terça-feira, 23 de abril de 2019

Monteiro Lobato (A vida em Oblivion: Os três livros)


1908

A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraquejasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além. Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde ramalzinho.

O mundo esqueceu Oblivion, que já foi rica e lépida, como os homens esquecem a atriz famosa logo que se lhe desbota a mocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem esperança, é humilde e quieta como a do urupê escondido no sombrio dos grotões.

Trazem-lhe os jornais o rumor do mundo, e Oblivion comenta-o com discreto parecer. Mas como os jornais vêm apenas para meia dúzia de pessoas, formam estas a aristocracia mental da cidade. São “Os Que Sabem”. Lembra o primado dos Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de Oblivion.

Atraídos pelas terras novas, de feracidade sedutora, abandonaram-na seus filhos; só permaneceram os de vontade anemíada, débeis, faquirianos. “Mesmeiros”, que todos os dias fazem as mesmas coisas, dormem o mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assuntos, esperam o mesmo correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam do presente e pitam – pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo.

Entre as originalidades de Oblivion uma pede narrativa: o como da sua educação literária.

Promovem-se três livros venerandos, encardidos pelo uso, com as capas sujas, consteladas de pingos de vela – lidos e relidos que foram em longos serões familiares por sucessivas gerações. São eles: La mare d’Auteuil, de Paulo de Kock, para o uso dos conhecedores do francês; uns volumes truncados do Rocambole, para enlêvo das imaginações femininas; e Ilha maldita, de Bernardo Guimarães, para deleite dos paladares nacionalistas. O dono primitivo seria talvez algum padre morto sem herdeiros. Depois, à força de girarem de déu em déu, esses livros forraram-se à propriedade individual. Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole diz na rodinha da farmácia:

– Onde andará o Rocambole?

Informam-no logo, e o candidato toma-o das mãos do detentor último, ficando desde esse momento como o seu novo depositário. Processo sumaríssimo e inteligente.

Quando se esgotou a minha provisão de livros e, ignorante ainda da riqueza literária da terra, deliberei decorrer ao estoque local, dirigi-me a um dos Seis. O homem enfunou-se de legítimo orgulho ao dar-me os informes pedidos.

– Temos obras de fôlego, poucas mas boas, e para todos os paladares. Gênero pândego, para divertir, temos, “por exemplo”, La mare d’Auteuil, de Paulo de Kock. Impagável!

– Obrigado. De Koch, nem a tuberculina.

– Temos o célebre Rocambole, “gênero imaginoso”; infelizmente está incompleto; faltam uns dezessete volumes.

– Não me serve o resto.

– E temos uma obra-prima nacional, a Ilha maldita, do “nosso” Bernardo Guimarães.

Parando aí o catálogo, era forçoso escolher.

No concerto dos nossos romancistas, onde Alencar é o piano querido das moças e Macedo a sensaboria relambória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o mato, para a roça – mas uma roça adjetivada por menina de Sion, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados do mau contador. Não existe nele o vinco enérgico da impressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte perfeitas e invariáveis amenidades. Nossas desajeitadíssimas caipiras são sempre lindas morenas cor de jambo.

Bernardo falsifica o nosso mato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinhos, Bernardo aponta doçuras, insetos maviosos, flores olentes. Bernardo mente.

Mas como mente menos que o Paulo de Kock ou o truculento Ponson, pai do Rocambole, escolhi-o.

Veio o livro. Volume velho como um monumento egípcio e como ele revestido de inscrições. Cada leitor que passava ia deixando o rastro gravado a lápis.

“Li e gostei”, dizia um, “Li e apreciei”, afirmava certa senhorita. Inscrição quase em cuneiforme rezava “Fulano leu e apreciou o talento do grande escritor brasileiro”. Outro versificava: “Já foi lido – Pelo Walfrido”. Tal moça notara parcimoniosamente: “Li” e assinou. Um amigo da ordem inversa pôs: “Li e muito gostei”.

Houve quem discordasse. “Li e não gostei”, declarou um fulano. O patriotismo literário dum anônimo saiu a campo em prol do autor: “Os porcos preferem milho a pérolas”, escreveu ele embaixo. Monograma complicadíssimo subscrevia isto: “O Rocambole diverte mais”.

E assim, por quanto espaço em branco tinha o livro, margens ou fins de capítulo, as apreciações se alastravam com levíssimas variantes ao sóbrio “Li e gostei” inicial. Havia nomes bem antigos, de pessoas falecidas, e nomes das meninas casadeiras da época.

Os intelectuais de Oblivion bebiam à farta naquela veneranda fonte. Em Bernardo abeberavam-se de “estilo e boa linguagem”, conforme afirmou um; no Rocambole truncado exercitavam os músculos da imaginativa; e no Paulo de Kock, os eleitos, os Sumos (os que sabiam francês!) fartavam-se da grivoiserie permitida a espíritos superiores.

Essa trindade impressa bastava à educação literária da cidade. Feliz cidade! Se é de temer o homem que só conhece um livro, a cidade que só conhece três é de venerar. Veneração, entretanto, que não virá, porque o mundo desconhece totalmente a pobrezinha da Oblivion…

segunda-feira, 22 de abril de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) VII


DECLARAÇÃO DE AMOR

Não te recordas mais? - Dois anos são passados
após aquela noite clara, e aquele mar
que espraiando distante, ouvir nos fez, calados,
os segredos de amor que estava a murmurar.

Nós dois -  Quanta saudade!... Os braços enlaçados
fitávamos sonhando, o azul, cheio de luar,
- e os grãozinhos, de luz, no céu, pulverizados,
numa estrada que além... fugia ao nosso olhar...

- Que mais?... Tudo era belo - e no íntimo casando
a beleza do espaço à beleza da terra
não pude me conter, e os olhos teus fitando

disse: " Que mar feliz!... Que infinito esplendor!...
Que pode haver maior que o céu que tudo encerra
mais belo que esta noite?... E tu disseste: "o amor!"

DEDICATÓRIA N.1

Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara!

Beijos! Saudades! Sonhos! Nem notara
tanta coisa afinal na nossa história...
E este verso – é a feliz dedicatória...
onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então
teu coração, de amor, rindo e cantando,
cantando e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!

DEDICATÓRIA N.2

 Para você, - amigo ou amiga -
que encontraram a minha poesia na rua,
pouca e pobre,
e a adotaram, e a recolheram ao coração...
Todo o meu reconhecimento por essa louca
e nobre ação.

Em nome da minha poesia
agradeço-lhes a pura alegria,
muito mais que alegria: comunhão!

Que é comunhão ou alegria
encontrar quem nos compreenda
quem nos estende a mão

quem partilhe conosco pão e música
na mesma canção.

DERRADEIRA INSPIRAÇÃO

Este é o último verso onde talvez
a tua imagem seja percebida,
- o instante derradeiro em que te vês
a inspirar o meu verso e a minha vida...

Guarda-o depois das linhas que tu lês
morrerás... e hás de ser sempre esquecida...
- não tornarei sequer uma só vez
a falar na lembrança mais querida...

Este é o último adeus que ainda te dou,
- termina aqui a imensa trajetória
que o teu destino sobre o meu traçou...

Daqui por diante... avançarei sozinho,
e nunca mais te encontrarás na história
dos versos que fizer em meu caminho!

DESFOLHANDO

Essa boca, pequena, e assim vermelha,
que ao botão de uma rosa se assemelha,
- quanta vez provocava os meus desejos
desabrochando em flor entre os meus beijos...

Essa boca, pequena e mentirosa,
que diz, tanta mentira cor-de-rosa,
- era a taça de amor onde eu saciava
toda a ansiedade da minha alma escrava ...

Beijando-a, compreendia que eras minha...
Meu amor transformava-te em rainha,
teu amor me fazia mais que um rei...

Agora, tu fugiste... E eu sofro, quando
vejo um outro em teus lábios desfolhando
a mesma rosa que eu desabrochei!...

DESPERTANDO

Escancaro as janelas para o dia
nessa manhã de sol, quente e sadia,
em toda a sua intensa claridade...
E a alma da sombra é expulsa, ante a alegria
da luz que em jorros o meu quarto invade...

E eu vendo luz... Pensei: - ah! Se eu pudesse
- essa minha alma tão sombria e triste,
abrir ao sol que lá por fora existe
dourando as coisas e tornando-as belas!...

E fiquei a pensar: - ah! Se eu pudesse
abrir minha alma aos céus como as janelas!...

DESPETALANDO

Vou traçando estes versos displicentemente

A mão vai caminhando a esmo no papel
como um bêbado andando pela rua
a acompanhar seus passos distraídos...

Vou traçando estes versos indolentemente...
e eles traduzem... vagos... preguiçosos
as saudades e os gozos
que ficaram ressoando em meus sentidos...

Arranco-os... são pedaços de mim mesmo
cheios de ti, de ti que estás presente
dentro do meu amor,

vou traçando-os assim, bem displicente,
a esmo,
- despetalando tudo o que a minha alma sente
como quem despetala alguma flor!...

DIGO QUE ESQUEÇO

Creio que te esqueci... de agora em diante
já não há nada entre nós dois, não há,
- achaste-me orgulhoso e intolerante
e eu te achei menos fútil do que má...

Foi um momento só... foi um instante
essa nossa ilusão, e hoje, onde está
aquele amor inquieto e delirante?
- Bem que pensava: - é falso! morrerá!

Sinto apenas que tenha te adorado,
e que hoje sofra em vão, inutilmente
procurando apagar todo o passado...

Digo que esqueço... que não penso em ti!
- Mas não te esqueço nunca, e justamente
porque fico a pensar que te esqueci.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Leandro Bertoldo Silva (O Menino que Aprendeu a Imaginar)



O livro O menino que Aprendeu a Imaginar já está com data de lançamento confirmada para o dia 30 de abril de 2019, em Padre Paraíso/MG, às 19 horas.
  
O livro O MENINO QUE APRENDEU A IMAGINAR traz a reflexão da fantasia e do lúdico na vida das crianças, a importância de enxergar o mundo através das histórias e de se interagir com o outro através da arte e das simplicidades.

O livro tem o propósito de resgatar o poder criativo da criança, fazer o adulto revisitar suas lembranças e memórias dos tempos em que um simples barquinho de papel era motivo de muitas aventuras num dia de chuva… E o que dizer daquela professora que foi tão importante e faz com que queiramos ser importantes para alguém? E as histórias contadas ao redor da fogueira ou do fogão de lenha… Quem nunca se imaginou viajando pelos lugares e vivendo aventuras?

O MENINO QUE APRENDEU A IMAGINAR sou eu, é você, são nossos filhos e filhas, nossos netos e netas, nossos alunos, nossos pais, nossos avós que, por algum motivo, precisamos todos reaprender a reconectar com nossa criança, nosso Ser e nossa essência.

E então, vamos acordar os sonhos, pois um dia nunca é igual ao outro para quem tem um livro nas mãos…

SINOPSE

Chateado por não ter nada de diferente para fazer, Oswaldo fica dentro do seu quarto cheio de lamentações quando um grande livro de histórias que fica bem no alto da estante cai “sozinho” no chão. O susto, já enorme, aumenta ainda mais quando o menino percebe que não foi um acidente, mas obra do seu brinquedo predileto: um lindo palhacinho de roupas coloridas e chapéu de guizos.

Gesticulando e dando mil cambalhotas, o palhacinho conduz Oswaldo a mundos que ele não conhecia, como a casa de um caçador onde entra, disfarçado de menino, o temível bicho Mapinguari; Vê a chuva cair lá fora levando nas enxurradas um barco de papel e, dentro dele, uma criança cheia de imaginação; E o que dizer de uma professora bem diferente ao apresentar à turma o seu amigo Geógrafo, um Atlas falante?

Repleto de surpresas, a história reserva ainda uma muito maior no final que, certamente, fará meninos, meninas e até adultos terem outros olhos para a leitura e para os livros.

A história base desse trabalho foi publicada na revista AMAE Educando, em 2009, em Belo Horizonte, teve uma montagem de teatro e ganha agora em livro publicado pela Alforria Literária uma nova estrutura e conceito, inclusive nas ilustrações feitas por Adilson Amaral – psicólogo e artista do Vale do Jequitinhonha – trazendo uma proposta que dialoga com a importância da imaginação a partir da leitura e das imagens não sugestionadas para que o leitor crie a sua própria realidade.

Um livro escrito com um grande carinho, não apenas por ser o primeiro infanto-juvenil do autor, mas por se basear em sua própria história de vida e no que acredita.

Fonte:
https://arvoredasletras.com.br/

Vinicius de Moraes (Cãibra)



 Um cacho de gente pendura-se ao meu lado, do estribo do bonde descendo a Presidente Vargas em demanda da Central. Na ponta do cacho, como uma banana não prevista, um mulatinho segura-se ao bonde por apenas dois dedos de cada mão. Numa hora lá, ouço-o dizer:

- Puxa, que cãibra!

Olho a penca humana do meu lugar à ponta do banco. Tenho à minha esquerda um velho que cochila, com toda a pinta de funcionário da Central, os punhos puídos e a gravata desfiando no nó. À minha frente há uma mulata gorda, de pé, ou melhor, no seu impressionante posterior, Vejo, nas caras à minha volta, sinais de imemorial fadiga e paciência, Dir-se-ia que estamos na Índia. A cor de todo mundo é a da desnutrição e da desesperança. Há poucos rostos escanhoados. Muitos olhos trazem sinais de conjuntivite crônica e paira um ar geral de avitaminose dentro do elétrico a transportar lentamente a sua carga humana para a cidade. O sol bate a pino no cacho pendente, como a querer amadurá-lo à força, e rapidamente. Lá de fora chega-me novamente a voz, meio aflita:

- 'Tou com uma cãibra!

Mas ninguém dá atenção. O bonde prossegue um pouco mais, eu de olho no mulatinho de cara contraída, os braços elásticos a abraçar de fora a penca de homens de cerrada catadura. "Ele vai cair..." penso comigo. Mas logo depois acho que não, que ele aguenta mais um pouquinho, porque já por estas alturas estamos atingindo a antiga praça Onze, onde há um ponto de parada. Mas a voz chega novamente, aflitíssima, enquanto eu vejo os dedos do mulatinho com as pontas brancas de esforço, agarrados como garras ao balaústre:

- Não aguento mais essa cãibra!

A queda veio em seguida, mas o "roxinho" era muito safo. Apesar de cair de costas, ele aproveitou o movimento, girou numa espetacular pantana e pôs-e de pé. Foi evidentemente sorte sua o bonde estar a fraca velocidade.

Vi-o ainda sacudindo o braço da cãibra que o tomara, sem qualquer sinal aparente de ferimento ou choque. O seu substituto no cacho ficou olhando, o corpo estirado para fora do bonde, e comentou meio para si mesmo:

- O homem devia 'tar com uma cãibra...

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) A Viagem do Avô - O Suspirar do Fumo



  
A VIAGEM DO AVÔ

      Entrámos em casa, eu amparando a minha mãe. Na sala, meu velho se entregava aos tratamentos da tia. Ela lhe aplicava limpezas e curativos. Minha mãe libertou-se com firmeza dos meus braços e avançou para junto do meu pai, retirando os panos e ligaduras das mãos da irmã.

      - Deixe, eu é que faço isso!

      A tia se arredou. Daí a um momento, porém, ela regressou ao cadeirão onde meu pai estava recebendo tratos e inquiriu a minha mãe:

      - Posso ajudar, mana?

      - Ajudar, pode.

      Deixei as duas entretidas, cuidando de meu pai. Dirigi-me ao alpendre, para confirmar se meu avô já dera conta de si. Mas a sua cadeira permanecia vazia. Olhei para o céu, não fosse ter sido arrebatado por alguma brisa. Até que reparei no seu vulto, por entre a cortina do chuvisco. Lá estava ele, mais lá em baixo, junto ao poço. Parecia debruçado sobre a canoa como se a empurrasse.

      - Meu neto, me ajude a levar este barco até ao rio.

      O velho resvalou com toda a sua ausência de peso. Tombou como uma folha. Então, murmurou:

      - Eu sabia desde o começo: esse chuvisco era ela...

      - Ela?

      - Era Ntoweni que me estava chamando.

      - Não diga isso, avô.

      - É Ntoweni que me está a chamar. Eu queria ficar um bocadinho mais, saborear um tempinho. Mas agora é já momento de eu ir, vamos empurrar o concho...

      - Não, avô. Esse concho não sai daqui.

      - Você não entende? Essa água que está suspensa, essa água não é nenhuma chuva.

      - Como não?

      - Essa água é Ntoweni. É ela que se mudou para o céu. E, pronto, agora acabou conversa. Me ajude a empurrar o barco...

      Recusei. Eu sabia o motivo desse pedido. Segurei o barco como se tivesse medo que, por força divina, ele resvalasse para o rio.

      - Esse barco não sai daqui, avô!

      - Mas qual é o seu medo? O rio não está seco?

      Eu já não tinha palavra. O soluço me amarrava a voz. O avô, então, mudou suas tonalidades. Tocou-me as mãos como sempre fizera quando pescávamos.

      - Eu não estou a partir, meu neto. Eu vou só ver o mar.

      - Mentira...

      - Juro, meu neto. Desta vez é que vou visitar o mar. Você sabe por que é que, antes, eu nunca fui lá?

      - Não, não sei.

      - Porque aquilo era uma partida desses artimanhosos da sua família. Uma partida para se verem livres de mim.

      - Como assim, avô?

      - Se eu fosse lá ao estuário, depois nunca mais poderia voltar

      - Não podia?

      - Me diga, meu neto. O estuário: não é lá que o rio termina?

      - Sim. é.

      - Então, se o rio termina, como é que eu poderia voltar?

      Eu ri-me. Ainda um riso triste. Meu avô estendeu-me o braço como se fizesse menção de me erguer do chão.

      - Vá, agora me ajude.

      Não sei que secreta força me fez aceder. Juntei músculo e tristeza para empurrar a canoa. Lentamente, meus pés se vincaram no chão, corpo jogado de encontro ao peso do barquinho. No início, ainda a embarcação foi cedendo. Mas logo ganhou um peso intransponível. Era demasiado para mim. Foi quando escutei a voz de meu pai:

      - Deixe que eu ajudo, meu filho.

      Os braços fortes dele se aplicaram no ventre da canoa. Ainda levei um tempo a ajustar-me ao espanto. Olhei o rosto do pai à procura de algo em seu olhar. Mas ele guardava o rosto, fixando a canoa. Depois voltei a aplicar-me no esforço e juntos conduzimos a embarcação para o leito seco.

      Chegados ao rio, exaustos, nos derramámos na areia. Estávamos cansados ou o cansaço era um modo de disfarçar a nossa tristeza? Perguntei, então:

      - Por que me ajudou a levar a canoa?

      - Eu não o ajudei a si, filho. Eu ajudei-me a mim.

      O braço sobre o meu ombro me dizia para sentar.

      Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demônios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.

      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.

      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.

      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvisco estava um rio parado.

      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.

      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.

      - A ponte entre eu e você, meu filho.

      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.

      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?

      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.

      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais velho dizia.

      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.

      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.

      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-nos.

      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...

O SUSPIRAR DO FUMO

      Regressámos, eu e meu pai, em silêncio. Nenhum de nós chorava. Mas nós estávamos em pranto, isso ambos sabíamos. O avô ficara dentro da canoa, ancorado no leito seco. Fingira adormecer, apenas para que acreditássemos que nada mais tínhamos que fazer junto dele.

      No caminho, meu pai e eu evitávamos trocar olhares. Subimos a ladeira como quem regressa de um cemitério. Perto de casa, de repente, foi como se esbarrássemos num silêncio. Um silêncio viscoso como a chuva suspensa. Os nossos olhares se cruzaram de espanto.

      - A fábrica!

      Os motores da fábrica tinham parado. As grandes chaminés já não vomitavam fuligens escuras.

      - Os fumos, pai, já não há fumos...

      - Foi o rio, foi o rio! - gritava meu pai.

      E ele estava certo. O rio derrotara a fábrica. Em nosso pensamento certeiro, tudo ganhava razão: a força da água é que alimentava as máquinas. O rio se extinguira, a fábrica desmaiara, os fumos desvaneciam.

      De súbito, deflagraram ventanias e cacimbos, gotas e poeiras, tudo se juntou num redemoinho imenso e subiu nos céus, em girações e vertigens, até se formarem nuvens espessas e cinzentas. Depois, ribombaram trovões tamanhos que eu vi o céu rasgando-se como um papel sem préstimo. E logo se iniciaram as mágicas cintilações no nosso teto. O zinco gargalhava com a chegada da chuva. A tia tombou sobre os joelhos e se benzeu:

      - Louvado seja Deus!

      Foi a alegria total. E pulávamos, dançávamos, festejávamos. As gotas espessas escorriam por nós como se daquele banho fôssemos nascendo. Surpreendeu-me meu pai, tocando-me no ombro:

      Vamos ao rio. Vamos agradecer, meu filho.

      Eu não sabia como se agradece a um rio. À medida, porém, que os meus pés procuravam caminho entre as rochas eu entendia: não era ao rio que iríamos agradecer. Era ao fio do tempo, esse costureiro da água que entrelaçava o pingo da chuva com a gota do rio.

      Já no fundo do vale, meu pai estacou junto a um tronco de árvore. Me aproximei. Ele estendeu o braço para encostar a sua mão sobre o meu peito.

      - Está a ouvir o pilão?

      - Sim, pai - menti.

      O braço dele ampliava o meu pulsar, a veia de um afluindo no corpo do outro. E ele voltou a falar:

      - Sempre foi esse o pilão que bateu por baixo do mundo.

      Então, ele me deu a mão e, assim, mão na mão, descemos até à margem. Eu tinha os olhos grudados nele quando inspirou fundo, como faria ao sair das profundezas da mina. Me senti um mineiro, ganhando fôlego na boca do planeta: também para mim o ar se estreava, límpido e cristalino. Razão tinha a tia, em suas rezas: cristais no céu...

      Meu velhote, depois, se debruçou para recolher o ramo de kwangula-tilo. Foi quando sucedeu: do buraco onde estava espetada a planta desatou a despontar água aos borbotões, gorgolejando por entre a areia. Meu pai juntou as palmas das mãos, em concha, para colher aquele primeiro jorro de água. Essa água nua, acabada de nascer, ele a fez tombar sobre mim. Como se me estivesse dando um novo nome.

      Quando olhei em volta vi que a família inteira se havia ali ajuntado. Os pés descalços das mulheres chapinhavam, num compasso de dança. Aos poucos, a água se vestiu de caudal. E se escutava já o redemoinhar alegre da corrente. O rio refazia as suas margens.

      Segui em rumo contrário à correnteza. Procurava o lugar onde, instantes antes, havíamos deixado o avô. Cruzei com a mãe que rodava, enlaçando meu pai. E mais lá, caminhando rumo à ponte, o aceno de um lenço: minha tia ia ou regressava? E, de súbito, como um faiscar de claridade, junto à outra margem, entrevi a velha canoa. A pequena embarcação já vogava, lenta, ao sabor da primeira ondulação. O coração me atordoava enquanto lutava contra a corrente. O nosso mais velho estaria ainda dentro do barquinho?

      Estaria vivo, poderia eu recolher o seu corpo magro e o trazer de volta a nossa casa?

      - Avô! - gritei.

      E de novo gritei e gritei até deixar de me escutar, a voz submersa no redemoinhar da corrente. Mas o barquinho foi, se dissolveu no horizonte. A última coisa que vi não foi a canoa mas a cabaça tombando das mãos da primeira Ntoweni. E da cabaça irrompendo, fluviosa, a serpente prateada da água.

      Ainda hoje meus passos se arrastam nessa travessia do rio, olhar perdido na outra margem. Meus passos se vão tornando líquidos, perdendo matéria, diluindo-se no azul da correnteza Assim se cumpre, sem mesmo eu saber, a intenção de meu velho avô: ele queria o rio sobrando da terra, vogando em nosso peito, trazendo diante de nós as nossas vidas de antes de nós. Um rio assim, feito só para existir, sem outra finalidade que riachar, sacralizando o nosso lugar.

      Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une? O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo. Ou como eu hoje escrevo milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida.

FIM

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.