quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Irmãos Grimm (Os três irmãos afortunados)


Houve, uma vez, um homem que, sentindo-se velho e esgotado, chamou os três filhos e deu ao mais velho um galo, ao segundo um alfanje e ao terceiro um gato, dizendo:

- Já estou velho e meu fim está próximo. Antes de morrer, porém, gostaria de fazer algo em vosso benefício. Dinheiro não possuo e isto que vos dei agora parece de pouco valor, mas tudo depende de ser usado com inteligência. Basta que procureis um país onde esses objetos sejam desconhecidos e tereis a fortuna nas mãos.

Pouco depois o pai faleceu. Então o filho mais velho foi-se pelo mundo afora com o galo, mas, por onde quer que passasse, o galo já era bem conhecido: via-o de longe nas cidades, no alto das torres, a girar com o vento. Nas aldeias ouvia mais de um cantar e ninguém se admirava do seu. Não lhe parecia, absolutamente, que viesse a fazer fortuna com o pobre galo. Tanto andou e perambulou que, por fim, foi ter a uma ilha, e lá as pessoas ignoravam o que fosse um galo e até mesmo como se dividia o tempo durante o dia. Naturalmente sabiam distinguir a manhã e a tarde, mas à noite, se não estavam dormindo, não sabiam a quantas andavam.

– Olhai! - disse o moço - vede que soberbo animal! Tem uma coroa da cor rubra dos rubis na cabeça e usa esporas como um cavaleiro. À noite vos chama três vezes, na hora certa. A última vez é quando está surgindo o sol. Mas, se cantar em pleno dia, precavei-vos, pois anuncia mau tempo.

A novidade agradou a todos. Naquela noite ninguém dormiu e, com grande júbilo, ouviram o galo anunciar sonoramente o tempo, às duas, às quatro e às seis horas. Perguntaram ao moço se o galo estava à venda e quanto queria por ele.

– Oh, ele custa tanto ouro quanto pode um burro carregar! - respondeu o moço.

– Ora, isso é uma ninharia por um animal tão precioso! - exclamaram todos. E com a maior satisfação deram-lhe o que pedira.

Quando o moço regressou à casa com toda aquela riqueza, seus irmãos ficaram pasmos, e então o segundo disse:

– Também eu quero sair por ai, a ver se o meu alfanje rende tanto!

Mas parecia que isso não sucederia: por toda parte encontrava camponeses com alfanjes iguais ao seu. Finalmente, porém, também ele teve sorte numa ilha onde os habitantes ignoravam completamente esse utensílio, pois lá, quando o trigo estava maduro, postavam os canhões diante dos campos e ceifavam-no a tiros de canhão, Mas o processo não era dos melhores. Às vezes alguém ultrapassava o objetivo, outros ao invés atingiam as espigas fazendo-as voar longe, de maneira que muito grão se perdia e, ainda por cima, faziam um barulho infernal.

O moço aproveitou a oportunidade, pôs-se a trabalhar e ceifou tão silenciosamente e com tanta rapidez, que o povo ficou de boca aberta pelo espanto. Ficaram todos muito satisfeitos em pagar-lhe o que exigia, e ele pediu um cavalo carregado com tanto ouro quando pudesse transportar.

Diante disso, o terceiro irmão, também, quis procurar o que lhe era devido, com o seu gato.

Sucedeu-lhe o mesmo que aos dois irmãos maiores. Enquanto permaneceu em terra firme, nada havia a fazer, por toda parte havia tantos gatos que era preciso afogar os recém-nascidos. Finalmente, fez-se conduzir a uma ilha e lá teve a sorte de que nunca tinham visto um gato, e os ratos se haviam multiplicado de tal maneira que chegavam a dançar nos bancos e nas mesas, devorando tudo, estivessem ou não presentes os donos da casa.

O povo andava desesperado e o próprio rei não encontrava solução para esse flagelo. Os ratos, faziam, livremente correrias por todos os cantos do palácio real e roíam tudo quanto lhes caísse sob os dentes. Então o moço levou para lá o gato que se lançou logo à caçada. Dentro de algumas horas limpou várias salas.

O povo, então, suplicou ao rei que adquirisse esse maravilhoso animal para o reino. O rei deu com satisfação o que o moço exigiu: um burro carregado de ouro. Assim o terceiro dos irmãos regressou para casa tão rico como os outros.

Entretanto, no castelo real, o gato divertia-se a valer com os ratos e matou tantos que era impossível contá-los. Por fim, estava tão acalorado pelo trabalho que sentiu sede. Levantando a cabeça, pôs-se a gritar: - Miau, miau, miau!

Ao ouvir esse estranho miado, o rei e toda a corte se espantaram e cheios de terror fugiram para fora do castelo. O rei convocou o conselho para resolver o que deviam fazer. Então resolveram enviar um arauto ao gato para o intimar a deixar quanto antes o castelo, se não queria que empregassem a força. Os conselheiros opinavam:

– Preferimos mil vezes mais o flagelo dos ratos, pois já estamos habituados, antes que expor nossas vidas a esse monstro desconhecido.

Um pajem foi incumbido de perguntar ao gato se preferia sair do castelo espontaneamente, mas o gato, que morria de sede, não sabia responder senão com o seu: Miau, miau.

O pajem julgou entender que ele dizia: - Não, não! - e transmitiu essa resposta ao rei.

– Então, - disseram os conselheiros - terá de ceder pela força.

Postaram os canhões e atiraram até incendiar o castelo. Quando o fogo atingiu a sala onde se encontrava o gato, este pulou agilmente a janela e fugiu. Os assediantes, porém, não o tendo visto, continuaram a bombardear o castelo até reduzi-lo a um montão de escombros.

Fonte:
Contos de Grimm.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Caldeirão Poético XVI



A TRAVESSIA

 "O mundo é um moinho... " (Cartola) 

Todos nós temos corda onde agarrar,
A vida nos dá sempre uma saída
Que nos evite o risco de abismar
No medo natural da própria vida.

Por certo cada um pega o que pode:
Um amor, uma paixão ou mesmo um vício;
Um poema, um soneto ou uma ode,
Um portal com a cruz no frontispício,

Ou então, o que é pior, com um convite
Para entrar mas deixando a Esperança, *
Última paz que o mundo nos permite... *

Mas pra saíres vivo do moinho,
Não como Don Quixote e Sancho Pança,
Terás que atravessar a ti sozinho…

 

BEM SEI...

Bem sei... Não faço verso algum perfeito;
e alguns bem longe estão da exatidão, 
contudo, infelizmente, é desse jeito
que eu consigo acalmar meu coração...

Quisera que surgisse sem defeito,
não por vaidade tola ou afetação, 
mas apenas porque sei que ele é feito
só para alguém que estima a perfeição!

Assim, pois, ele nasce quando quer, 
da forma que bem quer; sem dar qualquer
obediência à minha mão que o escreve!

É o modo com que abrando a agonia, 
cada vez que em meu peito a dor se atreve 
a tentar encerrar minha estesia...


O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, O Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!


DOR DA SOLIDÃO

Não existe dor maior
Que a dor da solidão...
É dor cruel e perversa
Que não aceita conversa
E nem mesmo explicação!
É dor do só, do sozinho,
É carência de carinho,
Seu sintoma é a paixão.

E essa dor tão doída
Que tanto maltrata a gente
Chega assim tão de repente
Sem sequer bater na porta.
Para ela pouco importa
Se está matando o doente,
Se a "Inês é quase morta".

É uma dor que aniquila,
Que castiga, que maltrata,
É mais forte que a tequila
Mais ardente que a cachaça.
É pior que a dor que tomba,
Mais cruel que a dor que mata.


PROPOSIÇÃO DAS RIMAS DO POETA

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.


NOVA FRIBURGO

Loira “Princesa da Serra”,
das nuvens rasgando o véu!
Indago, serás da terra
ou doce visão do céu?!

Tens glórias de velho burgo,
cobrem-te rendas e galas,
mas, sempre nova, Friburgo,
vive a beijar-te o Bengalas!

Pelas nuvens resguardada,
meio aos penhascos da Serra,
Friburgo és concha encantada,
onde a Poesia se encerra!

Tua chave, hoje, me ofertas!
Isto me faz tua irmã…
e vejo portas abertas,
nesta festiva manhã!

Em troca deste presente
que me dás, Friburgo bela,
minha alma te abro e, contente,
verás que estás dentro dela!

E quando meus olhos ponho
no céu azul, sobre ti…
Não sei, Friburgo, se é sonho…
só sei que o teu céu sorri!!!


CASTRO ALVES

No fundo escuro da noite funesta,
faíscas rompem pelo céu, esteiras
que obedecendo a um ritmo, como em festa,
dançam ao vento, em espirais faceiras.

Quem dispara ao negrume, que detesta,
essas fagulhas, pelas mãos certeiras,
é um jovem cuja espada inflama e cresta,
acendendo a mais viva das fogueiras.

Gênio gigante de “Navio Negreiro”,
vive pouco, mas, nobre condoreiro,
atinge a crista azul da imensidade.

E em seu rasto, a luzir pelos caminhos,
resistindo à investida dos espinhos,
brilha a chama, sem par, da Liberdade.


CRIANÇA

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto, se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo,
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo,
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.


GATA

Da brancura da pele e no gesto macio,
A carícia tu tens e a moleza de gata:
O teu andar sutil é doce como a pata
Desse animal pisando um tapete sombrio...

Tens uma morbidez lânguida de sonata.
Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio...
Se as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio,
Sinto uma sensação esquisita, que mata.

Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro,
E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,
Como te torces, pois, minha serpente de ouro!

O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso,
E o teu beijo me aquece e vibra como um hino,
Animal de voz rouca e gesto silencioso!

Antonio Brás Constante (O trabalho se transformou em vício)



Sim, eu confesso, me viciei totalmente no trabalho. No início comecei com coisas leves. “Umas seis horas por dia no serviço já está bom”, eu pensava. Mas aos poucos fui necessitando de mais e mais tarefas. Passando a consumir dez, doze, até dezesseis horas de minha vida. Não saía mais com amigos. Já não comia direito. Mal conseguia dormir, ou simplesmente dormia mal (não é fácil dormir em cima de uma mesa de escritório).

Os sintomas foram se agravando, comecei a atender ao telefone utilizando o slogan da companhia (inclusive aos domingos), identificando-me e perguntando em que poderia ser útil. Depois de um tempo, passei a ter mais intimidade com a secretária eletrônica do que com pessoas de carne e osso. Agendava reuniões com minha própria mãe quando queria visitá-la. Mesmo nas raras ocasiões em que saía para jogar futebol, parava no meio do jogo, deixando minha posição descoberta, dizendo que era minha hora de intervalo, e isso deixava meus companheiros de time horrorizados, pois eu era o goleiro.

Minha esposa me abandonou pouco depois que deixei de chamá-la de amorzinho (para não ser acusado de assédio, era a explicação que eu dava), passando a me dirigir a ela utilizando seu primeiro nome, sempre precedido de “dona”. A gota d’água, porém, foi quando me recusei a deitar com ela, alegando que aquilo poderia ser interpretado como um erro de conduta moral. A coitada teve uma crise histérica. Tentei acalmá-la dizendo que ela poderia tirar o resto do dia de folga se quisesse, desde que fosse ao médico e me apresentasse um atestado de saúde. Nesse episódio, Dona Er... digo... minha mulher foi embora de casa, levando nossos filhos de cinco e oito anos junto com ela; fiquei muito triste com aquilo, visto que eles já estavam se acostumando a usar o uniforme com o logotipo da empresa.

Só notei que realmente havia algo errado comigo quando demiti meu cachorro por não estar usando crachá. Eu queria realmente procurar ajuda, mas era tão difícil encontrar algum médico que quisesse enviar seu currículo para avaliação, e que aceitasse fazer uma entrevista prévia, para somente então assinar um contrato de prestação de serviços (registrado em cartório), e enfim me examinar!

Para minha surpresa, meus familiares me recomendaram um consultor de empresas muito competente (que eles mesmos contrataram), o doutor Leopoldo, que iria auxiliar nos meus afazeres. Ele me convenceu a ir trabalhar no mesmo prédio de seu escritório. 

Inicialmente estranhei a localização do lugar, pois ficava numa clínica psiquiátrica, mas ele me tranquilizou afirmando que estava apenas sublocando uma sala ali, e que o lugar era bem localizado. O Doutor Leopoldo também insistiu para que eu passasse a utilizar um novo tipo de uniforme, que segundo ele era muito mais moderno e arrojado. Infelizmente o traje era um pouco desconfortável, já que meus braços ficavam imobilizados depois de vesti-lo.

Em contrapartida, ganhei uma sala muito confortável para trabalhar, toda acolchoada, apesar de não ter janelas e estar completamente vazia (me avisaram que os móveis ainda não haviam chegado da fábrica). Passei a tomar remédios que, conforme informações do bom doutor, ajudariam a aumentar o meu desempenho profissional. Estranhamente os tais medicamentos também me deixavam com muita sonolência. Depois entendi que aquilo tudo fazia parte de um tratamento para curar minha compulsão.

Hoje sou um novo homem: superei o vício de trabalhar. Agora, se você que está lendo este texto me der licença, vou encerrando estas poucas linhas, pois meus colegas do time de futebol estão gritando desesperados comigo para que eu pare de escrever e volte para o gol. E você? Qual é o seu vício?

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Neida Rocha (Lançamento de Livro em Pomerode)


Quem trouxer 3 livros infantis usados em bom estado, ganha um exemplar do livro!

Doaremos os livros arrecadados para a APAE. 

Neida Rocha, IWA
(47)99227-2202
Pomerode/SC

www.neidarocha.com.br

Fonte: A Escritora

domingo, 11 de novembro de 2018

Trova 328 - Prof. Garcia (Caicó/RN)

  

Malba Tahan (Uma Fábula sobre a Fábula)


(Lenda Oriental)

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (Deus é grande! Deus é grande!)

Quando Deus criou a mulher criou também a Fantasia. Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.

Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Verdade! — respondeu ela, com voz firme — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Cheique do Islã!

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:

— Senhor, — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.

— Como se chama?

— Chama-se a Verdade!

— A Verdade! — exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. — A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!

Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:

— Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso Califa. Com esses ares impudicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!

Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!

Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid...

Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.

Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Acusação! — respondeu ela, em tom severo. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Comendador dos Crentes.

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir.

— Senhor — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid.

— Como se chama?

— A Acusação!

— A Acusação? — repetiu o grão-vizir, aterrorizado. — A Acusação quer entrar neste palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!

Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade.

— Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.

Mas...

Allahur Akbar! Allahur Akbar!

Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.

E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.

Vestiu-se com riquíssimos trajos, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes.

Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Fábula — respondeu ela, em tom meigo e mavioso. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes!

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a falar com o grão-vizir:

— Senhor! — disse, inclinando-se, humilde — Uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.

— Como se chama?

— Chama-se a Fábula!

— A Fábula! — exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. — A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes. Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!

E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou.

E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano!

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Vicentina de Carvalho (Poemas Recolhidos)


Soneto X

Houve quem me dissesse: - "A minha vida 
depende só do que você me der". 
E eu, femininamente distraída, 
nada lhe dei, nem prometi sequer.

De outros ouvi a frase sempre ouvida: 
"Meu amor será seu quando quiser..." 
Mas deixaram apenas comovida 
minha tola vaidade de mulher.

Depois, mais tarde, alguém, indiferente, 
passou por mim, e, desvairada e cega, 
segui em seu encalço, inutilmente...

E, desde então, minha alma não sossega 
e vive da esperança, tão somente, 
de um pouco desse amor que ele me nega.

Soneto XIII

Um dia em minha vida tu surgiste, 
trazendo a luz do sol em teu olhar. 
Sorriu-me a vida, porque me sorriste, 
apagaste com risos meu pesar.

Eu, que vivera uma existência triste 
e tinha os olhos gastos de chorar, 
ia já ser feliz quando partiste, 
e para nunca, nunca mais voltar!

Foi-se contigo todo o meu prazer! 
Ao deixar-me, levaste o que trouxeste: 
toda a minha alegria de viver,

toda a felicidade que me deste. 
Se eu tinha de tão cedo te perder, 
por que tão tarde, ó meu amor, vieste?

Soneto XXII

Sorvi sequiosa a taça do prazer,
só lhe sentindo o bem que me sabia,
sem a preocupação de conhecer
o mal que ela, esgotada, me traria.

Desprezando o futuro, quis viver
o presente, que alegre me sorria,
sem nunca imaginar e sem prever
quanto custa um momento de alegria.

Logo, porém, o travo da amargura
mudou-me o riso em lágrima dorida,
pois a felicidade não perdura.

Só então percebi, arrependida,
quanto, por um instante de ventura,
hei de figar pagando toda a vida.

Soneto

Sinto que já se vem aproximando 
O gélido crepúsculo da vida; 
Extingue-se-me a vista amortecida,
E os meus cabelos já se vão prateando.

Despovoaram-me a alma dolorida
Os sonhos que sonhei de quando em quando,
Oásis na existência mal vivida,
De onde vai a esperança se afastando.

Quando o longo passado rememoro, 
Sangra-me o coração cruel saudade;
Porém, desse passado, que deploro,

Menos que as horas de felicidade, 
De tudo o que perdi, o que mais choro 
É ter perdido a minha mocidade.

Soneto

Já fui moça e também já fui amada
Como as outras mulheres hoje o são.
Vi abrirem-se rosas pela estrada
Por onde me levava o coração.

Gozei o encanto azul da madrugada
Dos lindos sonhos que sonhava então.
O amor que a muitas outras não deu nada,
Pôs a felicidade em minha mão.

Pelos bens que auferi, bendigo a vida,
Pois seria injustiça me queixar;
E recordo, serena e agradecida.

Tudo o que me foi dado desfrutar
Nessa longa existência bem vivida
Que só teve um defeito - foi passar.
__________________________________________

Vicentina Mesquita de Carvalho, nasceu em 24/6/1890 em Santos/SP e faleceu na Capital em 1/4/1954. Filha do grande poeta Vicente de Carvalho, herdou as qualidades de talento de seu ilustre pai, mas conseguiu em seus versos uma nobre originalidade, não tendo os reflexos da voz paterna.

Professora diplomada pela Escola Normal da Praça da República, poetisa e tradutora.

Possuidora de grande cultura, Vicentina de Carvalho destacou-se no magistério paulista como uma das mais brilhantes educadoras da sua época. Deixou um livro de versos, "Sonhos Mortos", publicado em 1950, onde se destaca a perfeição de seus sonetos. Esse livro foi prefaciado por Agripino Griecco, tendo merecido do conceituado crítico literário expressões como esta: "E agora é um rebento do varão glorioso que nos surge com um punhado de sonetos. Quem? Pode ser filha de rei e reinar também nos espíritos, revogando a lei sálica nos domínios da poesia? Encontra-se aqui, sem dúvida, uma brasileira cuja arte poética não está em Horácio ou Boileau: está em sua alma."
(www.novomilenio.inf.br/cultura/cult032.htm)

Nilto Maciel (Da Noite Para o Dia)


Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a ideia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa,  grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.

César sonhava com a glória literária. Ser membro da Academia, escritor de fama, ganhador do Nobel. Já meu sonho se contentava com as migalhas da simples publicação. Eu não tinha vocação literária, embora rabiscasse versos vez por outra. Aprazia-me mesmo era desenhar. Daí a capa do futuro livro de César e algumas ilustrações ao texto.

Iríamos trabalhar juntos sempre: ele como escritor de novelas, eu como ilustrador de seus livros. E nunca ele aceitaria outro ilustrador, nem eu ilustraria livro de outro escritor. Pacto de sangue, de morte, de amizade eterna.

Planejamos publicar a primeira novela. Cinquenta mil exemplares na primeira edição. Ele havia sonhado com cem mil, até que o convenci a ser mais modesto. Iríamos ficar famosos da noite para o dia: ele como escritor, eu como ilustrador. Lidos e vistos em todo o Brasil. E depois em todo o mundo. Inclusive na China. Falaríamos com Mao Tse-tung. A juventude chinesa precisava de ler textos mais do coração e não só o livrinho vermelho.

Enviamos cópias para algumas editoras. As respostas vieram desalentadoras: “livro pouco comercial”, dizia uma; “muitas obras no prelo nos impedem de dar publicação à sua novela”, esclarecia outra; “não estamos no momento publicando novelas”, explicava uma terceira; “livro não aprovado pelo nosso Conselho de Leitores”, resumia uma quarta. E outras do mesmo teor.

Algumas editoras nem sequer deram resposta. Fizemos então novos planos maravilhosos. Não iríamos precisar das editoras. Pouparíamos. Deixaríamos de fumar, beber, merendar, ir ao cinema, etc. César iria trabalhar e depositaria a maior parte do ordenado na caderneta. Meu pai não me deixava trabalhar, mas, em compensação, eu exigiria mesada mais gorda. Dela tiraria apenas o suficiente para os gastos mais necessários e depositaria o restante na poupança. Quando já tivéssemos alguns milhões, mandaríamos publicar a novela numa gráfica qualquer. Venderíamos os livros nas escolas, nos cinemas, nas ruas, lojas, repartições públicas, nos bares. Viajaríamos pelo interior. Com o dinheiro da venda mandaríamos publicar o segundo livro. Mas quando teríamos os milhões suficientes para pagar a primeira impressão? A esta pergunta perdemos o entusiasmo.

Concluídos os estudos secundários, César deixou de estudar e arranjou emprego. Não para juntar dinheiro, mas para sobreviver. Seu pai mergulhava cada vez mais na pobreza. E não falamos mais na novela. Nossas relações pouco a pouco iam perdendo o calor, nossos encontros se distanciando no tempo. E, quando nos víamos por acaso, apenas nos cumprimentávamos.

Esqueci logo os desenhos, as ilustrações, os sonhos. E fui estudar Direito.

Um ano depois meu pai morreu. Estranhamente assassinado. Crime horrível – latrocínio. Morto e roubado. Encontraram seu corpo numa valeta a poucos quilômetros do centro da cidade. Um tiro no crânio. E o carro estacionado à margem da estrada. Nenhum vestígio do assassino.

Meu pai nunca teve inimigos, dava-se bem com todo mundo e quase toda a cidade o conhecia. Nós, os filhos, estudávamos nos melhores colégios. Minha mãe o adorava. A polícia ficou tonta. Não sabia a quem atribuir o crime. Nenhum indício, nenhum suspeito.

No dia de sua morte havia sacado uma grande soma em dinheiro ao banco, como sempre fazia. E seus negócios ele mesmo os resolvia. Deixava o carro estacionado nas proximidades do banco, levava uma pasta, um revólver e só. Não queria guarda-costas.

A polícia concluiu finalmente que o assassino só podia ser um assaltante comum. Foram então presos todos os ladrões e suspeitos de terem cometido crimes contra o patrimônio. A nenhum deles, porém, foi possível imputar o latrocínio.

Folheei a novela e por um bom tempo me deixei a cismar. Pensei no meu passado, em César, e quase não consegui dormir. E decidi que hoje procuraria saber onde vivia César. Queria recordar com ele todos os nossos sonhos, todos os nossos sofrimentos, ele por ter tido suas ilusões tão duramente mortas, eu por ter perdido meu pai de maneira tão bárbara e misteriosa. Como pudemos nos esquecer tão depressa, apesar daquela amizade quase apaixonada que nutríamos um pelo outro? Como somos fracos, débeis, inconstantes!

Onde, porém, eu poderia encontrá-lo? Detrás de um balcão de loja? Na cozinha de um restaurante? Ou teria conseguido realizar seus sonhos literários, pelo menos os mais modestos? Ou teria ido embora para bem longe? Talvez até estivesse morto.

Não, não adiantava fazer suposições. Mais fácil procurar seu nome na lista telefônica. Se não estivesse tão mal, certamente teria um telefone. Tentei lembrar-me de seu nome completo. Lamentei mais uma vez a fragilidade do coração humano. Como pude esquecer tão facilmente o nome de meu melhor amigo? Ainda bem que a novela se encontrava comigo, e, com toda certeza, nela estaria o nome inteiro, um sobrenome pelo menos. Corri os olhos e li: César Augusto dos Reis, no alto da capa.

Hoje disquei o número e atendeu uma voz grossa e autoritária. “Quero falar com o novelista César Augusto dos Reis”. A voz do outro lado se mostrou aborrecida: “Não existe nenhum novelista aqui. Quer deixar de brincadeiras, meu senhor.” Apresentei-me. Ele se fez de esquecido ou de fato não se lembrava mais de mim. Depois se disse surpreso: “Não sabia que você ainda era gente”. Conversamos mais. Quis saber de minha vida. “Sou advogado. E você?” Falou em barzinho, dificuldades, “aturando esses bêbados dia e noite”. Pedi o endereço.

O barzinho chama-se “Restaurant Carnivorous”, serve pratos da cozinha internacional, recebe a fina-flor da sociedade e é irmão de outros dois e de um prédio de doze andares.

César mandou dizer por um moleque de recados que não podia receber ninguém. Em um minuto deveria sair para compromisso inadiável. Não dei ouvidos ao recado e entrei no escritório. E só saí de lá uma hora depois.

Falamos da morte de meu pai, de comércio, de literatura e artes plásticas, do passado, de nossos sonhos, mil coisas, tudo de forma desordenada, como se quiséssemos falar todas as palavras ao mesmo tempo. Contou-me sua história: antes de adquirir o primeiro barzinho, trabalhou como garçom, copeiro e cozinheiro. O barzinho rendia alguma coisa, até se transformar num bar de verdade. O bar virou restaurante. “Tudo porque sou muito controlado e trabalhador. Não ando esbanjando dinheiro”.

Surpreendi-me diante de tanta riqueza e fui para casa desconfiado não sei de quê. E todo o passado voltou à tona, aos borbotões, feito vômito. Relembrei todas as nossas conversas, todos os sonhos, todos os projetos, a novela, tudo. E me interroguei com mil perguntas: por que César não publicou o livro, não virou o escritor que desejava ser, se tem tanto dinheiro? E se havia dito numa de nossas últimas conversas que nada o impediria de se transformar num grande homem, famoso, reconhecido por todos! Como um barzinho podia ter se transformado num restaurante daqueles em tão pouco tempo?

Não durou muito aquele vômito e voltei ao restaurante. Da porta gritei: “César, você matou o meu pai”. Ele quis explodir, gritar, correr, agredir. Apontei-lhe o revólver e ele se rendeu.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

sábado, 10 de novembro de 2018

Trova 327 - Olympio Coutinho (Belo Horizonte/MG)


Mário Quintana (Os Sonetos e Doutor Quejando)


Lili, ao revelar-me um dia umas composições suas - onde os lugares-comuns esvoaçavam com toda a novidade da inocência muito se espantou do meu espanto pelo fato de que os títulos nada tinham a ver com o texto. Explicou-me que um dos sonetos se chamava João porque era o nome de um seu amiguinho de escola e o mesmo se dava com o soneto chamado Sofia.

Ora, ora, me quedei pensando, não estaria ela com a razão? Já teve a poesia o seu período temático, como a pintura. Daí, hoje, a desnecessidade de títulos, nas telas como nos poemas. O que, cronologicamente, não é bem assim, tanto que Camões e Petrarca se limitavam a numerar os seus sonetos, nem é de crer que assim fizessem simplesmente por falta de imaginação. Deixemos, pois, de generalizações, que levam sempre a becos sem saída. E, em troca, este "soneto" que improvisei naqueles tempos para Lili, quando a sua mania, além de chamar tudo de soneto, era meter, em tudo, a palavra "POIS":

O Doutor Quejando, pois, vinha andando andando, quando encontrou o carneirinho Mé em companhia da vaquinha Bu.

- Olé! Como vais tu? - disseram-lhe os dois.

O Doutor Quejando continuou andando, mudo.

Mas na cerca havia um urubu. Mudo.

E o Doutor Quejando e o urubu trocaram um horrivel olhar de simpatia.

E o pior de tudo é que se acabou a história... Se acabou a história e a vida continua.

Fonte:
Mário Quintana. Caderno H. Porto Alegre/RS: Globo, 1973.