terça-feira, 3 de julho de 2018

Nei Garcez (Criança e Professor, em Trovas)


1
Todo dia é da Criança
e também do Professor:
ela aprende, na confiança,
e ele ensina com amor.
2
Ai que saudade me dá
do primeiro professor
que ensinou o "bê-a-bá"
e me fez compositor!
3
Duas mães tem a Criança:
uma, em casa, que é instrutora
e, na Escola, à semelhança,
outra mãe é Professora.
4
Professor, em todo aspecto,
no mister da Educação,
é o "pediatra" do intelecto
da Criança em formação.
5
A primeira Professora
que assinou meu boletim,
inda é minha instrutora...
Não foi embora de mim!
6
Suas aulas, transmitindo,
ensinando, nesta sala,
Professora, isto é tão lindo...
Tanto que eu quero imitá-la!

Fonte: Trovas enviadas pelo trovador

Stanislaw Ponte Preta (Divisão)


 Você poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de novo, ajeitar as molas. É claro que sentirei falta. Não dela, mas das tardes em que aqui fiquei sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu levaria de bom grado : as árvores, a vista do morro, até a algazarra das crianças lá embaixo, na praça. 0 resto dos moveis — são tão poucos! — podemos dividir de acordo com nossas futuras necessidades.

 A vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo, entregue aos cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você quanto eu haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas, mais modernas, dotadas de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor: alta-fidelidade.

 Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as valsas, as canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o Mozart e Bing Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas antigos e estes chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e jogados no lixo. É justo e honesto.

 Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não estou querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim. Será um prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando livrarias. Aos poucos irei refazendo toda esta biblioteca, então com um caráter mais pessoal. Fique com os livros todos, portanto. E consequentemente com a estante também.

 Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos conhecermos. Também os dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja só o que está escrito nela: 12-1-48. Fique com toda essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs e, mais do que eles, a chamada arte popular, principalmente quando ela se resume nesses bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote de melado e moringa de água, nada que foi feito com barro presta. Nem o homem.

 Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as lembranças passíveis de serem destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens, souvenirs. Que não reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e que não possa ser entre nos dividido.

 Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta jarra. Eu ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo está razoavelmente dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.

domingo, 1 de julho de 2018

Trova n. 312 - Francisco J. Pessoa (Fortaleza/CE)


Carlos Drummond de Andrade (Pescadores)

Domingo pede cachimbo, todo domingo aquele esquema: praia, bar, soneca, futebol, jantar em restaurante. Acaba em chatura. Os quatro jovens executivos sonhavam com um programa diferente.

— Se a gente desse uma de pescador?

— Falou.

Muniram-se do necessário, desde o caniço até o sanduíche incrementado, e saíram rumo à praia mais deserta, mais viscosa, mais sensacional.

Lá estavam felizes da vida, à espera de peixe. Mas os peixes, talvez por ser domingo, e todos os domingos serem iguais, também tinham variado de programa — e não se deixavam fisgar.

— Tem importância não. Daqui a pouco aparecem. De qualquer modo, estamos curtindo.

— É.

Peixe não vinha. Veio pela estrada foi a Kombi, lentamente. Parou, saltaram uns barbudos:

— Pescando, hem? Beleza de lugar. Fazem muito bem aproveitando a folga num programa legal. Saúde. Esporte. Alegria.

— Estamos só arejando a cuca, né? Semana inteira no escritório, lidando com problemas.

— Ótimo. Assim é que todos deviam fazer. Trocar a poluição pela natureza, a vida ao ar livre. Somos da televisão, estamos filmando aspectos do domingo carioca. Podem colaborar?

— Que programa é esse?

— Aprenda a Viver no Rio. Programa novo, cheio de bossas. Vai ser lançado semana que vem. Gostaríamos que vocês fossem filmados como exemplo do que se pode curtir num dia de lazer, em benefício do corpo e da mente.

— Pois não. O grilo é que não pescamos nada ainda.

— Não seja por isso. Tem peixe na Kombi, que a gente comprou para uma caldeirada logo mais.

Desceram os aparelhos e os peixes, e tudo foi feito com técnica e verossimilhança, na manhã cristalina. Os quatro retiravam do mar, em ritual de pescadores experientes, os peixes já pescados. O pessoal da TV ficou radiante:

— Um barato. Vocês estavam ótimos.

— Quando é que passa o programa?

— Quinta-feira, horário nobre. Já está sendo anunciado.

Quinta-feira, os quatro e suas jovens mulheres e seus encantadores filhos reuniram-se no apartamento de um deles — o que tivera a ideia da pescaria.

— Vocês vão ver os maiores pescadores da paróquia em plena ação.

O programa, badaladíssimo, começou. Eram cenas do despertar e da manhã carioca, trens superlotados da Linha Auxiliar, filas no elevador, escritórios em atividade, balconistas, telefonistas, enfermeiras, bancários, tudo no batente ou correndo para. O apresentador fez uma pausa, mudou de tom:

“— Agora, o contraste. Em pleno dia de trabalho, com a cidade funcionando a mil por cento para produzir riqueza e desenvolvimento, os inocentes do Leblon dedicam-se à pescaria sem finalidade. Aí estão esses quatro folgados, esquecidos de que a Guanabara enfrenta problemas seríssimos e cada hora desperdiçada reduz o produto nacional bruto…”

— Canalhas!

— Pai, você é um barato!

— E eu que não sabia que você, em vez de ir para o escritório, vai pescar com a patota, Roberto!

— Se eu pego aqueles safados mato eles.

— E o peixe, pai, você não trouxe o peixe pra casa!

— Não admito gozação!

— Que é que vão dizer amanhã no escritório!

— Desliga! Desliga logo essa porcaria!

Para aliviar a tensão, serviu-se uísque aos adultos, refrigerante aos garotos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Caldeirão Poético 12


AS MINHAS QUATRO ESTAÇÕES 

Foi plena Primavera a minha infância 
vivida com carinhos de meus pais, 
sentindo sempre, em toda circunstância,
que o amor dos dois é o que valia mais!

Com a juventude tive incrível ânsia 
de tudo ver mui rápido demais; 
abrasador Verão, em discordância 
ao que hoje eu sei que não terei jamais!

E aquele Outono meu, de certa forma, 
foi de pacata vida cidadã: 
fiel marido e pai, dentro da norma.

E agora, neste Inverno em que convivo
com as dores próprias de minha alma anciã,
traço poesias como lenitivo!


VAIDADE, TUDO VAIDADE!

Vaidade, meu amor, tudo vaidade! 
Ouve: quando eu, um dia, for alguém, 
Tuas amigas ter-te-ão amizade, 
(Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm. 

Vaidade é o luxo, a gloria, a caridade, 
Tudo vaidade! E, se pensares bem, 
Verás, perdoa-me esta crueldade, 
Que é uma vaidade o amor de tua mãe... 

Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna 
E eu vi-me só no mar com minha escuna, 
E ninguém me valeu na tempestade! 

Hoje, já voltam com seu ar composto, 
Mas eu, vê lá! eu volto-lhes o rosto... 
E isto em mim não será uma vaidade?


INTERROGAÇÃO

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, 
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; 
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar 
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo. 

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. 
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. 
Nem depois de acordar te procurei no leito 
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos. 

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo 
A tua cor sadia, o teu sorriso terno... 
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso 
Que me penetra bem, como este sol de Inverno. 

Passo contigo a tarde e sempre sem receio 
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. 
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio 
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca. 

Eu não sei se é amor. Será talvez começo... 
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, 
Que adoecia talvez de te saber doente.


CONSOLO

Ela partiu e me deixou tristonho,
Pelos desvelos que não mais eu tenho.
Mas reaparece na visão do sonho
Na intolerância de um rebelde cenho.

Em sendo assim, desvanecido eu ponho
Toda ternura que por ela empenho
Naquela cena do querer bisonho
E na esperança que jamais desdenho.

Amor assim a gente nunca esquece;
A vida sofre e o coração fenece
Amortecido pela injusta ausência.

Por isto eu choro e comovido penso:
Quem ama assim e com tamanho senso
Morre ditoso no sabor da ardência.


CAVADOR DO INFINITO

Com a lâmpada do Sonho desce aflito 
E sobe aos mundos mais imponderáveis, 
Vai abafando as queixas implacáveis, 
Da alma o profundo e soluçado grito.

Ânsias, Desejos, tudo a fogo, escrito 
Sente, em redor, nos astros inefáveis. 
Cava nas fundas eras insondáveis 
O cavador do trágico Infinito.

E quanto mais pelo Infinito cava 
mais o Infinito se transforma em lava 
E o cavador se perde nas distâncias...

Alto levanta a lâmpada do Sonho. 
E como seu vulto pálido e tristonho 
Cava os abismos das eternas ânsias!


PROMESSA

Meu amor, desculpe a franqueza,
mas meu coração não consegue calar,
quero muito me envolver em tua beleza,
encanto e pureza, e nela me mesclar.

Contudo, tenho que te dizer,
que não possuo nenhuma riqueza,
meus livros, meu amor, meu viver,
é toda a minha fortaleza.

Entretanto podes estar certa,
que sou um eterno batalhador,
que possui uma mente desperta,
e que acredita um dia ser vencedor.

Não posso te prometer viagens ou joias,
mas posso derramar em ti, meu amor,
não enche barriga, não dá teto, as vezes paranoias,
mas se me amar, não conhecerás a palavra “dor”.

Dá-me apenas um, nem que seja um segundo
de esperança para contigo estar,
Que não existirá nenhuma força no mundo,
que me impedirá de te esperar, para finalmente te amar.


O VERBO NO INFINITO

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar 
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer de tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...

sexta-feira, 29 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 26


Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) II


IMPRECAÇÃO

Para que te amava eu? Corpo d'espuma
Cruel enlevo de lábios cetinosos
Onde bailam desejos luminosos
Estrela, que de luz o céu perfuma.

Para que te amava eu? Que densa bruma
Me ofusca de saudade em tons nervosos
Desfolhando com gritos lacrimosos
As pétalas d'amor uma por uma?

Para que te amava eu? oh! praza aos céus
Que em quanto o sol girar pelo universo
Naufragues da paixão nos escarcéus.

E porque sofro na tristeza imerso,
Pálido goivo ao pé dos mausoléus,
Oxalá que o amor te seja adverso!

O TERREMOTO

Com fragor açoitando a vaga escura,
O temporal irado, espumarento
Cavalga um pérfido corcel - o vento -
Que solta gargalhadas de bravura.

Treme a terra, e com hórrida figura,
Como Atlante, sacode o turvo argento;
Nos gonzos oscilando o pavimento,
Dançam torres no assomo da loucura.

Vai o fogo alastrando o áureo manto,
As ruínas trucidam fugitivos,
Que sangrentos se abraçam convulsivos!

– O que fazer? – inquire o rei em pranto,
O ministro lhe diz com nobre espanto:
– “Sepultar mortos, e cuidar dos vivos.”

ENTRE PALMEIRAS

Faíscam os jaezes dos Cavalos,
Vibra o som dos clarins pela atmosfera;
No dorso de elefantes reverbera
A seda e prata em crebros intervalos.

Rodeado de inúmeros vassalos
Intrépido rajá de cor austera
Busca o tigre e leão, onça e pantera
Cruzando as selvas, e galgando os vales.

No cerrado paul ondula a brenha
E um leão de medonha, hirsuta juba
Em furioso valor se desentranha.

A raiva dos lebréus o estimula,
Os dardos o trespassam, mas derruba
O radjah, que nas vascas estrangula.

NOSTALGIA

Nos estuários alpestres do Brasil,
Onde o sol inflamado resplandece,
A cabilda dos negros desfalece
Sob o látego torpe e mercantil.

Nas areias matiza-se febril
O ouro virgem, e no 'spaço permanece
O diamante, que arisco se aborrece
Entre o cascalho estúpido, imbecil.

O escravo, quando avista um diamante
De dezessete "carates" quebra forro
As algemas sorrindo triunfante.

Que me valeu porém o descobrir-te
Diamante sem rival? – Suspiro e morro
A teus pés almejando possuir-te.

BOLETIM MILITAR

Vai rir-se desdenhosa a sombra de "Pombal"!
Era doida a rainha. O príncipe regente
Ostentando gentil a bochecha eloquente
Tinha bom apetite e ventre clerical,

Mas logo que Junot açaima Portugal
Embarca a toda a pressa e deixa a nossa gente,
Panda vela o conduz ao Brasil florescente,
E rápido imagina um plano teatral.

Veloz como no monte a trepida gazela,
É certo resguardava a insipida pessoa
Adiposa e feliz para cingir a c'roa,

E da nação em prol tão lorpa se revela,
Que nomeia coronel do exercito á cautela
O Santo Taumaturgo Antônio de Lisboa.

TABORDA

Taborda, altivo herói da gargalhada,
Que dominas no palco com bravura,
Quando vier sobre ti a morte escura,
Há de sentir-se humilde, deslumbrada.

E rindo a vez primeira entusiasmada,
Desfranzindo a medonha catadura,
Ao ver-te e ouvir-te em alegria pura,
Despedaça a fera clava ensanguentada.

Como subjugas cauto a morte ingrata,
Vences também risonho a dúctil alma
D'esta multidão gélida, pacata.

E Satan abismado diz em calma:
– Sim?!... Mais almas do que eu ele arrebata?
Já Diabo não sou!... Leva-me a palma. 

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

quinta-feira, 28 de junho de 2018

UBT Curitiba homenageia Vânia Ennes

Vânia Ennes (ao lado) homenageada pela UBT - Seção de Curitiba. Idealizada e realizada por Maria da Graça Stinglin de Araújo, ex-presidente da UBT - Seção de Curitiba, ocorrido na Biblioteca Pública do Paraná, em abril de 2018.

Veja o vídeo no link abaixo:


quarta-feira, 27 de junho de 2018

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) I


QUANDO NECESSÁRIO

Plácido
cordato
sorridente

essa a face

ágil
vigoroso
rude

a outra face

na dupla face
o homem de sempre

na quietude
dos movimentos.

GIBIS

Peixes conversam
em bolhas
sob a água

ideia original
das revistas
em quadrinhos.

MALES

Não faço o mal
ignoro proibições

sociológicas

desfaço o mal
feito em proibições

políticas

esqueço o mal
passo ao largo

caótico

abdico de todo o mal
                    anterior.

LEMBRANÇAS

Palavra
lembrança

música
lembrança

gesto
lembrança

olhar
lembrança

sobre a paisagem vista
emergem lembranças
das passagens anteriores

viajo.

GUARNECER

Guarnece o silêncio
nenhuma palavra será dita

olhos fechados
nenhuma claridade será avistada

absorto
nenhum rumor será ouvido

mãos entrelaçadas
nenhum movimento será feito

guarnece o silêncio
em que se isola
do mundo exterior

sua interioridade
basta.

MISTÉRIOS

                     O mistério se desfaz
quando olhamos da maneira certa
não temendo o que iremos ver
nem sofrendo pelo o que a vista alcança

            não há mistério
e os tempos continuam
como sempre foram

mera afirmação da natureza
          em que tudo se aplica
e se explica no tempo exato.

VIR

Veio no encanto
em mágica carruagem
consigo o perfume
e a alegria das princesas

veio na noite
em alteradas cores
consigo a palavra
e o sorriso das princesas

veio fosse fada
além do horizonte
consigo a magia
e o mistério dos luares

veio sem nada querer
displicente em sua elegância
consigo a música
e as letras de eterno amor.

DA TERRA

Que é a terra senão nutrientes
microscópicos e macroscópicos
seres que se repetem na vida
e a multiplicam?

Que é a terra senão
o que nos sustenta
e de todas as fomes
nos mantém vivos?

Que é a terra senão
a simbiose que se eterniza
na renovação da vida
em outras formas
e a que nos cabe
no final do tempo?

AMANHECER

Amanhece
em fímbrias cores
         cinza azuladas

morros fechados
em suspensas
partículas

a luminosidade aumenta
a percepção da matéria
              que nos rodeia

aclara ideias
desperta sentimentos

                 movimenta.

Fonte:

Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) IV


A existência é definida:
não por azar, mas por sorte,
quanto mais “cheios” da vida,
mais perto estamos da morte.

A gente jamais esquece
de um bom momento os embalos,
pois se a memória fenece,
fica a saudade a lembrá-los.

Agitando o seu penacho,
da leve brisa aos carinhos,
o coqueiro solta o cacho,
num dilúvio de frutinhos.

A voz na garganta presa,
em meu mutismo sem fim,
eu cedo espaço à tristeza:
ela que fale por mim!

Chego, temendo o vazio,
mas pressinto, na ansiedade,
invadir meu quarto frio,
a presença da saudade.

“Conheço o mar, finalmente”,
diz a menina, a sonhar.
E o velho marujo doente:
“Eu também conheço o mar”.

Da emoção que se desdobra
deste amor posto à franquia,
meu coração não te cobra
nem juros, nem garantia.

Da vida, nessa altitude,
não chore os erros que fez!
Se voltasse à juventude,
faria tudo outra vez.

Ergue o mar a crista altiva,
e eu, transtornada e sem guia,
sou como um barco à deriva,
arriscando a travessia.

Estala o fogo e consome
as ervas da terra chã,
lavrando a seara da fome
num mundo sem amanhã.

Indiferente ao cansaço,
rolo às ondas do meu mar,
como no oceano do espaço,
rola a Terra, sem cessar.

Já não guardo nem resquício
daquela mágoa sem pausa.
Só lamento o desperdício
de tanto choro sem causa.

No museu de nossas vidas,
somos fantasmas errantes,
duas sombras, encolhidas,
a chorar sonhos distantes.

O aroma da flor singela,
a energia do condor,
nessa palavra tão bela:
“Mãe”, sinônimo de amor.

O sol ergue, reverente,
o véu cinza da neblina,
e o morro, altivo, emergente,
é o verde altar da campina.

Os raros troncos poupados
à ruína que o fogo fez,
são hirtos vultos sombreados
do negro véu da viuvez.

Quanto sonho e quanta mágoa
eu fiz rolar no meu rio,
que hoje, apático deságua
de mágoa e sonhos vazio!

Teu retrato na parede,
é o santinho a me guardar;
e eu engancho a minha rede,
bem debaixo desse altar.

Tombam as folhas, sem pressa,
rendando a manhã chuvosa,
como a tristeza inconfessa
que faz fingir-me ditosa.

Triste, a lua apaixonada,
se esconde no céu moreno,
e a branca face marcada
chora gotas de sereno.

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da tarde: trovas.
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.