quinta-feira, 5 de julho de 2018

Milton S. Souza (Um Estranho Pescador)


Ele apareceu nas areias daquela pequena praia assim como aparecem e desaparecem tantos veranistas em todos os verões. Quase ninguém notou aquele homem alto que ocupou uma casinha abandonada há muito tempo na área da Marinha. O Luís só foi notado e só virou “Luís” quando todos os veranistas foram embora junto com o verão e os pescadores, verdadeiros donos da praia, recolocaram as suas grandes redes no mar para continuar sobrevivendo. Luís estava lá, olhar perdido no horizonte, barba grande, um toco de cigarro amassado no meio dos dedos, distante de tudo. Não conhecia ninguém. E ninguém lhe conhecia.
Certo dia, o mar estava muito violento quando os pescadores tentaram entrar nele para amarrar a corda que levava a rede numa âncora colocada a cerca de 100 metros dentro das águas, marcada por uma boia. Três ou quatro tentaram entrar nadando, mas todos desistiram. O Luís não resistiu. Desceu o cômoro, foi até o grupo de homens que não conhecia e se ofereceu para entrar nadando no mar para amarrar a corda. Mesmo desconfiados, os rudes pescadores aceitaram a oferta. E Luís nadou como um peixe no meio daquelas ameaçadoras ondas. Depois de deixar a corda amarrada  na âncora, nadou de volta e foi recebido com palmas e gritos na beira da praia. A partir daquele dia, passou a fazer parte da turma, ajudando a colocar e retirar a rede, de manhã bem cedo a no final de cada tarde.
Ninguém perguntou nada, além do seu nome. Mas, aos poucos, depois de se entrosar com o grupinho, e nos dias em que tomava umas pingas além da conta, o Luís foi se abrindo. E contou a sua história: engenheiro agrônomo, solteiro, filho de um famoso médico de Fortaleza. Quando mais jovem, uma sede de aventuras levou os seus olhos da cor do mar até a Serra Pelada. Lá, ele gastou vários anos de vida juntando ouro. Queria voltar rico e provar para a família que podia dar um rumo para a sua vida sem precisar sobreviver na sombra do pai. Perdeu o rumo, quando alguém tentou assaltar o casebre onde dormia, depois de um dia de muito trabalho no garimpo. A mesma picareta que usava para cavar a pedra na busca de ouro, serviu de arma para matar o ladrão. E os seus sonhos de riqueza morreram junto com o desconhecido inimigo. Precisou gastar todo o ouro que já havia conseguido para não ser preso pela polícia, comprando esconderijos e pagando por uma fuga e a volta para o Nordeste. A família não perdoou a sua falha. E ele resolveu morar sozinho na beira do mar, numa praia bem distante, sem ninguém por perto para ameaçar a sua liberdade. Sua habilidade como nadador e sua educação acima da média, foram passaportes para ser aceito no grupo. Morreu o Luís engenheiro agrônomo e nasceu o Luís Pescador.
Hoje o Luís sobrevive dos peixes que ganha quando ajuda os pescadores e das gorjetas que recebe quando alguém precisa levar uma corda ou buscar uma rede nas profundezas do mar. Quando bate a saudade da vida antiga, dos pais ricos e das mordomias que desfrutava, afoga as mágoas nos tragos e caminha alegre, cantando músicas pelas ruas do vilarejo. Nas outras horas, é apenas o Luís caladão, que fala pouco, mas ajuda muito, e que não troca os seus novos amigos pescadores nem por todo o ouro que deixou para trás no sonho dourado da Serra Pelada.

Milton S. Souza (1945 - 2018)



Milton Sebastião Souza nasceu em Porto Alegre/RS, em 20 de janeiro de 1945, filho de Sebastião Valentim de Souza e Terezinha Fialho de Souza. Casado com Leda Maria Souza, pai de cinco filhos, avô de onze netos e dois bisnetos.
Ele era ajudante de seu pai num bar e entregava pães em uma perua Kombi. Fez o Supletivo de 1º e 2º graus por correspondência, no antigo Instituto Universal Brasileiro, e passou no vestibular para cursar Jornalismo quando tinha 40 anos, pela UFRGS e Radialista formado pela Feplam, aposentado pela Prefeitura de Gravataí, onde foi jornalista concursado. Possuía a empresa própria, a Agência Texto Certo, que atua na produção de livros e impressos em geral.
Ganhou mais de duas centenas de prêmios em concursos de poesias e trovas, participando de entidades como a Casa do Poeta Rio-Grandense, União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre e Fundacion Givré de Buenos Aires.
Em 1993 foi editor do Jornal de Cachoeirinha. Durante três anos manteve uma coluna diária no Diário de Cachoeirinha, onde publicou crônicas e poesias. Aposentou-se como Jornalista concursado da Prefeitura de Gravataí.
Fez parte da União Brasileira dos Trovadores de Porto Alegre e também do Clube Literário de Cachoeirinha, torcedor convicto do Grêmio Futebol Porto-Alegrense. Publicou os livros "Perseguindo Sonhos", "Poesias para Declamar", "Trova: raiz quadrada da poesia" e “Os três anjinhos”.
Escolhido para Patrono da Feira do Livro da Escola Décio Martins Costa, e depois patrono em várias escolas, e patrono da Feira do Livro de Cachoeirinha.
Jornalista, escritor, poeta, radialista, e trovador, Milton Sebastião de Souza faleceu nesta terça-feira, dia 3 de julho de 2018, em Cachoeirinha, devido a complicações de um câncer na próstata.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Trova 313 - Carolina Ramos (Santos/SP)

Relativa a Trova 312, de Francisco Pessoa

Nei Garcez (Criança e Professor, em Trovas)


1
Todo dia é da Criança
e também do Professor:
ela aprende, na confiança,
e ele ensina com amor.
2
Ai que saudade me dá
do primeiro professor
que ensinou o "bê-a-bá"
e me fez compositor!
3
Duas mães tem a Criança:
uma, em casa, que é instrutora
e, na Escola, à semelhança,
outra mãe é Professora.
4
Professor, em todo aspecto,
no mister da Educação,
é o "pediatra" do intelecto
da Criança em formação.
5
A primeira Professora
que assinou meu boletim,
inda é minha instrutora...
Não foi embora de mim!
6
Suas aulas, transmitindo,
ensinando, nesta sala,
Professora, isto é tão lindo...
Tanto que eu quero imitá-la!

Fonte: Trovas enviadas pelo trovador

Stanislaw Ponte Preta (Divisão)


 Você poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de novo, ajeitar as molas. É claro que sentirei falta. Não dela, mas das tardes em que aqui fiquei sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu levaria de bom grado : as árvores, a vista do morro, até a algazarra das crianças lá embaixo, na praça. 0 resto dos moveis — são tão poucos! — podemos dividir de acordo com nossas futuras necessidades.

 A vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo, entregue aos cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você quanto eu haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas, mais modernas, dotadas de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor: alta-fidelidade.

 Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as valsas, as canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o Mozart e Bing Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas antigos e estes chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e jogados no lixo. É justo e honesto.

 Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não estou querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim. Será um prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando livrarias. Aos poucos irei refazendo toda esta biblioteca, então com um caráter mais pessoal. Fique com os livros todos, portanto. E consequentemente com a estante também.

 Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos conhecermos. Também os dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja só o que está escrito nela: 12-1-48. Fique com toda essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs e, mais do que eles, a chamada arte popular, principalmente quando ela se resume nesses bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote de melado e moringa de água, nada que foi feito com barro presta. Nem o homem.

 Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as lembranças passíveis de serem destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens, souvenirs. Que não reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e que não possa ser entre nos dividido.

 Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta jarra. Eu ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo está razoavelmente dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.

domingo, 1 de julho de 2018

Trova n. 312 - Francisco J. Pessoa (Fortaleza/CE)


Carlos Drummond de Andrade (Pescadores)

Domingo pede cachimbo, todo domingo aquele esquema: praia, bar, soneca, futebol, jantar em restaurante. Acaba em chatura. Os quatro jovens executivos sonhavam com um programa diferente.

— Se a gente desse uma de pescador?

— Falou.

Muniram-se do necessário, desde o caniço até o sanduíche incrementado, e saíram rumo à praia mais deserta, mais viscosa, mais sensacional.

Lá estavam felizes da vida, à espera de peixe. Mas os peixes, talvez por ser domingo, e todos os domingos serem iguais, também tinham variado de programa — e não se deixavam fisgar.

— Tem importância não. Daqui a pouco aparecem. De qualquer modo, estamos curtindo.

— É.

Peixe não vinha. Veio pela estrada foi a Kombi, lentamente. Parou, saltaram uns barbudos:

— Pescando, hem? Beleza de lugar. Fazem muito bem aproveitando a folga num programa legal. Saúde. Esporte. Alegria.

— Estamos só arejando a cuca, né? Semana inteira no escritório, lidando com problemas.

— Ótimo. Assim é que todos deviam fazer. Trocar a poluição pela natureza, a vida ao ar livre. Somos da televisão, estamos filmando aspectos do domingo carioca. Podem colaborar?

— Que programa é esse?

— Aprenda a Viver no Rio. Programa novo, cheio de bossas. Vai ser lançado semana que vem. Gostaríamos que vocês fossem filmados como exemplo do que se pode curtir num dia de lazer, em benefício do corpo e da mente.

— Pois não. O grilo é que não pescamos nada ainda.

— Não seja por isso. Tem peixe na Kombi, que a gente comprou para uma caldeirada logo mais.

Desceram os aparelhos e os peixes, e tudo foi feito com técnica e verossimilhança, na manhã cristalina. Os quatro retiravam do mar, em ritual de pescadores experientes, os peixes já pescados. O pessoal da TV ficou radiante:

— Um barato. Vocês estavam ótimos.

— Quando é que passa o programa?

— Quinta-feira, horário nobre. Já está sendo anunciado.

Quinta-feira, os quatro e suas jovens mulheres e seus encantadores filhos reuniram-se no apartamento de um deles — o que tivera a ideia da pescaria.

— Vocês vão ver os maiores pescadores da paróquia em plena ação.

O programa, badaladíssimo, começou. Eram cenas do despertar e da manhã carioca, trens superlotados da Linha Auxiliar, filas no elevador, escritórios em atividade, balconistas, telefonistas, enfermeiras, bancários, tudo no batente ou correndo para. O apresentador fez uma pausa, mudou de tom:

“— Agora, o contraste. Em pleno dia de trabalho, com a cidade funcionando a mil por cento para produzir riqueza e desenvolvimento, os inocentes do Leblon dedicam-se à pescaria sem finalidade. Aí estão esses quatro folgados, esquecidos de que a Guanabara enfrenta problemas seríssimos e cada hora desperdiçada reduz o produto nacional bruto…”

— Canalhas!

— Pai, você é um barato!

— E eu que não sabia que você, em vez de ir para o escritório, vai pescar com a patota, Roberto!

— Se eu pego aqueles safados mato eles.

— E o peixe, pai, você não trouxe o peixe pra casa!

— Não admito gozação!

— Que é que vão dizer amanhã no escritório!

— Desliga! Desliga logo essa porcaria!

Para aliviar a tensão, serviu-se uísque aos adultos, refrigerante aos garotos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.