quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 156


Raul Pompéia (Violeta)


I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.

O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.

Tempo perdido, esforço baldado.

Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.

Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:

- Sabe da Vevinha?...

- Já ia perguntar isso mesmo...

E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.

Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma coisa que... devia contar ao sobrinho.

Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida  de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.

O marceneiro não se apercebia disso.

O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.

Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre.

Estava abatido.

Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.

Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.

A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.

- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!

Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido. A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.

Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muxoxo, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.

Entretanto a dor de Eduardo era maior.

O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.

A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro. Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.

A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:

- De que ri-se?...

Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.

A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.

Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida. Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.

Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia. Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:

- Como sabe, minha tia?...

- O meu moleque viu...

- Será possível?...

- ... Viu...

Ah! se isto é verdade!

- ... O moleque viu...

O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dois parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:

- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...

- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.

- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...

- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua... O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...

O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.

Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.

- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...

E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.

Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:

- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...

- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...

- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..

- Como?... perguntou-lhe esta.

- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...

- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...

- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...

- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...

- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginastas furtando uma criança, fraca, imprestável!...

Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.

- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...

- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos. O que está dizendo é um insulto.

- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor? Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...

- Então, cale a boca... Se o seu moleque...

- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...

- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!... Não me demoro nem uma hora!...

Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja. O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.

- São minhas! – murmurou. Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...

E fez um gesto com o punho cerrado.

II

No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma coisa curiosa. Depois da filha, o pai...

O que teria sucedido?

Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...

Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses. Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.

Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia ainda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.

- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.

Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.

Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.

Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha. Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio. Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.

Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.

Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.

- O Eduardo partiu...

Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito. Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.

Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regime) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.

Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro? O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se coisa inútil.

Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:

"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos. Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me trouxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia Factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha.”


Fonte:
Biblioteca Eletrônica. CD Rom Digerati.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) 6


Ao contrário da mentira,
é reta a sinceridade;
aquela desperta a ira,
esta, a credibilidade.

Ao político a advertência
- muito bom lembrar de novo:
Que jamais perca a consciência
de que o Poder é do povo.

Aproveita a solidão
medita nos males teus!
Coloca-te em oração
e, assim, encontrarás Deus.

A razão pura do amor
que surge no coração,
cura sintomas de dor,
apaziguando a paixão.

A sabedoria diz,
até parece um revés:
"A inveja de um, que maldiz,
é como o elogio de dez".

Assim diz o pensador:
"O tempo passa veloz".
Mas, eu digo, meu senhor,
velozes passamos nós.

Assim se porta o covarde,
com ares de valentão,
ao percorrer toda parte,
com escopeta na mão.

A trova que, num repente.
surge livre no meu ser
diz o que minh’alma sente
naquele instante a viver.

A trova, toda alegria,
ao colorir sua rima,
propaga nova harmonia,
criando até obra-prima.

A vida é o luzir veloz,
encanto em fugaz momento,
apenas um sonho atroz
nas asas sutis do vento.

Canto sempre a natureza
e as rosas do meu caminho;
nestas flores há realeza,
apesar de muito espinho.

Com seus voos de condor,
recriando alma florida,
trova que fala de amor
é a melhor trova da vida.

Contemplo o rio da cidade
da minha terra natal...
e vejo calamidade
sobre agonia fatal...

Corre a tristeza salgada
numa cruel soledade,
e a desventura é calada
na lágrima da saudade.

Elevo meu pensamento
em delírio natural;
meu pátrio devotamento
é a minha terra natal.

Em sendo o "fiel da balança",
a Justiça é protetora;
dos povos - a segurança,
e dos maus - a vingadora.

Grande síntese é a trova:
concentra numa quadrinha
o muito que se comprova
até na mera entrelinha.

Há muita autobiografia
que está longe da verdade;
mostra farta fantasia,
cobrindo falsa deidade.

Meras conquistas terrenas,
inúteis preciosidades,
deixam nossas almas plenas
de tolices e vaidades.

Meu coração franciscano
vive feliz neste aprisco;
tenho a UBT por arcano,
co'a bênção de São Francisco.

Minha mãe deixou-me, sim,
mergulhado em soledade;
mas ressuscitou, enfim,
no coração da saudade.

Muitas vezes, a vaidade
lembra o manto colorido
que disfarça a nulidade
de um caráter iludido.

Na ideia de eternidade,
relógio não há, pois sim;
perante Eterna Verdade,
a hora ali é sem fim.

No íntimo mais profundo,
fingindo santa inocência,
quem mostra o porão imundo
da sua própria consciência?

No lume que a trova leva
rebrilha a literatura,
dissipando a inculta treva
que inda ocultava a cultura.

O rio, outrora galante,
tristonho, já sem beleza,
parece um velho arquejante,
expulso da natureza.

Quem é vazio de interior
não suporta a solidão;
quer convívio, quer amor,
mesmo que seja o de um cão.

Se tivesse inspiração,
escreveria um poema;
certamente, com razão,
amor seria o meu tema.

Um país equilibrado
ruma firme para o norte;
tem povo politizado
com salário digno e forte.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 155


André Kondo (O Hashi)


Ozaki aparava, com maestria, as varetas de bambu. Para ele, a suave textura dos hashis* tinha a missão de realçar o sabor dos alimentos, que os dois pequenos pedaços de bambu levariam aos lábios. Sendo o alimento sagrado, o objeto utilizado para conduzi-lo à boca também deveria ser. Assim pensava Ozaki. Porém, esse era um solitário pensamento,

— Por que continua com essa tarefa? Hoje em dia, os hashis podem ser produzidos aos milhares por minuto nas fábricas… Ninguém mais dá valor aos hashis artesanais — contestavam os vizinhos.

Como o bambu que se curva ao vento, Ozaki concordava. Porém, assim como o bambu, passada a ventania, voltava à antiga posição.

Na pequena oficina onde fabricava seus hashis, Ozaki trabalhava com afinco. Todavia, não produzia mais do que um par por semana. Uma quantidade ínfima, considerando-se que o bambu não era um material difícil de se trabalhar. Mesmo assim, Ozaki alisava os seus hashis como quem busca a textura da seda. Entalhava as ranhuras das pontas, para maior precisão no futuro manejo dos alimentos. Pintava os delicados detalhes das extremidades superiores. Soprava delicadamente para dar movimento às pequenas pétalas representadas, como se houvesse mesmo brisa em suas peças. Findo o trabalho artesanal, quando o sol amenizava, percorria as ruas asfaltadas em direção ao único lojista que ainda tentava comercializar a sua produção,

— Ainda não vendi sequer um hashi. Será que não está na hora de... — o comerciante tentou aprisionar as palavras, mas as libertou — abaixar o preço?

— Qual valor sugere? — perguntou Ozaki, desgostoso.

Houve época em que os hashis de mestre Ozaki eram valorizados como peças finas e caras. A poderosa família Murakami comprava quase toda a produção, presenteada aos visitantes como peças de grande valia. Os que desconheciam a maestria de Ozaki e o requinte dos Murakami podiam até se sentir ofendidos pelo presente tão simplório; pois na habitual troca de agrados, davam-lhes produtos laqueados de rara beleza, utensílios banhados a prata e até a ouro. Em troca, recebiam pedaços de bambu, em caixinhas de madeira sem verniz. Porém, se os honoráveis Murakami valorizavam tanto os hashis de Ozaki, algum valor oculto eles deviam possuir. O que ninguém enxergava era o que a família Murakami conseguia vislumbrar nos hashis de Ozaki: alma. De qualquer forma, outros tentavam imitá-la, comprando os hashis apenas para exibi-los como símbolo de status.

Todavia, a fortuna dos Murakami se esvaiu, quando a sociedade passou a não mais necessitar de seus requintados quimonos de seda, fabricados pela família, artesanalmente, há gerações. Os Murakami faliram e ninguém mais desejava pagar tão caro por meras varetas de bambu. Aparentemente, os valores mudam com os tempos...

— Perdoe-me, Ozaki-san. Discuto o preço porque, desde o fim dos Murakami, a procura pelos seus hashis vem diminuindo. Neste ano, não foi vendido sequer um único par.

Ozaki sabia o valor de cada par de hashi que produzia, pois havia dedicado o seu melhor para a confecção de cada um deles. Infelizmente, o valor dado pelo homem a qualquer coisa é medido em dinheiro.

— Nunca abaixarei o valor do meu trabalho!

— Ozaki-san, sempre conversamos sobre coisas passadas, da época em que minha loja era a maior de todas e esta rua a mais movimentada... Mas, agora, é preciso ver que as coisas mudaram. Poucos entram em minha loja, menos ainda compram alguma coisa... E, lamento, mas ninguém compra os seus hashis.

Ozaki ponderou, porém, mesmo envergado, voltou à sua posição:

— Quando um homem não valoriza o que faz, acaba não se valorizando. Quando um homem diminui o seu valor, acaba diminuindo o valor de sua vida. Quando a vida perde o valor, que sentido há em vivê-la?

Nesse instante, um garotinho maltrapilho entrou, timidamente, na loja. Ele tinha em mãos um par de moedas. Com os olhos acesos, percorria os objetos dispostos no balcão empoeirado. Parava diante de algo. Olhava para o preço, olhava para o seu par de moedas, fugia com os olhos para outro lugar. Repetiu a cena várias vezes, desanimando cada vez mais, até que seus olhos se apagaram.

— Posso ajudá-lo? — perguntou o comerciante.

— Não, obrigado — respondeu o menino, já saindo.

— Espere — interrompeu Ozaki. — O que deseja?

— Eu só queria dar um presente para o meu avô, mas... Carreguei algumas sacolas para as senhoras na feira e elas me deram estas duas moedas. É o primeiro dinheiro que ganhei na vida. Por isso, queria comprar um presente para o meu avô, que cuida tão bem de mim... Mas não sabia que as coisas eram tão caras…

— Quem sabe você não se interessa por este par de hashis?

O comerciante olhou para Ozaki com estranheza.

Os olhos do menino, ao verem os hashis, voltaram a brilhar.

— Quanto custa? — perguntou o menino, receoso.

— Duas moedas — respondeu Ozaki.

O menino abriu um sorriso, estendendo rapidamente as moedas.

— Qual é o nome de seu avô? — perguntou Ozaki, entregando os hashis.

— Murakami-san! — respondeu o menino, saindo correndo em seguida, animado com o tesouro em suas mãos.

O dono da loja comentou:

— Estou orgulhoso da sua atitude, Ozaki-san! Diminuiu o valor de seus hashis apenas para que o menino pudesse comprá-los!

— Não diminuí o valor de nada — contestou Ozaki. — Pelo contrário, o valor de meus hashis foi em muito elevado!

— Mas o preço de seus hashis era muito maior do que duas moedas...

— A atitude daquele menino é a coisa mais valiosa do mundo. Posso até afirmar que nem todos os hashis que fiz em minha vida valeriam tanto assim!

Ozaki sorriu, satisfeito por ter reconquistado o seu valor.
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Conto vencedor do XV Concurso Literário JI/AEPTI – Jornal de Itatiba e AEPTI (SP)
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Nota:
* O hashi são as varetas utilizadas como talheres em parte dos países do Extremo Oriente, como a China, o Japão, o Vietnã e a Coreia. Os hashis são usualmente feitos de madeira, bambu, marfim ou metal, e modernamente de plástico. O par de hashis é tradicionalmente manuseado com a mão direita (embora atualmente seja aceitável manuseá-lo com a mão esquerda), entre o dedo polegar e os dedos anelar, médio e indicador, e serve para apanhar pedaços de comida ou empurrá-los diretamente da tigela para a boca.
    A palavra em mandarim é kuàizi, que significa "objetos de bambu para comer rapidamente". Sendo originários da China antiga foram no entanto profusamente utilizados em todo o leste asiático. Utensílios que se assemelham a pauzinhos foram encontrados no posto arqueológico de Megido em Israel, pertencendo aos citas, invasores de Canaã. Esta descoberta revela a possibilidade de existência de relacionamento comercial entre o Médio Oriente e o Extremo Oriente ou eventualmente o desenvolvimento dos mesmos utensílios em paralelo mas de modo autônomo. Os hashis também eram artigos comuns na civilização Uigur, das estepes da Mongólia durante os séculos VI ao VIII. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 1


A Lua, em casto receio,
quando se banha ao luar,
esconde seu alvo seio
dos olhos verdes do mar.

A mulher tem ao nascer
um doce-amargo destino:
amargo pelo sofrer
e doce por ser divino.

A natureza que espelha
nudez ao clarão do dia,
veste um manto e se ajoelha
à hora da Ave-Maria!

Cancioneiro do luar,
canta o céu! Ninguém desata
a lua que vês chorar
suas lágrimas de prata.

Com o vento o tempo levava
o Amor que, em vão, lhe pedia:
"Espera um pouco! Eu amava".
Sem tempo o tempo corria!

Crê na vida. Vê risonho
todo o amor que tens a dar.
Não é por morrer um sonho
que se deixa de sonhar.

Deus é a alegria do triste.
Deus é a riqueza do pobre.
Deus está sempre onde existe
um gesto sublime e nobre.

Do pensador, do profeta,
nasce o direito sagrado.
Mas, só na voz do poeta
o Amor é glorificado!

Envelhecer sem temores…
ingratidões esquecer...
amar crianças e flores,
a isso eu chamo: Viver!

Eu comparo a solidão
àquele triste abandono
do olhar mortiço de um cão
chorando a ausência do dono.

Meu coração eu prendi
num elo, juntinho ao teu.
E nunca mais consegui
saber, dos dois, qual o meu.

Não peço glórias incríveis,
em riquezas não me atenho.
Só peço a Deus: "não me prives
das poucas coisas que tenho".

Nenhuma glória te cabe,
a própria dor te invalida,
se teu coração não sabe
que o amor é tudo na vida.

No mundo cheio de engôdos,
numa revolta sem fim,
fugi de tudo — de todos,
não pude fugir de mim.

O amor e as ondas não têm
os seus destinos iguais.
Ondas que vão, logo vêm,
amor que vai — não vem mais.

O poeta acende a chama
nas cinzas de um chão tristonho.
Vê gemas na própria lama,
o garimpeiro do Sonho.
* * * * * *
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente".
(Fernando Pessoa)


O trovador, na verdade,
finge ver o que não viu;
e chega a sentir saudade
do amor que nunca sentiu!
* * * * * * * *
Perdoa àquele que erra,
mostra o caminho ao incréu.
Porque começa na terra
a escada que leva ao céu!

Procurei no mais profundo
mistério humano ou divino:
não encontrei nenhum mundo
que me explicasse o Destino!

Saudade — veneno lento
que se bebe a gotejar.
Não mata num só momento,
vai matando devagar…

Se não podes ser a rosa,
se teu viço não é eterno,
sê a camélia, tão bondosa,
que floresce até no inverno.

Ser poeta é olhar as flores,
na velhice ser criança.
Amar — já não tendo amores,
esperar — sem esperança.

Só Deus sabe em que consiste
o nosso amanhã. Contudo,
o mundo seria triste
se a gente soubesse tudo!

Toda a angústia do universo
em seu mistério profundo,
não vale a glória de um verso
de amor, no Livro do Mundo.

Trovador que à Lua canta,
canta sempre — é bom cantar.
Pois é cantando que encanta,
cancioneiro do luar!

Trovas celestes. Aquelas
que o sentimento nos traz.
As mais perfeitas, mais belas,
a gente sonha — não faz!

Uma criança chorando...
um riso na madrugada...
alguém que passa cantando,
— a vida é isso — mais nada!

Uma trova pequenina
também diz tudo o que quer.
É o sonho de uma menina
num coração de mulher.

Um olhar que nos agrada,
um sorriso diferente,
uma coisinha de nada
muda o destino da gente!

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Maurício Norberto Friedrich (1945 - 2020)


Médico e advogado, nasceu no dia 6 de outubro de 1945, em Porto União, Santa Catarina, sendo o quinto filho de Afonso Luiz Friedrich, empresário do ramo da ourivesaria e de Araceli Rodrigues Friedrich, professora normalista, trovadora e primeira vereadora de Santa Catarina. Casado com a médica pediatra Neide Terezinha Ceccon Friedrich e pai de Luiz Felipe Ceccon Friedrich.

Em 1972, graduou-se pela Faculdade de Medicina de Campos, RJ e dedicou-se à área de Cardiologia, exercendo, até seu falecimento, suas atividades como autônomo na clínica privada. Trabalhou no instituto de Previdência do Estado (IPE), onde exerceu a Cardiologia e chefiou por 5 anos, a Divisão Hospitalar, quando requereu a sua aposentadoria do Serviço Público. Atualmente era sócio remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Em 1977, entrou no Corpo Clinico do Hospital Erasto Gaertner (Hospital do Câncer), onde atuou na Unidade de Medicina intensiva, Medicina do Trabalho e chefiou o Serviço de Cardiologia.

Em 1987, graduou-se como Bacharel em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e, em 1989, ingressou na Ordem dos Advogados - Seção de Curitiba.

Em atividades extraprofissionais, trabalhou como chefe no Grupo Escoteiro Nossa Senhora Medianeira, tendo sido agraciado em 2002 com a medalha Gratidão - grau Bronze, por relevantes serviços prestado à União dos Escoteiros do Brasil.

Recebeu, em 2007, na Câmara Municipal de Curitiba, por indicação do Vereador Ângelo Batista, o Prêmio Mérito em Saúde, por 30 anos de relevantes serviços prestados à comunidade. Em 2019 foi nome de troféu no âmbito Nacional dos XX Jogos Florais de Curitiba, sendo homenageado pela Câmara Municipal de Curitiba em setembro com Moção Honrosa pelos trabalho desenvolvido em prol da Cultura Curitibana e Paranaense.

Nas artes, destacou-se como colecionador por sua grande e rica colação de ovos decorados, com exemplares de vários recantos do mundo e por obras de sua criação.

No campo da cultura, Mauricio foi atuante no Movimento Trovadoresco do Paraná, tendo presidido e secretariado a União Brasileira de Trovadores (UBT) - Seção de Curitiba, atualmente era Presidente do Conselho da UBT Estadual do Paraná foi também Secretário do Conselho da UBT Nacional. Além de Membro efetivo e segundo orador do Centro de Letras do Paraná, pertence a Academia Paranaense da Poesia, Academia de Cultura de Curitiba e Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Seção do Paraná.

Premiado em inúmeros concursos de trovas no Brasil e exterior, possui publicações em sites, boletins e revistas de trovas dos mais diversos rincões brasileiros. Participa de Coletâneas Literárias do Centro de Letras do Paraná, Academia Paranaense de Poesia, UBT-Curitiba, UBT-Nacional, UBT-Porto Alegre, das virtuais Revista Encanto das Trovas, Almanaque Paraná, Florilégio de Trovas e O Voo da Gralha Azul e da Antologia de Trovas – Humorísticas & Jurídicas, sobre Direito e a Justiça Companhia Editora de Pernambuco.

Maurício faleceu na tarde de 5 de janeiro de 2020. O Velório e o Sepultamento ocorrem hoje, 6 de janeiro no Cemitério Parque Iguaçu.

Nas palavras do Professor Garcia, de Caicó/RN:
Todo o movimento trovístico do Brasil está de luto; perdemos um grande exemplo de generosidade humana, de dignidade e de elevado respeito por todos nós. Em nome da Trova potiguar, reiteramos nossos sentimentos a toda essa família de grandes e bons amigos.

Fontes:
– Andréa Motta.
– Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.
– José Feldman.

Maurício Norberto Friedrich (Jardim de Trovas)


A alva bruma que enverdece
os campos das pradarias
me faz dizer velha prece,
no entardecer dos meus dias!

A lua no céu passeia
num chão coberto de estrela,
deixa o sol, que tanto anseia
louco de amor, para vê-la.

A nora desesperada,
ao ver a sogra na porta.
lendo a receita trocada,
pôs formicida na torta.

A trova que é dita ao vento
tal qual o vento é fugaz;
existe, por um momento...
...e o próprio vento a desfaz!

Amor, palavra tão doce
que nos enche de prazer;
é, às vezes, como se fosse
dor, a nos fazer sofrer!

Ansioso, meu coração,
vive, sempre, nesta espera:
de uma nova floração
da dourada primavera.

Ao chegar o meu outono,
sensato, hoje sou bombeiro:
quando jovem, perdi sono
por querer fazer braseiro!

Ao idoso, honra e venera,
a sua sabedoria;
na velhice, que te espera,
terás tu, a primazia...

Árido, feito um deserto,
meu coração sofredor
anseia, disto estou certo,
ser fértil com teu amor!

As folhas mortas que, ao vento,
bailam e caem ao chão,
me evocam, por um momento,
os ventos de uma paixão!

As flores todas são belas,
mesmo as que nascem em abrolhos,
mas, as mais lindas, dentre elas,
são as que vêm nossos olhos.

As marcas do teu batom
deixadas no meu cristal,
têm sabor e têm o tom
de um grande amor, no final...

Beijando, a brisa, meu rosto,
meiga, me faz relembrar,
com saudade e muito gosto,
o amor que pude lhe dar.

Bela musa, encantadora!
Igual eu nunca vi;
meiga e doce inspiradora;
foste tu que eu escolhi!

Bem-vindos, oh Trovadores,
aos nossos Jogos Florais.
A vós, grandes vencedores,
as láureas dos Pinhais.

Carrego, dentro do peito,
a cicatriz de uma dor
que jamais me dá o direito,
de reaver teu amor!

Como é bonito o Direito,
quando se julga uma ação
e, ao exercê-lo, perfeito,
sempre o que impera é a razão.

Como pode uma criança,
ser vítima de agressão,
se tem, cheio de esperança,
o inocente coração?

Como são belas as serras
do Estado do Paraná!
Que têm cobertas as terras
das cores do manacá!

Completa felicidade
é, por certo, uma utopia;
pois quem já sentiu saudade,
já sofreu melancolia.

Curitiba doce encanto
da terra dos pinheirais
é nela que vivo e canto
meu amor e meus ais.

Curitiba! Ó Curitiba!
Onde estão teus pinheirais,
que te davam tanta vida,
e, hoje, não os vejo mais?

Curitiba, Terra amada,
me albergaste o coração;
a minha alma apaixonada
tem por ti grande paixão!

Da cultura és um celeiro,
Curitiba dos Pinhais;
com teu Jeito hospitaleiro
hoje albergas os florais.

Das felizes madrugadas,
sozinho, curto a saudade...
– Que alegria, nas noitadas,
dos tempos da mocidade!

Das folhas, vendo o cair,
pressinto o chegar do inverno
e o coração, a invadir,
saudade... do lar paterno,

De areia, fiz um castelo,
nas dunas, em vastidão,
e o vento, sem ter rasteio,
soprou...pôs tudo no chão.

Decidido e corajoso,
à tua porta eu bati,
foi o susto mais gostoso
que eu já pude dar em ti.

Dentre as coisas que cultivo,
para evitar vida obscura,
o saber é o incentivo
que aumenta minha cultura.

Dentre tantas namoradas,
que já tive em minha vida
e de todas as jornadas,
foste tu a escolhida!

Desde o dia em que partiste,
triste está meu coração:
este pobre não resiste
a dor da separação.

Do pai seguiu a carreira,
com amor, dedicação:
Tinha a semente certeira
plantada em seu coração!

Do sol em raios envolta
vi-te passar tão ditosa,
com puros gestos, tão solta,
tendo a beleza da rosa.

Dos corações, sempre em festa,
o amor, divino expressar...
faz com que cada seresta
torne a janela um altar!

Dos teus carinhos, distante,
na insônia de cada noite,
fico a pensar, num instante,
esta distância é um açoite.

É tão atroz a distância
a nos separar, amor,
que só a saudade, em constância
ameniza a minha dor.

É tão linda esta menina!
Linda? Parece boneca...
Mas, se namora na esquina,
logo vira uma sapeca.

É uma escultura, bem-feita,
de uma costela qualquer:
criada por Deus, perfeita,
que lhe deu nome...: mulher!

É verdadeira a amizade,
quando nunca se destrói,
com tempo vira irmandade
e faz do amigo um herói!

Hoje sou um moribundo
nas cinzas do teu amor
e não vejo, neste mundo,
remédio para esta dor!

Insone, em noites frias
e em permanente vigília
de mamãe com as ave-marias
recomendava a família.

Irradiantes de alegria!
façamos trovas de amor,
para louvar, no seu dia,
o poeta Trovador!

Já inventaram um remédio,
de um certo tom azulado,
que tira moço do tédio
e deixa velho… assanhado!

Meu amor da mocidade
foi efêmera ilusão:
dele só resta a saudade,
nas cinzas de uma paixão.

Meu coração é um deserto
por falta do teu amor,
se me ofertares, por certo,
virará, um jardim de flor!

Minha herança não tem ouro,
um conselho é o meu legado:
– Meu filho, mais que um tesouro,
vale um homem muito honrado!

Minha paixão foi loucura
por amar-te tanto assim;
hoje estou nesta tortura:
- Por que tu foges de mim?

Regressaste!.... Que alegria!
E a saudade se desfez!
Hoje minha alma irradia
felicidade outra vez!

Restou tão grande a distância,
que nos separa no amor,
que já não dou importância,
se minha vida se for.

Saibam todos que o trabalho,
ao bom homem enobrece,
mas, quem não pega no malho,
seu espírito empobrece!

Salve, ó verão de mil cores,
ao despertar o manacá
que cobre, todas, de flores
as serras do Paraná!

São Francisco, nas veredas,
feito um pobre vagabundo,
despido de suas sedas,
encheu, de amor, este mundo!

Saudade é uma dor silente
que nos ataca e vem mansinha;
entra no coração da gente,
toma posse e ali se aninha!

Saudade, saudade e meia,
é o que sinto de você;
meu coração serpenteia,
- só você é que não vê!

Saudade! Triste amargor!
Dolorosa e tão pungente,
a nos causar tanta dor;
só a entende quem a sente!

Saudade... dor da lembrança
de alguém que distante está;
é o sentir de uma esperança
de que esse alguém voltará!

Se encontro, ao voltar pra casa,
as tuas mãos carinhosas,
o meu amor já se abrasa,
com teu perfume de rosas.

Segue, meu filho, na estrada,
os trilhos da retidão:
sê firme em cada pisada
que as honras te seguirão!

Sigo, na vida, o caminho
penoso, porém, correto,
que aprendi, desde meu ninho,
com meu pai severo e reto.

Sim, nas cores do arrebol,
Deus, o mais perfeito esteta,
sob a luz do pôr do sol,
dá inspiração ao poeta..

Singrando mares incertos,
marujo, audaz, varonil
achou montes, recobertos
com flores: Eis o Brasil.

Sinta o perfume das flores
nas serras do Paraná,
tem árvores de mil cores:
-primaveras ou manacá.

Teu charme, encanto e beleza
dão aos poetas um tema,
ó encantada Fortaleza,
linda Terra de Iracema!

Teu conselho, pai querido,
de retidão e de amor,
faz-me, hoje, já envelhecido,
mais entender seu valor!

Teve um infarto, na cama,
a noiva, que é tão frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola!

Tico-Tico seresteiro
que vives, sempre, a cantar,
põe teu ninho em meu terreiro;
vem comigo avizinhar!

Vai, meu filho! Não tropeces
nas pedras do teu caminho:
a Deus, faze tuas preces
e não seguirás sozinho!

Vejo uma gota de orvalho
pairando sobre uma rosa:
de Deus, é mais um trabalho
para tomá-la formosa.

Vendo-a sentada no ninho
ditosa mamãe beija-flor,
vejo que há muito carinho
neste seu gesto de amor.

Vi beleza… colhi flores
nesta vida, em seus caminhos,
mas às vezes senti dores
causados por seus espinhos!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 154


Cecy Barbosa Campos (Reminiscências)


A rua não tinha nenhum destes espigões que empanam o sol e, à noite, quando se olhava para o céu, de qualquer ponto, era possível ver as estrelas.

Estrelas brilhantes, tão mais brilhantes quanto mais fria fosse a noite do mês de junho, e este era um mês especial para seus moradores. A meninada, alvoroçada, já no dia primeiro, começava a se preparar para a festa. E como "o melhor da festa é esperar por ela", pode-se dizer que meninos e meninas aproveitavam vinte e quatro dias, sem parar, esperando chegar a noite de São João. Tinham até direito de dormir mais tarde, podendo sair depois do jantar para colar as bandeirinhas que iriam enfeitar o "arraiá".

Os barbantes eram estendidos de um lado a outro, calçada a calçada. Nem tantos carros havia em Juiz de Fora, e a Benjamin Constant, acabando onde é hoje a Tiradentes, era uma rua tranquila e silenciosa, sem ronco de motores a perturbar o alarido da criançada. Assim, sem perigo, todos se encontravam para fazer a colagem, escolhendo as cores cuidadosamente, discutindo com grande concentração e seriedade sobre a conveniência de se colocar uma bandeirinha azul perto da rosa ou vice-versa.

Os maiores providenciavam a capina, pois, no local em que a rua terminava, havia mato, bicho. Era comum encontrar-se, no quintal, um lagarto "quentando" ao sol. Gambás e, dizem, até raposas, costumavam assaltar galinheiros, beber os ovos e roubar frutas durante a noite.

Era necessário limpar e preparar o terreno, num trabalho pesado que ninguém sentia. Tarefas divididas, havia aqueles que iam arranjar o bambu para cercar a área, e os que iam armar barraquinhas onde o pé de moleque, a cocada e a canjica iam ser servidos com muito orgulho pelas donas de casa, quituteiras de mão cheia, que na ocasião demonstravam seus dotes, oferecendo a todos as suas obras-primas.

O local era sempre o mesmo: logo ao final da rua Benjamin Constant, embicava a entrada do arraial que se instalava no espaço entre as atuais ruas Tiradentes e Olegário Maciel. A festa da Benjamin ficou famosa, e os convites para o ingresso eram disputados. Todos se conheciam e todos participavam. Não havia idade nem reumatismo que resistisse à motivação da sanfona e do tablado que, cedido pela Prefeitura, suavizava as irregularidades do solo, permitindo que a caipirada dançasse a quadrilha com muita alegria à luz de uma fogueira cuidadosamente montada.

Passado o mês dos folguedos juninos, a gurizada arranjava pretextos para continuar a se reunir após o jantar. Era o pique-de-meio, no qual, os participantes ficavam a salvo na calçada, sem poder lá permanecer por muito tempo. Tinham que tentar, constantemente, mudar para o outro lado da rua, enfrentando a perseguição do pegador e correndo o risco de, se alcançados, serem expulsos da brincadeira.

À medida que os meninos e meninas iam crescendo, o interesse pelas correrias ia-se transferindo para o vôlei, também no meio da rua. Às vezes, um grande círculo se formava e um jogador, no centro, liderava a distribuição da bola. Outras vezes, em jogo livre, iam sendo feitas exclusões até que a dupla, mais hábil nas jogadas, ficava para a definição final de um vencedor. Em outras ocasiões, até uma rede era improvisada, atravessando a rua de um lado a outro e permitindo uma partida simulada.

Aquele congraçamento de crianças e jovens adolescentes reunia os filhos de conceituadas famílias da cidade. Eram vizinhos próximos os renomados médicos Dr. José Dirceu de Andrade, Dr. Justino Sarmento e Dr. José Mariano; o comércio local se fazia representar pelos senhores Luís Enéas Mescolin e Francisco Romanelli; pela classe bancária respondiam o Sr. José Caldas, o Sr. José Vale da Fonseca e o Sr. Octávio Duarte Corrêa Barbosa.

Havia ainda a simplicidade do "seu" Tonico — o fazendeiro Antônio Teixeira Reis, e a elegância do político, Dr. José Procópio, ex-prefeito da cidade. Outras personalidades marcantes também viviam nas redondezas, mas os citados permaneceram por longo tempo como moradores da rua Benjamin Constant.

Vários remanescentes e /ou descendentes destas famílias ainda lá estão, embora, muitas daquelas casas não existam mais, tendo cedido lugar a prédios altos e modernos.

As crianças de hoje não têm condições de brincar na rua e não conseguem imaginar o que foi o pique-de-meio, o jogo de bola ou a preparação de uma festa junina. Fechadas em suas casas ou apartamentos têm, como distração principal, os programas de televisão assistidos em volume máximo, pois o barulho do tráfego intenso dificulta a audição.

É a marca do asfalto, o preço do progresso. Ainda bem que elas não conheceram a rua Benjamin Constant de 40 anos atrás. A saudade fica para as pessoas que nela viveram naqueles tempos.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
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