sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Malba Tahan (A Dançarina Hindu)

As palavras com números entre parênteses após elas, veja significado nas notas ao final do conto.
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Ao atravessar, naquela tarde, a secular praça de El-Madhi, avistei um jovem e elegante cheique, de turbante verde, que saía do "ha-mã" (1) acompanhado de dois escravos negros. Mal pousara em mim os olhos, o desconhecido veio ao meu encontro e saudou-me à maneira clássica dos árabes nobres:

- Allah badich, ia sidi! Deus vos conduza, senhor!

- Katter quhairag - respondi, agradecendo. - Que Allah torne felizes os dias de tua vida, ó jovem!

E certo de que não me seria difícil, num rápido "haddis" (2) descobrir a identidade daquele amável muçulmano, disse-lhe com a intenção de provocá-lo a uma ligeira  palestra:

- Já sabes, meu amigo, que amanhã, ao nascer do sol, se Allah quiser, partirei para Basra chefiando a grande caravana de mercadores?

- Já sei, sidi - respondeu-me. - Estou bem-informado de todos os recursos de que dispõe a nossa caravana!

E o cheique acentuou bem a expressão "nossa caravana", fitando em mim os seus olhos vivos, com o disfarçado desejo de ler nos meus a surpresa que suas palavras deveriam causar-me.

Ualá! Nossa caravana? Eu conhecia todos os mercadores, guias e cameleiros; não havia, entre os homens que me acompanhavam - desde o beduíno sem nome ao mais orgulhoso chamir (3) um só que me fosse estranho. Como admitir que aquele desconhecido pertencesse ao número dos "meus viajantes"?

- Sou o cheique Fauzi Jabor, auxiliar do sultão Al-Mamum! - disse-me. - Devo ir a Basra levar uma ordem secreta para o governador. O grão-vizir já não vos falou a meu respeito?

Sim, era verdade. Recebera, dias antes, do primeiro-ministro, uma ordem para conduzir até Basra um emissário do califa. Já não era, aliás, a primeira vez que me acontecia levar nos ricos cheqdefs (4) da caravana mensageiros, escribas e agentes da corte muçulmana.

- Sinto-me feliz, ó cheique - tornei eu - por saber que vou tê-lo como companheiro de jornada. Que as grandes alegrias e os violentos simuns nos encontrem sempre juntos. A amizade desinteressada dos nobres só pode honrar aos aventureiros do deserto!
    
E, enquanto conversávamos alegremente como velhos amigos, íamos caminhando, lado a lado, pelas ruas mais movimentadas. A pequena distância, os dois escravos negros, os braços cruzados sobre o peito, nos acompanhavam solenes.

- Em que pretendeis ocupar, afinal, as vossas horas, em Bagdá, até o momento da partida? - perguntou-me o cheique.

- Penso em despedir-me de alguns amigos.

- Despedidas? - É tarde demais para tão ingrato passatempo! Informado pelos meus auxiliares de que seria obrigado a partir amanhã, à hora do "sefer" (5) já apresentei aos bagdalis (6) o meu salã (7) da ausência. Vou ver agora a famosa bailarina hindu que chegou ontem de Mossul. Dizem que é linda como a gazela. Queres ir comigo, chefe?

E vendo-me indeciso, insistiu, risonho, puxando-me pelo braço:

- Emchi narruhh! Vamos! Emchi narruhh! 

Há duas coisas que o árabe não sabe recusar: a tâmara quando é doce, e o convite interessante quando é amável!

- Emchi naíhbad! - respondi. - Vamos!
* * *
                 
A escrava que nos recebeu à porta, ao ouvir o nome do cheique, deixou-nos entrar imediatamente e conduziu-nos por um longo corredor, até uma sala espaçosa, ricamente 
decorada, onde já se achavam três outros visitantes.

Fauzi Jabor conhecia os presentes e a cada um deles dirigiu um afetuoso sala:

- Masa al-qhair, cheique!

- Kif el-solha, cheique!

Sentei-me numa grande almofada. Uma circassiana trouxe-me belo narguilé de prata com a brasa já preparada. Sentia-se no ar um cheio embriagador de fumo e haxixe.

Um dos visitantes, depois de trocar algumas palavras com um velho que se achava a seu lado, descruzou, lentamente, as pernas, levantou-se vagaroso como um elefante e veio acomodar-se junto de mim. Era barrigudo e disforme; usava turbante alto, malfeito, sob o qual aparecia um rosto redondo, esverdinhado, cheio de máculas escuras. Tinha os olhos vidrados, acéticos, tristonhos. 

- Uma palavra, cheique - disse-me, quase em segredo. - És o chamir da grande caravana que parte hoje (8) para Basra?

- Julgo que sim - respondi, sem procurar disfarçar a má vontade com que mal o podia tolerar.

Insistiu, impertinente, com a voz cada vez mais elevada.

- Dize-me, então, que ordem misteriosa é essa que o jovem Fauzi Jabor vai levar ao governador de Basra?

- Lamento não poder informar-vos. Excelência (9) - retorquiu, abespinhado. - Não sou um "djin" (10), nem aprendi com os marabus da Pérsia a descobrir pela cor da lua o segredo das coisas ocultas. Posso assegurar-vos que nem mesmo o meu nobre amigo Fauzi Jabor conhece os termos da carta de que é portador. É uma ordem secretíssima do nosso amo e senhor, o glorioso califa Al-Mamum, Emir dos Crentes. Só Allah sabe a verdade!
       
O meu inquiridor fez-se cor de cal, levantou-se visivelmente contrariado e foi retomar o lugar em que se achava, rosnando contra mim ameaças descabidas:

- Algum dia, "chamir", a tua discrição será causa de uma desgraça!

E ia eu intimamente desejar que a alma daquele estúpido fosse presa de Cheitã (11), o Execrável, quando Fauzi Jabor, o cheique, surgiu conduzindo, orgulhoso, pela mão, a formosa dançarina hindu.

Ao vê-la, fiquei deslumbrado. Jamais o destino fizera com que se me deparasse na vida criatura mais sedutora. Não fosse a barreira do pecado, não teria dúvida em elegê-la, naquele mesmo instante, a sexta mulher perfeita do Islã (12).

Fauzi Jabor não fazia empenho em ocultar que estava apaixonado pela infiel. E quem seria capaz de censurá-lo? A dançarina tinha, a meu ver, as treze perfeições que Allah, o Clemente, concede às huris do Paraíso. Treze? Treze, não. Treze menos uma, com certeza!

Com espanto dos circunstantes, a bailarina apontou para mim com seu braço nu:

- É aquele, Fauzi, o teu amigo chefe da grande caravana?

Levantei-me, respeitoso, e disse-lhe:

- Lála (13), não passo de um humilde beduíno do deserto. Seria, entretanto, capaz de enfrentar uma legião de panteras, se depois de tal proeza houvesse de ter por prêmio, a honra de ser incluído no número de vossos escravos!

Nazira - assim se chamava a bailarina - sorriu, lisonjeada.

- Mach Allah! Se me permitissem os distintos amigos aqui presentes, eu gostaria de dizer algumas palavras, em segredo, ao chamir da caravana!

- Pois não! Pois não! - exclamaram os cheiques.

Fauzi Jabor disse-me:

- Acompanhai Nazira, ó beduíno feliz! Ela confidenciou-me que tem um pedido a fazer-vos!

Atravessei a sala contando meus passos pela indizível timidez que me dominava. Ao passar junto do indiscreto barrigudo esverdinhado, o repelente cheique segurou-me pelo braço e bafejou no meu ouvido:

- Cuidado, chamir! Essa mulher tem um mistério qualquer na vida! Cuidado!

Levou-me a bailarina para um aposento vizinho. Uma escrava persa, com gestos lânguidos, ofereceu-me, num prato dourado, frutas, doces secos e um delicioso vinho de Chipre.

A bailarina, cruzando as pernas, numa atitude graciosa, sentou-se a meu lado. Um perfume esquisito evolava-se de rico hattarak (14); pequenina lâmpada azul, sobre um camelo de bronze, derramava pelas coisas uma aparência de mistério.

Chegava vagamente aos meus ouvidos o som triste de um alaúde.

- Já te disseram, chamir - começou Nazira, num tom mavioso de paciência - que eu tenho na vida um mistério? É inútil negar. Ouvi perfeitamente a insinuação daquele detestável chacal, que desde Mossul me vem perseguindo com suas toleimas. Infelizmente não é mentira. Pesa sobre a minha existência o tormento de um segredo. Já colhi a teu respeito, chamir, várias informações; estou certa de que és honrado, valente e discreto.

- Senhora! Outra recompensa não quero senão os elogios que brotam dos vossos lábios bondosos!
       
Nazira prosseguiu:

- Preciso do teu auxílio, chamir. E para que possas, com segurança, dispensar-me o teu amparo, é mister que conheças previamente o tão falado "mistério" de minha vida.

- Aos treze anos - começou, com suave mágoa - casei-me, por imposição de meu pai, com um gramático de Medina, homem perverso, avarento e sem escrúpulos. Antes mesmo que nascesse o nosso primeiro filho, meu marido vendeu-me a um aventureiro sírio, chamado Kaslã, que exibia pelas cidades bailarinas escravas. Foi então que aprendi o triste ofício que hoje exerço. Quando nasceu o meu filho, resolvi consultar sobre o seu futuro um certo marabu de Medina, que sabia ler na areia o destino das criaturas. Disse o marabu: - "Tua beleza, mulher, será a causa da morte de teu filho!" Chorei, desesperada, ao saber que o Destino havia escrito na página de minha vida tão trágico sucesso. Dizem os cristãos que é possível, às vezes, alterar-se a marcha dos acontecimentos. Que fazer? Mutilar-me? Sim, pensei nessa solução desesperada. Com dois ou três golpes seguros de punhal eu conseguiria, como uma selvagem africana, deformar para sempre as linhas perfeitas do meu rosto. Kaslã, informado desse hediondo projeto, ameaçou-me de morte! Por Allah! O gramático avaliara a minha beleza em vinte camelos de sela! - "Se tens medo do Destino - dizia-me - separa-te de teu filho. Manda-o para outra cidade, para outro país. Longe de ti ele estará salvo da previsão do marabu; a tua beleza não lhe poderá fazer mal algum". Segui tal conselho, que me pareceu razoável e certo. Mandei meu filho para Basra com alguns bons peregrinos que regressavam de Meca. E desde esse dia nunca mais tornei a vê-lo. Sei que vive ainda; é forte, e belo! Tem agora dezoito anos; chama-se Tasib Zalã e é muito estimado pela honrada família que o adotou.

- E agora, chamir - concluiu Nazira, com voz trêmula - que estás de posse do grande segredo de minha vida, vou dizer-te qual o favor que espero merecer da tua boa-vontade. Quero que procures em Basra meu filho Tassib; perguntarás por ele ao muezim da mesquita de Shara-Sawa. A meu filho entregarás esta pequena caixa na qual reuni, durante dez anos, algumas economias. Com esse auxílio meu filho poderá casar-se sem recear as mil dificuldades da vida.

E a bailarina colocou-me nas mãos uma pequena caixa repleta de moedas de ouro.

- Lála - exclamei - o filho querido receberá o prêmio da dedicação materna! Juro por Allah, o Exaltado, que empregarei todos os esforços a fim de fazer com que esta valiosa dádiva chegue às mãos daquele a quem é destinada!

E voltamos em silêncio para o salão. Fauzi Jabor e os outros cheiques divertiam-se com uma jovem escrava que cantava ao som de um alaúde um belo poema de Antar.

Todos os olhares convergiram, curiosos, sobre mim.

Assaltaram-me com desencontradas perguntas:

- Que te disse a bailarina? Qual é o mistério de Nazira? Que desejava ela, antes de partir a caravana?

- Não sei - respondia sempre aos importunos. - Não sei.

E não houve quem percebesse que eu escondia, sob o meu largo "keffié" de seda, a pequenina caixa cheia de ouro.

Nazira - a pedido dos cheiques - resolveu executar a chamada Dança do Dragão.

Aproximei-me de Fauzi e disse-lhe:

- Vou deixar-vos, cheique! Já vai adiantada a noite. Pouco falta para que o muezim chame os fiéis à primeira prece. Quero verificar se os camelos estão carregados, as tendas arrumadas e se os guias estão nos seus lugares.

- Está bem - respondeu-me o cheique. - Vou ficar aqui, neste delicioso refúgio, mais algum tempo. Na hora da partida - é certo - lá estarei com meus ajudantes e servos.

- Por Allah! Qualquer atraso será grande transtorno para a caravana!

A formosa dançarina, com seus trajes coloridos e vistosos, executava, diante de um grande tapete, onde aparecia a figura fabulosa de um dragão, uma das danças características da Pérsia antiga.

Tive a impressão de que o dragão fantástico rondava a bailarina, prestes a devorá-la. A fatalidade - dizia El-Hadira (15) - é como o dragão da lenda; cai de repente sobre a vítima para esmagá-la com as garras do Infortúnio!
* * *
    
A caravana estava pronta. Até os ajudantes de Fauzi Jabor, com os seus trinta e cinco camelos perfilavam-se já nos seus lugares.

Terminada a prece, disse aos guias da frente:

- Não é possível partir neste momento. O emissário do califa - pessoa da mais alta distinção, - ainda não chegou, mas não deve tardar. Sem ele a caravana não partirá. Esperemos.

Fauzi Jabor, entretanto, apesar do prometido, não aparecia.

Sentia-se que a impaciência agitava os beduínos. Um dos mercadores perguntou-me:

- Por quem esperamos, chamir? Será possível que a caravana fique o dia inteiro parado ao sol, à espera de um príncipe folgazão que se diverte com bailarinas?

Respondi-lhe, num tom áspero, que não admitia réplica:

- Aqui quem manda sou eu! Se não te serve a caravana, o deserto é livre! Podes ir!

E submissos, sem revolta, os homens por mim chefiados esperaram.

Infelizmente, porém, só no dia seguinte, ao pôr-do-sol, foi que Fauzi Jabor deixou a casa da formosa bailarina.

E a grande caravana, com um dia e meio de atraso, ganhou lentamente a estrada do deserto.

Os cameleiros resmungavam, maliciosos:

- A bailarina é bela! A caravana que espere! Os grandes albornozes brancos, soltos no ar, pareciam pássaros gigantescos que surgiam da terra.
* * *
    
Depois de uma jornada feliz - assim quis Allah, - entramos em Basra.

Havia, quando chegamos, na praça de Moalhim, um grande ajuntamento de populares. Informaram-me de que ali também se achava o governador Ahme-Ibn Makula, com seus auxiliares e escribas. Sem perda de tempo fui ter à presença do cádi, saudei-o respeitosamente e apresentei-lhe, em seguida, o chefe Fauzi Jabor, que se achava, então, a meu lado.

- Allah conserve o cádi! - exclamou o jovem Fauzi, aproximando-se. - O califa Al-Manum, Emir dos Crentes, ordenou-me que fizesse chegar às vossas mãos esta mensagem. Que Allah conserve o cádi!

O poderoso governador de Basra tomou da carta que o cheique trouxera, tirando-a com vagar do sobrescrito.

- Lamentável! - exclamou o governador, mal havia terminado a leitura do breve documento.

- Não posso infelizmente atender ao que determina aqui o glorioso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor! Esta ordem chegou-me tarde às mãos!

- Como assim? - interroguei, assustado. - O atraso com que chegamos teria sido causa de alguma desgraça?

- É verdade, chamir - concordou o cádi.

- Lamentável! - exclamou o Governador, mal havia terminado a leitura do breve documento. Esta ordem chegou-me tarde às mãos.
    
- A mensagem que o jovem Fauzi Jabor trouxe de Bagdá era da maior importância; tratava-se de uma ordem do sultão para que fosse comutada a pena de morte de um condenado. O perdão do nosso generoso califa nada mais adianta; o infeliz prisioneiro foi executado hoje, pela manhã!

Naquele momento - sem que eu pudesse explicar o motivo -, um terrível pensamento atravessou-me o espírito. Era bem verdade que a famosa bailarina tinha sido, indiretamente, culpada da morte do condenado, pois fora ela quem, com seus encantos, prendera o cheique em Bagdá, retardando por muitas horas a partida da caravana!

- E como se chamava - perguntei - o infeliz que foi executado por não ter chegado a tempo a ordem do califa?

Um dos oficiais do cádi respondeu:

- Chama-se Tassib Zalã, o poeta, e era natural de Medina!

Ouviu-se um forte ruído metálico. Era a caixa de Nazira, que eu trazia oculta, presa sob o braço, e que por descuido meu caíra inesperadamente ao chão. As moedas de ouro espalharam-se pela areia. Fiz com que o valioso presente fosse repartido entre os pobres. Na verdade, a pessoa, a quem era destinado aquele ouro rutilante, não precisava mais das recompensas do mundo, pois já havia comparecido ao julgamento de Deus!
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Notas
1- Ha-mã – Casa de banhos.
2- Haddis - Conversa ligeira. Troca de palavras.
3- Chamir - Chefe de caravana.
4- Cheqdef - Espécie de palanquim, colocado sobre o camelo.
5- Sefer - Prece feita ao nascer do sol.
6- Bagdali - Indivíduo natural de Bagdá.
7- Sala - Saudação dentro do Islã.
8- Para os árabes a noite precede o dia. A noite do dia 7, por exemplo, começa ao pôr-do-sol do dia 6. 
9- Excelência - Tratamento dado aos vizires do sultão. Aplicado a qualquer pessoa é ironia.
10- Djin - Gênio dotado de grande poder.
11- Cheitã - Demônio.
12- Segundo as crenças muçulmanas, as mulheres perfeitas foram em número de cinco, e figuram, imortais, no Alcorão.
13- Lála - Tratamento respeitoso; significa senhora.
14– Hattarak – Vaso especial em que se queimam perfumes.
15– El-Hadira – Antigo poeta árabe.

Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Ialmar Pio Tressino Schneider (Melhor Idade)


Para voltar a escrever
Meus versos de campo e mato
Em minha mente retrato
Histórias do meu rincão,
Onde ao redor do fogão
Ouvia-as em noites frias,
Qual se fossem elegias
De nobre Revolução!

Nascido lá em Sertão,
Distrito de Passo Fundo,
Saí para rolar mundo,
Mas nunca tive coerência,
Pois não deixei a querência
E fui levando meus dias,
Curtindo minhas poesias,
Motivo desta existência.

É preciso ter paciência
E sempre confiar em Deus,
Porque nos desígnios Seus,
Só nosso Bem Ele quer;
Vamos cumprir o mister
De atingir os ideais,
Sem esmorecer jamais,
Para o que der e vier.

Nem esqueçamos sequer
De Sua bênção pedir,
Sabendo-se que hão de vir
Coisas boas pra o destino,
Pois nosso ser é divino
Nas Sagradas Escrituras;
Sejamos as criaturas
Sem cometer desatino.

E para entoar este hino
Em louvor ao Pai Supremo,
Aqui me encontro e não temo
Alguma contrariedade,
Pois me acompanha a saudade
De tudo quanto já fiz,
E espero viver feliz,
Hoje, na Melhor Idade...

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Arthur de Azevedo (Paulino e Roberto)


O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.

Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, – possuir um escrínio de magníficas joias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – frequentar bailes e espetáculos, – tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho.

O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou sem dote.

Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:

– Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto!

– Oh! Vespasiano! não digas isso!…

– Digo, sim!, senhor! digo e redigo… – Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!.

– Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.

– Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?

– Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

– Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!

– Exageras.

Pode ser; mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.

* * *

Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida.

Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro.

Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.

Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

* * *

Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.

– Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes… – Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.

Escusado é dizer que mudou de nome.

Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o "encabulasse", arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio.

* * *

Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide.

Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora.

O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.

Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio Apa; ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto.

Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: – Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! -; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.

– Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.

* * *

Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem pôr.

Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição. 

Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e disse-lhe:

– Eu logo vi que você me dizia que não!

Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

– Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!

Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:

– Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!

– Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim!

Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.

(Correio da Manha; 5 de abril de 1903)

Fonte:
Arthur Azevedo. Contos Vários.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVII


PRELÚDIO DA GOTA D' ÁGUA

Cheio da tua ausência me angustio
a cada hora que passa... a cada instante...
- pelo meu pensamento, como um fio,
és uma gota d'água, tremulante...

 Uma gota suspensa e cintilante,
 límpida e imóvel como um desafio...
 Tua ausência, - é a presença triunfante
 daquela gota que ficou no fio. . .

 As outras todas, céleres, pingaram,
 e caíram na terra onde secaram,
 só tu ficaste, última gota, assim

 como uma estrela sem ter firmamento,
 suspensa ao fio do meu pensamento
 e a brilhar, sem cair... dentro de mim...

PROCURA

Vou seguindo meu caminho
a procurar-me.

Estarei na estrela?  Na vaga do mar? 
Atrás da montanha?  Na água que corre
estarei?

Na rua, no avião, no pássaro livre
no gesto do galho, na gota de chuva,
na rosa vermelha, no canto da criança
estarei?

Difícil é achar-me
disperso me encontro
na face das coisas
que chegam, que passam

Um olho no rio, um pé no caminho,
o sangue na aurora, as mãos pelo mar,
quem sabe onde estou?

Talvez passe junto a mim mesmo, quem sabe? 
Me olho nos olhos, me toco nas mãos,
me falo e respondo
não me reconheço.

Vou seguindo meu caminho
a procurar-me.

PROFECIA

Enamorada de ti mesma,
- no espelho das águas que refletem tua beleza,-
enamorada da vida,
tu te ofereces ousadamente e te debruças distraída
sobre a correnteza...

Um dia, tuas ramagens ferirão o espelho das águas
e tudo se nublará,
teu corpo sem firmeza tombará finalmente,
e a correnteza há de te arrebatar
indiferente
e má...

Só então, quando te fores arrastada, em desvario,
vendo a terra fugir, sem poderes voltar,
sentirás como é fria a água turva do rio
e inquietante a ameaça, o mistério do mar!

QUE IMPORTA SE CHOVE?

Que importa se chove?  Eu não vejo a tristeza do céu
eu vejo é a alegria da terra.

Que importa se a chuva nos espia curiosa
com seus olhos nublados, nas janelas. . .

Eu não vejo a tristeza do céu, eu sinto é a alegria da terra
que exulta no teu corpo,
eu vejo é o Sol que brilha nesta noite de chuva
em teu olhar ...

Eu não ouço a música da chuva na noite
nem o vento a bater nas arestas das casas
- ouço é a alegria das folhagens inquietas
batendo as asas ...

Que importa se chove, e se há vento, e se há frio,
- se aqui no nosso leito há carinho e calor?

Minha alma não quer sentir a chuva,
nem olhar com tristeza os que passam na rua
ao relento,
porque minha alma se comove.

Neste momento
minha alma quer ficar é juntinho da tua...
- e ... que importa se chove?

RAZÕES
    
Pensarás que é mentira e é no entanto verdade
- mas me afasto de ti, propositadamente,
pelo estranho prazer de sentir que a saudade
ainda torna maior o coração da gente...

Parto! Bem sei que parto sem necessidade!
Quero ver os teus olhos turvos, de repente,
embora não compreenda essa felicidade
que assim te faz sofrer comigo inutilmente!

Quero ouvir-te na hora da despedida
que eu volte bem depressa para a tua vida,
- quero no último beijo um soluço interior...

Que enquanto ficas só, e enquanto vou sozinho,
sabemos que a saudade vai tecendo o ninho
que há de aquecer na volta o nosso eterno amor!

RECEIO
    
Receio  de que o anos passem, - e eu sozinho
me deixe para trás, e reconheça então
que fiquei sem ninguém a meio do caminho
e meu sonho de glória esboroou-se no chão

Receio de ser tarde,  e quando erguer a mão
a flor cair... cair a flor... ficar o espinho...
Receio de que seja apenas ilusão
a ilusão que ideei a afago com carinho...

Receio de que tudo afinal seja nada,
- e a noite, a grande noite inesperada e escura
me atropele o percurso em meio da jornada...

Receio de que um grito estrangule o meu hino,
- e eu tenha que parar, na infinita amargura
de não ter completado o meu próprio destino!

ROSA DE VIDRO

Rosa de Vidro
límpida rosa
mistério puro
imagem só.
Quem te plantou?
Quem te regou?
Na luz flutuas
na sombra és luz!
Rosa de vidro
do pensamento.

Tão transparentes
são tuas pétalas
como o ar de ouro
na alta montanha.
Súbita imagem
de escuro abismo,
no alto da rocha
cheia de sol
toca-te o vento
oscilas, cantas.

Rosa de Vidro
doce mistério
da fixa ideia,
estrela mágica
de cinco pétalas
que os cinco dedos
querem tocar.

Rosa de Vidro
Minha obsessão,
que no mistério
da criação
brotou, brotou.
Louco alpinista
quero alcançar-te,
raro Edelweíss
quem sabe, quando?

Quem sabe, a queda
antes de ver-te
e de tocar-te
Rosa de Vidro.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. 
SP: Ed. Theor, 1965.

David Martins (O Alcaide do Castelo de Faria)


Convido-o, caro leitor, a empreender uma viagem no tempo. Assim, imagine-se transportado ao ano de 1373 da era cristã. A paisagem que o rodeia é aquela que ainda hoje é típica do Norte de Portugal, serranias atrás de serranias, ora áridas e pedregosas, ora vastidões de prados e florestas a perder de vista na lonjura do horizonte.

No cimo de um ermo monte, ergue-se uma fortaleza de grossas e altas muralhas de escuro granito encimadas de torres e ameias. Não lhe faltam alçapões, postigos, a ponte levadiça e o fosso circundante.

Você encontra-se diante do Castelo de Faria, uma construção fortificada muito antiga.  Às pedras dos seus robustos muros não faltam recordações de glórias passadas.

O Reino de Portugal é governado pelo rei Dom Fernando, um homem cujo caráter não prima nem pelo cumprimento das promessas feitas nem pelos compromissos assumidos. Foi, assim, que em vez de se casar com a filha do rei de Castela conforme tinha sido acordado entre os dois soberanos, Dom Fernando decidiu casar com Leonor Teles, uma mulher muito bela, mas casada, que se tornara sua amante.

Com o pretexto de vingar tão grave e ofensiva afronta pela quebra do contrato, o exército do rei de Castela invade o território de Portugal, atravessando a fronteira em locais distintos. Um desses batalhões castelhanos composto por muitos soldados, uns a pé, outros a cavalo, entra pela fronteira Norte. À sua passagem, os soldados vão incendiando, saqueando, violando e matando tudo e todos os que se deparam no seu caminho, deixando atrás de si um rasto de destruição e sofrimento nos aldeões e camponeses que não têm culpa das desavenças contratuais entre os dois reis vizinhos.

Os exércitos particulares comandados pelos senhores feudais daquelas terras, súditos do rei de Portugal, não são suficientes para fazerem frente aos espanhóis, a quem nada nem ninguém consegue deter o avanço por terras de Portugal. Num destes confrontos participou o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves, que caiu prisioneiro das tropas castelhanas.

Na ausência do alcaide, o castelo é governado pelo seu filho. O pai teme que, sabendo da sua desgraça, o filho ofereça o castelo ao inimigo para resgatar a liberdade do seu progenitor. Este receio fez com que o velho alcaide se lembrasse de montar um ardil para impedir que uma tal situação viesse a acontecer: Nuno Gonçalves pede ao comandante das tropas castelhanas que o conduza até às muralhas do seu castelo para que ele fale ao filho e, assim, possa convencê-lo a entregar a fortificação sem derramamento de sangue para nenhum dos lados.

Diante dos seus olhos, caro leitor, desfila agora um numeroso grupo de homens que acompanha o velho alcaide. Chegam às cercanias do castelo e formam como que um cordão humano que rodeia completamente a construção. O exército vitorioso prepara-se para tomar posse do castelo, conforme lhe prometeu o prisioneiro.

Agora você usa as roupas de lã, iguais às de todos os habitantes da aldeia de Faria. São vestimentas grosseiras de gente que apenas vive daquilo que a terra lhes dá. De facto, neste momento, você é um deles. Vê brilhar ao longe, tal como os seus vizinhos, o metal das armaduras dos soldados inimigos, refulgentes sob a luz intensa do Sol, e as suas coloridas bandeiras que esvoaçam ao vento. Você, juntamente com todos os seus companheiros, homens, mulheres e crianças, está assustado e juntamente com eles, todos abandonam os campos e as vossas casas e correm a refugiar-se dentro das muralhas, num terreiro onde toscas choupanas de teto de colmo se apoiam umas nas outras.  Todos pensam que aí vão encontram proteção contra a violência e a brutalidade que sempre acomete os homens quando lhes põem uma arma nas mãos e lhes dão impunidade para cometerem toda a espécie de atrocidades.

Sobre as muralhas, os sitiados desenvolvem intensa atividade. Os homens que estão de atalaia nas torres vigiam atentamente os movimentos do inimigo, enquanto outros correm ao longo das ameias, colocando-se em posições estratégicas de defesa.

Um grupo de castelhanos armados aproxima-se das muralhas levando consigo o velho alcaide. Os besteiros do castelo, escondidos por detrás das ameias, retesam as bestas e apontam-nas na direção da comitiva. Os homens que acionam as armas de arremesso e outros engenhos bélicos preparam-se para cumprir a sua tarefa. 

Do grupo de combatentes castelhanos, destacou-se um arauto que se aproximou das muralhas exteriores.  Nas ameias as bestas inclinaram-se para o chão e ouviu-se o ranger das máquinas de lançar projéteis. Fora isto, o silêncio é profundo.  Por fim, ouve-se, ao longe, a voz grossa e altissonante do arauto que chama o filho de Nuno Gonçalves, bradando-lhe que saia do castelo e vá até junto de seu pai que quer falar-lhe.

O filho do velho alcaide, de nome Gonçalo Nunes, aparece no alto da muralha exterior e responde-lhe:

- Diz a meu pai que eu o espero aqui e que Nossa Senhora o proteja.

O arauto regressa para junto dos seus superiores e, após alguma agitação entre eles, o grupo aproxima-se da muralha ladeando o alcaide-mor que fala ao filho:

- Sabes tu, meu filho, de quem é este castelo?

- Sei que é de El Rei de Portugal, que o confiou à vossa guarda.

- Então se sabes, com Judas o traidor sejas tu sepultado no inferno se os castelhanos entrarem nele sem passar primeiro por cima do teu cadáver.

Compreendendo o sentido do diálogo entre os dois, logo ali o comandante castelhano ordena que matem o velho alcaide, que caiu trespassado por muitas espadas.

- Defende-te, alcaide! - tem ainda forças para gritar ao filho o pai moribundo.

O novo alcaide corre como um louco ao longo das muralhas, gritando por vingança.

Do alto das muralhas chovem flechas sobre os soldados castelhanos, que atingem mortalmente muitos deles.

O batalhão castelhano reúne todas as suas forças e ataca o castelo. As casas de colmo onde os mais desprotegidos, você e os seus vizinhos da aldeia se abrigaram, começaram a arder, resultado das flechas incendiadas desferidas do exterior do castelo. A confusão é enorme. Por todo o lado se ouvem os gritos das mulheres, o choro das crianças, as imprecações dos velhos. Um homem em chamas sai a correr, desvairado, dos abrigos de colmo e rebola-se no chão a gritar por socorro. Despejam-lhe baldes de água em cima, mas tudo o que fica é um corpo enegrecido, a estrebuchar, agonizante. Os gritos de terror dos feridos elevam-se no ar juntamente com os rolos de fumo do incêndio e o forte e repugnante cheiro a carne carbonizada.

O jovem alcaide não consegue esquecer a terrível visão do seu pai, morto a golpes de sabre, nem as últimas palavras que ele lhe gritou antes de entregar a alma ao Criador: - “Defende-te, alcaide!”

O cerco dura vários dias. A carnificina de ambos os lados das muralhas foi atroz, o sofrimento é indizível. Tanta dor e destruição que razão alguma justifica. Você e todos dentro das muralhas deambulam exaustos, esfomeados e com sede, revoltados por terem sido os peões no tabuleiro de xadrez onde se jogaram questões que não vos dizem respeito. O orgulhoso comandante das tropas invasoras acaba por ver a sua soberba abater-se contra os muros do castelo de Faria, quando o desalento atinge os poucos homens que lhe restam. 

Você e os seus companheiros de infortúnio regressam à aldeia de Faria onde encontram as vossas casas assaltadas, o gado tresmalhado pelos campos ou roubado para alimentar os sitiantes. O desânimo é grande, mas a vida tem que continuar e está tudo para refazer quase a partir do nada.

Passados dias, o jovem alcaide recebe um mensageiro do rei que muito o louva pela sua tenacidade e feitos guerreiros na defesa do castelo. Sensível e impressionável, ele não consegue esquecer as imagens horrorosas, dignas do Inferno, que durante dias presenciou. Troca as vestes de cavaleiro pelas de monge, troca o mundo conturbado regido pelas leis dos homens pela paz do convento e da oração.

Terminou, caro leitor, a sua viagem no tempo. Você está de regresso ao presente. Do sofrimento e da glória deste acontecimento não ficou para a posteridade uma pedra que os testemunhe, apenas sobrevivem ainda na memória dos historiadores.

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar