sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Carlos Drummond de Andrade (Drink)


A poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas ainda, pela indecisão da palavra. 

Certa amiga comum nos manda lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano? Parece que é difícil encontrá-lo em casa, qual a melhor hora? As informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez, inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob a capa elegante. É alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a cabeça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde - é claro - não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão esquerda, sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro contato com o exterior. Passamos à ofensiva:

- Que é isso que você tem aí?

- Isso quê?…

- O livro.

- Nada, não. É um livro.

- Deixe ver, se não é segredo de Estado.

Não era, mas o inimigo contemporiza: “Daqui a pouquinho”. O leitor, que
acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta; com o nosso
relativo conhecimento da alma literária, diremos que ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado, comentado sem amor. Por isso a moça nos sondava antes de praticar a doação.

Acabou admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e, conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e ouvimos o conto:

- Levei um exemplar ao Barata, colunista da Folha.

- Então?

- Me convidou para um drink.

- Que mal tem nisso, minha filha?

- Bom… Nem olhou para o livro, olhou só para mim, entende?

Entendíamos. Mas o Barata - ponderamos - não é propriamente crítico literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma big diferença entre reviewer e crítico.

- Pois sim, o Lessa é crítico e também me convidou para um drink. Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor, antes de ler?

Não soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os drinks lhe flagelam o fígado. Ela sorriu.

- Eu adoro um alexânder ou uma cuba-libre. Mas pensei que não fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.

Tranquilizamo-la a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não frequentamos bares, não a convidaríamos para drincar. Parece que a assustou um pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem dedicatória.

- Não vai escrever nada?

- Que gostaria que eu escrevesse?

- Ah, isso você não era capaz de escrever.

Queria oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de outro jeito: queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar um drink.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Trova 331 - Prof. Garcia


Carolina Ramos (Canto Interrompido)


O sol brincava e apagar sombras, na tarde em que aquele menino, igual a qualquer outro menino de cinco anos de idade, distraía-se em catar pedrinhas redondas, no chão da Galileia, não longe de sua casa.

Ao ouvir o pássaro que cantava num galho florido, estacou maravilhado.

As aves são esboços de anjos que Deus mandou à terra para enternecer os homens - é o que parecia afirmar o olhar daquele menino que começava a se fazer especial, incitando hipóteses.

As sonoridades do canto de um pássaro, a fantástica beleza multicolorida de suas penas têm algo intensamente angelical que sugere o paraíso. Quem terá servido de modelo a quem? Teriam os anjos inspirado Deus a criar as aves, ou teriam estas estimulado o Criador a idealizar os seres alados que seraficamente enfeitam os céus?

O menino, enlevado, não viu a pedra certeira que, num segundo, calou o canto do pássaro. Viu-o, sim, tombar inerte ao solo. Largando seus seixos rolados, correu para ele.

Havia perplexidade, havia tanta dor e recriminação no olhar magoado daquele menino! E havia, também, algo estranhamente indefinível que pôs em fuga os agressores da avezinha que estertorava.

Quando a criança chegou junto à mãe, a ave estava morta.

A meiguice dos braços maternos empenhavam-se em consolar o filho, inconformado, cuja angústia indagava: - "Por quê?!... por quê aqueles homens malvados mataram meu pássaro? Ele era bom. Tão feliz!... Ele não fazia mal a ninguém!"

A mãe, coração traspassado por infinita tristeza, acariciou os cabelos do filho. Como a querer protegê-lo, abraçou-o com ternura, murmurando, de olhos voltados para o amargo amanhã:

- "Os homens não são maus, meu Filho, não são... apenas não sabem o que fazem... e nem o que farão!" - completou num sussurro.

As lágrimas dAquele Menino deslizaram de manso caindo sobre o corpinho mole, ainda morno, da avezinha ensanguentada. Então, o pássaro, sacudindo as penas, cheio de vida, voou para o galho mais próximo. E, como se perdoasse, por inteiro, a maldade humana, retomou, feliz, o canto interrompido!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. 2. ed. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 3


DIAS DISTRAÍDOS DE SAUDADE

Todos os dias tu te moves no meu sonho;
Sempre te ponho na redoma do que eu sinta
Mesmo que eu minta a dor, meu verso mais tristonho
Dilui, no sonho, a solidão de cada tinta.

Todos os dias, alimento um conteúdo
Que não diz tudo, tu és parte celular
Do meu olhar no teu olhar, se fico mudo, 
Grito, contudo, o que só eu posso escutar.

Todos os dias tu me vens tão verdadeira,
Na derradeira vez que amei-te de verdade,
Deixei meu barco de papel na corredeira
E afoguei meu coração numa saudade.

Todos os dias, tu te tornas tão real,
Mas te dissolves…afinal, meu coração
Te reconstrói na solidão que nem faz mal ,
Quando percebo que te amei… por distração.

ESPORAS

Sob as esporas do desejo, o tempo corre...
O tempo escorre como grãos por entre os dedos,
O sal da lágrima... de mel... nos lábios morre,
numa saudade que eterniza alguns segredos.

Nas asas leves do sonho, uma ansiedade,
que não invade, apenas acaricia
a fantasia de se amar em liberdade,
numa vontade que embevece e extasia.

Do vendaval mais sedutor, ninguém recua
e a pele nua sempre pede algum afeto,
o dialeto sensual deixa que flua
a emoção feliz de um sonho predileto.

Sob a carícia do amor, o enlevo voa, 
a alma boa é uma pétala no ar... 
a voz macia se dilui... jamais ecoa
e a luz melhor sempre ilumina um doce olhar.

Quem tem o dom de transformar as cicatrizes
na experiência, observa mais que fala, 
cura as tristezas com sorrisos mais felizes
e deixa livre a esperança que o embala.

Da calmaria, resta alguma correnteza.
Por natureza, só quem consegue sonhar, 
sabe que amar, bem mais que um gesto de nobreza, 
é a certeza de poder se libertar.

EU SOU TÃO POUCO MEU IRMÃO...

Eu sou tão pouco, meu irmão... Deus é imenso
O amor despreza toda essa arquitetura
Que faz de nós um óleo fora da moldura,
Quando é na alma que ele é sempre mais intenso.

O criador não reinventa a criatura,
O cidadão é um produto inacabado,
Que Deus criou, e é nesse ser fragilizado 
Que estão guardados os momentos de ternura.

Sou de uma raça que aprendeu com passarinhos
O doce ofício de voar sobre os abismos,
Seres humanos grandes são pequenininhos,
Quando se entregam a estranhos pessimismos.

E nesse pouco, eu sou tanto, quando Deus
Me dá amigos e irmãos especiais
E sentimentos que são meus e que são teus,
Quando buscamos... com ternura... a mesma paz

RESSURREIÇÃO

Todos os dias alguém vem e te assassina...
Tu não te importas, pois és tão superior,
Que basta apenas uma fé bem pequenina,
Que ressuscitas e dás vida ao nosso amor.

Morres na mão que se estende e ninguém nota,
Morres no dedo que comprime algum gatilho,
Morres no pai cuja opção é sempre a rota
De abandonar à solidão, o próprio filho.

Morres naquele que renega quem o ama,
Morres na trama que acusa um inocente,
No miserável que faz de um jornal a cama,
No preconceito que despreza um indigente.

Tu observas cada tolo transgressor
Que se desvia do caminho que ensinaste,
Mas que se volta, quando sente alguma dor,
Como uma flor, que com amor, tu semeaste.

E logo estendes tuas mãos iluminadas
A cada um que necessita de carinho
Ou que se perde na penumbra das calçadas,
Por se sentir amargurado e tão sozinho.

Estás tão próximo de cada um de nós
E és tão humano, generoso e complacente,
Que mesmo quando não ouvimos tua voz,
Cuidas de nós com teu amor onisciente.

Todos os dias, quem te ama te resgata,
Em comunhão com cada irmão, pregando a paz,
E é assim que cada dor mais insensata
De quem te mata, pouco a pouco se desfaz.

REPINT...ÂNSIAS 

Não sei cantar a morte... me perdoa...
Se voa, toda alma é passarinho;
O ninho do amor é o que ele doa
Para quem necessita de carinho.

Só sei falar da vida: Vem comigo !
O abrigo do poeta é o que ele sente ;
Se mente, é porque vê, no seu amigo
Ausente... o que ele deixa de presente.

Não fujo do real, apenas minto
E invento, nesta dor que às vezes sinto,
A minha mais perfeita companhia

E mesmo que acabe o vinho tinto,
E a tela se desfaça, eu repinto
A vida, outra vez, de fantasia.

Fonte:
Facebook do poeta

Conto Tradicional do Algarve/Portugal (As Três Nuvens)


Era uma vez um lavrador muito rico e tinha três filhos: dois, os mais velhos, eram muito estimados pelos seus pais e andavam ricamente vestidos; o mais novo era desprezado. 

 Tinha o lavrador uma rica propriedade, onde aparecia um medo. 

 Caseiro que lá se deixava dormir numa noite era encontrado morto no dia seguinte. Vendo o pai que a propriedade estava muito estragada, porque os vizinhos metiam nela os seus gados, resolveu mandar o filho mais novo guardá-la. Aceitou o mancebo a incumbência, pois era muito bom e obediente, mas pediu ao pai que mandasse no dia seguinte buscar o seu cadáver para não permanecer por muito tempo insepulto. 

 Despediu-se do pai e dos irmãos e foi para o seu desterro, levando consigo uma cítara, seu instrumento favorito. 

 O prédio onde o caseiro costumava dormir ficava no centro da propriedade. O rapaz chegou ali e tirou do prédio uma cama que colocou sobre um parque, de bonita vista, através do prédio. Logo que escureceu foi deitar-se, entretendo-se muito tempo a tocar o seu instrumento. Alta noite adormeceu. Tinha pegado no sono, sentiu-se afogado sob um grande peso; sentou-se na cama, pegou na cítara e disse em voz alta: 

 – Que peso é o que sinto? Olhem que parto a cabeça seja a quem  for. 

 E pôs-se a fazer um grande sarilho com a cítara, como se fora um alfange. 

 Então ouviu o mancebo uma voz: 

 – Não me mates, dizia a voz, porque te faço bem. Eu sou a nuvem negra, e, quando tiveres necessidade de alguma coisa, chama por mim. 

 No dia seguinte ergueu-se ele da cama e dirigiu-se para casa, onde era esperado por quatro homens com uma tumba para o levar ao cemitério. 

 – Podem retirar-se: ainda não foi desta, disse o mancebo. 

 Na noite seguinte repetiu-se a mesma cena com a diferença da resposta: 

 – Não me mates: eu sou a nuvem parda e, quando queiras alguma coisa, chama por mim. 

 Na terceira noite, e depois da mesma cena das noites antecedentes, ouviu: 

 – Não me mates: sou a nuvem branca. Sempre que te seja preciso, chama por mim. Eu e as minhas irmãs estávamos aqui encantadas, foste tu que nos desencantaste com os maviosos sons do teu instrumento. 

 E a nuvem branca desapareceu como tinham desaparecido as outras. 

 Conservou-se o mancebo por algum tempo na propriedade, sendo raríssimas vezes visitado pelo pai e isso no mero intuito de examinar como o filho a administrava. 

 Um dia teve saudades da família e foi visitá-la. Logo que entrou na casa paterna viu muitos alfaiates ocupados em talhar e fazer riquíssimos fatos de homem; soube então que o rei mandara anunciar que casaria com a princesa o cavalheiro que se saísse vitorioso de três torneios a seguir. 

 Entretida a família nos arranjos dos dois irmãos, que aspiravam à mão da princesa, nenhum caso fizeram do irmão mais novo. Este demorou-se pouco tempo em casa dos seus e retirou-se para a propriedade. 

 Nessa noite pensou que ele poderia entrar nos torneios, e quando foram marcados os dias para as lutas já tinha formada a tenção de lá se apresentar. 

 Na manhã do dia do primeiro torneio disse o mancebo: – Valha-me a nuvem preta. 

 Apareceu logo uma nuvem e dela saiu uma jovem. – O que me queres? perguntou. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

 A jovem ergueu uma pequena vara, proferiu algumas palavras, e apareceu um cavalo negro, trazendo pequena mala, onde vinham riquíssimas vestes e armas de cavaleiro da mesma cor do cavalo. 

 O mancebo vestiu-se, empunhou as armas, montou no cavalo e entrou no torneio, saindo vencedor. Logo que saiu da cidade desapareceram o cavalo, as vestes e as armas. 

 No dia seguinte disse: 

 – Valha-me a nuvem parda. 

 Apareceu outra nuvem, de onde saiu uma Jovem que perguntou ao mancebo o que queria. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

 E sucedeu como no dia antecedente. Quando ele entrou na praça percebeu que a princesa o atendia com especial agrado. Ainda outra vez saiu vencedor, retirando-se logo para fora da cidade e desaparecendo o cavalo, as vestes e as armas. 

 No terceiro dia invocou a nuvem branca e entrou no torneio montado em cavalo branco e com armas brancas bordadas a ouro. Ficou vencedor, e então viu-se cercado das pessoas da corte que o convidaram a ir à presença do rei. O mancebo foi. 

 Na presença do rei e da princesa, tirou a viseira. E o rei e a princesa agradaram-se do jovem e logo foi ali resolvido o seu casamento. 

 Os dois irmãos do mancebo conservavam-se a certa distância e, quando viram que estava resolvido o casamento com o seu irmão, tiveram grande desespero. Um deles lançou-se da janela à rua, morrendo despedaçado, o outro atravessou-se no próprio alfange. 

 Houve grandes festas no palácio e em todo o reino por ocasião daquele casamento. 

Fonte:
Xavier Ataíde de Oliveira. Contos tradicionais do Algarve. edição Vega. Disponível no Estudio Raposa. 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Trova 330 - A. A. de Assis


Luís Vaz de Camões (Sonetos Comentados)


001

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
________________________

Camões fala da matéria prima de sua poesia - o Amor - e alerta que, para ser entendido, é necessário que se partilhe o mesmo sentimento
_____________________________________________

002

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo:-Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
__________________________

Soneto narrativo de influência petrarquiana. O amor de Jacó por Raquel transcende a tudo e simboliza a fidelidade e a constância, fazendo com que o pastor viva para e pelo amor, embora a possibilidade de concretiza-lo seja remota. O amor é idealizado, perfeito. Inspirado no personagem bíblico do Gênesis.
_________________________________________

003

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
__________________________

Mudanças são contínuas. O interessante neste soneto é o jogo de imagens sucessivas que em si mesmas expressam a movimentação dos acontecimentos,
pontos de reflexão do autor. Percebe-se que o ritmo vai acompanhando a estrutura do soneto até o final inesperado, quando é revelada uma mudança da própria mudança.
___________________________________________

004

Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,
num'hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ü'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
_________________________

Soneto em que Camões compõe o retrato feminino ideal. Pouco descritivo, no sentido físico, encerra aspectos psicológicos do ente amado - "morrer de olhos", "riso brando", "despejo quieto"... A força paradoxal dessa mulher aparentemente tão revoltada e frágil por aprisioná-lo.
_______________________________________

005

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
_____________________________
Inspirado em Petrarca, de quem toma o último trecho, estes versos trazem um dos temas mais trabalhados por Camões: a importância do engenho e da arte para cantar plenamente as diferentes faces do amor, materializado na beleza inatingível ("de vosso gesto / A composição alta e milagrosa") da mulher que o desprezara.
___________________________________________

006

Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.
_______________________________

Soneto descritivo em que o poeta oscila entre o ato de ser a natureza e o de ser visto por ela. Neste jogo, existe a troca de sensações que vão de benfazeja alegria, oferecida pela natureza ao poeta, a profunda amargura, causada pelo "mal" (saudade do amor perdido) que o entristece.
___________________________________________

Fonte:
Luís de Camões. Lírica de Camões: melhores poesias. Notas de Célia A. N. Passoni.  
2.ed. São Paulo: Núcleo, 1997.

Contos e Lendas do Mundo (China: A Cinderela chinesa)


(Do "Yuyang Tsatsu", século IX) 

Ao que se sabe, esta é a mais antiga história da Cinderela escrita no mundo. Cinderela é um dos contos folclóricos mais conhecidos em todos os países e dela têm sido coligidas, estudadas e comparadas pelos entendidos centenas de versões. 

Contudo, de acordo com o professor R. D. Jameson, autoridade em assuntos do longínquo oriente: "A história é anterior à mais antiga versão ocidental de Des Perriers em seu "Nouvelles Récréations et Iojeux Devis", Lião, 1558, cerca de uns 700 anos." 

A versão chinesa é tirada de "Yuyang Tsatsu", um livro de mágicas e contos sobrenaturais e de fundo histórico. outrossim, escrito por Tuan Ch'eng-shih que morreu em 863 da era cristã. A história lhe foi contada por uma velha serva da família que provinha de Yungchow (moderna Nanning) em Kwangsei, e que descendia dos povos das cavernas (aborígines) daquele distrito. Tuan era filho de um primeiro ministro e era letrado e em "Yuyang Tsatsu", deu disso vários exemplos: pesquisou certos contos populares indo encontrá-los até nos clássicos budistas, pois no século IX, as histórias sobrenaturais budistas eram bem conhecidas e populares na China. Entretanto esse conto provou ser de tradição oral. 

Existem versões siamesas bem conhecidas e Nanning fica bem perto da Indochina. Segundo o professor Jameson- "Tanto quanto lhe posso afirmar, e até onde vão meus conhecimentos, a mais velha versão impressa é chinesa. Sabemos muito pouco sobre os processos da imaginação humana e são incontáveis os lugares folclóricos do mapa asiático que ainda não foram completamente explorados para justificar, parece-me, muita especulação." 

O que nos fere nessa versão chinesa é que ela contém elementos de todas as duas tradições, eslava e alemã, na primeira das quais um animal amigo é o motivo principal e onde, na segunda, a perda do sapatinho num baile é o fato mais importante. A madrasta cruel e as filhas são comuns a ambas. - Lin Yutang. 

O CONTO

Certa vez, antes de Ch'in (222-206 a.C.) e Han havia um chefe das cavernas da montanha a quem os nativos chamavam chefe Wu. Ele se casou com duas mulheres uma das quais morreu deixando-lhe uma menina chamada Yeh Hsien. Essa menina era muito inteligente e habilidosa no bordado a ouro e o pai amava-a ternamente, mas, quando êle morreu, viu-se maltratada pela madrasta que seguidamente a forçava a cortar lenha e mandava-a a lugares perigosos para apanhar água em poços profundos. 

Um dia, Yeh Hsien pescou um peixe com mais de duas polegadas de comprimento e que tinha as barbatanas vermelhas e os olhos dourados. Trouxe-o para casa e o pôs numa vasilha com água. Cada dia o peixe crescia mais e tanto cresceu que, finalmente, a vasilha não lhe serviu mais e a menina o soltou numa lagoa que havia por trás de sua casa. Yeh Hsien costumava alimentá-lo com as sobras de sua comida. Quando ela chegava à lagoa, o peixe vinha até a superfície e descansava a cabeça na margem, mas se alguém se aproximasse não aparecia. 

Esse hábito curioso foi notado pela madrasta que esperou o peixe sem que este lhe aparecesse. Um dia, lançou mão de astúcia e disse à enteada: - "Não está cansada de trabalhar? Quero dar-lhe uma roupa nova." Em seguida fêz Yeh Hsien tirar a roupa que vestia e mandou-a a várias centenas de li para trazer água de um poço. A velha, então, pôs o vestido de Yeh Hsien e estendeu uma faca afiada na manga da blusa; dirigiu-se para a lagoa e chamou o peixe. Quando o peixinho pôs a cabeça fora d’água, ela o matou. Por essa ocasião, o animalzinho já media mais de dez pés de comprimento e, depois de cozido, mostrou ter sabor mil vezes melhor do que qualquer outro. E a madrasta enterrou seus ossos num monturo. 

No dia seguinte, Yeh Hsien voltou e ao aproximar-se da lagoa verificou que o peixe desaparecera. Correu para chorar escondida no meio do mato e nisso um homem de cabelo desgrenhado e coberto de andrajos desceu dos céus e a consolou, dizendo: - “Não chore. Sua mãe matou o peixe e enterrou os ossos num monturo. Vá para casa, leve os ossos para seu quarto e os esconda. Tudo o que você quiser peça que lhe será concedido". Yeh Hsien seguiu o conselho e pouco tempo depois tinha uma porção de ouro, de jóias e roupas de tecido tão caro que seriam capazes de deleitar o coração de qualquer donzela. 

Na noite de uma festa tradicional chinesa, Yeh Hsien recebeu ordens de ficar em casa para tomar conta do pomar. Quando a jovem solitária viu que a mãe já ia longe, meteu-se num vestido de seda verde e seguiu-a até o local a festa. A irmã, que a reconhecera virou-se para a mãe dizendo: - "Não acha aquela jovem estranhamente parecida com minha irmã mais velha ?" A mãe também teve a impressão de reconhecê-la. Quando Yeh Hsien percebeu que a fitavam, correu, mas com tal pressa que perdeu um dos sapatinhos, o qual foi cair nas mãos dos populares. 

Quando a mãe voltou para casa encontrou a filha dormindo com os braços ao redor de uma árvore; assim pôs de lado qualquer pensamento que pudesse ter sido acerca da identidade da jovem ricamente vestida. 

Ora, perto das cavernas, havia um reino insular chamado T'o Huan. Por intermédio de forte exército governava duas vezes doze ilhas e suas águas territoriais cobriam vários milhares de li. O povo vendeu, portanto, o sapatinho para o Reino T'o Huan, onde foi ter às mãos do rei. O rei fêz as suas mulheres experimentá-lo, mas o sapatinho era cerca de uma polegada menor dos das que tinham os menores pés. Depois fez com que o experimentassem todas as mulheres do reino sem que nenhuma conseguisse calçá-lo. 

O rei, então, suspeitou que o homem que o tinha levado o tivesse obtido por meios mágicos e mandou aprisioná-lo e torturá-lo. Mas o pobre infeliz nada pôde dizer sobre a procedência do sapato. Finalmente, emissários e correios foram enviados pela estrada para irem de casa em casa a fim de prenderem quem quer que tivesse o outro sapatinho. O rei estava muito intrigado. 

A casa foi encontrada, bem como Yeh Hsien. Fizeram-na calçar os sapatinhos e eles couberam perfeitamente. Depois ela apareceu com os sapatinhos e o vestido de seda verde tal como uma deusa. Mandaram contar o caso ao rei e o rei levou Yeh Hsien para seu palácio na ilha juntamente com os ossos do peixe. 

Assim que Yeh Hsien foi levada, a mãe e a irmã foram mortas a pedradas. Os populares apiedaram-se delas, sepultando-as num buraco e erigindo um túmulo a que deu o nome de "Túmulo das Arrependidas". Passaram a reverenciá-las como espíritos casamenteiros e sempre que alguém pedia-lhes uma graça no sentido de arranjar ou ser feliz em negócios de casamento tinha certeza de que sua prece era atendida. 

O rei voltou à sua ilha e fez de Yeh Hsien sua primeira esposa. Mas durante o primeiro ano de seu casamento, ele pediu aos ossos do peixe tantos jades e coisas preciosas que eles se recusaram a conceder-lhe mais desejos. Por isso o rei pegou os ossos e enterrou-os bem perto do mar, junto com uma centena de pérolas e uma porção de ouro. Quando seus soldados se rebelaram contra ele, foi ter ao lugar em que enterrara os ossos, mas a maré os levara e nunca mais foram encontrados até hoje. Essa história me foi contada por um velho servo de minha família, Li Shih-yüan. Ele descendia de um povo chamado Yungchow e sabia de muitas historias estranhas do sul.

Fonte:

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Carlos Drummond de Andrade (O Telhado)


Em janeiro choveu a potes na cidade, mas onde choveu dez vezes mais do que em outro lugar qualquer foi na Rocinha. Isso me garantiu Biguá, uma semana depois da enchente trágica. Apareceu arrasado, no escritório. Seu barraco não rolou no abismo porque Deus não quis, ou porque, a certa altura, achou que era exagero ferir assim um humilde. Mas o quartinho das crianças ficou sem telhado, os móveis fugiram na correnteza, e se vier outro toró…

— Coragem, Biguá. Pelo menos, não morreu ninguém em casa.

— Não morreu, porque pobre não morre, senão acabava a pobreza na Terra.

Os colegas ajudaram Biguá como foi possível, com roupas e um dinheirinho; não era o único atingido pela calamidade. As precisões mais urgentes foram atendidas. Restava reconstruir o barraco, e a Caixa Econômica veio em auxílio dos flagelados, seiscentos mil cruzeiros de empréstimo a cada um.

— Para mim ela não vem, que eu não tenho pistolão. Já morei na jogada.

— De qualquer jeito, taca o pedido, Biguá.

— Vou tacar, mas sei que é bobagem. Vê lá se eles dão pelota a um joão-ninguém como eu.

Dias depois, com o sorriso amargo e triunfante do pessimista, comentava:

— Eu não falei? Os engenheiros estiveram lá, viram uma porção de barracos, nem pararam na minha porta.

Mais uma semana, duas, os engenheiros pararam, assuntaram, tomaram apontamento, mas Biguá mantinha-se cético:

— Qual. Seiscentos contos, que é bom, eles não me dão.

E os meninos — sete — dormindo na casa arruinada, à luz das estrelas, quando havia estrelas. Se chovia, era um corre-corre assustado, para tirar os colchões, defender os pobrezinhos. E o vento, mosquitos, todos os males e perigos da noite, cercando a família de Biguá.

— Como é? Já chegou o tutu?

— Não chegou nem chega nunca. Eu sabia que era só pra uns, os folgados. Isso não endireita não.

Os acontecimentos passam mais depressa do que o tempo, e o tempo vai na chispada. Quem se lembra hoje do terrível janeiro? Vaga recordação, se tanto, daqueles dias e noites de pesadelo. Os que sofreram e escaparam não se queixam mais. Até Biguá, o ácido, o inconformado e descrente, silenciou — ou são os colegas que já não lhe dão ouvidos à plangência.

Até que afinal, em dia de pouco serviço ou pouca novidade, à hora do cafezinho, alguém bole naquelas horas medonhas que o Rio passou, desabamentos, mortes, a comoção geral, o impacto.

— Ah, é verdade, Biguá, e aquele empréstimo da Caixa Econômica, hem? Você recebeu?

— Custou muito, mas recebi. Mixaria.

— Quer dizer que teu barraco foi consertado, e você nem contou pra gente.

— Não deu pra consertar nada.

— Espera aí, rapaz, seiscentos contos! Ou você queria trocar por um duplex?

— Vocês estão debochando, porque não conhecem meu barraco. Não adiantava botar telhado novo. Quem chegava lá e via a pobreza, nem olhava pra cima: baixava a cabeça. Eu tinha tristeza quando as colegas de minhas garotas iam estudar ou bater papo. Pobreza é apelido.

— E que é que você fez com o dinheiro?

— Que que eu fiz? Que que eu podia fazer? Me ofereceram uma televisão e uma geladeira de segunda mão, negócio bacana, todo mundo lá na Rocinha tem esses troços, só eu não tinha, dei quinhentos e oitenta contos pelos dois, foi isso que eu fiz. O telhado não tem jeito não, eu sei que não dou sorte, fico só pensando noutra enchente!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poemas Escolhidos) II


VOZ DO CORAÇÃO

Disseram-me que sou louco varrido,
Que vivo vagueando em ilusão,
Meus versos são delírios coloridos
Tal lírios no jardim inda em botão. 

Que minh’ alma é um ninho de saudade
A viver só de sonho e fantasia,
Que não vivo num mundo de verdade,
Que a paz que tanto prego é utopia! 

É assim que quero viver meu mundo,
Tendo n’alma um ninho de alegria,
Onde o amor seja pleno e fecundo
Como o sol clareando um novo dia

Que venha a paz que todos nós queremos,
Justiça seja feita ao nosso irmão,
Que cale a voz e fale o coração.
Pois só assim a PAZ conquistaremos.

VOCÊ

No rosto traz um sorriso 
terno, amigo e verdadeiro, 
no peito traz um gigante, 
que se abre a todo instante 
e acolhe um mundo inteiro!

És ternura da mais terna, 
és doçura da mais doce, 
e se eu poeta fosse,
diria da forma mais Vera: 
és outono, primavera, 
o mais ardente verão! 
És acalento, alegria, 
meu sonho de cada dia, 
és tudo afinal então!

E neste dia de hoje, 
quero te confessar: 
se eu fosse o Criador, 
dar-te-ia o céu, o mar, 
o campo coalhado de flor, 
e para arrematar, 
dar-te-ia todo amor, 
que se possa imaginar!

VIDA ETERNA

Se e vida fosse eterna,
Sem princípio, meio e fim,
Mesmo assim seria curta
Com você perto de mim.

Sua presença envolvente,
Com volúpia e paixão
Roubar-me-ia o juízo,
Tirar-me-ia a razão,
E a eternidade pra mim
Ser-me-ia breve, então.

Mas sei que a eternidade
É invenção de profeta,
Uma mera utopia,
Sonho louco de poeta,
Não existe de verdade,
Pois é pura fantasia.

Assim retomo o sentido,
A consciência, o tino...
Aceitando o meu destino,
Rogo-lhe usando a razão:
Seja minha, pelo tempo,
Pelo mais longo momento
Que lhe for possível, então!

VIDA

A vida é como a alvorada
Renascendo em cada dia,
É acalento, alegria,
É brisa soprando ao léu,
É a doce aurora nascendo
E aos poucos acendendo
O brilho azul lá do céu.

A vida é uma criança
Com seu sorriso contente
A mostrar pra toda gente
De forma plena e total
Que ainda existe esperança
Neste mundo desigual.

A vida é um sonho dourado
Que todos devem sonhar
Recordando no passado
Os momentos tão amados
Que o mundo pôde nos dar.

A vida é a própria existência
Nascida da Criação.
É a razão, a essência,
Obra divina de Deus,
Seja pra crente ou ateu
É tudo, afinal, então!

VÍCIO

O teu silêncio me cala,
A tua voz me dá vida,
Tua canção me embala,
Teu colo me dá guarida.

O teu sorriso me anima,
O teu abraço me aquece.
Querer-te é a minha sina,
Desejar-te me apetece.

Tua presença me encanta,
A tua ausência me mata.
E a saudade que é tanta!
Às vezes até me espanta
O tanto que me maltrata!

VERSOS COLORIDOS

No velho banco de um jardim florido,
Garimpo n’alma minha inspiração;
Rabisco em preto versos coloridos
Que desabrocham cheios de paixão.

O céu azul capricha no cenário,
A brisa leve sopra de mansinho,
Lá no ipê rosa canta o meu canário
- Meu coração a implorar carinho.

A noite surge, vem render a tarde,
Que já cansada põe-se a cochilar...
Dentro do peito a nostalgia arde.

E cai o dia... vem a longa noite.
Chega a  lembrança pra me maltratar,
E a saudade a me sovar com o açoite!

Fonte: