Moleiro estava no umbral, com uma lanterna numa mão e um grande bastão na outra.

«- Querido Hans - gritou o Moleiro -, encontro-me em grande complicação. O meu menino caiu de uma escada, aleijando-se e eu vou em busca do médico. Mas ele mora tão distante e está uma noite tão má, que acaba de ocorrer-me que seria melhor que fosses em meu lugar. Sabes que vou dar-te o meu carrinho de mão, por isso estaria muito bem que fizesses alguma coisa por mim em retribuição.

«- Decerto! - exclamou o pequeno Hans. - Alegra-me muito que me tenha vindo procurar e partirei imediatamente. Mas o senhor devia emprestar-me a sua lanterna, uma vez que a noite está tão escura que receio que possa vir a cair no fosso.

«- Sinto muitíssimo - respondeu o Moleiro -, mas é a minha lanterna nova e seria uma grande perda, se lhe acontecesse alguma coisa.

«- Bem, não falemos mais nisso, irei mesmo sem ela -, exclamou o pequeno Hans, vestindo o seu grande casaco de pele, pondo na cabeça o seu barrete vermelho, amarrando em torno do pescoço uma manta, e saindo imediatamente.

«Que terrível tempestade estava desencadeada; A noite era tão negra que o pequeno Hans mal podia ver e o vento tão forte que ele dificilmente conseguia andar. Contudo, era muito corajoso e, depois de ter caminhado cerca de três horas, chegou à casa do doutor e bateu-lhe à porta.

«- Quem é? - gritou o doutor, pondo a cabeça à janela do seu quarto.

«- É o pequeno Hans, doutor!

«- E que desejas a estas horas, meu pequeno Hans?

«- O filho do Moleiro caiu de uma escada e aleijou-se, e o Moleiro quer que o senhor vá lá imediatamente.

«- Muito bem! - disse o doutor. Mandou selar o seu cavalo, calçou as suas grandes botas, pegou na sua lanterna, desceu a escada e seguiu na direção da casa do Moleiro, enquanto o pequeno Hans marchava atrás dele.

«Mas a tempestade tornou-se cada vez pior, a chuva caía em torrentes e o pequeno Hans não podia nem ver por onde ia, nem acompanhar o cavalo. Afinal, perdeu-se, e esteve a vagar pela charneca, que era um lugar muito perigoso, cheia como estava de profundos buracos, e o pequeno Hans caiu num deles e afogou-se. Na manhã seguinte, uns pastores encontraram o seu corpo boiando numa grande poça d'água e levaram-no para a sua casinha.

«Toda a gente assistiu ao enterro do pequeno Hans, porque ele era muito popular e foi o Moleiro quem tomou a dianteira do funeral.

«- Como fui o seu melhor amigo - disse o Moleiro -, não é nada de mais que eu tome o melhor lugar.

«De modo que pôs-se à frente do cortejo com uma longa capa preta e, de vez em quando, enxugava os olhos com um grande lenço de bolso.

«- O pequeno Hans representa, certamente, uma grande perda para todos nós - disse o Ferreiro, terminado o funeral, e quando estavam todos sentados confortavelmente na estalagem, bebendo vinho temperado e comendo bolos doces.

«- Foi uma grande perda, sobretudo para mim - replicou o Moleiro. - Posso afirmar que fui bastante bom, comprometendo-me em dar-lhe o meu carrinho de mão e agora não sei realmente o que fazer com ele. Atravanca a minha casa e está em tão más condições que se o vendesse, não lucraria nada. Asseguro a vocês que daqui por diante não darei nada a ninguém. A gente paga sempre por ser generoso.»

- E então? - perguntou o Rato d'água, depois de uma longa pausa.

- Bem, este é o fim - disse o Pintarroxo.

- Mas o que aconteceu ao Moleiro? - perguntou o Rato d'água.

- Oh! Realmente não sei - replicou o Pintarroxo -, e, para falar a verdade, não me interessa.

- É bastante evidente que você não possui o dom da simpatia no seu caráter - disse o Rato d'água.

- O que receio é que o senhor não tenha compreendido a moral da história - observou o Pintarroxo.

- O quê? - gritou o Rato d'água.

- A moral.

- Quer você dizer que a história tem uma moral?

- Decerto - afirmou o Pintarroxo.

- Bem, na verdade - disse o Rato d'água, de um modo bastante colérico - acho que você deveria ter-me dito isso antes de começar. Se o tivesse feito, eu certamente não o teria escutado; de fato, deveria ter dito «Patetice!», como o crítico. Contudo posso dizê-lo agora. E gritou: «Patetice!». No mais alto tom e, dando uma rabanada com a cauda, correu para o seu buraco.

- Que lhe parece o Rato d'água? - perguntou a Pata, que chegou nadando alguns minutos depois.

- Possui muito boas qualidades, porém eu, pela minha parte, tenho sentimentos de mãe e não posso ver um solteirão chapado, sem que me subam as lágrimas aos olhos.

- Receio tê-lo aborrecido - replicou o Pintarroxo. - O fato é que lhe contei uma história com uma moral.

- Ah! Isso é sempre uma coisa muito perigosa de fazer-se - disse a Pata. E eu concordo inteiramente com ela.

Fonte: Oscarwilde2k