segunda-feira, 24 de junho de 2019

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 8


História surpreendente do infeliz Balchuf, que deixou o trono, a título de experiência, nas mãos de um príncipe louco.

 Das Mil histórias sem fim é esta a oitava!

Lida a oitava restam, apenas, novecentas e noventa e duas...

No país de Astrabad vivia outrora um rei perverso e mau chamado Balchuf.

Não tendo filhos, era seu herdeiro um sobrinho - o príncipe Kabadiã -, moço desajuizado e turbulento que vivia a cometer toda sorte de loucuras e estroinices. Raro era o dia em que o futuro rei não praticava uma proeza qualquer.

O rei Balchuf, longe de procurar corrigir-lhe a índole arrebatada e travessa, distraía-se com suas extravagâncias e ria-se quando ouvia contar alguma nova tropelia daquele a quem já chamavam o “Príncipe Louco”.

O povo de Astrabad antevia bem triste os dias que o aguardavam. Entregue a um monarca impiedoso e sanguinário, o país entraria fatalmente em completa decadência. 

Os estrangeiros já fugiam de Astrabad com receio das perseguições, e o comércio arrastava-se onerado e sem ânimo, coberto de impostos exorbitantes.

Um grupo de patriotas, compreendendo que aquele estado de coisas levaria todos à ruína, resolveu conspirar contra o rei, proclamar a República e entregar ao mais digno a direção do Estado.

Houve, porém, entre os oposicionistas um miserável delator que se apressou em levar ao conhecimento do rei o plano deliberado pelos conspiradores.

Enfureceu-se o soberano ao ter notícias de que alguns ricos súditos pretendiam subverter a ordem legal do país, e resolveu castigar implacavelmente os chefes daquele movimento republicano. Mandou degolar alguns, eliminando os mais influentes, desterrou outros, prendeu os suspeitos e confiscou os bens de todos os adeptos da revolução.

Esta vitória não lhe restituiu, porém, a tranquilidade que perdera. O fantasma da revolta continuava a povoar-lhe a mente, como um sonho mau.

“Uma tentativa destas”, pensava, “deixa terríveis germes nos corações dos descontentes e dos vencidos. Se eu não tomar uma providência enérgica, cedo terei de dominar outra rebelião. E encontrarei, porventura, quem me avise a tempo?”

Preocupado com tais pensamentos, resolveu o rei Balchuf mostrar ao seu povo que ele não era tão ruim como os seus adversários faziam crer.

“Para isto”, refletiu maldoso, “vou afastar-me durante um ano do governo e deixar meu sobrinho no trono. Tais loucuras há de ele praticar, tão frequentes serão os seus atos de tirania que quando eu voltar o povo respirará menos oprimido e verá em mim um soberano ponderado e justo.”

Ora, o rei Balchuf fora informado de que o Príncipe Louco dissera várias vezes a seus amigos e companheiros que quando subisse ao poder praticaria, de início, três façanhas espantosas: uma represa das águas do rio Gurgã; a construção de um castelo subterrâneo; e a abolição do véu para as mulheres.

E, antegozando a dura lição que infligia ao país inteiro, esfregava as mãos de contente:

“O primeiro ato de meu tresloucado sobrinho levará o país às portas da miséria; o segundo à ruína completa; e o terceiro à revolução religiosa e à guerra civil!”

E resolvido a pôr em execução, sem mais delongas, o plano diabólico, o rei Balchuf assinou um decreto em virtude do qual seu sobrinho Kabadiã o substituiria no governo pelo espaço de um ano. Ele - o rei - iria, durante esse tempo, fazer uma visita ao seu velho amigo Iezide II, sultão do Hajar.

Foi com verdadeiro pavor que o povo de Astrabad recebeu a nova da viagem do rei e a consequente ocupação temporária do trono pelo Príncipe Louco.

Partiu o rei Balchuf resolvido a regressar dentro do prazo marcado. Preso, entretanto, por uma grave e prolongada enfermidade no longínquo país de Hajar, não pôde voltar senão quatro anos depois.

Chegado a Astrabad, depois de tão longa ausência, notou que os seus domínios haviam progredido extraordinariamente. Um vizir que por ordem do governo veio esperá-lo na fronteira disse-lhe, sem mais preâmbulos:

- Penso que Vossa Majestade não deve tentar reassumir o trono, pois o povo poderia revoltar-se e massacrá-lo.

- Como assim? - exclamou o rei. - Será possível que meus súditos prefiram ser governados pelo Príncipe Louco a ter-me no trono?

- Peço humildemente perdão a Vossa Majestade - recalcitrou o vizir. - Devo asseverar, porém, que Vossa Majestade está completamente equivocado. O príncipe Kabadiã está governando admiravelmente o país. Até hoje, não havíamos encontrado um chefe de Estado de mais ampla visão e sabedoria!

- É incrível! - protestou o rei. - E a represa do rio Gurgã? E o palácio subterrâneo? E a célebre abolição do véu feminino? Não teria o príncipe praticado nenhuma dessas tão prometidas loucuras.

O vizir explicou, então, ao rei Balchuf que tudo isso e muito mais havia feito o príncipe. A represa do rio Gurgã fora de consequências magníficas, pois as águas espalharam-se pelas terras vizinhas, fertilizando-as e tornando-as mui aperfeiçoadas à agricultura, que logo se desenvolveu; o palácio subterrâneo, depois de construído, tornou-se grande atrativo, e milhares de forasteiros visitaram a capital unicamente para admirar essa nova maravilha, o que para o comércio de Astrabad fora manancial de grandes lucros, e para o país fonte de gerais prosperidades. A abolição do véu feminino fora outra medida de alcance admirável. As raparigas passaram a andar com o rosto descoberto: abandonaram a ociosidade dos haréns e puderam trabalhar livremente não só nos bazares como nas pequenas indústrias. Uma vez condenado o véu, teve o príncipe ocasião de observar que suas jovens patrícias eram belíssimas e resolveu casar-se. Escolheu para esposa uma menina, formosa e inteligente, filha de um grande sábio. A nova princesa exerceu tão boa influência sobre o gênio de seu jovem esposo que o transformou radicalmente. Aconselhado pela fiel e dedicada companheira, o príncipe escolheu bons ministros, esforçados auxiliares, e, bem guiado e melhor secundado, soube modificar bastante o seu gênio irrequieto e impulsivo. Até então não assinara uma única sentença de morte, nem mandara confiscar os bens de nenhum cidadão.

Ao ouvir tão assombrosas revelações, o rei Balchuf ficou pasmado e percebeu que havia perdido para sempre o direito ao trono; jamais poderia ele contar com o apoio de suas tropas ou com a antiga submissão de seu povo.

- Insensato fui eu - confessou ele ao vizir. - Insensato, pois não soube governar o meu povo como ele merecia! Insensato em escolher maus ministros e péssimos conselheiros! Louco era eu quando premiava os vis delatores e perseguia os bons patriotas!

- Agora é tarde para arrependimentos, ó rei - retorquiu com impaciência o vizir. - Volte Vossa Majestade para o país de Hajar e procure acabar lá sossegado os seus dias, que o povo de minha terra não poderá suportá-lo mais!

E, tendo pronunciado tão ásperas palavras, o vizir afastou-se com a sua aparatosa comitiva, deixando o infeliz rei abandonado na estrada, como se fosse um camelo moribundo.

Sentindo-se perdido e sem forças para reconquistar o trono de seus avós, sentou-se o rei Balchuf, tomado de indizível tristeza, numa pedra à margem da estrada, e pôs-se a meditar nos espantosos erros de seu passado e na dolorosa expectativa que lhe oferecia o futuro.

- A morte - exclamou - é para o vencido o caminho mais seguro da reabilitação e do descanso. Devo, pois, morrer!

Um xeque desconhecido que passava no momento pela estrada, acompanhado de seus servos, ao ouvir as palavras de desespero do rei Balchuf, parou o camelo em que ia e assim falou:

- Ó desassisado viandante! Por que te pões, para aí, como um louco, a falar em morrer quando, graças a Deus, há na vida remédio para todos os males? Vem comigo, pois estou certo de que acharei solução para o teu caso!

Vamos olhar, apenas, o lado belo e puro
 Das coisas que circundam este mundo,
 Deixando à margem, voluntariamente,
 Ideias más que vivem no inconsciente
 Como rainhas nefastas do escuro. (1)

- Continua, meu amigo, a tua jornada - redarguiu secamente o rei. - O abismo que se acha diante de mim é intransponível! O problema do meu destino é inexplicável; os versos não me trazem alívio; os conselhos e advertências são, agora, para mim inúteis; os auxílios materiais nada poderão adiantar. Só a morte será capaz de tirar-me da negra situação em que me encontro.

- Estás enganado - contraveio o desconhecido. - Não sei ainda qual é a angústia que pesa sobre teus ombros; ignoro quais são os males que afligem a tua existência. Asseguro-te, porém, que já estive em situação muito pior do que a tua e que logrei salvação precisamente no momento em que decidira morrer. É preciso que a esperança exista sempre em nosso coração. Bem disse o poeta:

Esperança, ventura da desgraça, trecho puro do céu sorrindo às almas, na floresta de angústias e incertezas. (2)

“E por que não crês, ó irmão dos árabes!, na esperança? Serve a esperança de lenitivo para as dores mais torturantes e de bálsamo para as tristezas.”

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada:
nem é mais a existência resumida,
que uma grande esperança malograda! (3)

O xeque do deserto, vendo que o rei continuava taciturno e infeliz, disse-lhe:

- Ouve a história de minha vida e verás se eu tenho ou não razão para confiar no futuro e exaltar a esperança.

E narrou a seguinte e singular história:
_______________________________
Notas
1 Versos do livro Angústia dos Séculos, de Adroaldo Barbosa Lima.
2 Versos de Aníbal Teófilo.
3 Do soneto “Velho Tema”, de Vicente de Carvalho.
___________________________
continua…
__________________________________

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.

sábado, 22 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n.1


ARRAES PEREIRA

O Mendonça Retratista
(1917)


Eu muito me irei de rir
quando for capitalista,
dando sempre que fazer
ao Mendonça retratista.

Em conquistando uma atriz
ou até mesmo uma corista,
vou logo fotografá-la
no Mendonça retratista.

Não há repórter no mundo,
nem tampouco jornalista,
que não conheça o Mendonça,
o Mendonça retratista.

O médico é para o doente;
Tira dentes, o dentista,
mas para tirar retratos,
o Mendonça retratista.

Diz o padre lá na igreja
baixinho para o sacrista:
Olha que tirar retratos
só o Mendonça retratista.

O Mendonça retratista
não sei com quem compará-lo,
se este homem não existisse
era preciso inventá-lo.

Carolina Ramos (Peruíbe)


Peruíbe – “Cidade Alegre” – como a classifica, em seus versos, Maya Alice Ekman, pesquisadora e divulgadora entusiasta das belezas e lendas, fartas, por lá.

Chegamos a conhecer pessoalmente Maya Ekman, em seus derradeiros anos, quando, no livro – Peruíbe – História de suas Origens, Lendas e Contos, definia a cidade como sendo “ Cidade Turística do litoral sul, conhecida pelas belas praias limpas, não poluídas, ar ozonizado, rios, cachoeiras e montanhas ainda não exploradas”. E ainda: - “Peruíbe é uma cidade encantada, que recebe todos os dias a reconstituinte e reformadora neblina orgânica, ozonífera, que faz dela um centro de rejuvenescimento, através do ar que respiramos.” À misteriosa montanha, chamava de “a morada dos deuses.”

Entre as lendas que circulam meio às belezas naturais de Peruíbe, há aquela chamada “Lenda da Pedra”, ou, “O Mistério da Porta e da Janela”, onde costumam aparecer “seres e luzes estranhas”. Contam os indígenas e repetem os historiadores, que, naquele local, havia uma gruta a expelir fogo e fumaça sendo que essa gruta fora fechada pelos “deuses” e marcada em sua porta a figura de uma serpente. A crendice popular acrescenta que, vez ou outra, circula por ali “uma jovem muito alta (mais de dois metros), de longos cabelos louros, envergando, ora um macacão prateado, ora uma túnica branca, trazendo sempre, à altura do peito, a figura de uma serpente”. A aparição entra pelo portal do rochedo e desaparece, enquanto luzes e brilhos estranhos saem da pedra.

A prevenir surpresas, corre de boca a boca o aviso: - “Quem, por perto, observe a cena, acaba por não se sentir bem” - o que, crendo ou não, é bom saber, “para que se deixem as barbas de molho”!

“Castelinho da Prainha” - Este é outro fato que enriquece o folclore de Peruíbe. É voz corrente que um bruxo reside no tal “Castelinho da Prainha”, e, que, algumas vezes, tal bruxo aparece à janela que se abre para o mar. Há até quem jure tê-lo visto!

“Noiva da Praia” – Abandonada pelo noivo, no dia do casamento, reza a tradição que a triste noiva, vez ou outra, passeia solitária pela praia de Parnapuã e alguns garantem tê-la visto... e mais de uma vez!

A Lenda dos Vagalumes, minuciada por Maynard, e outras mais, comprovam a fertilidade do imaginário peruibense, preservador da aura mágica que cerca de misterioso encanto esta bonita cidade praiana.
 
Fonte:
Academia Peruibense de Letras. ROSA DO ABISMO.  9ª Coletânea da Academia Peruibense de Letras. São Paulo/SP: All Print Editora, 2018.

Bulhão Pato (Livro D’ Ouro da Poesia Portuguesa vol. 10) 1


FELIZ DE AMOR!

Não sabes que ao ver-te triste,
E pensativa a meu lado,
O rosto na mão firmado.
E os olhos postos no chão,
Calado, ansioso, anelante,
Quero ler no teu semblante
A causa da dor constante
Que te oprime o coração?

Pois não basta o meu amor
Para te dar a ventura?
Responde: quando a luz pura
Do sol vem beijar a flor,
Não lhe acende mais a cor?
Não lhe dá mais formosura?

Agora, quando se inflama
Em teu peito aquela chama,
À qual tudo se ilumina
De viva, encantada luz,
Dize: é quando, minha vida,
Pálida, triste, abatida,
A tua fronte se inclina,
E melancólica sombra,
De mal contida amargura
Nos teus olhos se traduz?!

Certeza de que és amada
Com quanto poder na terra
Em peito de homem se encerra,
Tem-la em tua alma gravada!
Então de fundo desgosto
Por que vem nuvem pesada
Carregar teu belo rosto?
Pois se ao vívido calor
Do sol a rosa fulgura
E redobra aroma e cor,
Não te há de dar a ventura
A chama do meu amor?!

VAIS PARTIR!

Vais partir! cada instante que passa
Aproxima o adeus derradeiro,
Para mim neste mundo o primeiro,
Que teus olhos proferem aos meus!
Vais partir! nessas mórbidas pálpebras,
Treme agora uma lágrima ansiosa,
Já desliza na face formosa,
Já teus lábios me dizem adeus!

Vais partir! contemplar esses campos,
Que o sol vivo de abril ilumina,
Ver as relvas da alegre campina
Já cobertas agora de flor.
Escutar as estrofes sentidas
Que de tarde improvisam as aves,
Recordar os instantes suaves
De outros dias de encanto, e de amor.

Vais partir! vais tornar aos lugares
Testemunhas de um céu de delícias,
Que em suaves risonhas carícias,
Para nós neste mundo brilhou!
Cada flor, cada tronco viçoso,
Cada espaço de relva florida
Vai lembrar-te uma cena da vida,
Um momento feliz que passou!

Quando for aos clarões da alvorada
O perfume das plantas mais brando,
Quando as aves voarem em bando,
E cantarem ditosas no vale;
Quando as águas correrem mais vivas,
Pelo verde declive do monte,
Quando as rosas erguerem a fronte
Animadas de um sopro vital...

Que saudade! ai que funda saudade
Hás de ter desse tempo encantado,
Em que bela e feliz a meu lado
Viste as pompas da terra e dos céus!
Quando a aurora era a pura alegria,
Uma vaga saudade o sol posto,
Quando meigo sorria teu rosto
Se eu fitava meus olhos nos teus!
.............................................
Vais partir! cada instante que passa
Aproxima o adeus derradeiro,
Para mim neste mundo o primeiro
Que teus olhos proferem aos meus!
Vais partir! nessas mórbidas pálpebras,
Treme agora uma lágrima ansiosa,
Já desliza na face formosa,
Já teus lábios me dizem adeus!

IMPROVISO

Por que lânguida essa frente
Decai, quando a tarde expira?
Por que nesse olhar dormente
Tua alma ingênua suspira?

Por quê? ai! por quê? responde;
Que se amor do céu procura,
Ei-lo; em meu peito se esconde;
Vive, é teu, tens a ventura!

Verás como então brilhante,
Seduz, toma vida, inspira,
Esse teu belo semblante,
Que apenas hoje se admira!

QUEM NÃO AMA, NÃO VIVE

Pois não vês que se a luz do sol nascente
À rosa na manhã desabrochada,
Não ilumina as folhas, desbotada
Fica na haste pendente,
Sem perfume, sem vida abandonada?

Dize: então queres tu que a formosura
Que o Senhor estampou no teu semblante,
Sem renome, sem glória, passe obscura
No mundo em que radiante
Ostentar-se podia majestosa?
Queres vê-la abatida como a rosa
Que o sol não ilumina?

Pois o que falta a essa fronte bela?
Oh! vais sabê-lo: — O amor!
Que se anime e reviva à luz divina
E verás se depois alguém ao vê-la
Lhe nega o seu fulgor!

AMANHÃ!

Resta um dia, mais um dia,
Algumas horas ainda
De amor, de ternura infinda!
Amanhã nos olhos teus,
Uma lágrima sentida;
Em teus lábios, um adeus!

O instante da despedida
Tão perto está!... Minha vida,
Crava teus olhos nos meus,
Um sorriso, um beijo ainda,
Mais uma hora de ternura,
De amor, de alegria infinda
Antes desse longo adeus!

Adeus de tanta amargura!
Sabe Deus! oh! sabe Deus,
Quando outros dias virão,
Tão gratos ao coração!
Quando nessa face linda
Verei sorrir a ventura;
Mas agora um beijo ainda
Antes que chegue o momento
De soltar o extremo adeus!

Oh! tira do pensamento,
A hora da despedida;
Mais um instante de vida,
De delícia e glória infinda!...

Amanhã!... ai! não te lembres
De tal dia de amargura!
Crava teus olhos nos meus;
Inda uma hora de ventura,
De amor, de alegria infinda
Sorrindo nos olhos teus:
Um beijo, mais outro ainda,
O derradeiro: oh! adeus!

ANJO CAÍDO

Na flor da vida, formosa,
Ingênua, casta, inocente,
Eras tu no mundo, rosa!
Quem te arrojou de repente
Para o abismo fatal!
Viste um dia o sol de abril;
O teu seio virginal
Sorriu alegre e gentil.

Ergueu-se aos clarões suaves
Daquela doce alvorada
A tua face encantada.
Amaste o doce gorjeio
Que desprendiam as aves,
E no teu cândido seio
Quanto amor, quanta ilusão
Alegre pulava então!

Mal haja o fatal destino,
Maldita a sinistra mão,
Que em teu cálix purpurino
Derramou fera e brutal
Esse veneno fatal.

Hoje és bela; mas teu rosto
Que outrora alegre sorria,
É todo melancolia!
Hoje nem sol, nem estrela,
Para ti brilha no céu;
Mal haja quem te perdeu!

Fonte:
Bulhão Pato. Versos. Publicado originalmente em 1862. Livro Digital por Iba Mendes (Editor e revisor ortográfico). 2. Ed. São Paulo: Iba Mendes, 2018.

Arthur de Azevedo (Como Eu me Diverti!)


CONTO-COMÉDIA

PERSONAGENS:


JORGE (empregado no comércio)

O COMENDADOR ANDRADE (negociante, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia)

UM MÉDICO

DONA MARIA (excelente senhora de meia idade, estabelecida com casa de alugar cômodos a moços solteiros)

A ação passa-se no Rio de Janeiro, em quarta feira de cinzas. Atualidade.

ATO ÚNICO

A cena representa a sala e a alcova que Jorge ocupa em casa de Dona Maria. Atirado sobre um velho canapé um hábito de frade encardido de suor e sujo de lama. No chão, um par de luvas, igualmente sujas, e um nariz de papelão quase a desfazer-se, preso a uns grandes bigodes e a um par de óculos.
CENA I

Dona Maria, o Médico.

O MÉDICO
Que tem ele?

DONA MARIA
Não sei, doutor, não sei. O senhor Jorge tem muito bom coração, mas tem muito má cabeça: é doido pelo Carnaval.

O MÉDICO
Gabo-lhe o gosto.

DONA MARIA
Ontem vestiu-se de frade, pôs aquele nariz postiço e andou, num carro todo enfeitado de flores, ao lado de uma sujeita que mora no Hotel Ravot, acompanhando um préstito (cortejo). Só o vestuário da pelintra lhe custou perto de oitocentos mil-réis!

O MÉDICO
Quem lhe disse?

DONA MARIA
Os meus hóspedes não têm segredo para mim.

O MÉDICO
Adiante.

DONA MARIA
Para se não constipar, o pobre moço levou consigo, por baixo do hábito, uma garrafa de conhaque e de vez em quando atiçava-lhe que era um gosto! Quando o préstito passou pela primeira vez na Rua do Ouvidor (eu estava lá...) já ia o frade que não se podia lamber! Depois na Rua da Constituição — isto sei eu por um amigo dele, que tudo viu — outro moço, também fantasiado, bifou-lhe a pelintra, e isso deu lugar...

O MÉDICO
...a um rolo! Pudera!...

DONA MARIA
Racharam-lhe a cabeça!

O MÉDICO
Naturalmente.

DONA MARIA
E o demônio do rapaz andou toda a noite, de cabeça rachada, à procura da tal mulher, dos Fenianos para os tenentes e dos Tenentes para os Democráticos, bebendo sempre, até cair na Rua do Fogo, às três horas da madrugada!...

O MÉDICO
Com efeito!

DONA MARIA
A polícia levou-o para a estação da travessa do Rosário, e pela manhã uns amigos que tinham sido avisados, trouxeram-no para casa.

O MÉDICO
Onde está ele?

DONA MARIA
Naquela alcova. Há cinco horas que ali está deitado, sem dar acordo de si. Por isso, mandei chamá-lo, doutor.

O MÉDICO
Fez bem. Vamos vê-lo.

(Entram na alcova)

CENA II
Jorge, o Médico, Dona Maria.

(Na alcova, Jorge está de cama, com a cabeça amarrada, os olhos fechados, os braços caídos. O Médico, ao ver o enfermo tem um movimento que escapa à Dona Maria)

O MÉDICO (tomando o pulso do doente)
Não tem febre. (Depois e examinar-lhe a cabeça) O ferimento nada vale... Já lhe puseram uns pontos falsos; é quanto basta... O seu hóspede tem apenas o que os estudantes chamam “uma ressaca”; precisa de descanso e mais nada. Quando voltar a si, se quiser tomar alguma coisa, dê-lhe uma canja, dois dedos de vinho do Porto misturado com água de Vichi, um pouco de marmelada, e disse. Se amanhã continuar incomodado, que tome um laxante.

CENA III
O Médico, Dona Maria.

(Na sala).

O MÉDICO (tomando o chapéu)
A senhora não imagina como estimei por ter sido chamado para ver este senhor Jorge. Foi uma providência.

DONA MARIA
Por que, doutor?

O MÉDICO
Conheço-o, mas não sabia que se tratava dele. É o namorado, quase noivo de minha afilhada, filha do meu amigo Raposo. A menina gosta dele, e o pai já estava meio inclinado a consentir no casamento; tinham-lhe dado boas informações sobre este pândego. Agora, porém, vou prevenir o compadre, e dissuadir minha afilhada, que é muito dócil e me ouve acatamento.

DONA MARIA
Valha-me Deus! e sou eu a culpada de tudo isto!

O MÉDICO
Culpada, por quê?

DONA MARIA
Por ter mandado chamar o padrinho! Pobre rapaz!...

O MÉDICO
A senhora deve estar, pelo contrário, satisfeita, por ter indiretamente contribuído para este resultado. (Voltando-se para a alcova) Que grande patife! namorar uma menina pura como uma flor, e andar de carro, publicamente embriagado, em companhia de uma prostituta.

DONA MARIA
No carnaval tudo se desculpa.

O MÉDICO
Nada! — eu sou o padrinho, o segundo pai daquele anjo! (Vai saindo)

DONA MARIA (tomando o Médico pelo braço)
Doutor, doutor, não vá assim zangado com o senhor Jorge... não diga nada à família da menina... Ah! se eu soubesse... Mas que quer?... Vejo que este hóspede tem segredos para mim... (O doutor tenta safar-se). Ouça doutor... ele tem um bom emprego... é muito estimado pelos patrões...

O MÉDICO
E a minha afilhada tem um dote de cento e cinquenta contos.

DONA MARIA (aterrada, largando o braço do Médico)
Cento e cinquenta contos!

O MÉDICO (saindo)
Fora o que lhe há de caber por morte do pai! (Chegando à porta, para, volta-se e diz:) Canja... vinho do Porto... água de Vichi... marmelada... e disse! (Sai)

CENA IV
Dona Maria, depois Andrade.


DONA MARIA (fica perplexa, de olhos baixos, na atitude de Fedra, quando diz)
Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui? *

(É despertada bruscamente pelo Comendador Andrade, que entra com espalhafato)

O COMENDADOR (gritando)
Onde está o senhor Jorge?

DONA MARIA (consigo)
Um homem zangado! É ele, é o pai da menina!

O COMENDADOR
Senhora, pergunto-lhe pelo senhor Jorge!

DONA MARIA
Está doente... naquela alcova... dorme...

O COMENDADOR
Já me contaram as façanhas que ele praticou esta noite! (Apanhando o nariz postiço) Cá está uma prova! (Atira-o longe)

DONA MARIA
Desculpe-me essa rapaziada, e não lhe negue a mão da menina. O Comendador — A mão da menina! Que menina?

DONA MARIA
Sua filha.

O COMENDADOR
Minha filha? Qual delas? Pois este mariola ainda por cima se atreve a erguer os olhos para uma das filhas do seu patrão!

DONA MARIA
Do seu patrão? Ah! então não é o senhor Raposo?

O COMENDADOR
Que Raposo, nem meio Raposo! Eu sou o Comendador Andrade, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia! — O senhor Jorge está dormindo, disse a senhora.

DONA MARIA
Sim, senhor.

O COMENDADOR
Pois bem; quando acordar, diga-lhe que eu aqui estive, e o ponho no olho da rua! Que apareça para fazermos as contas!

DONA MARIA
Atenda, senhor Comendador!

O COMENDADOR
A nada atendo! A casa Andrade, Gomes & Companhia não pode ter empregados que se embriagam e passam a noite no xadrez! Era o que faltava! (Sai arrebatadamente).

CENA V
Jorge, Dona Maria.

(Na alcova, Dona Maria sai).

JORGE (abre um olho, depois o outro, olha em volta de si, certifica-se que está em sua casa, dirige à Dona Maria um sorriso de agradecimento, solta um longo suspiro, e exclama com voz rouca e sumida)
Como eu me diverti!
_________________
Nota do blog:
* Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui?  (Juste Ciel! - literalmente é Apenas o Céu! Mas é expressão utilizada também como se fosse "Mon Dieu!"). 
 qu’ ai je faite aujourd’hui? (Que eu fiz hoje?). Juntos, no texto acima, tomam um tom de lástima.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Escrita em 1883. Digitalização e revisão ortográfica por Iba Mendes. São Paulo, 2017.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Academia Peruibense de Letras (Poesias Escolhidas)


EDWALDO CAMARGO RODRIGUES
Cadeira n. 28

Morar no litoral

A casa tão sonhada à beira-mar. Da rede
estendida no alpendre ensombrado por densas
samambaias, diviso as gradações extensas
das serras a distância esvaírem-se. Cede

aos poucos o calor da tarde. Vindo a sede
saciar, os colibris das campânulas pensas
dos lises ao redor voam. Tornam-se intensas
as sombras vesperais. E a calma que precede

a noite enfim se instala, ao cessar repentina
a arenga da cigarra. Acendo a lamparina,
e logo a multidão de frementes falenas

espalha em torno a mim misteriosa alternância
de sombras e clarões. E é como desde a infância
eu tenho desejado: esta ventura apenas.

Elizabeth Cury Bechir Watanabe
Cadeira n. 34

Rio Itanhaém

Vislumbrando a beleza
da boca da barra,
o rio, que realeza!
Barcos retornando,
fim de pescaria
temporal anunciando...

Admirada paisagem
refletida no espelho
das águas do rio.
Momento prazeroso,
profunda paz...

Sapucaitava mais verdejante
cercado de seus habitantes
nesta tarde pacata,
esbanjando tranquilidade...

ESTHER FELICIDADE R. ROMANO
Cadeira n. 13

Perfume de âmbar

Teu suave perfume de âmbar
Inebria meus sentidos
Teu corpo vibra
Ao toque de tua mão
Me perco no universo
Desse amor tão lindo
Envolvida em teus braços
Nessa mágica paixão

Adormeço serena
Nesta noite inebriante
Sentindo em teu peito meu abrigo
Ouvindo o pulsar do teu coração
Essa doce lembrança
Guardarei comigo
Desses momentos sublimes
Que passei contigo.

JOÃO LÍBERO ROSA MARQUES
Cadeira n. 31

O Retorno

Lentamente o homem abriu o portão.
Parou, resistiu à imensa vontade de voltar,
E angustiado pensou como seria a reação dela,
Ao vê-lo voltar depois de tanto tempo.
O cachorro latiu, alerta, quando abriu o portão.
Ao reconhecê-lo, o amigo fel parou de latir
E começou a pular freneticamente, contente.
O homem ajoelhou, abraçou o cachorro,
E, emocionado, começou a soluçar.
Após se recompor, levantou-se, olhou,
E lentamente foi em direção a casa.
Passou pela porta devagar e estacou.
A sala estava silenciosa e fresca,
Com um leve cheiro de cera e lavanda,
Exatamente como ele sempre lembrava.
Olhou feliz e com os olhos marejados
Para os quadros e fotos na parede,
De tantas lembranças e tão familiares.
A mulher parada na porta do corredor
Olhava ansiosamente para ele, que,
Absorto, olhando as fotos e os quadros,
Não a ouviu entrar, quando de repente,
Um soluço baixo o fez olhar em sua direção.
Soluçando, a mulher abriu os braços amorosa,
Dizendo que o amava e que era bem vindo!
Ele rompeu num choro convulsivo e libertador,
E toda sua angustia e medo se foram.
Quando ela o abraçou com grande amor,
Disse que estava arrependido e pediu perdão.
E chorando falou: - Eu te amo, Mãe e voltei pra ficar!

JOSÉ ROMEU DUTRA
Cadeira n. 22

Minha Jovem

Deitei em teu colo,
Em tuas areias,
Adormeci.
Na brisa que o vento traz,
A mistura de aromas,
Da mata,
Do mar.
Aos olhos,
O imponente,
O majestoso,
Sempre inspirador,
Itatins.
Verdejante sentinela,
Guardando às costas,
A terra procurada,
Riqueza de teu seio,
Peruíbe,
Minha jovem amada.

MARTHA ZELIA ZACHAR FUJITA
Cadeira n. 18

Muito além

Sonhei que andava na praia,
e nas águas via passar
cenas da minha vida...
Nas ondas que quebravam,
via os momentos difíceis,
onde me sentia morrer...
Mas, a vida continua
e somos eternos aprendizes...
Amar a si mesmo,
para saber amar ao próximo...
Não viver sem ver a vida.
Não sofrer pelo passado.
O presente é passageiro...
A existência perde
o sentido do existir.
Forte diante da vida,
aceito o tempo que sobra
para ainda ser feliz.
A vida não é em vão…

TEREZINHA F. DO NASCIMENTO DANTAS

A Rosa do Abismo

Por que chora rosa do abismo
Perdida em um recanto só;
Entre as árvores da mata
Neste abismo que dá do?

Choro a solidão
De ter perdido o meu paraíso;
Perdida neste abismo
Não diviso um sorriso.

Trago uma recordação
Do mundo em que vivi;
Era a mais bela das rosas
Beleza igual, nunca vi.

Um dia eu fui banida
Pelo Senhor do jardim;
Porque era muito orgulhosa
Da beleza que havia em mim.

O Senhor então me disse:
Vai para o abismo aprender;
A humildade é uma virtude
Pra nunca mais esquecer.

Me achava melhor que as outras
Humilhava sem compaixão;
Hoje neste abismo me sinto
Sou livre, nesta prisão!

Fonte:
Academia Peruibense de Letras. ROSA DO ABISMO.  9ª Coletânea da Academia Peruibense de Letras. São Paulo/SP: All Print Editora, 2018.

Afonso Arinos (A Tapera da Lua)


No tempo em que as amazonas andavam ainda pelas margens do seu grande rio, havia uma tribo de índios cuja aldeia ficava junto de uma lagoa tranquila, nas fraldas da serra chamada então Taperê e hoje do Acunã. Uma guerra infeliz reduziu a tribo a dois sobreviventes, irmão e irmã dos mais belos de sua raça, que ficaram sozinhos no alto da montanha.

Então disse ao irmão a irmã:

— Ó meu querido irmão! Como és homem e forte, ficarás aqui no alto do Taperê enquanto eu desço à nossa aldeia, às margens da lagoa. Armei tua rede nos castanheiros e deixei ao lado as minhas lindas flechas. As flores das parasitas que crescem nos ramos suavizarão o teu sono com o seu aroma. Adeus!

— Adeus até quando?

— Até quando te acordarem os mais belos pássaros, cantando à luz da manhã.

E a índia desceu com o passo incerto, os olhos tristes de veada ferida, mostrando na estranha palidez um aperto no coração.

Ao entardecer, seu corpo leve de adolescente balouçava na rede selvagem, ataviada de penas multicores, que os raios do sol poente irisavam. Enoitou-se a aldeia e já o oitibó tinha saído do seu esconderijo, quando a moça, tremula, ofegante, arrastada por uma força estranha, procurou o caminho da serra, em demanda da rede armada nos castanheiros.

Ela sentiu amor! Foi no momento
Em que sozinha, em meio à natureza
Ouviu a selva segredar ao vento,
A estrela à cascata, à correnteza!

Ninguém conhecerá o segredo desse meu tormento! suspirava ela. Amá-lo-ei na treva; serei de dia sua irmã!

Quando à rede chegou, a branda aragem
Do sassafrás batia pelas frestas;
Escuridão no céu, pálida arfagem,
Saltos nos matos das cutias lestas...

E toca a rede... a rede se estremece...
— Quem és? Sussurra um beijo e a voz falece...

Três vezes a índia apaixonada subiu a montanha e três vezes voltou à deserta aldeia escondendo na solidão e no negrume da noite o segredo do seu criminoso amor.

Mas na última vez o moço gentio, querendo desvendar o mistério, usou de um estratagema: tingiu o rosto com as tintas do urucum e do jenipapo, que vicejavam ali, para marcar a face da cauta visitante, ao primeiro beijo.

E quando ao nascer do sol, já na sua aldeia, à margem da lagoa, a moça enamorada foi mirar-se no espelho das águas — horror! — viu no próprio rosto as manchas negras do seu crime.

Então, salta sobre o arco, toma das setas de combate e desprende a primeira para o céu. Outra a seguiu e mais outra e outra e — ó milagre dos gênios que habitam as montanhas azuis! — uma longa e aérea cadeia se formou como uma escada de flores convidando-a a subir aos paramos.

Ela subiu e transformou-se em Lua. Desde então, triste e solitária, errando pelo espaço, mira-se nas águas da lagoa, na corrente dos rios e nas vagas do mar, a ver se ainda tem as manchas do rosto.

Fonte:

Caldeirão Poético XXV


ALPHONSUS DE GUIMARAENS  
Ouro Preto/MG, 1870 – 1921, Mariana/MG

Deixa que o olhar...

Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes, se mostrasse?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Desse amor, que minh`alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo.

Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.

AUGUSTO DOS ANJOS  
Cruz do Espírito Santo/PB, 1884 – 1914, Leopoldina/MG

 A Aeronave

Cindindo a vastidão do Azul profundo,
Sulcando o espaço, devassando a terra,
A Aeronave que um mistério encerra
Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera
Ei-la embalada n'amplidão dos ares,
Fitando o abismo sepulcral dos mares,
Vencendo o azul que ante si s'erguera.

Voa, se eleva em busca do infinito,
É como um despertar de estranho mito,
Auroreando a humana consciência.

Cheia da luz do cintilar de um astro,
Deixa ver na fulgência do seu rastro
A trajetória augusta da Ciência.

CRUZ E SOUZA  
Florianópolis/SC, 1861-1898, Antonio Carlos/MG

O Coração

O coração é a sagrada pira
Onde o mistério do sentir flameja.
A vida da emoção ele a deseja
Como a harmonia as cordas de uma lira.

Um anjo meigo e cândido suspira
No coração e o purifica e beija...
E o que ele, o coração, aspira, almeja
É sonho que de lágrimas delira.

É sempre sonho e também é piedade,
Doçura, compaixão e suavidade
E graça e bem, misericórdia pura.

Uma harmonia que dos anjos desce.
Que como estrela e flor e som floresce
Maravilhando toda a criatura!

GUILHERME DE ALMEIDA  
Campinas/SP, 1890 – 1969, São Paulo/SP

Barcos de Papel

Quando a chuva cessava e um vento fino
Franzia a tarde tímida e lavada,
Eu saía a brincar, pela calçada,
Nos meus tempos felizes de menino

Fazia, de papel, toda uma armada;
E, estendendo o meu braço pequenino,
Eu soltava os barquinhos, sem destino,
Ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
Que não são barcos de ouro os meus ideais:
São feitos de papel, são como aqueles,

Perfeitamente, exatamente iguais...
- Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!

HUMBERTO DE CAMPOS  
Miritiba (hoje Humberto de Campos)/MA (1883 – 1934) Rio de Janeiro/RJ

O Irapuru

Dizem que o irapuru, quando desata
A voz - Orfeu do seringal tranquilo -
O passaredo, rápido, a segui-lo,
Em derredor agrupa-se na mata.

Quando o canto, veloz, muda em cascata,
Tudo se queda, comovido, a ouvi-lo:
O canoro sabiá susta a sonata,
O canário sutil cessa o pipilo.

Eu próprio sei quanto esse canto é suave;
O que, porém, me faz cismar bem fundo
Não é, por si, o alto poder dessa ave:

O que mais no fenômeno me espanta,
É ainda existir um pássaro no mundo
Que se fique a escutar quando outro canta!

JORGE DE LIMA 
União dos Palmares/AL, 1853 – 1953, Rio de Janeiro/RJ

O Acendedor de Lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela! "
Mas a estrela, fitando a Lua, com ciúme:

- "Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela..."
Mas a Lua, fitando o Sol, com azedume:

- "Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume! "
Mas o Sol, inclinando a rútila capela:

- "Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"

OLAVO BILAC   
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Benedicite!

Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o teto;
E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;
E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto,
Fez, aos beijos do sol , o ouro brotar do trigo;

E o que o ferro forjou, e o piedoso arquiteto
Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;
E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;
E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo;

E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;
E o que inventou o canto; e o que criou a lira;
E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...

Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,
Descobriu a Esperança, a divina mentira,
Dando ao homem o dom de suportar o mundo!