domingo, 20 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 6


Faustino da Fonseca Júnior (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.4) II


Á MEMORIA DE ALFREDO LOPES

Viver! O que é viver! Arrastar a existência
No vasto labirinto onde só reina a dor;
Num pouco de matéria é guia a consciência
Quase a perder-se a força, a faltar o valor.

Morrer! Passar além! Da luta repousar,
Deixar por uma vez do mundo as agonias;
Descer á terra mãe, os lírios fecundar,
Servir de refeição aos vermes nas orgias.

Mas coisa alguma nasce e coisa alguma morre.
Transforma-se a matéria em mil combinações:
Seiva, no vegetal as hastes lhe percorre;
Sangue, faz palpitar os nossos corações.

Tu então não morreste; apenas desta lida
Imensa, em que mostraste o fulgido talento,
Descansas. No teu corpo ha ainda essa vida
Que palpita da terra ao próprio firmamento.

A vida da matéria. Então belas, formosas,
Por cima dessa campa onde agora repousas,
Hão-de brotar de ti as lindas flores viçosas
Na vaga poesia harmônica das cousas.

Rosas a recordar teu risonho futuro,
A tua juventude os cravos em botão,
O martírio o finar na dor tão prematuro,
O cipreste a lembrar teu grande coração!

A REVOLUÇÃO

Campeia a tirania, esmaga, oprime,
E da vontade o déspota faz lei,
Do povo a justa voz cala, reprime,
Ou ditador, ou presidente, ou rei.

Calca aos pés os direitos mais sagrados
E trucida os que querem reagir,
Apoiam-no as baionetas dos soldados
Não teme pois da plebe o rebramir.

Mas de repente os ódios comprimidos
Estalam sanguinosos, em rugidos,
Irrompem como a lava do vulcão,

Fazem voar o trono em estilhaços,
A liberdade impõe com rudes braços,
É a tua grande obra: "Revolução".

ASPIRAÇÕES

Oh! Quem me dera beijar-te
A tua face rosada,
Esses lábios de carmim.
Oh! Quem pudesse abraçar-te
E gozar, ó gentil fada,
Caricias ternas, sem fim.

Quem pudesse contra o seio
Estreitar-te e essa boquinha
Sorve-la num beijo quente,
E sentir-te em devaneio
Palpitar, gozar, louquinha,
Caricias de amor ardente.

Desprezando os preconceitos
Selemos com esse amor
Potente da nossa idade,
Estreitando os nossos peitos,
Em plena vida d'amor,
Mil juras de felicidade!

Que dizes, linda, pois coras?
Antegozas as delicias?
Suspiras rubra de pejo?
Ou na tua mente infloras
Esses milhões de caricias
O amoroso dum beijo?

Pois bem, gozemos, meu anjo,
E sejamos sempre queridos
Um do outro, minha flor,
E das delicias o arcanjo
Venha achar nos sempre unidos
Gozando do nosso amor!

OS CREPES DE CAMÕES

Portugal jaz por terra! Esta pátria querida
Dos fortes, dos heróis, dos rudes marinheiros,
Esta nação valente, homérica, aguerrida
Que soube rechaçar outrora os estrangeiros,

Jaz por terra abatida! A bandeira de gloria
Que fulgurou avante ao sol de cem combates
E sempre ha-de brilhar, aqui, em toda a historia
Que foi desde o Brasil ás regiões do Gates.

Hoje roja-se no pó! De tudo o que tivemos
De brio, heroicidade, altivez e coragem
Nada nos resta já! Parece que viemos
Perdendo tudo, tudo, em fúnebre viagem!

A própria honra se foi! Um insulto cruel
Fez agitar um dia o lodaçal enorme,
Houve gritos de raiva, amarguras de fel
Mas já tudo passou! E o povo dorme... dorme!

O derradeiro arranco! Ao pobre moribundo
Não resta d'esperança um lampejo fugaz,
Hoje existe somente a mostrar-nos ao mundo
Um sepulcro marmóreo, um fúnebre – aqui jaz.

Sintetizou outrora um esperançoso ideal
Em honra do cantor das nossas tradições,
Hoje existe de pé por sobre o tremedal
Um símbolo de morte: O luto de Camões!

A BORDO

Vamos no alto mar, a noite lentamente
Encobre pouco a pouco a abobada celeste;
Ha pálidos clarões das bandas do ocidente
E sopra uma rajada aguda de Nordeste.

Corre a todo o vapor, com impeto potente
O navio rasgando a superfície agreste
Do gigantesco oceano. As ondas febrilmente
Tem o tom verde-negro e triste do cipreste.

Só vemos céu e mar, o horizonte enorme,
Cercados pelo gigante imenso que não dorme
No monótono circo é plena a solidão.

Nessa tremenda luta o pensamento humano
Mostra pujantemente, ao dominar o oceano,
Um cérebro o que vale! o que é um coração!

ROSA EM BOTÃO

Que lindo botão de rosa,
Oh! como é bela esta flor,
E tens inda mais valor
Por seres oferta amorosa.

Gentil, risonha e mimosa
Elvira imitas na cor;
Ela é pura como a flor
E tu como ela és formosa.

Mas, apesar da parecença,
Sempre existe uma diferença
Em que te distingues dela;

É que a rosa tem espinhos,
Elvira ternos carinhos,
Que a tornam inda mais bela.

Fonte:
Faustino da Fonseca Júnior. Lyra da mocidade Primeiros versos. 
Angra do Heroísmo/Portugal, 1892

Sá de Carvalho (Ausência)

Malba Tahan (O Tempo passa)

(Lenda japonesa)

Todos os deuses notaram, naquele dia, que Izanaghi, o Sétimo, preparava-se para partir em companhia de sua adorável esposa Izanami1. Kuni-toko-datis, o Primeiro, senhor do Céu e da Luz, indagou, apreensivo:

    — Pela suprema Vontade, ó Izanaghi!, para onde pretendes partir com a tua formosa companheira?

    Respondeu Izanaghi:

    — Quero observar como vivem, na Terra, os homens — esses seres inferiores, criados pela infinita bondade dos deuses. Minha esposa deseja auxiliar os mortais e torná-los felizes. É por isso que partimos.

    Kuni-satsu-tsu o Segundo, o eterno defensor da Justiça, observou:

    — Não vos esqueçais, ao julgar os homens, que a indulgência faz parte da Justiça.

    — Ensinai aos mortais — acrescentou Toio-Munon-Su, o Terceiro — que o desespero é o maior dos erros.

    Os outros três deuses, Wan-hri-su, Oototsi e Omotaron, nada disseram. Que poderiam eles aconselhar ao poderoso Izanaghi, o mais sábio dos deuses?

    Izanaghi e sua esposa Izanami desceram à Terra e foram ter à ilha de Awadsi. Essa ilha, protegida pelos famosos rochedos de Sikoff, é um dos recantos mais belos do mundo.

    Que felicidade para os homens poderia advir da presença dos deuses entre as montanhas de Awadsi?

    Izanami disse ao seu esposo:

    — Os mortais são simples e bondosos; souberam receber-nos com alegria e afeto. Acha que merecem recompensa.

    — Que desejas fazer, querida? — indagou Izanaghi — em benefício dos homens?

    A deusa respondeu:

    — Já pude observar que o grande terror de todas as criaturas é a morte. Não há um só homem que não se encha de angústia e pavor, ao ver chegar o termo de seus dias. E a morte é consequência fatal do tempo. Façamos, pois, para a felicidade da Terra, que o tempo não passe mais para os homens, embora continue a passar para os outros seres que povoam o Universo.

    — Está bem, querida — respondeu Izanaghi — Assim farei. Deste momento em diante, o tempo não mais passara para os homens.  Ficarão todos  exatamente como estão e permanecerão, assim, inalteráveis, numa existência tranquila e feliz.

    Izanaghi e Izanami continuaram a viver sob céu de Awadsi, entre os rochedos de Sikoff.

 — Está bem, querida — respondeu Izanaghi — Assim farei. Deste momento em diante, o tempo não mais passara para os homens.  Ficarão todos  exatamente como estão e permanecerão, assim, inalteráveis, numa existência tranquila e feliz.

Um dia, afinal, foram os deuses despertados por estranho rumor. Grande multidão, em atitude de protesto, rodeava o palácio.

    — Que deseja essa gente? — indagou Izanaghi.

    Os jovens e adolescentes disseram:

    — Senhor! A vossa decisão sobre o tempo foi, para nós, um castigo tremendo. Se o tempo não passar, jamais chegaremos a viver. Queremos que o tempo passe, para que possamos chegar à idade de casar, constituir família — realizar, enfim, a nossa missão na vida e dela tirar a nossa parcela de felicidade! Que adianta viver sem sentir passar a vida?

    Os homens de meia-idade também falaram ao Sétimo Deus:

    — O tempo, senhor, continua impassível para nós! Como é triste e monótona a vida que não passa! Queremos ver o perpassar dos dias, pois alimentamos a ambição de apreciar os nossos filhos crescidos, trabalhando felizes ao nosso lado!

    — Também nós, senhor! — acudiram os velhos — desejamos que o tempo passe. — Torturados pelos achaques de nossa idade, que pode valer a vida para nós? A nossa felicidade é o reflexo da felicidade daqueles que amamos. Queremos que o tempo passe, pois só o passar do tempo fará a alegria de nossos filhos e de nossos netos!

    Arrebatado pelo desespero (que é o maior dos erros) Izanaghi esqueceu-se de que a indulgência faz parte da justiça. Tomado de vivo rancor contra os homens rebeldes, exclamou:

    — Insensatos! Quereis que o tempo passe para que possais viver cada momento iludidos pelas falazes esperanças do futuro! A lembrança bondosa de minha esposa foi repelida pela ingratidão que vive em vossos corações. Quereis que o tempo passe? Pois bem, o tempo passará!

    E rematou:

    — Mas o passar do tempo será sempre ao contrário de vossos desejos, ao arrepio de vossas aspirações. Será rápido e fugaz nas horas felizes e lento, muito lento, nos períodos de dor e tristeza.

    E o castigo dos deuses caiu impiedoso sobre os homens.

    O tempo passa — esse foi o desejo de todos; passa, entretanto, célebre e fugidio nas horas de alegria e felicidade; vagaroso, tardo e torturante nos minutos infindáveis de angústia e sofrimento.
__________________
Nota:
1- Izanami — Todos os deuses citados nesta lenda, faziam parte da mitologia dos primitivos habitantes do Japão. Vide A. Humbert — “Le Japon”.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

sábado, 19 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 5


Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) I

A lua saudosa e abstrata,
vive à espera, inutilmente,
que retorne, em serenata,
o encanto de antigamente.

A passos mirabolantes,
caminha o mundo de agora,
e o suave encanto de antes
dorme nas dobras de outrora.

Carente, o animal ferido,
recebe ajuda, e do chão,
seu olhar enternecido
é a imagem da gratidão.

Chá-da-tarde… requintado…
mas em teus gestos, servindo,
com jeitinho e com agrado
tu me descartas, sorrindo.

Como a brisa que engalana
as ondas, ao sol poente,
a cançoneta italiana
põe galas na alma da gente.

Coração deixado vago
lamenta ter que informar:
fizeram-lhe tanto estrago,
que não dá mais pra morar.

Em cada tarde a cair,
vejo a vida, em agonia,
aos poucos se despedir
na morte de mais um dia.

Em gaveta esvaziada,
persiste um, cheiro envolvente
como de fruta apreciada
de que se guarda a semente.

Itália, quanta beleza,
quantos romances vividos,
os teus canais de Veneza
nos segredam aos ouvidos!

Mais do que encanto e beleza,
a Música e a Poesia
sofrem conosco a tristeza,
vibram com nossa alegria.

No rescaldo de uma vida
que o destino destruiu,
entre escombros, encolhida,
somente a fé resistiu…

O amor, ao termo da vida,
deixa na pauta apagada
uma só nota sentida,
canto de cisne… mais nada.

O ramo seco de hera
entre páginas guardado
é um marco da primavera
que me restou do passado.

Quando me entrego ao passado,
sinto-o tão perto e envolvente,
que – esquecido e enevoado -
longe, de fato, é o presente.

Sertanejo, na viola,
é a voz da terra gretada,
suplicando pela esmola
da chuva há tanto esperada.

Ternas lágrimas descendo
num triste rosto enrugado,
parecem chuva escorrendo
num velho muro gretado.

Velha Itália, sempre bela,
não tens idade aparente.
Desfilas na passarela
como eterna adolescente.

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da Tarde: trovas.
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.

Nilto Maciel (Calvário)

Faca no cós, blusa aberta, calça arregaçada, João chegou à estrada, olhou para cima e para baixo e tomou o rumo da direita. Muito adiante, antigamente, havia uma cruz fincada no chão, junto à cerca, a indicar o lugar onde seu pai sofreu morte sangrenta. Não sabia quem, mas um espírito de porco, um cabra sem-vergonha, um filho de uma égua teve a petulância de arrancá-la e quebrá-la em dez pedaços.

Coitado do velho Luiz, não sossegava nem depois de morto. Primeiro mataram seu irmão José, de emboscada. Vingou-se, matando um dos criminosos. Nem bem se satisfez, o povo do morto o matou.

– Sina mais desgraçada!

João olhava para os destroços da cruz de seu pai. Pedaço aqui, pedaço ali. Então para que morrer, ser enterrado e ter uma cruz? Para quê?

O sol do meio-dia crestava o mundo, a cabeça de João, e seus olhos ardiam e se empapavam de água salgada, suor. Correu, correu, correu. Outra cruz remexia-se à sua frente. Deu-lhe um chute, quebrou-a. Abaixou-se para arrancá-la de vez. E lançou os pedaços no meio da estrada. Ferido nas mãos, seguiu a gritar blasfêmias e porcarias. Um caminhão cobriu tudo de poeira e buzinadas. Tropicou na segunda cruz. Arrancou-a, quebrou-a.

E durou léguas sua insânia.

À entrada da cidade, quando se voltava contra mais um entrançado de varas, o jipe dos soldados o cercou. E o agarraram, aos socos e pontapés.

Amarrado ao carro, o cortejo seguia. Nenhuma cruz carregava João, escoltado pelos inimigos, que o açoitavam e riam.

Tanto tempo durou o trajeto que ainda no meio do caminho se acercaram do jipe a molecada e o povo de João. Sua mãe gritava, chorava, agarrava-se a ele, mordia os soldados, e caía, desgrenhava-se, feria-se. Seus irmãos lutavam para livrá-lo das cordas e nunca João devia chegar à delegacia.

Despertada pelo fuzuê, aos poucos toda a cidade se juntou para ver de perto a perversidade dos soldados. Os tantos olhos fitos naquele horror buscaram então as pedras da rua e os galhos das árvores. E se deram pedradas e pauladas a torto e a direito. Os mais zangados buscaram foices e facões, espingardas e bacamartes. Golpes mais fundos e tiros mais doidos se cruzaram no meio da rua.

Na confusão, ninguém sabia contra quem brigava, a quem feria, matava, porque já os soldados haviam tombado, João e seus parentes não viviam. E uns corriam, gritavam, outros gemiam moribundos, pisoteados, a arrastarem-se inutilmente pelo chão coberto de trapos e sangue.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 4


Carlos Drummond de Andrade (O Jardim em Frente)

Os big-shots da empresa estavam reunidos em conferência. Assunto importante, desses que exigem atenção, objetividade. O presidente recomendara:

— Não estamos para ninguém. Essa porta fica trancada. Avisem a telefonista que não atenda a nenhum chamado. Nem do papa.

Começou-se por dividir o assunto em partes, como quem divide um leitão. Cada parte era examinada pelo direito e pelo avesso, avaliada,  esquadrinhada, radiografada. Cartesianamente.

— Você aí, quer fazer o favor de parar com essa caricatura?

O presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi advertido pelo vice:

— E você, meu caro, podia deixar de bater com esse lápis, toc, toc, toc, na
mesa?

Estavam tensos, à véspera de uma decisão que envolvia grandes interesses. Alguém bateu à porta.

— Não respeitam! Não respeitam o trabalho da gente! Isso não é país!

Seja ou não seja país, quando batem à porta a solução é abrir, para evitar novas batidas, ou, mesmo, que a porta venha abaixo. Pois ninguém deixa de bater, se sabe que tem gente do outro lado.

O diretor-secretário abriu, de óculos fuzilantes. O chefe da portaria, cheio de dedos, balbuciou:

— Essa senhora… essa senhora aí. Veio pedir uma coisa.

O primeiro impulso do diretor-secretário foi demitir imediatamente o chefe da portaria, servidor antigo, conceituadíssimo, mas viu ao mesmo tempo diante de si a imagem consternada do homem e a lei trabalhista: duas razões de clemência. Pensou ainda em mandar a senhora àquele lugar de Roberto Carlos ou a outro pior. Dominou-se: ela ostentava no rosto aquela marca de tristeza que amolece até diretoria.

— A senhora me desculpe, mas estou tão ocupado.

— Eu sei, eu é que peço desculpas. Estou perturbando, mas não tinha outro jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício em frente. Meu canário…

— Fugiu e entrou aqui no escritório? Eu mando pegar. Fique tranquila.

— Antes tivesse fugido. Morreu.

— E daí?

— Viveu quinze anos conosco. Era uma graça… Pousava no dedo…

— E daí, minha senhora?

— O senhor vai estranhar meu pedido… Eu estava sem coragem de vir aqui. Por favor, não ria de mim.

— Não estou rindo. Pode falar.

— Os senhores têm um jardim tão lindo na cobertura. Da minha janela, fico apreciando. Então agora está uma coisa. Posso fazer um pedido?

— Pode.

— Eu queria enterrar o meu canário no seu jardim. Lá é que é lugar bom para ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele terrenão ao lado do edifício, com três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é grande demais para um passarinho, falta intimidade. Se o senhor consente, eu mesma abro a covinha. Não dou o menor trabalho, não sujo nada.

O diretor-secretário esqueceu que tinha pressa, que havia um problema sério a discutir. Que problema? Naquele momento, o importante, o real era um canarinho morto, e amado.

— Pois não, minha senhora, disponha do jardim. Eu mesmo vou levar a senhora lá em cima, para escolher o lugar.

Subiram, escolheram o canteiro mais apropriado, onde bate sol pela manhã, e à tarde as plantas balançam levemente, à brisa do mar.

— Não é abuso eu fazer mais um pedido? Queria que o jardineiro não revolvesse a terra neste ponto, durante três meses. O tempo de os ossinhos dele se desfazerem… Volto daqui a meia hora, para o enterro.

Meia hora depois, voltava com uma caixinha forrada de veludo azul-claro, e a reunião dos big-shots, que ainda durava, foi suspensa para que todos, com o presidente muito compenetrado, assistissem ao sepultamento.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Mario Quintana (Das metamorfoses)


A Lua, quando fica velha, todo o mundo sabe que vira lua nova.

Mas negro velho vira macaco. Desses macaquinhos de realejo... Cuidado: quanto mais velhos mais vivos. Sabem tudo. Descobrem tudo. Se tens algum pecado oculto, foge das suas caretas falsamente amigas, dos seus olhinhos espertos e cínicos!

E os velhos jurisconsultos viram fetos... esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nos bocais de vidro.., e que, no silêncio dos laboratórios, oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucubram anteprojetos, orações de paraninfo, reformas da Constituição... Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, um prego, no miolo mole dos fetos.

Em compensação, as velhinhas que fazem renda viram fio... Fio, sim senhor! Esses fios que vagam soltos no ar... que ninguém sabe de onde vêm.., e se prendem num galho morto... no chapéu do viajante solitário.., no freio do seu cavalo.., que se prendem, desesperadamente, num lábio fresco, numa trança ao vento...

E os velhos que mal podem acender os cigarros, os pobres velhinhos trêmulos viram reflexos... Esses reflexos que dançam no ar... que nascem no ar... De uma vidraça.., de um para-brisa... do galo do para-raio que volteou de súbito... de folhas que se assustam, de mariposas tontejando. de uma ronda infantil sob a lua redonda…

Fonte:
Mário Quintana. Sapato florido. Porto Alegre/RS: 
Editora Globo, 2005 (original 1948).

Vinicius de Moraes (O aprendiz de poesia)

Eu havia sempre laborado na arte da poesia, desde os mais verdes anos. Às vezes, em meio aos brinquedos com os irmãos, na Ilha do Governador, fugia e ia me ocultar no quarto, a folha de papel diante de mim. Era tão estranho aquilo! Eu de nada sabia ainda, senão que tinha nove anos e Cocotá era o meu mundo, com sua praia de lodo, seu cajueiro e seus guaiamuns. Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. Passavam-me os mais doces pensamentos, a imagem de minha mãe cantando, o rosto de Cacilda, minha namorada, da Escola Afrânio Peixoto, o beijo que Branca me dera - menina danada! - em plena Igreja São João Batista, quando as cabeças dos fiéis se haviam mansamente curvado para a bênção. Mas de alguma coisa carecia, que me arrastava logo a antologias (muito obrigado, Fausto Barreto; muito obrigado, Carlos de Laet!) ante as quais morria de inveja. Ah, escrever um soneto como o "Anoitecer", de Raimundo Correia! Minha maior tentação era, no entanto, meu próprio pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta inédito, cujos manuscritos folheava deslumbrado, os mesmos que Bilac lera e cuja publicação aconselhara.

Lembro que havia entre eles um soneto que levava meu nome, feito quando eu ainda no ventre materno. Cada vez que o lia, as lágrimas corriam-me livremente - e quantas não enxuguei sobre o papel amarelado para que não borrassem a linha antiga... Partia, ato contínuo, para a folha branca que me esperava, virgem, a procurar um tema, uma frase, uma palavra que me desse para abrir as portas daquela cidade cobiçada, cujos rumores chegavam-me maravilhosamente acústicos. Pus-me a imitar. Primeiro meu pai, mais à mão, menos preocupado com a glória literária, a que não dava grande crédito. Um dia, como um ladrão, levei comigo, enfiada por dentro da camisa de banho, uma longa pastoral em decassílabos, que fui mostrar a Célia, minha garota da Ilha, uma menina grande e mais velha, que se entretinha de mim.

- Que beleza! - disse-me ela pondo as mãos nas minhas. - Você quer dar ele para mim?

Covarde, dei. Hoje a pastoral de meu pai anda por aí, não sei onde, talvez na gaveta de uma cômoda no Encantado, onde morava quando vinha ao Rio; talvez em Miami, Acapulco ou Pago-Pago, para onde a tenha levado sua imensa tontice.
* * *

Muito plagiei, a princípio. Primeiro timidamente, depois como um possesso. Castro Alves, companheiro de noitadas de meu tio-avô Mello Moraes Filho, emprestou-me sua revolta condoreira. Olavo Bilac cedeu-me o diamante com que cortava os duros cristais de sua poesia. Guilherme de Almeida presenteou-me com seu geraldysmo, sua reticência ilustre, seu sorriso imóvel e seus punhos de renda. Menotti deu-me seu lorgnon*, seus crachás, seu jucamulatismo. Descia de Antero a Júlio Dantas, perpetrando ceias, desvendando seios, ai de mim. Abria a antologia à toa e esperava. Casemiro? Casemiro! E assim se foi povoando de negros caracteres impecáveis um grande livro de capa preta, rubricado "Prefeitura do Distrito Federal", sobre que, tenho a impressão, um funcionário qualquer, meu parente, havia feito mão baixa. Mas que importava? Era um livro belo, um caderno de perfeito almaço, da grossura da minha ambição de criar poesia, vasto bastante para o menino que queria voar com asas roubadas, essas que tão cuidadosamente punha nas omoplatas para o exercício noturno dentro de seu quarto dentro da Ilha dentro da baía dentro da cidade dentro do país dentro do mar dentro do mundo.

Um dia conheci um poeta como mandam as regras, com livro publicado e tudo o mais. Chamava-se João Lyra Filho, era moço nortista, apaixonado, e recitava Augusto dos Anjos por trás de uma cadeira. Augusto dos Anjos! Como me chocava aquela ousadia de palavras, a misturar a miséria ao sublime, o esterco à estrela, a podridão do túmulo à beleza da vida! Preferia Adelmar, para quem, naquele tempo, voltavam-se os olhos fiéis de João Lyra Filho como os do sacristão para o padre.

Certa vez, depois de uma noite de angústia, resolvi mostrar-lhe meus versos. Reunira-os sob o nome de "Foederis arca"**. Mas o poeta não gostou. Disse-me de modo brando que desistisse daquilo. Falou-me da predestinação poética, que eu não tinha. Meu negócio devia ser outro. Faltava-me aquele imponderável que os amantes do belo representam esfregando sutilmente a polpa do polegar contra a dos outros dedos, mas não como para indicar o vil metal: mais devagar, como a destilar a própria substância imanente da arte.

O poetinha aprendiz desistiu?

Coisíssima nenhuma! Prossegui firme, inabalável, entre alexandrinos, decassílabos e redondilhas, a perpetrar odes, sonetos, elegias, éclogas, cromos e acrósticos que dava
fielmente às namoradas que fui semeando, da Gávea a Sabará. Era o martírio da poesia, em todo o meu desvario.
* * *

Uma noite - eu tinha 17 anos - Otávio de Faria e eu fomos tocando a pé da Galeria Cruzeiro até a Gávea, onde ficava minha casa, na rua Lopes Quintas. Não era infrequente fazermos isso, à base da conversa. Era um hábito da amizade entre o calouro e o veterano da Faculdade de Direito do Catete, aquele passeio noturno povoado das sombras de Nietzsche e da pantomima de Chaplin. Lembro-me que à meia-noite, bem alto, na estrada de Órion, brilhava uma lua como nunca vi mais cheia, a cabeleira solta, os seios nus, o olhar de louca a me varar o peito de súplicas e doestos***. Era tal o mistério dessa noite que agora mesmo, escrevendo na minha sala noturna, sinto os cabelos se me içarem de leve, como se fosse sentir novamente sobre eles a mão macia da lua cheia.

Deixei Octávio de Faria no seu bonde de volta e subi Lopes Quintas, rumo a casa. O sossego era perfeito, total o sono do mundo. Só às vezes, subitamente, dos espaços descia um braço de vento que varria as folhas secas da rua e empinava papéis velhos como hipocampos. Transpus, ansiado, a distância familiar que me levava para alguma coisa que sentia vir mas não sabia o que era. Em casa, galguei rápido as escadas para o meu quarto no primeiro andar, e fui sentar-me ofegante à escrivaninha antiga, a mesma que tenho hoje, a mesma que suportou na infância o peso da minha ambição de ser poeta. A janela estava aberta, e em sua moldura a lua viera se postar, os olhos cravados em mim.

Não sei como foi, mas sei que foi diferente de tudo o que sentia antes. Meus ouvidos, como conchas, pareciam recolher os ruídos mais longínquos do mar que estilhaçava em mim. Ouvi o sopro da noite, o cair das folhas, o germinar das plantas que boliam fora, na mata próxima ao Corcovado, e ali perto, no jardim. Pombas vazaram do meu coração, deixando-me dentro, a se debater, a grande ave inimiga que me feria com suas asas querendo sair também, fugir, voar para longe. Senti-me sem peso, sem dimensão, sem matéria. Meu ser volatilizou-se para a lua, transformado ele próprio em substância lunar. E comecei a escrever como nunca dantes, liberto de métrica e rima, algo que era eu mas que era também diferente de mim; algo que eu tinha e de que não participava, como um fogo-fátuo a crepitar da minha carne em agonia.

Linha por linha, como psicografado, o poema - o meu primeiro poema - começou a brotar de mim.

O ar está cheio de murmúrios misteriosos...
* * *

Há algum tempo atrás terminei os trabalhos de correção de uma coletânea de meus poemas, a sair proximamente. Lembrei-me do meu primeiro poema, do primeiro poema em que me vi criando poesia, transformando a natureza, sendo a voz que existia em mim e não era eu. Estudei longamente a possibilidade de colocá-lo na seleção, mas não houve jeito. Era ruim demais. Mas, curioso! senti a forma como a querer, em vão, segredar-me imponderáveis. Tive saudades do tempo em que a poesia para mim era isso: a noite, com suas vozes, a lua com seus véus, o silêncio noturno da terra a rolar no infinito. Tive saudades de Júlio Dantas, Adelmar Tavares, João Lyra Filho. De repente, a poesia fez-se tão exigente, o poeta fez-se tão lúcido...

Por que tiveste que passar, poesia inocente, poesia ruim, que eu fazia com os olhos nos olhos da lua? Por que morreste e deixaste o poeta calmo, firme, sóbrio dentro da noite sem mistério?
_________________________
Nota:
* Lorgnon óculos antigos de uma só haste, lateral na vertical, para segurar com a mão.
** Foederis Arca - Arca da Aliança
*** Doestos - insulto; injúria; descompostura

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 3


Gislaine Canales (Glosas Diversas) 3

OCASO DE CADA DIA...

MOTE:
Não lastime as tristes horas,
da viagem que angustia...
Viver é criar auroras
no ocaso de cada dia...
(José Valdez de Castro Moura)

GLOSA:
Não lastime as tristes horas,
não se detenha na dor,
fantasie até as demoras,
nessas esperas de amor!

Retire sempre algo bom
da viagem que angustia...
Pincele num novo tom,
para encontrar harmonia!

Deixe o passado, os outroras...
Viva o hoje e o amanhã!
Viver é criar auroras
ou tornar-se Aldebarã!

Seja feliz de verdade!
Renove a sua alegria
e achará felicidade
no ocaso de cada dia…
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NÃO RENUNCIO...

MOTE:
Não renuncio aos desejos,
de, em teu corpo navegar
sobre as ondas dos teus beijos
sobre as águas do teu mar!
(Lisete Johnson de Oliveira)

GLOSA:
Não renuncio aos desejos,
pois eles nascem do amor,
e faíscam em lampejos
com intensidade e cor!

Eu nunca vou desistir
de, em teu corpo navegar:
seja um eterno partir...
mas nunca... nunca um chegar!

Realizar meus ensejos,
meus sonhos, tornar reais...
sobre as ondas dos teus beijos
navegar mais... muito mais!

Depois de tanta loucura
eu preciso descansar,
mas continuo a procura
sobre as águas do teu mar!
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AMOR SINCERO

MOTE:
Se te peço amor sincero,
o céu será todo nosso,
se sou tua – que mais quero?
Se sou mulher – que mais posso?
(Magdalena Lea)

GLOSA:
Se te peço amor sincero
é porque te amo demais,
sem querer eu acelero
meu coração, sempre mais...

Se juntos, nós dois ficarmos
o céu será todo nosso,
para nós nos deliciarmos,
com amor, o amor adoço!

Ser sempre feliz... espero...
viver forte a emoção...
Se sou tua – que mais quero?
Eu tenho o mundo na mão!

Tendo a ti e a poesia,
a felicidade endosso
e vivo com alegria...
Se sou mulher – que mais posso?
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DOIS MOMENTOS

MOTE:
Só dois momentos consigo
qualificar, no presente,
os bons – quando estás comigo
e os maus – quando estás ausente.
(Ney Damasceno)

GLOSA:
Só dois momentos consigo
guardar em minha lembrança:
Feliz – quando estou contigo,
e, sem ti – desesperança!

Esses momentos que eu posso
qualificar no presente
eu tento adoçar e adoço.
São só esses dois, somente.

São gostosos e eu bendigo
os de ternura e afeição,
os bons – quando estás comigo
me causam grande emoção!

Se estás longe, a nostalgia
vem na saudade envolvente,
chora os momentos do dia
e os maus – quando estás ausente!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) 
Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. abril de 2003.