quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Malba Tahan (Os Pastéis de Alcassim)


O velho Abdo Alcassim, pasteleiro em Kufa, homem generoso e bom, chamou um dia seu filho Elias e disse-lhe, apontando para uma cesta repleta de deliciosos pastéis:

— Aqui tens, nesta cesta, tão bem arrumada, trinta e dois pastéis de leite e canela. Estão saborosos. Seriam dignos da esposa do Sultão. Leva-os ao nosso honrado cadi Ragi Zattar, que tão amável e correto tem sido para mim.

— Escuto e obedeço, meu pai — respondeu o jovem.

E partiu, no mesmo instante, para a casa do prestigioso magistrado, levando o apetitoso presente.

Em meio do caminho, ao passar pela mesquita, o rapaz parou, colocou a cesta no chão, olhou demoradamente para os pastéis e disse de si para consigo:

— Logo que entregar estes trinta e dois belíssimos pastéis de leite e canela ao honrado cadi Ragi Zattar, ele, de acordo com a velha e delicada praxe, fará questão absoluta de me dar a metade. Sim, é isso mesmo, a metade. Ora, qual é a metade de trinta e dois? Qualquer mestre-escola diria logo: a metade de trinta e dois é dezesseis! É certo, portanto, que, destes trinta e dois pastéis, dezesseis serão forçosamente meus. Não há mal, portanto, que os coma agora mesmo.

E, tendo raciocinado deste modo, comeu dezesseis dos pastéis, deixando os outros no fundo da cesta.

Depois de caminhar mais algum tempo, o jovem parou novamente, colocou a cesta sobre um pedaço de muro em ruínas e assim refletiu:

— Levo agora dezesseis magníficos pastéis de leite e canela, feitos por meu pai, ao honrado cadi Zattar (que Allah, o Muito Alto, o cubra de incontáveis benefícios!). Logo que fizer a entrega da cesta, serei, por ele próprio, obrigado a aceitar a metade do conteúdo. O cadi, sendo um homem de bem, não deixará de cumprir com essa velha praxe. E qual é a metade de dezesseis? Ora, a metade de dezesseis (qualquer burriqueiro do deserto não o ignora) é oito! Logo, destes dezesseis belos pastéis, oito serão forçosamente meus. Não vejo inconveniente em comê-los desde já.

E, firmado nessa maneira de raciocinar, devorou, o insaciável Elias, mais oito dos pastéis destinados ao cadi.

Logo adiante, graças a um raciocínio aritmeticamente idêntico aos anteriores, e sempre firmado na velha e delicada praxe, achou-se o peralvilho com o direito de comer mais quatro pastéis. E assim, de cada vez, comia metade dos pastéis que haviam ficado na cesta.

Quando chegou à casa do justo cadi Ragi Zattar, o magnífico presente do velho paste-leiro Alcassim estava reduzido a meio pastel.

—  Que é isso? — perguntou o cadi, intrigado, ao receber a cesta, no fundo da qual aparecia um pedaço de pastel.

—  É um presente de meu pai! — respondeu o pândego com a maior naturalidade. — É um presente do velho pasteleiro Abdo Alcassim ao seu amigo, o honrado cadi Ragi Zattar.

E contou, com a maior desfaçatez e sem-cerimônia, o raciocínio que várias vezes fizera para satisfazer sua gula nos pastéis destinados ao cadi.

Ao ouvir o minucioso relato da façanha, observou com serenidade o juiz de Kufa:

— Por Allah, meu jovem amigo! Sempre fui otimista na vida. Graças a tua maneira de proceder, inspirada na velha e delicada praxe, ainda ganhei meio pastel e vou saboreá-lo. Certo estou de que se fosse outro o mensageiro desse presente (que em boa hora me enviou o bondoso Alcassim) nem uma simples migalha chegaria às minhas mãos.

E já ia o cadi provar o meio pastel restante, quando o jovem protestou com um risinho petulante:

— Perdão, ó honrado cadi! Pelo nome do Profeta! Desse meio pastel, que ficou na cesta, segundo a velha e delicada praxe, eu tenho pleno direito à metade. Não é assim?

— Iallah! — concordou, prontamente, o juiz — A tua observação é muito justa. Que distração a minha! Devo seguir, ainda desta vez, a velha e delicada praxe. Dentro das regras da perfeita fidalguia tens, realmente, direito à metade desta mísera metade!

E, dividindo ao meio o pequeno quinhão que recebera, entregou uma das partes ao velhaco, comendo a parte restante.

Depois de saborear, em silêncio, aquela minúscula metade da metade, o cadi assim falou com voz muito séria:

—  Esse caso dos trinta e dois pastéis, meu amigo, vai ter um desfecho muito triste.

— Muito triste? Como assim?

— É fácil explicar — volveu o cadi, num tom vitorioso. — Teu pai, o velho Alcassim, deve ser severamente castigado. Castigado pela leviandade que praticou enviando, ao juiz de Kufa, um presente por um portador que não merecia confiança. Zombou da autoridade e, por esse crime, deve ser punido. Punido severamente!

— O honrado cadi vai castigar meu pai? — perguntou o birbante com ares de abstração palerma.

— Sim — confirmou com serenidade o cadi, elevando intencionalmente a voz. — Vou castigá-lo, como já disse. E castigá-lo com trinta e duas chibatadas.

E, depois de ligeira pausa, desfechou num gesto largo, secamente:

— E serás tu mesmo, meu caro Elias, o portador destas trinta e duas chibatadas. Ora, é claro, é evidente, que podemos repetir, para as trinta e duas chibatadas (que envio a teu pai), o mesmo e perfeito raciocínio que fizeste (como portador) para os trinta e dois pastéis de leite e canela que teu pai a mim me enviou... E, sendo assim (de acordo com a velha e delicada praxe), terás direito a trinta e uma chibatadas e meia! E no fim, terás, ainda, a metade da metade! Não é assim? Mas como, na Aritmética das Punições, não é possível calcular meia chibatada, vais receber, no lombo, agora mesmo, as trinta e duas chibatadas que eu resolvi, por plena justiça, enviar, por teu intermédio, a teu pai!

E o honrado cadi, no mesmo instante, chamou dois guardas (dos mais violentos que estavam a seu serviço) e mandou aplicar uma surra impiedosa, de trinta e duas chibatadas, no filho do pasteleiro.

Bem diz o provérbio que os beduínos repetem todos os dias:
“O castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras estão dos olhos”. Uassalam
_________________
Nota:
Cadi - Juiz. Magistrado.

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do cheique e outras lendas.

Antonio Brás Constante (Aprisionados, ou melhor... casados)


O casamento é a prisão perfeita, pois faz com que o próprio apenado decida se entregar, construindo sua cela em um terreno financiado por ele mesmo, providenciando o seu sustento e de sua carcereira. Tudo feito por atos espontâneos, motivados pela sociedade, que convence o candidato a prisioneiro com promessas de
felicidade eterna.

A pena para quem casa é de prisão perpétua, pois o juiz, ou melhor, o padre sempre finaliza a sentença dizendo: “até que a morte os separe”. A única forma conhecida de se libertar dessa prisão é por mau comportamento. O casamento é um regime onde
o prisioneiro cumpre sua pena em regime semiaberto. Saindo durante o dia para trabalhar como qualquer homem livre e solteiro, e voltando ao seu cárcere ao anoitecer.

Para que o homem não se sinta tentado a “pular o muro” em busca de alguma louca aventura fora de sua cela, existem dispositivos extremamente eficientes para monitorá-lo, intitulados de “vizinhos” e “parentes”, que conseguem rastrear suas atividades, impedindo qualquer desvio de sua conduta.

Uma das curiosidades sobre o casamento é que o homem (por se achar muito esperto) resolve em um dado momento que pode roubar a sua noiva dos pais dela, mas esquece que fazendo isto é ele quem acabará preso. Aliás, o casamento é o único sistema penal onde o prisioneiro pode abertamente ter relações íntimas com sua carcereira, tendo inclusive filhos com ela, que podem ser futuros prisioneiros ou futuras carcereiras. Como o aprisionado dispõe dessa liberdade com a carcereira, fica proibido de ter outras visitas íntimas.

As punições por seus erros de conduta vão desde a falta de um jantar até algumas noites dormindo no “solitário” (também conhecido como sofá), que é uma versão doméstica da solitária. É nesse lugar que o pobre marido tem de se sujeitar a ficar em eventuais brigas conjugais. Ao invés de algemas, o apenado recebe uma aliança, que deve permanecer em seu dedo enquanto viver. A retirada ou perda dessa joia é recebida com sessões de tortura, que começam nos ouvidos e terminam com a ameaça da vinda de sua sogra para morar com eles em sua cela.

Nos finais de semana, os prisioneiros têm direito a banhos de sol, desde que façam os mesmos segurando uma enxada, que será utilizada para capinar o pátio. O prédio da prisão onde o apenado reside serve para duas situações: garantir o conforto de sua carcereira e prole, bem como facilitar a localização do mesmo para o recebimento dos impostos vindos pelo correio, onde é cobrado pelo governo por estar preso.

O homem, quando se deixa enfeitiçar pelos encantos de uma mulher, fica cego de amor e logo vai entregando a chave de seu coração, esquecendo-se de que o resto do corpo também faz parte do pacote. Em algumas dessas prisões chamadas de lares, as carcereiras efetuam revistas nos prisioneiros quando estes retornam do trabalho, procurando em seus corpos e bolsos marcas ou bilhetes que sirvam de prova contra os réus.

Algumas normas devem ser obedecidas na prisão: Não “roubar” doces da geladeira. Não ficar atirado no sofá da sala “matando” tempo. E principalmente não “desviar” olhares para outras mulheres.

Enfim, o casamento é uma prisão dentro de outra prisão chamada vida, e, apesar de todas as reclamações que possam surgir, ainda é um lugar maravilhoso, seguro e aconchegante, pelo qual vale a pena cumprir integralmente a sua pena. Case-se, e saberá se estou dizendo a verdade ou apenas lhe pregando uma peça.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 7


AS DUAS MÃES

MOTE:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria,
era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
(Barreto Coutinho)

GLOSA:

Eu vi minha mãe rezando
numa prece doce e pura;
por todos estava orando,
com grande amor e ternura!

A minha mãe, ajoelhada,
aos pés da Virgem Maria,
parecia a madrugada
ao romper de um novo dia!

Como um sol que vem raiando
vislumbrei com emoção:
era uma santa escutando
da outra santa, a oração!

Unidas, no mesmo amor,
a mãe de Jesus, ouvia,
com carinho e com fervor
o que outra santa dizia.
_____________________

CANIÇO DE TROVAS

MOTE:

No imenso "mar da ternura",
eu fiz pescarias novas:
Cheguei a pescar ventura,
com meu caniço de trovas!
(Delcy Canalles)

GLOSA:

No imenso "mar da ternura",
eu navego com carinho
e a paz, na minha procura,
eu encontro em meu caminho!

E nesse mar de poesias,
eu fiz pescarias novas:
pesquei muitas alegrias...
Os meus versos são as provas.

Eu afoguei a amargura!
Dei vida ao contentamento!
Cheguei a pescar ventura,
naquele exato momento!

Multipliquei, eu bem sei,
na piracema, em desovas,
os peixes que, então, pesquei,
com meu caniço de trovas!
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SILÊNCIO E LÁGRIMA

MOTE:

A lágrima silenciosa
ninguém lhe presta atenção,
por isso é mais dolorosa
quando inunda o coração!
(Fernando dos Santos)

GLOSA:

A lágrima silenciosa
abre sulcos em nossa alma,
ela é sutil, misteriosa
e nos tira toda a calma.

Por ser assim. sorrateira,
ninguém lhe presta atenção,
rola e se esconde, ligeira
num grande mar de emoção.

É uma lágrima teimosa
que machuca de verdade,
por isso é mais dolorosa
e causa infelicidade.

Sofremos intensamente
na maré da solidão,
com essa lágrima dolente
quando inunda o coração!
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NOVO ACALENTO

MOTE:

Ao sentir falta dos laços
de um amor, mesmo bisonho,
eu me acalento em teus braços
no horizonte do meu sonho!
(Florestan Japiassú Maia)

GLOSA:

Ao sentir falta dos laços
do amor que a nós dois unia,
eu preencho meus espaços
com lembranças: noite e dia!

Sinto saudade do amor,
de um amor, mesmo bisonho,
mas sonhando com fervor
a minha angústia transponho!

Diminuindo meus cansaços,
na minha imaginação,
eu me acalento em teus braços
e vivo nova emoção!

E nesse novo acalento
eu me faço bem risonho,
um sonho novo, eu invento,
no horizonte do meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. abril de 2003.

Concurso Internacional de Poesia do Clube da Simpatia (Classificação Final)

O Clube da Simpatia envia muitos Parabéns aos poetas que foram premiados no “Concurso Internacional de Poesia/2018” e agradece, com muito carinho, a todos os que nele participaram.

“POESIA LIVRE”

VENCEDORES

1º PRÊMIO 
Jorge Ferro Rosa (Portugal)
Título: “Olhar Trespassado”

2º PRÊMIO 
Isidoro Cavaco (Portugal)
Título: “Recordando”

3º PRÊMIO 
Maria Helena Ramos (Portugal)
Título: “Não Sabemos Amar”

MENÇÕES HONROSAS

Donzília Martins (Portugal)
Título: “Desencontro”

Natália Vale (Portugal)
Título: “Pintando Um Retrato”

Mifori (Brasil)
Título: “Jornadas”

Leonilda Yvonneti Spina (Brasil)
Título “Juventude”

Alfredo Nogueira Pereira (Brasil)
Título “Um Anjo Voou Ao Céu”

"QUADRAS (TROVAS)"

VENCEDORES

1º PRÊMIO 
Isidoro Cavaco (Portugal)

2º PRÊMIO 
António Augusto de Assis (Brasil)

3º PRÊMIO  
Joel Hirenaldo Barbieri (Brasil)

MENÇÕES HONROSAS

Domingos Freire Cardoso (Portugal)

Natália Vale (Portugal)

Lóla Prata (Brasil)

Nadir Nogueira Giovanelli (Brasil)

Fontes:
- A. A. de Assis

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Franz Kafka (O Vizinho)

Meu negócio descansa inteiramente sobre os meus ombros. Duas senhoritas com suas máquinas de escrever e seus livros comerciais no primeiro quarto, e uma escrivaninha, caixa, mesa de informações, cadeiras de braços e telefone no meu, constituem todo meu aparelhamento de trabalho. É muito fácil controlar isso com uma vista de olhos, e dirigi-lo. Sou muito jovem e os negócios se acumulam aos meus pés. Não me queixo, não me queixo. 

Desde o Ano Novo, um jovem alugou sem hesitar a sala contígua, pequena e desocupada, que por tanto tempo titubeei, estupidamente, em tomar para mim. Trata-se de um quarto com antecâmara e, além do mais, uma cozinha. Tivesse podido utilizar o quarto e a antecâmara - minhas duas empregadas sentiram-se mais uma vez sobrecarregadas em suas tarefas -, mas, para que me teria servido a cozinha? Esta pequena hesitação foi a causa de permitir que me tirassem a sala. Nela está instalado, pois, esse jovem. Chama-se Harras. Com exatidão não sei o que faz ali. Sobre a porta lê-se: "Harras, escritório". Pedi informações, comunicaram-me que se trataria de um negócio idêntico ao meu. Na realidade, não vem ao caso dificultar-lhe a concessão de crédito, pois se trata de um homem jovem e de aspirações, cujas atividades tenham talvez futuro, mas não se poderia, contudo, aconselhar que se lhe outorgue crédito, pois atualmente, segundo todas as presunções, careceria de fundos. Quer dizer, a informação que se dá habitualmente quando não se sabe de nada. 

Às vezes encontro Harras na escada, deve ter sempre uma pressa extraordinária, pois se escapuliu diante de mim. Nem mesmo pude vê-lo bem ainda, e já tem pronta na mão a chave do escritório. Num instante abre a porta, e antes que o observe bem já deslizou para dentro como a cauda de uma rata e aí tenho outra vez à minha frente o cartaz "Harras, escritório", que li muitas mais vezes do que o merece. 

A miserável finura das paredes, que denunciam o homem eternamente ativo, ocultam porém o desonesto. O telefone está pendurado à parede que me separa do quarto de meu vizinho. 

Não obstante, destaco-o apenas como constatação particularmente irônica. Mesmo quando pendesse da parede oposta, ouvir-se-ia tudo da sala vizinha. Evitei o meu costume de pronunciar ao telefone o nome de meus clientes. Mas não é necessária muita astúcia para adivinhar os nomes através de característicos mas inevitáveis torneiros da conversação. Às vezes, aguilhoado pela inquietação, sapateio nas pontas dos pés em volta do aparelho, com o receptor no ouvido, mas não posso impedir que se revelem segredos.

 Naturalmente, as resoluções de caráter comercial se tornam assim inseguras e minhas voz, trêmula. Que faz Harras enquanto telefono? Se quisesse exagerar muito - o que é preciso fazer com frequência para ver claro -, poderia dizer: Harras não precisa telefone, usa o meu, colocou o sofá contra a parede e escuta; eu, em troca, quando o telefone toca, devo ir atender, tomar nota dos desejos do cliente, adotar resoluções graves, sustentar conversações de grandes proporções, porém, antes de tudo, proporcionar a Harras informações involuntárias, através da parede. 

Ou antes, nem mesmo espera o fim da conversação, porém que se ergue depois da passagem que lhe informa suficientemente sobre o caso, atira-se, segundo o seu costume, através da cidade e, antes de eu ter pendurado o receptor, está talvez trabalhando já contra mim.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.

sábado, 29 de setembro de 2018

Ógui Lourenço Mauri (Primavera, De Novo!...)



Fonte:
Poema enviado pelo autor

Vinicius de Moraes (A Bela Ninfa Do Bosque Sagrado)


Hollywood, novembro de 1946: A noite é alta, Ciro's terminou e estamos todos - um destacado grupo de "estrelas" e "astros", entre os quais sou um modesto meteorito - na casa de Beverly Hills de Herman Hover, o notório dono da famosa boate de Sunset Boulevard. Vou nas águas de minha amiga Carmen Miranda, com quem saí e a quem, como um cavalheiro que sou, depositarei em sua vivenda de Bedford Street. Lá estão também as figuras ciclópicas de José do Patrocínio de Oliveira, o não menos conhecido Zé Carioca, e seu sonoplástico parceiro Nestor Amaral, ambos homens dos sete instrumentos, sendo que este é capaz de tocar o Hino Nacional batendo com um lápis nos dentes e o "Tico-tico no fubá" mediante pequenos cascudos acústicos aplicados no cocuruto - tudo diante de um microfone, bem entendido. 

Carmen está quieta, sentada no braço de minha poltrona. Tornamo-nos rapidamente grandes amigos. Celebramo-nos com o devido foguetório quando nos encontramos e uma vez juntos temos assunto para conversas intermináveis, sempre salpicadas de história sobre seus inícios como cantora, que me encantam. Sua verve é inesgotável e ninguém imita como ela antigas situações marotas em que se viram envolvidos, nos primeiros contatos com o público, seus velhos companheiros Mário Reis, Francisco Alves e Ari Barroso, na fase renascentista do samba carioca. Aprendi a querer-lhe muito bem e admirar a coragem com que enfrenta, ela uma mulher toda sensibilidade, a tortura de se ter tornado um grande cartaz comercial para Hollywood e de ter de sorrir à boçalidade, com raríssimas exceções, dos produtores, diretores, cenaristas, cinegrafistas, iluminadores e demais mão-de-obra dos estúdios. : Mas hoje Carmen está quieta. Seus imensos olhos verdes se horizontalizam numa linha de cansaço, quem sabe tédio, daquilo tudo já "tão tido, tão visto, tão conhecido", como diria Rimbaud. Cerca de nós, o ator Sonny Tuffs toca um piano mais bêbedo que o do genial Jimmy Yancey nas faixas em que foi gravado sem saber. Depois seu corpanzil oscila, ele se levanta só Deus sabe como e sai por ali cercando frango, não sem antes abraçar à passagem a atriz Ella Raines, que compareceu de noivo em punho e deixa-se estar com este a um canto, com um ar de Alicinha que só enganaria os drs. Sobral Pinto e Albert Schweitzer.

Numa poltrona a meu lado estira-se, com um viso suficientemente decomposto, o magnata Howart Hughes. Troco duas palavras com ele, mas o tedioso multimilionário e playboy, descobridor e bicho-papão de "estrelas", me parece muito mais interessado em Ella Raines - espécie de Grace Kelly de 1940, só que menos pasteurizada. Deixo-o, pois, à sua nova conquista, enquanto no meio da sala, Zé Carioca e Nestor Amaral "se viram" para chamar a atenção sobre os seus dotes de instrumentistas. Mas a pressão geral é grande e cada um procura cavar o pão da noite como pode, enquanto Herman Hover passeia com um ar de Napoleão em Marengo. Há propostas para um banho de piscina, para um concurso de rumba e outras trivialidades, mas ninguém topa mesmo porque o Sol (ou melhor "Ele", como dizem com o maior nojo meus amigos Américo e Zequinha Marques da Costa) já deve, contumaz ginasta matutino, estar pendurado à barra do horizonte para a sua atlética flexão de cada dia. O ambiente se está nitidamente desgastando em álcool e semostração. 

Vou propor a Carmen irmos embora quando uma cortina se entreabre e surge uma mulher espetacular. Não creio que ninguém houvesse reparado, mas a mim ela me pareceu tão linda, tão linda que foi como se tudo tivesse de repente desaparecido diante dela. 

Fiquei, confesso, totalmente obnubilado ante tanta beleza, muito embora essa beleza se movimentasse, por assim dizer, um pouco à base da dança a que chamam quadrilha: dois passinhos para diante e três para trás com direito a derrapagem. Mas o que o corpo fazia, o rosto desconhecia; pois esse rosto tinha mais majestade que Carlos Machado entrando no Sacha's. Ela olhou em torno com um soberano ar de desprezo e logo, dando com Carmen, tirou um ziguezague até ela, vindo postar-se no esplendor de todo o seu pé-direito justo diante de mim, coitadinho que nunca fiz mal a ninguém. 

- Hey, Carmen - disse ela. 

- Hey, honey - respondeu Carmen com o seu sorriso no 3. 

- Gee, Carmen, I think you're wonderful, you know. I think you're tops, you know. Tops. You're terrific. 

Para quem não sabe inglês, esse diálogo inteligente exprimia a admiração da moça por Carmen, a quem ela chamava de "do diabo", de "a máxima" e toda essa coisa. Passado o quê, dá ela de repente comigo lá embaixo, pobre de mim que tive bronquite em criança, e olhando-me por cima de suas pirâmides, fez-me a seguinte pergunta num tom de rainha para vassalo: 

- Who are you? (- Quem é você?) 

Declinei minha condição de modesto servidor da pátria no estrangeiro, o que não pareceu interessá-la um níquel. Em seguida, sem aviso prévio, ela debruçou-se a ponto de eu poder ver o algodãozinho que havia juntado no seu umbigo, pôs as mãos sobre os meus braços, trouxe o rosto até um centímetro do meu e cuspindo-me todo como devia fez-me a seguinte indagação: 

- Do you think I'm beautiful? (- Você me acha bonita?) 

Fiz-lhe os elogios de praxe. Ela esticou-se novamente e concordou comigo: 

- You're right. I'm very beautiful. But morally, I stink! (- Você está certo. Eu sou muito bonita. Mas moralmente eu... como traduzir sem ofender tanta beleza, tirante os ouvidos do leitor? - não cheiro muito bem.) 

Dito o quê, partiu como chegara, através da mesma cortina, para onde suponho houvesse um bar privado. Só sei que aquilo deu-me uma grande animação, a festa continuou até "Ele" raiar e eu acabei dançando com a linda moça, ela bastante mais alta do que eu, o que permitia ouvir-lhe bater o coração, de resto levemente taquícárdico. Antes de sair vi vários casais no Jardim que não se sabia mais quem era quem, vi Sonny Tuffs atravessado num sofá, vi coisas como só se vê em baile de carnaval. Festinha familiar, como diria a finada dona Sinhazinha. 

Fora perguntei a Carmen se ela sabia quem era a deusa. 

- É uma atriz nova que está entrando agora. Bonita, não é? Chama-se Ava Gardner.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer) IV


DIES IRAE
(Sobre o Desastre do “Aquidabã”)

I
Na vastidão das águas da baía
Tudo é luz, íudo é paz neste momento.
Límpido, ao alto, nos acaricia
O amplo côncavo azul do firmamento.

Do mar ao céu, é mais profunda a calma.
Quer junto a nós, quer na amplidão remota,
Raramente nos ares a asa espalma.
Solitária branquíssima gaivota.

À barra, um transatlântico que ao mastro
Alto., estrangeiro pavilhão desfralda,
Deixando empós um marulhoso rastro,
Corta, solene, a líquida esmeralda.

Nuns tons leves de nítida aquarela,
Sobre um barco de pesca tardo e lento,
Em forma de triângulo, uma vela
Desenha ao longe o bojo pardacento.

Dentro do porto alteia-se a floresta
Dos mastros com suas flâmulas aflantes,
E, num silêncio abrigador de sesta,
Dormem os transatlânticos possantes.

O sol envolve com seu manto de ouro
As fortes naus afeitas às tormentas,
Que, ora, na quietação do ancoradouro,
Parecem grandes aves sonolentas.

Um que, certo, entre todos é o mais forte,
Parece estar sonhando em pompa de galas,
Num tempo em que ele se entregava à sorte.
Debaixo de uma abóbada de balas!

II
Sonha o grande couraçado,
Sonha o navio, e, no sonho,
Revê todo o seu passado
De heroísmo no mar medonho.

Tem dentro de si, contente,
A marujada louça
Que a glória nunca desmente
Do nome de Aqindabã.

Todo ele é uma alma sonora,
É da pátria a própria imagem,
A dar provas, de hora em hora,
De nobreza e de coragem.

Sonha que a sonhar desperta
Por uma alegre manhã
A uma voz que brada: Alerta!
Marujos do Aquidabã.

III
Ao balouço do mar que aos beijos o rodeia,
Todo em galas desperta o potente navio,
E aquela nobre gente aos perigos alheia,
Presto, provas quer dar de luzimento e brio.

A azáfama começa e em toda a plenitude,
Do vigor de um pulmão, as vozes de comando,
Qual hino triunfal de alegria e saúde
Brotam de um peito heróico os ares recortando.

Vibra em roda o estridor clangoroso de festa.
Move-se lado a lado a marujada ativa.
O grande couraçado orgulhoso se apresta
Pronto para aguardar luzida comitiva.

A hora de levantar e de partir não tarda;
Todo o navio anseia em grande açodamenlo
E em cima, no convés, o sol, de cada farda,
Tira efeitos de estranho e ideal deslumbramento.

Brilham fulvos galões; brilham, presas aos ombros,
Dragonas de retrós metálico de escarcha,
E tudo a refulgir envolve a nau de assombros
Nesse apresto sem par de uma imprevista marcha.

O ouro do fivelame e dos botões rebrilha,
Fulge, dos espadins, o ouro que o punho encerra.
E tudo é o resplendor e tudo é a maravilha
De uma festa de paz na grande nau de guerra!

IV
Ei-lo que chega ao porto entressonhado.
Foi suave a travessia
Mas em todos que estão no couraçado,
Não é a mesma a alegria.

A tarde desce. A noite se aproxima.
Foi todo alegre o dia.
Mas agora, nos astros, lá por cima.
Anda a melancolia.

Não pode ser mais calmo nem sereno
O vir da Ave-Maria.
Para a noite que chega sobre um trenó
De meiga nostalgia:

Foi nas águas do Amazonas
Que aprendi a navegar.
Meu Deus, por que me abandonas
Nas feias águas do mar?!

Ao vibrar melancólico da viola,
Aquele ingênuo canto
De um coração nostálgico se evola
Como sonoro pranto.

Do Pará nas ribanceiras
Deixei meus pais a chorar.
E aqui estou nestas canseiras
Da triste vida do mar!

O céu arqueia protetoramente
O amplo azul constelado,
Como que para ouvir a voz dolente
Que embala o couraçado.

Ai! Maranhão do meu berço.
Para por ti eu rezar,
Tem mais contas o meu terço
Do que vagas tem o mar!

Em torno, à vasta quietacão das águas
Mais o silêncio cresce
E só se escuta este gemer de mágoas
Num sussurro de prece:

Do Piauí nas densas matas
Vivia alegre a cantar
E hoje choro estas ingratas,
Duras tristezas do mar!

Este simples e rústico lamento
Tem talvez a virtude
De espairecer algum pressentimento
Do marinheiro rude:

Ao meu Ceará com certeza
Nunca mais hei de voltar.
Foi meu berço a Fortaleza,
Vai ser meu túmulo o mar!

Seja pressentimento ou desengano,
A meiga singeleza
Daqueles sons, tem do destino humano
A infinita tristeza:

Do Rio Grande do Norte
A terra quer se queimar;
Prefiro na seca a morte,
A morrer dentro do mar!

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Isabel Furini (O Poder do Livro)


(Menção Honrosa no Concurso de Contos Paulo Leminski, de Toledo/PR)

O relógio de pêndulo deu oito badaladas. Um som metálico vibrou no ar. Roberto entrou na sala, colocou o paletó escuro e desbotado no espaldar da cadeira e sentou-se. Vestia uma camisa branca, com o colarinho gasto e um pulôver já fora de moda. Olhou o relógio. Um relógio enorme, antigo, de madeira escura e lustrosa, herdada do avô. Depois consultou seu relógio de pulso. Tinha a sensação de que um dos relógios estava defasado alguns segundos.

Dona Irineia saiu do elevador apressada e avançou rapidamente pelo corredor. Abriu a porta. Na parede, um cartaz que dizia: “ PROIBIDA A ENTRADA A AUTORES” em letras grandes e, em letras pequenas: “Deixe seus originais na portaria”. Entrou na recepção, ligou o computador e disse “bom dia” para o senhor Roberto.

- Dona Irineia... pode vir... - pediu ele.

Dona Irineia entrou, abriu as cortinas. Um raio de sol entrou pela janela de vidro, atravessou a metade da sala e caiu como uma torrente de luz sobre a escrivaninha de ébano escuro, cheia de papéis, livros, canetas, contratos. Roberto estava sentado diante da escrivaninha, na cadeira alta com espaldar de veludo vermelho. Às suas costas, o retrato antigo de seu avô, Florêncio, fundador da Editora RT.1.

Nos cantos da sala, caixas enormes, abertas, onde Irineia, todos os dias jogava, com indiferença, os originais que vinham pelo correio. Jogava os sonhos, as esperanças, as fantasias, as suposições, as ambições dos autores nas caixas de papelão. Cérebros, corações, fígados com vesículas apodrecidas de tanta ansiedade na busca da fama ou do reconhecimento. Ela jogava tudo nas caixas de papelão.

Irineia pegou uma faca grande, com o cabo forrado em couro marrom e começou a abrir os pacotes do correio. Chegavam originais de todos os tipos e de todos os cantos deste enorme país. Romances, novelas, contos, crônicas, monografias, teses, livros técnicos e poesias. Chegavam obras dos lugares mais recônditos, das grandes cidades, do campo e dos povoados. Povoados que Irineia mal conseguia localizar no mapa e nem sabia que existiam.

Roberto pegou alguns originais para análise. Sua forma de escolher os livros que seriam publicados no semestre era, no mínimo, peculiar, para não dizer que era uma maneira estranha, extravagante, ou simplesmente, insana. O editor comum obedece a padrões de modernidade, originalidade, gosto popular ou elementos como mudança de perspectiva, quebra de tempo, jogo de palavras, ironia, tipos de discursos e outros.

Roberto era diferente. Como um alquimista em busca da pedra filosofal, Roberto colocou pó de enxofre nos dedos das mãos e manuseou as páginas de um romance, abrindo-o ao acaso. Leu um parágrafo. Tantos anos na Editora deram-lhe uma firmeza inigualável.

- Dona Irineia.... - chamou o patrão.

- Sim, senhor - respondeu ela, enquanto se levantava, empurrando a cadeira.

Ele respirou profundamente e disse com raiva:

- Essa febre de escrever tomou conta da população! Todo mundo quer escrever, é irritante!
Roberto acomodou os óculos grossos sobre o nariz proeminente e alisou seus cabelos grisalhos, longos e oleosos.

- Por favor - pediu Roberto, acendendo um cigarro - Isto é ridículo! Este cara já enviou mais de dez livros... Soltou a fumaça do cigarro no ar. - Ele ainda não entendeu que nunca vou publicar suas obras? Quando vir este nome no envelope nem abra. Jogue fora!

Irineia disse que enviaria a carta padrão. Carta padrão consistia num modelo, onde a obra do escritor era elogiada e a Editora pedia desculpas por não poder incluí-la, falta de espaço na programação. Isso evitava processos e discussões intermináveis com autores inconformados.

Leu uma página e ficou irritado, “vejo um escritor de pulso vacilante, tentando contar uma história, mas sem técnica suficiente. Um trabalho superior a suas forças, megalomaníaco” pensou. - Não é suficiente ter uma história interessante, deve ser bem contada. Deve ser: “Alento de fogo.” Dona Irineia colocou novos livros sobre a escrivaninha: “Sonhos”, “Heróis do presente”, “A Morte de Joana” “Chuva no telhado” e “Mundo em guerra”. Roberto empurrou os óculos grossos de armação preta e enfiou o nariz nos originais de “Heróis do Presente”. Gás Bucal, murmurou.

Fechou o livro e voltou a abri-lo. Leu um parágrafo. Fechou e tornou a abri-lo pela terceira vez.

Não, eu estava certo na primeira classificação: Gás Bucal. Anote, dona Irineia, Heróis do Presente, é Gás Bucal.

Sempre falava para a secretária qual tinha sido sua avaliação. Fazia anos que ela trabalhava para ele e já não sabia viver sem sua presença calada e submissa. Só uma vez Irineia levantara a voz, dois anos atrás, para defender um livro de amor e traição. Nunca antes, nunca depois.

Pegou o livro “Chuva no Telhado” - Roberto deixou fluir os originais encadernados em cor cinza pelas mãos sensíveis. Passou os dedos pelas bordas e o abriu. Leu uma página, este é pior.

Nos últimos três meses, só os originais de “Lago em Sombra” tinham sido aceitos para edição. Roberto tinha, à semelhança dos alquimistas, a busca incansável. Ainda lembrava seu avô dizendo: Existem dois tipos de editores, os editores alquimistas que procuram a pedra filosofal das palavras e os editores alquimistas que procuram simplesmente o ouro filosofal. Ele era do tipo um.

Seu avô tinha ideado um método infalível de classificar os originais. Tinha relação com o elemento ar. Talvez porque o avô Florêncio fosse de um signo de ar, Gêmeos. E toda sua vida tinha acreditado no destino e nas estrelas.

O método era o seguinte: Ruim, D - Gás estomacal. Bom - C: Gás bucal - Provinha da boca. Muito bom: B - Corrente de vento chega à garganta. Excelente: A - Gás Pulmonar . Obras de grande qualidade chegavam poucas. Extraordinário: AAA- ALENTO DE FOGO - O fogo do corpo e da alma.

Poucas obras “Alento de Fogo” havia recebido na vida. Na realidade, só recebera duas. Há trinta anos, seu avô ainda era vivo, quando receberam uma obra Alento de Fogo. O avô Florêncio estava doente, mas ao ler o texto recuperou-se totalmente e viveu mais cinco anos, com muita energia e vitalidade..

- Só o Alento de Fogo pode dar a vida... ou a morte... - disse o velho.

Dez anos atrás tinha reconhecido, ele sozinho, outra obra Alento de Fogo. Foi fascinante. A cada página que lia recuperava a vitalidade. Fez uma viagem ao redor do mundo. Nada de hotéis caros, de shoppings nem de restaurantes chiques. Caminhou pelas areias do deserto. Escalou as pirâmides, dançou na Ilha de Páscoa diante dos vigias.

Foi feliz durante dois anos. Mas a energia do alento também se esgota. Desde então, só procura o Alento. Há anos que traz os óculos grossos que escondem o desespero de sua alma na procura de um livro especial. Um livro que o tire da monotonia, da mesmice, das preocupações, do vazio da vida. Um livro revelador de um mundo paralelo que fale de suas expectativas, de seus sonhos, acertos e fracassos.

Roberto procurava na literatura, na palavra, a antiga arte da transmutação da mente. Arte anterior às técnicas da mente positiva ou da neurolinguística e outras ervas, que no seu entender, vendiam fantasias... das boas e das ruins, e algumas dessas fantasias eram terrivelmente nocivas à alma.

Roberto procurava na literatura a arte de entender o mundo. E a vitalidade para continuar a viver. A vitalidade que tinha perdido nos longos dias de leitura, na luta constante para analisar os textos com justiça. A análise e a luta com os textos sugaram sua energia. No fragor da contenda ficou míope e não conseguia enxergar a beleza da vida.

Roberto também escrevia. Ler e escrever. Escrever e ler. Sua vida tinha-se debruçado sobre os livros. Sua vida tinha-se esgotado entre letras impressas e folhas de papel. Os livros inéditos se pareciam. Eram como almas sem corpo. Todos pareciam iguais: papel branco oficio ou A4, letra New Roman ou Arial, corpo doze, duplo espaço.

Originais ruins que chegavam a suas mãos eram jogados no lixo. Não lia. Só abria três vezes o livro. Abria o livro, lia uma página e anotava a classificação. Abria de novo e lia dois parágrafos. Abria-o, pela terceira vez e só lia um parágrafo. Ele dava três chances. Só três, para cada candidato.

Originais ruins eram jogados no lixo. Não lia. E não era por falta de tempo. Nem por preguiça. Não lia porque lhe fazia mal, como a carne gordurosa o intoxicava. Intoxicava sua alma, embotava seus sentidos. Em síntese, diminuíam o ciclo de vida de Roberto.

Para Roberto, não ler lixo não era modismo, capricho, nem uma forma de esnobar a literatura. Era sobrevivência. Teve terríveis experiências, um livro mal escrito aumentava sua úlcera, desregulava os movimentos de diástole e sístole de seu músculo cardíaco.

Poucos sabiam que o alimento de Roberto era a literatura. Não só o alimento de sua alma, mas até certo ponto, a literatura era também o alimento de seu corpo. Até suas vísceras precisavam de leitura. Uma página ruim que lia, e seu corpo parecia desmembrar-se.

- Hoje não estou com sorte - pensou, enquanto terminava de ler o parágrafo. Só achou um livro C. Classificação A e B, lia do princípio até o final. Os outros não, questão de saúde.

Ao final da tarde, recebeu a visita de seu primo José, dono de uma grande editora

- Importa-se demais com qualidade, Roberto - recriminou-o - Marketing. Agora tudo é marketing. Eu dou para o departamento de marketing ver as possibilidades de venda, a gente nunca sabe quando tem um best-seller nas mãos...

- Lembra de nosso avô Florêncio?

- Você sempre foi o neto preferido dele.

- Vô Florêncio sempre dizia que um livro é como uma panela de pressão. Tem ar quente... entende, José? Todo livro tem um ar... um alento... o livro ruim é como uma panela de pressão com ar gelado, esfria o sangue nas veias, pois não foi purificado pela arte. Panela de pressão apitando, enfumaçando, é sinal do fogo do artista. Esse fogo fica impregnado em cada página, em cada parágrafo, em cada frase, em cada canto do livro.

- Panela de pressão! - exclamou José e soltou uma forte gargalhada que atravessou o ar e bateu no relógio. O relógio deu algumas badaladas, longas, sem compasso, arrítmicas.

No dia seguinte, o céu nublou-se, a chuva bateu sobre os vidros da janela. Roberto continuara lendo. Três dias depois, voltou a sair o sol.

Nesta quinta-feira, Roberto chegou à Editora às 8 da manhã, como era habitual. A luz estava acesa. Entrou. Dona Irineia estava de pé, falando com uma senhora baixinha e muito magra, de cabelos brancos unidos no alto da cabeça por um coque, ao estilo das avós antigas. Vestia com elegância uma blusa azul, com pequenos desenhos vermelhos e uma calça azul marinho.

- A senhora é autora - disse Irineia, sem jeito.

- Bom dia, Senhor . - disse a velhinha, fitando-o com seus olhos azuis, intensos.

- Meu nome é Maysa - apresentou-se e estendeu-lhe a mão direita para cumprimentá-lo, enquanto com a esquerda apertava os originais.

- A senhora não sabe ler? - perguntou Roberto, de forma ríspida, cruzando os braços.

- Sei, claro que sei ler - disse ela recolhendo o braço e pegando o livro com ambas as mãos.

- Pois veja, então, minha senhora! - gritou Roberto, abrindo a porta e assinalando o cartaz - Autores: Proibida a entrada.

- Senhor Roberto - disse Irineia, tentando ajudar a velha senhora - eu a deixei entrar, ela só quer falar sobre o livro. Ficou anos escrevendo e...

Roberto interrompeu sua fala. Pode deixá-lo...

Abriu a porta, entrou e sentou-se em seu lugar. Pela porta entreaberta, viu que a velha continuava em pé, imóvel.

- Fora daqui - disse entre dentes - fora, velhinha, fora. Eu não edito biografias de mortos ilustres, não edito livros de tricô, nem receitas culinárias. Escutou a velha despedir-se e o ruído da porta fechando-se. Roberto colocou enxofre nas pontas dos dedos e abriu um livro. Buscava a cada dia a áurica dos alquimistas, o mercúrio.

- Posso entrar? - perguntou dona Irineia.

Roberto ficou impressionado. Raramente ela entrava sem ser chamada.

- Peço que o senhor avalie este livro, por favor, senhor Roberto. Não tomará muito de seu tempo. Faça esse favor para mim - e colocou o livro sobre a escrivaninha.

- Está bem - disse ele, num gesto resignado, como um capitão depondo as armas.

Roberto abriu o livro. Começou a ler a página, o primeiro parágrafo e nas solas de seus pés sentiu um comichão. Segundo parágrafo e um calor começou a subir de seus tornozelos. Apertou o estômago, o batimento cardíaco chegou à garganta e transformou-se em admiração e em silêncio. Antes de terminar a página, viu um espírito, um dragão vermelho e preto. Um dragão enorme, que devorava as florestas da dúvida, derrubava as montanhas da presunção e arrasava os vales da mediocridade.

- Uma obra prima! - tentou gritar, mas não conseguiu. Sentiu um estouro na garganta... ou foi no peito? Eram cinco horas e o relógio de pêndulo começou a dar a primeira badalada.

Roberto sentiu que seu peito doía. Era uma dor dilacerante. Levou as mãos ao coração . Oh, Deus, pensou, e sentindo a morte chegar, não lamentou sua busca. Não os anos perdidos diante da escrivaninha, nem a janela fechada onde nunca entrava o vento. Não lamentou ter ficado sem amigos, em ter sido abandonado pela esposa. Não lamentou ser considerado estranho ou louco. A única coisa que lamentava era ter que partir da terra sem poder terminar de ler originais com “Alento de Fogo”. Alento de fogo, alento de fogo, repetia. Abriu novamente o livro e tentou ler...

- Alento de Fogo! - gritou. Abriu os olhos e a boca e o espírito do livro, o dragão invisível, transformou-se numa bola de fogo incandescente, foi arremessado de seu corpo e jogou-se sobre os originais do livro. Seu rosto caía pesadamente sobre a escrivaninha, enquanto seu espírito livre revoava sobre a mesa, nas asas do dragão. A asa esquerda do dragão bateu na janela, quebrando o vidro. Entrou uma lufada de ar. Respirou profundamente. Esse ar que entrava pelo vidro quebrado lhe fazia bem, muito bem, devolvia-lhe a vitalidade.

Abriu os olhos. - Vou chamar um médico - disse Irineia.

- Não, não... estou bem. Só preciso ler.

Irineia olhou-o com assombro. Roberto abriu o livro e leu a primeira página. Sorriu.

Irineia... Irineia.... - disse com voz quase carinhosa. Irineia, estou lendo e pensando... já somos quase velhos, Irineia, passamos tantos anos trabalhando juntos... tantos anos. Olharam-se em silêncio.

- Quero dar a volta ao mundo. Quer viajar comigo, Irineia?

- Como sua secretária?

- Sim...Não! Não! Viajar comigo.... você sabe... você sabe, Irineia... Nós nos damos bem... nós gostamos dos mesmos livros.... vamos envelhecer sozinhos.... e envelhecer sozinho, é tolice, não acha? Vamos compartilhar nossos últimos anos? O que diz, Irineia?

Irineia chorava como uma criança que, no Natal, ganha um presente inesperado de Papai Noel. Só conseguiu enxugar as lágrimas. E sorrir.

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