terça-feira, 5 de março de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) IV

IDÍLIO

Sinto que, ás vezes, choras, minha Irmã,
No teu sombrio quarto recolhida...
É que ele vem rompendo a sombra vã
Da Morte, e lhe aparece á luz da vida!

E aflita, como choras, minha Irmã...
Teu choro é tua voz emudecida,
Ante a imagem do Filho, essa Manhã
Em profunda saudade amanhecida.

Silencio! Não palpites, coração;
Nem canto de ave ou mística oração
Um tal idílio venham perturbar!

Deixai o Filho amado e a Mãe saudosa:
O Filho a rir, de face carinhosa,
E a Mãe, tão triste e pálida, a chorar...

DE NOITE

Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos íntimos, acesos,
Estáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor... o amor antigo.

A minha dor está contigo ali,
Como, outrora, eu estava ao pé de ti...
Se fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!

Mas eu não sou a dor, a dor etérea...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama...

NOITES EM CLARO

Passas em claro as noites a chorar;
Dia a dia, teu rosto empalidece...
Faze tu, pobre Mãe, por serenar,
Santa Resignação sobre ela desce!

Rochedo que a penumbra desvanece,
Tu, por acaso, não lhe podes dar
Um pouco desse frio que entorpece
O coração e o deixa descansar?...

Jamais! Não há remédio! Nem as horas
Que passam! Toda a fria noite choras;
Tua sombra, no chão, é mais escura.

Sofres! E sinto bem que a tua dor,
Como se fora um beijo, aceso amor,
Vai-lhe aquecer, ao longe, a sepultura.

DUAS SOMBRAS

Pelas tardes divinas,
Quando a cor se dissolve em lágrimas douradas,
Eu vejo duas Sombras pequeninas,
Andando de mãos dadas.

Como duas crianças que elas são,
Percorrem, a brincar,
Esta minha infinita solidão;
E estático e suspenso, eu fico a olhar, a olhar...

Bate-me o coração; caminho... Na distância,
Através do crepúsculo divino,
Vejo a Sombra infantil da minha infância
E a Sombra do Menino!

E delas me aproximo; e paro; tenho medo
De as ver fugir, assim...
Seus Vultos de quimera e de segredo
Tremem diante de mim...
E como se parecem!
O mesmo adeus no olhar, o mesmo rosto e altura...
E ao pé delas as coisas se enternecem,
E este meu coração aberto em sepultura.

Durante a tua vida, meu Amor,
Quantas vezes, ao ver-te, imaginava
Olhar de perto, a minha infância toda em flor!
E ainda mais: pensava
Que eras a minha própria Infância novamente,
Mesmo diante de mim, ressuscitada
E brincando comigo alegremente,
Nesta velha Paisagem bem amada,
Terra da meia noite, alma do outono...
Nesta casa velhinha, evocadora,
Tocada de luar, de sombra e de abandono,
Da alegria de outrora...
E por isso, no dia em que morreste,
Quando tudo era lágrima, a distância,
Coração, duas cruzes padeceste;
Duas mortes sofreu a minha infância.

LÁGRIMA

Bate-me o luar na face, e o meu olhar
Em lágrima saudosa se condensa...
Vejo-a diante de mim, como suspensa
Na sombra do ar.

E em seu líquido seio de esplendor,
Tua Imagem começa a alvorecer,
Pois toma corpo e vida no meu ser,
Quando a beija, sorrindo, a minha dor...

Ébria do teu espirito sagrado,
A radiosa lágrima estremece,
Enquanto a minha face empalidece
E o luar e a noite cismam ao meu lado...

E a comovida lágrima crepita...
Relâmpago de dor... E nada vejo;
Pois nela está presente o meu desejo
E a minha vida frágil e infinita.

E a lágrima cintila, num adeus...
E, desprendida de meus olhos, ei-la
Já distante, no espaço: é nova estrela
Subindo aos céus...

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Contos e Lendas do Mundo (China: Os Três Tigres)

por Xu Fang

Nos últimos anos, nossa aldeia foi infestada por tigres, que devoraram muitas pessoas, mais do que se conseguiria contar. Viajantes que passavam por aqui diziam que isso acontecia também no resto da China.

Segundo muitos, os tigres errantes seriam enviados do céu, encarregados de procurar aqueles que tinham conseguido escapar do seu encontro com uma morte violenta. Outros afirmavam que debaixo da pele do tigre se escondem demônios ferozes, espíritos vingadores no estado de furor extremo. A verdade pode existir nessas duas explicações, mas nenhuma  é tão estranha como a do velho Huang.

O velho Huang morava em Mixi, a alguns quilômetros do distrito de Qiao. Ele tinha três filhos grandes na força da idade. Na primavera daquele ano, ele ordenou que eles fossem lavrar o campo nas colinas e durante muitos dias eles saíam bem cedo e voltavam no fim da tarde.

Um dia um vizinho disse ao Huang:

— Teu roçado está cheio de mato.

— Como pode ser? - respondeu o velho Huang. Meus filhos passam lá, trabalhando o dia inteiro.

— Parece que não! -  respondeu o vizinho.

Intrigado, Huang decidiu seguir seus filhos. Na manhã seguinte, foi atrás deles. Logo que chegaram no bosque, no pé da colina, eles tiraram a roupa e a penduraram em galhos de árvore. Depois se transformaram em tigres, pulando e dando terríveis rugidos.

Aterrorizado, o velho Huang voltou depressa para a aldeia. Ele contou ao seu vizinho o que tinha visto e depois se trancou dentro de casa.

De noite, seus filhos voltaram. Esperaram muito, diante da porta fechada, mas ninguém respondia quando chamavam. No fim, o vizinho saiu e explicou que seu pai os renegava, depois do que tinha visto no bosque.

— O que ele viu foi verdade! -  reconheceram os rapazes. - Mas não fazemos assim por nossa vontade. É o mestre dos Céus que nos obriga.

Em seguida, o mais velho chamou seu pai.

— Pai, como poderíamos ser ingratos com o senhor? Sua bondade para conosco é sem limites. Ficamos desesperados por termos sido escolhidos já há tanto tempo para esse papel funesto. Nos últimos dias corremos por montes e vales, na esperança de encontrar alguém para pegar nosso lugar, porque não aceitamos a sorte que nos foi reservada. Não deu certo. Agora, mesmo com o senhor sabendo o que está acontecendo, não podemos desobedecer as ordens. No bolso de cima do meu casaco, pai, tem uma caderneta. Pega essa caderneta, pai, senão o senhor está perdido, e teremos nós três aqui assinado sua sentença de morte.

O velho Huang pegou a lamparina e procurou no bolso de cima do casaco, de onde tirou a caderneta. Ele leu os nomes de todos aqueles que, no distrito, deviam ser mortos pelos tigres. Seu nome vinha em segundo lugar na lista.

— O que podemos fazer? — gritou, desesperado.

— Abre a porta, respondeu o mais velho. Acho que tem uma saída.

O velho Huang abriu a porta. O filho mais velho pegou a caderneta, e os três filhos, retendo os soluços, inclinaram-se diante do pai. Depois disseram:

— Que seja o destino do Mestre dos Céus. Agora, pai, veste quatro ou cinco calças e camisas, uma por cima da outra, mas não afivela o cinto. E agora, reza ajoelhado. Temos um jeito de salvá-lo.

O velho Huang obedeceu. Nem bem tinha se ajoelhado, seus três filhos já tinham virado tigres e caíram sobre ele com as garras afiadas. Com patadas e dentadas, cada um arrancou uma camada das roupas e foram embora rugindo, com farrapos de roupa na garganta.

Nunca mais eles foram vistos na aldeia, e o velho ainda hoje mora no mesmo lugar.

Fonte:
http://www.capparelli.com.br/contos.php

Andréa Motta (Lançamento de Livro dia 26 de março)

Andréa Motta e Nogue Editora, convidam para o lançamento do livro de poesias Natureza Íntima, no dia 26 de março de 2019, à 17h, no Centro de Letras do Paraná (Rua Fernando Moreira, 370 - Centro. Curitiba-Paraná).

É um livro com poemas curtos, mas profundos.

Será uma imensa alegria, contar com sua honrosa presença.


domingo, 3 de março de 2019

Lydia Lauer ( ???? - 2004)


Abre a gaiola, menino,
deixa o pássaro voar.
Deus lhe deu este destino:
ramos verdes, sol e o ar.

A casa da minha sogra.
é lugar onde me escondo.
ninguém me pega, nem logra
em casa de marimbondo.

A droga muito entusiasma
menino inexperiente,
fazendo dele um fantasma,
um malvado e dependente.

A espuma do mar é doce,
mesmo ele sendo salgado,
o inventor fez com que fosse
sem sal o doce inventado.

A mulher é descansada!...
Preguiçosa é o que ela é,
pois faz sempre bem sentada
o que o homem faz em pé.

Ao dormir, os animais
permanecem sempre alerta.
Os homens e os ancestrais
só roncam de boca aberta.

Aqui vai um grande abraço,
num cacho do meu carinho
que, enrosquilhado num laço
tem cor e gosto de vinho.

Barata na marmelada
na banca do seu Abreu
chora, toda lambuzada
o “barato” que morreu.

Com meu olhar distraído
mal noto a vida danando,
num palco já escurecido
com a cortina fechando.

Cor: amarelo vibrante
Sabor: espetacular
Espuma: branca, constante.
Cerveja: bem de-va-gar.

Cumpre o dever com cuidado
que é uma nobre lei cristã.
O tempo desperdiçado
vai fazer falta amanhã.

Disse o tomate à banana,
ele que era só um fedelho:
- Não tire a roupa bacana,
que fico todo vermelho.

É fácil criar a trova.
Basta rimar a receita:
ter bom ritmo, ideia nova,
metrificação perfeita.

É inverno de manhãzinha...
campo branco de geada...
Chimarrão? Lá na cozinha,
onde a porta é franqueada.

Ela deixou sobre a mesa,
numa folha de papel,
cruel adeus... que vileza!
Uma flor e o meu anel.

Envolvido na emoção
e esplendor deste luar,
meu amor, peço perdão
se esqueci de te beijar.

Este poncho esfarrapado
é uma bandeira pra mim.
Na refrega desfraldado
acompanhou-me... até o fim.

É uma estação de lamentos,
tem um jeito de abandono.
Folhas cansadas de ventos
morrem no peito do outono.

Eu sou um barco sem leme
na falta da sua mão.
Sem apoio, a minha treme,
procurando amparo em vão.

Há, na enseada da vida,
três caravelas no cais:
Uma, esperança perdida
Duas, sofrendo demais.

Lua cheia na varanda,
suave aroma de flor
é a inspiração que comanda
a lira do trovador.

Luz modesta e pequenina
de valor raro, puríssimo
é a chama da lamparina
acompanhando o Santíssimo.

Minha mãe é tão velhinha,
delicada, carinhosa,
tem a cabeça branquinha,
mas o frescor de uma rosa.

Minha mãe quando mocinha
em cuidados e desvelos,
com a flor que mais convinha
enfeitava seus cabelos.

Nariz vermelho, gelado,
no inverno mal aguento.
É claro, segue pelado
na frente cortando o vento.

No verão, na minha terra,
vem mosquito safadão.
Faz zum... zum... e depois ferra.
deixa marca e comichão.

O bigode do compadre
vai ficar para depois.
Falo só no da comadre,
pois que vale pelos dois.

O biquíni no varal
balançando o dia inteiro
sem querer faz muito mal
aos rapazes do mosteiro.

O careca inteligente
que se salva como pode
não dá bola, vai em frente,
de cavanhaque e bigode.

O ciúme bem dosado
é uma taça de licor,
meio amargo, mas rosado,
numa bandeja de amor.

O ciúme pediu prazo
junto ao tribunal do amor.
O juiz deu fim ao caso
na solitária da dor.

O meu clone certo dia,
lá no céu tentou entrar,
mas, sem a carta de alforria,
São Pedrinho o fez voltar.

O meu marido pinguço
é feio como a desgraça
pobre, careca, dentuço,
e se afunda na cachaça.

O trovador se liberta
compondo versos risonhos.
É assim... uma porta aberta
nos paraíso dos sonhos.

O vento levou meu sonho,
rodopiou com vontade,
fez meu coração tristonho,
pergaminho da saudade.

Parabéns ao tropeirismo
por desbravar nossa terra,
pelejador do civismo
que faz conquista sem guerra.

Praia sem graça é aquela!
Só tem cara cabeludo,
pirralho feio e magrela
e velha mostrando tudo.

Praia!... Sol! Manhã risonha!
O ar vai ficando quente.
Ah! biquíni sem vergonha!
Não hã cristão que te aguente!

Quando não puder bater,
em teu peito o coração,
salva a vida de outro ser
na sublime doação.

Realidade da vida
que fica atrás da cortina,
liberal ou proibida,
é sempre a que mais fascina.

Roda do tempo girando,
no espaço largo sem fim
é como um disco gravando
a vida dentro de mim.

Se falar, tenha certeza.
Não diga palavra oca.
São joias da natureza
o que sai da sua boca.

Se no lugar por onde passas,
deixares bens e carinhos.
encontrarás também graças
e amores nos teus caminhos.

Solta a barca pescador!
Vai ao mar pescar com ela.
Fica em terra teu amor
aguardando na janela .

Tudo temos de pagar:
o pão, a roupa, a cachaça...
e quem não se conformar,
nem no céu entra de graça.

Uma estrelinha cadente
encontrou seu namorado.
Deu-lhe um beijo incandescente
e um abraço enluarado.

Vai caravela perdida,
nos grandes mares distantes,
como pétala esquecida
na saudade dos amantes.

Arthur de Azevedo (A Marcelina)



I
Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o Doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigadas da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, – mas como janota – força é confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.

Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente:

– Orço pelos quarenta, – e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinquenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público.Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Citera dos bastidores.

Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar–se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso – muito mais generoso que inteligente, – nunca ficava mal com o astro caído.

Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito, – que facilmente se enjoavam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso suas roupas.

II

No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a conquista do Doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas do reclame, e cuja estreia,num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

Uma hora antes de começar o espetáculo de estreia, entrou advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

Ela ficou encantadíssima, a agradeceu com beijos quentes sonoros a dedicada solicitude do amante.

Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! Que papel escolhido! Que delicioso divã! Que magnífico espelho de faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! E que profusão de perfumarias! E que precioso serviço de toilette!.

Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, ricamente iluminada por dois bicos de gás.

O Doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

Dali a nada ouviu-se um – Dá licença?, – e o diretor de cena entrou no camarim, acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.

– Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

– É doente? perguntou Clorinda à costureira.

– Não. senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa.

Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refastelando-se no divã:

– Ma chêre, il faut se contender de cette habilleuse; noos ne sommes pos en Europe.

Ele impingiu a frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: – Oui.

Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo:

– Vamos a isto!

E dirigindo-se à costureira:

– Sente-se. Por que está de pé?

A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

– Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.

– Deveras?

– Ao que me parece, você tem sido um gajo!

O Doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade adentro como uma grã-cruz.

– Com que então, a sua especialidade são as atrizes?

– Sou doido pelo teatro.

– E há quanto tempo dura essa doidice?

– Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.

– Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

– São os seus olhos.

– Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

– Ah! isso…

O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

– … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

– Como se chamava essa colega?

– Chamava-se Marcelina.

– Que fim levou?

Ele encolheu os ombros.

– Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê os cadáveres.

– Gostou dela?

– Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

– Nunca mais a procurou?

– Para quê?

– Tinha talento?

– Talento? Não. Tinha habilidade.

E depois de uma pausa:

– Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

– Brasileira?

– Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia – eu já a tinha deixado – um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace!

Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o Doutor
Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas mancebias.

Clorinda, a costureira e o cabeleireiro ouviam sem dizer palavra .

Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:

– Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.

– Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplendido! Vou aplaudi-la. Bonne chonce!

Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura, – e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

III

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

– A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

– Acha? perguntou desdenhosamente a atriz.

– Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas.. – não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses… gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

– Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me falar assim?

– Eu sou… a Marcelina.

Fonte: