terça-feira, 24 de março de 2020

Doce Aconchego das Trovas n. 3


O comilão, na cozinha,
cai de boca na penosa...
- Quem manda ela ser galinha
e, além de tudo, gostosa?
A. A. de Assis
Maringá/PR

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A minha sogra assanhada,
no barracão da Mangueira,
foi muito mais apalpada
do que laranja na feira!...
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

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Exibe a mercadoria,
e enquanto o fiscal faz pausa,
rabisca na nota fria:
trambiqueiro em justa causa...
Alba Christina Campos Netto
São Paulo/SP

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Preguiçoso, o "Zé Pijama",
tanta preguiça agasalha,
que a mulher só não reclama
porque o vizinho trabalha.
Aloisio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

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É tão roxa por novela
a mulher do Serafim,
que, se alguém chama por ela,
ela responde: Plim-Plim!
Ana Maria Motta
Nova Friburgo/RJ

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Quando o peixeiro passava
com sua noiva faceira,
a vizinha comentava:
– Vai ter piranha na feira...
Antonio Juraci Siqueira
Belém/PA

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É sovina a minha amiga:
se vai à feira gastar
não compra nem uma briga
sem primeiro pechinchar!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

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Minha sogra sempre anota
meus atrasos num caderno:
- Se esta "coroa" empacota,
vai ser porteira do inferno!
Carlos Guimarães
 Rio de Janeiro/RJ, 1915 – 1997

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Ouvindo a banda na praça
quis saber o Seu Manuel :
- De quem Maria da Graça
é o Bolero de Ravel ?
Célia Guimarães Santana
Sete Lagoas/MG

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Santo Antonio, Santo Antonio,
às vezes você nos logra:
pedimos só matrimônio,
e lá vem... mulher e sogra!
Célio Belmiro Grünewald
Juiz de Fora/MG, 1923 – 1991

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O Anedotário horroroso
que ele repete em torrente,
é do tempo em que o famoso
Mar Morto estava doente!
César Torraca
Rio de Janeiro/RJ

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Na bolsa as vê, mas sequer
o esposo otário adivinha:
“Se eu nem uso isso, mulher,
pra que tanta camisinha?!”
Cleber Roberto de Oliveira
São João de Meriti/RJ

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“Nossa! Que enorme chifrada!...
Conta, guri, como foi!” “
A minha até não foi nada;
da sua... pergunte ao boi...”
Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC (1926 – 2017) Sorocaba/SP

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Foi um choque e muita mágoa
para quem te acreditou:
a tua barriga d'água
com nove meses chorou!
Edmar Japiassú Maia
Rio de Janeiro/RJ

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- Esta pimenta é de cheiro?
Pergunta com azedume,
e o garçom fala ligeiro:
- Se não é... boto perfume!!!
Élbea Priscila de Souza e Silva
Caçapava/SP

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Dizem que todo "baixinho"
tem mania de grandeza...
por isso, é que meu vizinho
só chama a mulher de... "Alteza"!
Hermoclydes S. Franco
 Niterói/RJ (1929 – 2012) Rio de Janeiro/RJ
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A mulher do meu vizinho
faz a feira o mês inteiro,
sem sacola, sem carrinho,
sem vergonha e sem dinheiro...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

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Vendo o marido a roncar,
grita, insistente, a Nair:
- Acorde, João, pra tomar
seu remédio pra dormir!
José Antonio de Freitas
Pitangui/MG

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De susto, quase morreu:
- É fantasma - e não ladrão!
E quando a luz acendeu,
era a sogra num roupão!
José Reginaldo Portugal
Bandeirantes/PR

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"Só pensa em sexo o Odilon,
diz ao juiz a esposa tensa.
- Minha senhora, isto é bom!
- Mas... seu juiz... ele só pensa...
Joubert de Araújo Silva
Cachoeiro de Itapemirim/ES, 1915 - 1993, Rio de Janeiro/RJ

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Clara disse: - Não te quero.
Mas disse tão docemente,
que eu notei: neste entrevero,
Clara mente, claramente!
Licínio Costa
Nova Iguaçu/RJ

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O terapeuta sugere:
- “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
- “Tô fora! Pimenta não!
Lucília A. T. Decarli
Bandeirantes/PR

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E se em tupi é “kiri”
e lá na Itália “bambino”,
no sul só falam “guri”:
diabruras de “menino’!
Luiz Carlos Abritta
Belo Horizonte/MG

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Do Cornélio, aqui ao lado,
o viver é bem inglório:
até no nome o coitado
deixa ver o que é notório!...
Luiz Carvalho Rabelo
Natal/RN, 1921 - 1996

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Doces, massa, a todo instante,
tão redondo é o comilão,
que nem escada rolante
consegue sair do chão!
Maria Helena Calazans Duarte
São Paulo/SP

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O cinquentão não se aguenta:
é calculista bebum,
e tão logo fez cinquenta,
já quer ter “ Cinquenta e Um” !!!
Marisa Rodrigues Fontalva
São Paulo/SP

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- Três frangos, polenta e vinho
– pede um gordo comilão.
- Comes tudo isso sozinho?!?!
- Não, garçom, como com pão!
Marina Bruna
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP
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Faxina pra lá de boa
ela faz por cinquentão:
limpa a casa da patroa
e a carteira do patrão.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP

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O sargentão linha dura
se deu mal nessa "parada":
pois perdeu a dentadura
no decote da cunhada!
Nádia S. Huguenin
Nova Friburgo/RJ (1946 -2008)

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Com mania de grandeza,
a madame refinada
faz despacho, com destreza...
- mas com galinha importada!
Neuci da Cunha Gonçalves
São Bernardo do Campo/SP

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Na preguiça é contumaz,
mora no morro, e só vendo:
na subida, anda pra trás,
e finge que está descendo!
Newton M. Azevedo
Pouso Alegre/MG
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Zé preguiça pra informar
o banheiro pro Novais,
quando acabou de falar
já era tarde demais.
Pedro Viana Filho
Volta Redonda/RJ

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Tem mania de sucesso
e afirma que tem talento,
pois seu diretor , possesso,
só diz: " Tá lento, tá lento!
Renata Paccola
São Paulo/SP

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Muito egoísta e exigente,
de tudo tira partido...
- e sempre exige um presente,
nas ausências do marido!
Rodolpho Abbud
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013

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Enquanto a banda tocava
numa praia de nudista,
a galera apreciava
o “perfil” de cada artista...
Ruth Farah N. Lutterback
Cantagalo/RJ, 1932 – 2017

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Se é verdadeiro que é o cão
maior amigo da gente,
amigo de comilão
deve ser “cachorro quente”!
Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP

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Vovó se afoga ... e, no cais,
 com vovô tentando a cura,
o boca a boca foi mais
dentadura a dentadura.
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo/RJ

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Trambicando a todo instante
Jacó, na esmola, revolta:
pois, usando de um barbante,
puxa a moeda de volta!
Sérgio Ferreira da Silva
São Paulo/SP

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Um cozinheiro ciumento
tacou pimenta na empada,
transformando o casamento
numa festa... só privada.
Walter Leme
Pindamonhangaba/SP

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Tentando aparentar trinta,
o cinquentão se “ferrou”.
Comprou um estoque de tinta,
mas... o cabelo acabou.
Wandira Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

Fonte:
https://doceaconchegodastrovas.blogspot.com 

Rachel de Queiroz (Nudez)


A filha tentava convencer a mãe a ir à praia e a velha resistia: estava muito idosa e gorda para vestir maiô.

— Mas, mamãe, eu já vi de maiô, na praia, muitas senhoras mais velhas e mais gordas do que você!

E a velha, suavemente:

— Eu também já vi. Por isso mesmo é que não vou.

Para mim, o critério dessa velha é o critério certo em matéria de nudez. O que é feio se esconde. Um moço, uma moça, no esplendor da juventude, seus belos corpos podem se mostrar praticamente desnudos, de biquíni, de sunga, de cavado: assim tão enxutos, rijos e tostados, chegam a ser castos. Predomina a impressão de beleza e saúde sobre a sugestão erótica. E, depois, sabe-se que aquela floração é tão transitória! Deixem que os jovens fruam o instante passageiro, que usem e mostrem os corpos na sua hora de flor, antes que chegue a hora da semente e do declínio.

Afirmam os nudistas, com perfeita lógica, que, todo o mundo andando nu, a nudez acostuma e deixa de escandalizar: sim, acredito que num campo de nudistas se acabe vivendo com a mesma naturalidade que numa sala de família. Aliás, quem convive com índios sabe disso: o hábito torna a nudez invisível.

O que eu tenho contra os nudistas é a exibição obrigatória da feiúra humana, o seu despojamento total, a miséria fisiológica sem um véu que a disfarce. O ridículo, a falta de dignidade de todo o mundo nu.

Certa amiga minha que, numa praia da Noruega. de repente se viu dentro de um grande bando de gente nua, diz que o seu choque primeiro não foi o da vergonha, foi o do grotesco. As pelancas, os babados, os rins flácidos, os joelhos grossos. A velhota magra com seus ossinhos de frango assado, a quarentona de busto murchinho, o senhor ruivo de barriga redonda, braços e canelas tão finos e peludos que, se tivesse mais duas pernas, seria igual a uma aranha. A matrona obesa e o seu esposo idem e o par de jovens rechonchudos, de mãos dadas como dois porquinhos enamorados. A seca donzela machona de coxas de cavalete, e a falsa Vênus de cintura grossa, com o falso atleta de torso enorme e pernas curtas. Da tribo toda, praticamente só se salvavam os adolescentes e as crianças.

A humanidade nua é feia, não há dúvida. E por isso mesmo a gente se oculta debaixo da roupa. Talvez mais do que para o defender do frio, a roupa se inventou para encobrir o corpo e lhe dar dignidade. O que é bonito se mostra, o que é feio se esconde, é a lei de todas as culturas humanas. Nada mais triste do que a deterioração do que foi belo. Ninguém usa no dedo um anel sem a pedra, ninguém bota na sala um ramo de flores murchas.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Varal de Trovas n. 217


Fernando Sabino (Na Escuridão Miserável)


Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:

- O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente, pensando tratar-se de esmola.

- Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.

- O que é que você está me olhando aí?

- Nada não senhor- repetiu.- Tou esperando o ônibus...

- Onde é que você mora?

- Na Praia do Pinto.

- Vou para aquele lado. Quer uma carona?

Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:

- Entra aí, que eu te levo.

Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:

- Como é o seu nome?

- Teresa.

- Quantos anos você tem, Teresa?

- Dez.

- E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?

- A casa da minha patroa é ali.

- Patroa? Que patroa?

Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia a  mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.

- Hoje saí mais cedo. Foi jantarado.

- Você já jantou?

- Não. Eu almocei.

- Você não almoça todo dia?

- Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim.

- E quando não tem?

- Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na  penumbra  do  carro,  suas  feições  de  criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês:

- Mas não te dão comida lá?- perguntei, revoltado.

- Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse pra eu não pedir.

- E quanto é que você ganha?

Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma ninharia, não mais  que  alguns trocados. Meu impulso era voltar, bater  na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.

- Como é que você foi parar na casa  dessa...  foi  parar  nessa casa?- perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do  Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar:

- Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí noutro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados. Pode parar que é aqui moço, obrigado.

Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972

Irmãos Grimm (As Três Linguagens)


Houve, uma vez, na Suíça, um conde que tinha um filho único, mas tão obtuso que não conseguia aprender coisa alguma. Então, o pai disse-lhe:

- Escuta, meu filho, por mais que me esforce, não consigo meter nada dentro da tua cabeça. Precisas ir para fora daqui. Eu te confiarei a um mestre muito célebre, que tentará fazer algo de ti.

O rapaz foi enviado a uma cidade estranha e hospedou-se na casa do mestre durante ano inteiro. Passado esse tempo, voltou para a casa do pai e este perguntou-lhe:

- Então, meu filho, o que aprendeste?

- Meu pai, aprendi o que latem os cachorros. - respondeu o rapaz.

- Misericórdia divina! - bradou o pai, - foi tudo o que aprendeste? Vou mandar-te para a casa de outro mestre, em outra cidade.

O rapaz foi e passou um ano na casa do segundo mestre. Voltando daí a um ano para casa, o pai perguntou-lhe:

- Que aprendeste, meu filho?

- Meu pai, aprendi o que dizem os passarinhos. - respondeu ele.

Zangadíssimo, o pai então gritou:

- Ó perdição humana! Perdeste um tempo precioso e nada aprendeste? E não te envergonhas de aparecer ante meus olhos? Vou mandar-te a um terceiro mestre. Se desta vez não aprenderes nada, não quero mais ser teu pai.

O filho permaneceu um ano inteiro com o terceiro mestre. Quando voltou para casa, o pai perguntou-lhe:

- Vejamos, meu filho, que aprendeste?

- Meu pai, - respondeu ele - neste ano aprendi o que coaxam as rãs.

O pai, então, louco de raiva, levantou-se de um salto, chamou a criadagem e disse:

- Este homem não é mais meu filho. Expulso-o de minha casa e ordeno que o leveis à floresta e o mateis.

Os criados levaram-no à floresta mas, no momento de matá-lo, condoeram-se dele e soltaram-no para que se fosse. Arrancaram os olhos e a língua de um veado, que levaram ao velho conde como testemunho.

O rapaz peregrinou durante algum tempo. Por fim foi ter a um castelo, onde pediu pouso para aquela noite

- Sim, - disse o castelão - mas só se quiseres pernoitar lá embaixo naquela torre. Advirto-te, porém, que arriscas a vida. A torre está cheia de cães ferozes que latem e uivam sem parar e, em determinadas horas, é preciso dar-lhes um homem, que devoram imediatamente.

Em consequência disso, toda a região vivia em luto e mergulhada na tristeza, e não havia quem pudesse solucionar o problema. O rapaz, porém, não tinha medo e disse:

- Irei lá com os cães que uivam. Dai-me somente alguma coisa que lhes possa atirar para que comam. A mim não farão mal algum.

Sendo essa a sua vontade, deram-lhe só a comida para os cães e o conduziram à torre. Quando penetrou lá dentro, os cães não latiram, mas abanaram amistosamente as caudas e comeram o que lhes apresentou, sem lhe torcer um só fio de cabelo.

Na manhã seguinte, saiu de lá são e salvo para assombro geral. Foi ao castelão e disse:

- Os cães, na sua linguagem, revelaram-se a razão por que estão aí presos e porque causam tanto dano à região. Estão encantados e precisam guardar um grande tesouro escondido lá embaixo, na torre. Enquanto o tesouro não for desenterrado, eles não se apaziguarão e, sempre na sua linguagem, entendi o que é preciso fazer.

Todos se alegraram ao ouvir isso e o castelão propôs adotá-lo como filho se conseguisse resolver tudo da melhor maneira possível. O rapaz tomou a descer à torre e, instruído como deveria agir, desincumbiu-se da tarefa com felicidade, depois levou para cima uma arca cheia de ouro. A partir desse dia, nunca mais se ouviram os medonhos uivos dos cães ferozes, haviam desaparecido. A região ficou livre para sempre desse flagelo.

Decorrido algum tempo, o rapaz teve a ideia de viajar a Roma. Pelo caminho, passou junto a um charco e dentro dele as rãs coaxavam seus mexericos. Aguçou o ouvido, prestando atenção ao que diziam, quando percebeu o que estavam a dizer, caiu em profunda tristeza e preocupação.

Finalmente, depois de muito andar, chegou a Roma. Lá soube que havia falecido o Papa e reinava grande incerteza entre os Cardeais, que não conseguiam eleger o sucessor. Por fim, convencionaram que seria eleito aquele a quem fosse revelada, por um sinal milagroso, a vontade Divina.

Justamente quando assim deliberavam, o jovem conde entrou na igreja e logo duas pombas brancas como neve, foram pousar em seus ombros e lá permaneceram imóveis. O clero reconheceu nisso a vontade Divina e, sem mais delongas, perguntaram-lhe se queria ser eleito Papa. O jovem, indeciso, não sabia se era digno de tal encargo, mas as pombas o persuadiram e ele respondeu que sim.

Então, foi ungido e consagrado, cumprindo-se assim aquilo que, com grande consternação sua, ouvira as rãs coaxarem ao passar pelo charco. Pois elas justamente diziam que ele se tornaria Papa.

Depois de coroado, teve de celebrar e cantar missa, mas não sabia uma única palavra, pois jamais tinha feito isso. Então as pombas, que permaneciam pousadas em seus ombros, o ajudaram, sussurrando-lhe aos ouvidos tudo o que devia fazer e dizer.

Fonte:
Contos de Grimm.

domingo, 22 de março de 2020

Varal de Trovas n. 216


Monteiro Lobato (Por que Lopes se Casou)


— Pois, meu caro — dizia Lucas ao seu amigo Lopes —, fiz essa asneira, casei-me.

— E és pai duma legião...

— Tenho doze filhos e já alguns avos do décimo terceiro.

— E tudo quanto produz o teu trabalho some-se em bugigangas, leite, farinha, cueiros, fraldas, cavalinhos de pau...

— Um trabalho de negro cativo mal dá para mantê-los no pé de decência que minha posição requer. E é uma voragem a minha casa. Quando entro numa sapataria é para comprar doze, catorze pares de sapatos! Das lojas nunca trouxe fazenda aos metros, é às peças. De feijão gasto meia saca por quinzena. Uma voragem!

“E se visses que jararaca me saiu minha mulher... Uma fera, Lopes! Dessas que lançam com prato à cara do marido se este torce o nariz ao quitute. E feia, desleixada, lambona, cabelos despenteados, um fedelho aos berros no braço, as chinelas a se arrastarem pela casa, trec, trec, trec. Traz à cinta a penca de chaves e um rabo de tatu que até a mim inspira respeito. Dirige o movimento da casa a lambadas. Grita sem parar, deblatera, diz nomes, arranca a orelha às criadinhas. É um despotismo de saias a serviço dum estado de sítio que suprimiu o meu poder marital, o meu pátrio poder, o meu poder animal de homem, e me põe na casa humilde e caladinho, de orelhas murchas como um lazarento burro de carroça. Felizmente o trabalho na repartição afasta-me da inferneira oito horas por dia. É quando vivo. Mas logo que a tarefa termina e volto para a geena, ah, Lopes, nunca saberás com que angústia o faço... O lar! Falam poetas nas delícias do lar, no remanso do lar... A avaliar pelo meu, o lar é círculo que esqueceu ao Dante. Em caminho para o ‘remanso do lar’ rememoro tudo o que me espera. No topo da escada, de mãos à cintura, a minha tremenda metade em atitude de juiz em face do réu.

“— Trouxe a pimenta? Comprou o sabão? Chamou o homem para consertar a torneira?

“E se acaso me esquece alguma coisa, lá desaba o temporal.

“— É isto. Não presta para nada, não sei por que casou, já que não serve nem para trazer da cidade um pão de sabão de cinza para a burra da mulher que fica em casa a se matar de trabalho —, e tá, tá, tá. Não imaginas a minha vida, Lopes...”

Arrepiado ante as confidências do amigo, Lopes alvitrou certas soluções desesperadas.

— Em teu caso, Lucas, eu recorria a meios extremos, ao divórcio, à bolinha...

— Caçoa, caçoa. Eu também caçoava...

— Mas, Lucas, estás a exagerar. Dou de barato que seja assim. Mas há compensações. Os filhos, por exemplo, as sãs alegrias da paternidade...

— Os filhos... Tem muita graça o primeiro, o segundo e ainda o terceiro. Depois, do quarto ao décimo segundo... que pestinhas infernais! Destroem tudo, põem a casa imunda, vivem num corrupio de travessuras capazes de endoidecer um santo. Não sei se os filhos dos outros são assim, mas os meus batem os recordes. Há um, senhor Lulu, que prenuncia novo Átila. Diverte-se em quebrar, furar, judiar, escangalhar o que encontra. Ontem procurei um livro — livro de contas, sossega! — e fui encontrá-lo no quintal, dentro duma poça d’água, à guisa de barragem de dique. Só em louça quebrada esse patife me dá um rombo de quarenta mil réis por mês.

“E não é só ele.

“O Eduardinho tem a mania de enfiar os talheres nos buracos dos ratos, nas frestas do assoalho.

“Outro se especializou em quebrar os dentes aos garfos. Chegamos à perfeição de ter em casa apenas um garfo com quatro dentes! Já as facas são uma dentadura completa. Quem é o dentista? O senhor Lulu. Aparece uma cadeira com três pernas. Quem foi o carpinteiro? O senhor Lulu.

“A Inazita tem a bossa da costura. Está praticando no corte... Em pilhando a tesoura, esconde-se nos cantos e vai picando o que encontra. Há dias recortou um corpinho no oleado da mesa, um oleado adquirido na véspera — e tão caro...

“O Leandro é o homem da balística. Vive com o papo da camisa cheio de pedregulho e cacos de telha — ‘tentos’, diz ele — e brinca de partir vidraças aos vizinhos. Tem, para mal meu, mão certa como o Guilherme Tell.

“O Lucas, esse chora. Chora doze horas por dia, à toa, por brincadeira. É o rei da manha, mas daquelas manhas intermináveis que deixam os nervos da gente em carne viva.

“O Bentinho, que é torto, o coitado, já fuma pontas de cigarro e coleciona nomes feios apanhados na rua.

“O mais velho foge de casa pela janela e entra de madrugada. Anda-me sorumbático, com umas perebas suspeitas.

“O Juvenal...”

— Para um bocado, Lucas. Deixa-me tomar fôlego e fazer uma observação. Sendo assim como dizes, travessos, insubordinados, insuportáveis, a culpa é só tua. É que lhes não dás a devida disciplina, não os corriges, não lhes torces o pepino no tempo propício, homem!

— Será, mas que queres? Não posso, não tenho energia. Sou uma tapera, um homem arrasado que me fiz fatalista para ter uma filosofia que me dê paz à consciência. Bem me acusa ela de inépcia e frouxidão extrema... Às vezes vêm-me ímpetos de reagir, entrar em casa de guatambu em punho e ir deslombando às cegas a escadinha inteira, coisa de começar no frangote das perebas e acabar nos seis gatos ladrões do Chiquinho, com escala pelos cães sarnentos do Manuel, pelos canários azucrinantes do Júlio e pelas bonecas de pano de Mariquinha. Moê-los em massa, a granel e ir entregar-me à polícia e pedir ao júri, de joelhos, trinta deliciosos anos de paz e silêncio no fundo duma cela. Mas fica em ímpetos. Sou uma tapera, incapaz dum movimento enérgico...

O pobre Lucas consultou o relógio e assustou-se.

— Três horas! Minha cara-metade deve estar furiosa. Adeus, Lopes, vou-me ao “repouso do lar” — concluiu, despedindo-se com um riso amargo.

E foi-se o Lucas apressadamente, cheio de pacotes pelos nós dos dedos; embrulhos nos bolsos e um queijo sobraçado...

Lopes ficou imóvel no lugar, com os olhos parados, recordando. Veio-lhe à mente o Lucas de quinze anos antes. Era um rapagão alegre, todo esperanças no futuro e amigo de arquitetar castelos de Espanha. Poetara. Amara uma dúzia de meninas em duas centenas de sonetos parnasianos e por fim elegeu como diva a Nonoca Fagundes, uma loura translúcida, de fala melíflua — Botticelli temperado à moderna, dizia ele.

Era bonitinha, dezessete anos, em pleno viço da beleza do diabo, um mimo de fragilidade grácil, boazinha como não havia outra — boa, “boa constritor”... Muito ingênua e amiga de reticências graciosas, corava a todo instante. Dizia ele: Moram em suas faces duas rosas Bela-Helena. Andar saltitante como de sílfide.

Um verso dele rezava:

Das plumas tens no andar
a suave macieza...

Lucas amou-a em regra, e sonetou-a inteira dos cabelos aos pés, parnasianamente, nefelibatamente, com lirismo de comover as pedras. Não a tratou antropofagicamente, porque a antropofagia guindada à escola estética ainda não fora inventada.

Sonhou-a ao seu lado, “amiga peregrina de alma e coração”, num arroubo perene de felicidade celestial pela estrada da vida afora... Amou-a três anos seguidos, com o dispêndio duma arroba de versos arrancados à carne viva da inspiração. Bateu-se a punhadas com vários rivais temíveis. Rompeu com a família, que desaprovava o casamento. Cantou-lhe à janela, com muito choro de violão, todas as modinhas do tempo — Quisera amar-te, Acorda donzela —, além de outras adrede compostas para aquele fim. Amou-a loucamente, “como só se ama uma vez na vida”. Foi desses que dizem em prosa, verso e cochicho: “Ver-te e amar-te foi obra de um só momento”.

Intercalou em alexandrinos o clássico “anjo, mulher ou visão”. Esgotou inteirinho o alforje romântico das imagens enluaradas; recorreu à botânica e assolou o reino vegetal à cata de flores comparativas. Não contente com isso, ainda deambulou pelos céus e mergulhou no oceano em busca de imagens — que nada era bastante à imensidade daquele amor.

Casou por fim e estava reduzido àquilo...

Em vista do que, Lopes, que andava noivo e irresoluto se casaria ou não, tendo já no ativo uma dúzia de sonetos amorosíssimos, decidiu-se incontinenti — casou.

Se tinha de acabar como o Lucas, levasse sobre ele, ao menos, a vantagem de menor cópia de versos à futura cascavel. Porque lhe pareceu que o maior sofrimento do Lucas havia de ser o remorso da enorme bagagem de versos pré–nupciais.

E era.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Doce Aconchego das Trovas n. 2


Sorria, amigo, sorria!
Pois, neste tempo de tédio,
qualquer sinal de alegria
é sempre um santo remédio!
A. A. de Assis
Maringá/PR

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A chuva é para o sertão
como se fosse um troféu.
Deus abre com um trovão
a caixa d’água do céu!
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

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Nós somos tão um do outro,
que fico, às vezes, pensando
que em nossos abraços loucos
sou eu que estou me abraçando!
Adriano Carlos
Rio de Janeiro/RJ, ????–  ????

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Se a areia que pisas tanto,
adivinhasse quem és,
vibrava toda, garanto,
beijando louca, teus pés
Antídio Azevedo
Jardim do Seridó/RN, 1887-1975

__________________

Se de barro fomos feitos
nesta olaria divina,
somos dois corpos perfeitos
partilhando a mesma sina.
Antonio Facci
Cedral/SP, 1941 – 2008, Maringá/PR

__________________

Longe de ti, meu amor,
morro de tédio e de mágoa,
bem como morre uma flor
posta num vaso sem água.
Antônio Sales
Vila do Paracuru/CE, 1868 – 1940, Fortaleza/CE

__________________

Levando um coice da mula,
minha sogra se mandou;
a mulinha nem calcula
o galho que me quebrou.
Argemira F. Marcondes
Taubaté/SP

__________________

Entre nós mudas revoltas
fazem ver, olhando bem,
que até mesmo quando voltas
a distância se mantém!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

__________________

Não gostou de ser cobrado,
no velório o Zé pirou,
foi tapa pra todo lado,
até o defunto apanhou.
Campos Sales
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

__________________

Quanta inspiração me causa,
o entardecer morno e rubro.
Faz na vida doce pausa,
e com sol quente eu me cubro.
Carmem Pio
Porto Alegre/RS

_________________

A areia fina que escorre
numa ampulheta inclemente,
marca o tempo que não morre,
mas, passa...levando a gente!...
Carolina Ramos
Santos/SP

__________________

Era uma bruxa sem graça!
Não me dava paz nem trela.
Eu, então, só por pirraça,
me casei com a filha dela.
Célio Grunewald
Juiz de Fora/MG, 1923 – 1991

__________________

Vejo na tarde tristonha,
pelo vento solto ao léu,
o lenço branco das nuvens
limpando o rosto do céu.
Cesar Coelho
Fortaleza/CE, 1939 – ????

__________________

Aquele olhar triste e ardente,
que na partida me deste,
foi muito mais eloquente
que as palavras que disseste.
Conceição A. de Assis
Pouso Alegre/MG

__________________

Na estrada, outra pedra imensa,
mas, nem assim titubeio:
- não há revés que não vença
quem crê em Deus, como eu creio…
Darly O. Barros
São Paulo/SP

__________________

Não pule do trem do tempo
em desembarque apressado.
Viaje sem contratempo
e não pare adiantado.
Dinair Leite
Paranavaí/PR

__________________

No delírio da paixão
beijo-te a boca, sem calma,
tendo a louca pretensão
de poder beijar-te a alma!
Divenei Boseli
São Paulo/SP

__________________

Brigamos, mas a tormenta
em instantes se desfaz;
um grande amor sempre inventa
um arco-íris de paz!…
Domitilla Borges Beltrame
São Paulo/SP

__________________

Que bela seria a vida
se, acima de ódios mortais,
uma ponte fosse erguida
unindo margens rivais!
Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC ,1926 – 2017, Sorocaba/SP

__________________

Nos seus ardentes amores,
consegue sempre o que quer:
rosa - a rainha das flores...
Rosa - a rainha mulher!
Emilia Peñalba de Almeida Esteves
Portugal

__________________

No poente, o sol bem louro,
se reveste de magia
de ser uma chave de ouro
fechando o cofre do dia!
Eugênia Maria Rodrigues
Rio Novo/MG, ????– 2003

__________________

Fonte de eterno crescer,
a amizade afoga as mágoas,
deixando transparecer
as suas límpidas águas!
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

__________________

Deus fez o mundo e ao fazê-lo
como quem sabe o que quer,
usou todo seu desvelo
na figura da mulher.
Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE

__________________

É de ternura o momento
em que o Sol sorri no espaço,
se faz vida e sentimento
e lança ao mar seu abraço!
Gislaine Canales
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

__________________

A profundeza da mente,
arquivo de nossos traços,
mantém guardada, latente,
a dor de nossos fracassos!
Heloysio Alonso Teixeira
Campos dos Goytacazes/RJ

__________________

Na voragem da procela
do combate interior
é que o homem se revela
se é escravo ou é senhor!
Héron Patrício
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG

__________________

Tua ausência indesejada
me causou tão forte dor,
que vivo abraçado ao nada,
no deserto desse amor.
Joamir Medeiros
Natal/RN

__________________

Que coisa descomunal
aquele curvo nariz
que, ao assoar, é um temporal…
- e escorrer qual chafariz
Lairton Trovão de Andrade
Pinhalão/PR

__________________

Contra-senso é eu ter na vida,
por meu sol os olhos teus,
e ao te olhar, minha querida,
bem ceguinhos deixo os meus.
Luiz Hélio Friedrich
Curitiba/PR

__________________

Sinto meu nome tão doce,
Ao você chamar por mim,
Escuto como se fosse,
O canto de um Querubim.
Marita França
Curitiba/PR, 1915 - 2009

__________________

Levou só tapas da vida;
e, em seu velório (coitado!),
na homenagem merecida
alguém disse: - Adeus, tapado.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP

__________________

A trova, quando é bem feita,
tem encanto, traz surpresa;
poesia curta, perfeita,
a nos brindar com beleza!
Maurício Norberto Friedrich
Porto União, 1945 – 2020, Curitiba/PR

__________________

Naquele amor que resiste
às invernias da idade,
a lembrança é órfão triste
nos asilos da saudade.
Miguel Russowsky
Santa Maria/RS, 1923 – 2009, Joaçaba/SC

__________________

Meu refúgio predileto,
onde eu livro o que angustia,
tem as letras do alfabeto,
muita prosa e poesia!
Nei Garcez
Curitiba/PR

__________________

No caderno do Universo
tendo por pena uma Cruz
Deus compôs um lindo verso
para seus filhos: Jesus!
Nemésio Prata
Fortaleza/CE

__________________
É madrugada na mata
e o pinheiral, a orvalhar,
prepara pingos de prata
para quando o sol raiar.
Olympio Coutinho
Belo Horizonte/MG

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Um dia a mão branca e forte
de uma mulher decidida
deu às mãos negras a sorte
de serem livres na vida.
Octávio Venturelli
Rio de Janeiro/RJ

__________________

A terra inteira secou!…
E, a dor me fez sofrer tanto,
que quando a chuva voltou,
tinha secado o meu pranto!
Prof. Garcia
Caicó/RN

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Tudo na vida tem preço
e prazo de validade...
Quando tu vais, não te esqueço:
pago teu preço em Saudade!
Renato Alves
Rio de Janeiro/RJ

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Dei dinheiro esta semana
para a sogra viajar
a minha sorte é que a grana
não dá pra velha voltar.
Sergio Ferraz
Rio de Janeiro/RJ

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Eu te senti quase meu...
mas o indesejável "quase"
jamais desapareceu
do meio daquela frase...
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

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Ao teu amor sem ternura,
já perdoei tanta ofensa
que almejo, sem amargura,
a bênção da indiferença.
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG

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Não teme a seca inclemente
quem confia em seu labor;
planta a pequena semente
sentindo o cheiro da flor.
Wandira Fagundes Queiroz
Curitiba/PR
Fonte:
https://doceaconchegodastrovas.blogspot.com

Agatha Christie (Resenha de Livros) 4


POR QUE NÃO PEDIRAM À EVANS?
Why Didn’t They Ask Evans?


Frances Dewent e Bobby Jones formam uma dupla de jovens destemidos à procura de novas aventuras. Dessa vez, os dois descobrem o cadáver de um homem que pode ter sofrido um acidente ou ter sido assassinado. Frances e Bobby decidem investigar o caso, tendo duas pistas. Uma é a fotografia de uma bela mulher. A outra é uma estranha frase pronunciada pelo homem antes de morrer: “Por quê não pediram à Evans?”. Em busca da mulher misteriosa e do tal Evans, a dupla se envolve com um perigoso assassino. A solução do crime parece estar cada vez mais próxima… e as vidas da dupla por um fio.
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ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE
Murder on the Orient Express

A ação de Assassinato no Expresso do Oriente, um dos romances mais famosos de Agatha Christie, transcorre, integralmente, no mais famoso dos trens, e serviu de argumento para um célebre filme, no qual todos os numerosos personagens da narração - quase não há personagens secundários - foram interpretados, algo muito pouco frequente no cinema, por figuras de primeira. Ao se passar num trem, a sua apaixonante intriga é ao mesmo tempo concentrada e dinâmica porque se desenvolve sempre num mesmo lugar, que tem a particularidade de ser um lugar em movimento. Através desta longa viagem, o inefável e sedentário detetive belga Hercule Poirot goza da oportunidade de resolver um dos seus casos mais misteriosos, tendo ao seu alcance, sem necessidade de deslocar-se, tanto a vítima como todos os possíveis assassinos.
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O DETETIVE PARKER PYNE
Parker Pyne Investigates


Especialista em estatística, dono de uma mente muito viva e um grande conhecedor da natureza humana, Parker Pyne utiliza estas qualidades para ser uma espécie de vendedor de felicidade. Mas o bondoso e aparentemente inofensivo detetive não se limita a solucionar os problemas de mulheres ciumentas, maridos fracassados ou militares da reserva: também cabe a ele enfrentar ladrões, sequestradores e assassinos. Para eles, Pyne prepara as armadilhas mais engenhosas, demonstrando que uma mentira oportuna pode ajudar a descobrir a verdade. Estas doze histórias variadas e divertidas sobre o curioso personagem mostram o inigualável senso de humor que tornou Agatha Christie famosa em todo o mundo.

O Caso da Esposa de Meia-Idade

Depois que a Sra. Packington descobre que o marido está saindo com outra mulher, ela decide procurar Parker Pyne para tentar resolver seu problema. Com um pouco de artimanhas, o detetive finalmente consegue seu objetivo de uma maneira muito interessante.

O Caso do Soldado Insatisfeito
Um major do exército entra em contato com Parker Pyne pois se sente entediado. O detetive pede para ele ir a um certo endereço se encontrara com um tal de Jones. Lá ajuda uma mulher que o coloca numa grande aventura. No final vemos como foi que tudo foi tramado.

O Caso da Senhora Angustiada
Uma senhora pede que Parker Pyne lhe ajude a devolver um diamante que roubara sem que ninguém saiba, pois poderia acabar com seu casamento. Parker Pyne a ajuda e descobre outras coisas que a senhora não teve coragem de contar.

O Caso do Marido Desgostoso

O Sr. Wade não quer se separar de sua mulher que já tem um amante. Assim, procura Parker Pyne para tentar ajudá-lo a reconquistar a mulher. Com um plano muito simples, o detetive consegue seu objetivo mas deixa o Sr. Wade em uma situação muito constrangedora.

O Caso do Empregado de Escritório

Um empregado de escritório está cansado da monotonia do dia-a-dia e procura Parker Pyne para resolver seu problema. Com um pouco de criatividade, o detetive faz o empregado viver muitas aventuras que o fazem ver como a vida pode ser emocionante.

O Caso da Milionária
Depois da morte de seu marido, uma milionária se sente infeliz mesmo tendo tudo o que o dinheiro pode comprar. Chama o detetive para ajudá-la, e ele faz a milionária fazer uma pequena viagem que muda completamente sua vida.

Você Tem Tudo o Que Quer?
Numa viagem de trem, o detetive Parker Pyne tenta resolver o mistério do desaparecimento das joias de uma jovem senhora. Depois de algumas investigações, ele descobre a identidade do ladrão e resolve mais um caso.

O Portão de Bagdad

Viajando pelo Oriente, Parker Pyne se defronta com um assassinato muito curioso e que desperta sua curiosidade. Apenas conversando com alguns passageiros ele consegue descobrir a identidade do assassino e o motivo que o levou a fazer o que fez.

A Casa de Shiraz

Ainda no Oriente, Parker Pyne tenta resolver o mistério de uma inglesa que não deseja voltar nunca mais à Inglaterra. Com um único detalhe, o detetive descobre os motivos da inglesa e a faz mudar de ideia.

Uma Pérola Valiosa

No Oriente, Parker Pyne tem que resolver o caso do desaparecimento de uma pérola muito valiosa, perdida durante um pequena viagem que todos fizeram. Como sempre, o ladrão é sempre o menos suspeito.

Morte no Nilo

Senhora pede ajuda a Parker Pyne pois acredita estar sendo envenenada pelo marido. Sua enfermeira fala com ele sobre a mesma suspeita. Com uma simples análise, Parker Pyne descobre quem está envenenando a senhora.

O Oráculo de Delfos
O filho da Sra. Peters é sequestrado e seus raptores pedem uma colar que vale 100 mil dólares. Pedindo a ajuda de Parker Pyne, ela tem de volta seu filho e a identidade dos sequestradores.
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TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS
Three Act Tragedy


Durante uma festa na casa do famoso ator Sir Charles Cartwright, o reverendo Stephen Babbington cai morto, envenenado, diante dos convidados. Este crime cruel é apenas o primeiro ato de uma tragédia macabra, que envolverá ainda outros dois misteriosos assassinatos, sempre por envenenamento. Três grandes desafios para o genial detetive Hercule Poirot, que rouba a cena com sua arguta inteligência, para arrancar a máscara sob a qual se esconde o insuspeitado assassino.
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MORTE NAS NUVENS
Death on the Clouds


Uma velha senhora é assassinada quando viajava de avião de Paris a Londres. A causa da morte foi uma pequena ferida provocada por um dardo envenenado lançado de uma zarabatana. O assassino somente poderia ser um dos dez passageiros restantes do avião, mas, para desgraça do criminoso, entre eles estava o único que poderia descobri-lo: um baixinho de grandes bigodes e aspecto um tanto ridículo, chamado Hercule Poirot. Duas são as principais perguntas que se colocam para o grande detetive belga: 1) Por que o assassino escolheu arma tão estranha e exótica para cometer o homicídio? 2) Como pôde disparar a zarabatana dentro de um espaço tão reduzido sem ser visto por nenhum dos outros passageiros? Completamente desconcertada a polícia considera que, mesmo que o assassinato sendo um fato, sua execução parece impossível. Poirot, para quem nada é impossível, descobre o engenhoso recurso usado pelo assassino para matar a vítima e, como consequência, sua insuspeitada identidade.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

sábado, 21 de março de 2020

Varal de Trovas n. 215


Humberto de Campos (Chaves e Fechaduras)


- Os senhores, conselheiro, os senhores, homens, - dizia-me, abanando-se pausadamente com o seu grande leque de plumas vermelhas, a linda viscondessa de Lima Freire, - os senhores serão, sempre, injustos com as mulheres, por que nem todos poderão compreendê-las.

- As mulheres são, então, o maior mistério do universo? - indaguei, com ironia.

A viscondessa sorriu da minha ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade pela minha ignorância, acentuou, bondosa:

- O conselheiro não me entendeu, ou não me quer entender. A mulher é um mistério, mas um mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O símbolo da fechadura tão frequentemente citado pelos psicólogos, constitui uma verdade indiscutível.

- O símbolo da fechadura?

- Sim; não o conhece?

E como lesse a curiosidade no meu olhar, contou-me, pausadamente, cerrando a meio os seus macios olhos de míope:

- Cada mulher é uma fechadura que só tem uma chave...

- Só? - interrompi.

- Espere aí! - pediu, impondo-me silêncio com o leque.

E continuou

- Cada mulher é uma fechadura, que só tem uma chave, a qual está nas mãos do homem que a tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros passarão sob os seus olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no sacrário da sua alma, usando de chave falsa. Um homem, apenas, tem a chave verdadeira, e é somente quando a mulher se encontra com ele que se dá, realmente, a felicidade no matrimônio. Compreendeu?

Eu ia confirmar com um monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu tempo.

- Cada mulher - continuou - devia esperar, de olhos fechados, como a princesa adormecida no bosque, o portador da chave da sua fechadura. É da impaciência de algumas que nascem, geralmente, os escândalos, os divórcios, a dissolução ruidosa das famílias legalmente constituídas. Supondo-se esquecidas pelo seu porteiro, elas cedem à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-se. Mais tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a felicidade de um lar!

- Isso era antigamente! - observou, intervindo, o capitão Peixoto Cunha, que nos observava de perto. - Hoje não há mais portas com uma chave só.

E acentuou, rindo:

- As portas, hoje, são de trinco!

Nesse momento, chegava, pausadamente, o visconde, enrolando em torno do dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em cuja extremidade chocalhava, numa argola, uma penca de chaves.

Estas eram seis, e abriam, todas, com a mesma facilidade, as duas gavetas da secretária…

Fonte:
Humberto de Campos. Contos Vários.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 3


A LINHA DO CORAÇÃO
Alguém leu, anos atrás,
a palma de minha mão,
e disse, entre outras coisas,
com muita admiração:
"Como é nítida e perfeita
a linha do Coração!..."

Os anos foram correndo...
Muita gente foi subindo…
Muita gente enriquecendo...
E eu sempre pobre e humilde,
fui vivendo... fui vivendo...
****************************************

  CARTA
à Sebastiana (menina às vésperas de sair de um Abrigo)

Muito em breve partirás,
minha alegre Sebastiana!
Sei que contas dia a dia,
e semana por semana...
E se alegre sempre foste,
tão vivaz e tão contente,
agora então teu olhar
tem um brilho diferente!

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana,
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!


Bem sei que anseias partir...
Queres conhecer a Vida...
Por isso, ansiosa, só pensas
agora em tua partida.
— Partir para ver o Mundo...
Ser feliz... ter liberdade...
Descobrir o cobiçado
País da Felicidade!...

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, —
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Há muitos anos já vives
neste acolhedor Abrigo,
e sei que me consideras
um sincero e bom amigo.
És tão ingênua, tão boa,
nada conheces do Mundo,
e julgas que vais achar
um paraíso profundo…

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, —
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Não julgues um Paraíso,
a Vida... o Mundo cá fora!
Há muito lábio sem riso...
Há muita gente que chora...
E até mesmo as alegrias
que tu pensas que se alcança,
vais ver depois: são menores,
que os teus sonhos de criança...

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, –
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Meus versos tristes perdoa,
são versos de despedida;
guarda-os bem para lembrares
da tua infância querida...
Não percas jamais teu riso,
nem na luta mais insana!
Que a Vida te seja leve...
Sê feliz, Sebastiana!
****************************************

CREPÚSCULO

Não tem de todo ainda a chama fria,
o seu olhar que tanto ardia outrora...
Mas aquele esplendor que nele havia,
serenamente, e aos poucos, vai se embora...

Nota-se ainda traços de Alegria
nos seus ares tão sérios de senhora,
como raios de sol em agonia,
numa Tarde que, lenta, se descora...

Tem o viço da flor em plena vida!
Mas amanhã talvez (ninguém garante!...)
que não tombe do caule, fenecida...

E assim se vê, num tom ainda incerto:
— sinais da Juventude já distante
e traços da velhice que vem perto!...
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INFELIZES…

Certas vidas eu conheço,
que entre tristezas e prantos,
têm sempre um feliz momento…
– E há vidas que são marcadas
por tão constante tormento,
que eu julgo só conhecerem
neste Mundo o Sofrimento…
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TARDE DEMAIS…
(Para o Dr. Cid Cardoso)

Ela passou por minha vida um dia...
E amou-me muito como mais ninguém!
Tinha a beleza olímpica, sadia,
e uma alma pura e esplêndida também!

Que afinidade entre nós dois havia!
E ao seu lado sentia-me tão bem!
Do ideal que se sonha, parecia
ter mais ainda que o ideal contém…

Por minha culpa demorou-se pouco…
Vi-a partir, indiferente e louco,
sem dar-lhe um beijo ou um adeus sequer.

E agora… muito tempo já passado,
eu sofro pelo mal de ter amado
tão tardiamente assim esta mulher!…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Irmãos Grimm (Gentalha)


Franguinho disse à Franguinha:

- Agora é a época em que estão amadurecendo as nozes, vamos os dois à montanha e, pelo menos uma vez na vida, fartemo-nos, antes que o esquilo as carregue todas.

- Sim, - respondeu Franguinha - vamos; vamos regalar-nos fartamente.

E lá se foram os dois para a montanha. Como era um dia magnífico, deixaram-se ficar até tarde. Ora, eu não sei se realmente estavam empanturrados, ou se apenas fingiam estar, só sei que não queriam voltar a pé para casa e Franguinho teve que construir um carrinho com cascas de nozes. Quando ficou pronto, Franguinha acomodou-se nele e disse:

- Agora, Franguinho, podes puxar.

- Que ideia a tua! - respondeu Franguinho, - prefiro antes ir a pé para casa. Não, não foi esse o nosso trato. Sentar-me na boleia e servir de cocheiro, posso fazer, mas atrelar-me e puxar, isso é que não!

Enquanto assim discutiam, chegou uma pata cacarejando:

- Corja de ladrões, quem vos deu licença para invadir a montanha das minhas nozes? Agora me pagareis.

Precipitou-se de bico aberto sobre Franguinho, mas este, que não era nenhum covarde, atirou-se valentemente contra a pata, trepou-lhe nas costas, bicou-a e esporeou-a tão violentamente, que ela não teve remédio senão pedir mercê. Como punição, consentiu que a atrelassem ao carrinho. Franguinho subiu à boleia como cocheiro e partiram em carreira desabalada.

- Corre pata, corre o mais ligeiro que puderes!

Após terem percorrido bom trecho de caminho, encontraram dois peões: um alfinete e uma agulha. Estes gritaram:

- Para! Para!

Então explicaram que já estava escurecendo e não podiam dar mais um passo sequer; o caminho estava tão lamacento! Não poderiam viajar no carrinho? Tinham estado na estalagem dos alfaiates, além dos muros da cidade, e lá se haviam retardado bebendo um copo de cerveja.

Como era gente magra, não ocupavam muito espaço. Franguinho deixou-os subir. Mas tiveram de prometer não pisar os pés dele o de sua querida Franguinha. Era tarde da noite quando chegaram à estalagem, e não querendo prosseguir a viagem de noite, mesmo porque a pata estava mal das pernas, cambaleando de um lado para outro, decidiram pernoitar aí.

O estalajadeiro, a princípio, tentou opor-se, inventando mil dificuldades e alegando que a casa estava lotada. Isso porque tinha a impressão de que não eram da alta sociedade. Mas, tão bem souberam argumentar, prometendo-lhe que ganharia o ovo que Franguinha havia posto pelo caminho e, também, que ficaria com a pata que botava um ovo por dia, que, finalmente, ele acabou por deixá-los pernoitar.

Mandaram, então, pôr a mesa e banquetearam-se alegremente. Pela manhã, logo de madrugada, quando ainda dormiam todos, Franguinho despertou Franguinha, apanhou o ovo, fez-lhe um buraquinho com o bico e juntos chuparam-no, atirando a casca na lareira.

Depois, foram onde estava a agulha dormindo a sono solto, pegaram-na pela cabeça e espetaram-na no encosto da poltrona do estalajadeiro, e o alfinete espetaram na toalha de rosto.

Feito isso, sem dizer a ninguém, abriram as asas e foram-se voando pela planície afora. A pata, já habituada a dormir ao relento, tinha ficado no terreiro; ouvindo-os esvoaçar, acordou e foi saindo. Encontrou um regato e por ele foi nadando, descendo a corrente; era mais rápido do que puxar o carrinho.

Algumas horas mais tarde o estalajadeiro, levantando-se antes dos outros, lavou-se e foi enxugar-se na toalha; então o alfinete arranhou-lhe o rosto, deixando-lhe um sulco vermelho que ia de uma orelha a outra. Foi à cozinha, onde queria acender o cachimbo, mas, ao inclinar-se na lareira, as cascas do ovo saltaram-lhe nos olhos.

- Esta manhã tudo está contra a minha cabeça, - resmungou, e deixou-se cair muito irritado na sua poltrona. Mas deu um pulo, gritando: - Ai, Ai.

A agulha o havia espetado dolorosamente, - e não na cabeça.

A essa altura, o furor dele chegou ao extremo; começou a suspeitar dos hóspedes que haviam chegado tão fora de hora na noite anterior. Foi procurá-los, mas estes já haviam desaparecido.

Diante disso, o pobre estalajadeiro jurou nunca mais hospedar gentalha que, além de comer muito, não paga nada, e ainda por cima, agradece com malvadezas.

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXVI


Alcântara Machado (Lisetta)


Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.

- Olha o ursinho que lindo, mamãe!

- Stai zitta! (Cale a boca!)*

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância.

Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras.

- As patas também mexem, mamã. Olha lá!

- Stai ferma! (Fique parada!)

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinquenta mil réis na Casa São Nicolau.

- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?

- Ah!

- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.

A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:

- In casa me lo pagherai! (Você vai me pagar em casa!)

E desferiu por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.

Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

- Stai ferma** o ti amazzo, parola d'onore! (Fique parada ou eu mato você, palavra de honra!)

- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più! (Escute, Lisetta. Eu não vou mais te levar para a cidade! Nunca mais!)

Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez.

O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

- Non piangere più adesso! (Não chore mais!)

Impossível.

O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!

- Olha à direita!

Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina.

- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!

Também Lisetta já não aguentava mais.

- Toma pra você. Mas não escache.

Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:

- Ele é meu! O Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
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* Todas as frases em italiano foram traduzidas para o português por José Feldman.
** No texto original está “ferina” (selvagem, ferina), o que deixaria sem sentido o texto, acredito que foi um erro de digitação e o correto é “ferma” (calada).


Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Varal de Trovas n. 214


Dorothy Jansson Moretti (Índios e Lágrimas)


Em conversa com minha vidinha, dizia-me ela    finalmente, uma amiga de sua filha vencera a resistência dos pais e se casara com um advogado que eles repudiavam por ser de origem indígena.

O preconceito fez-me lembrar de um fato que aconteceu quando eu estudava em colégio interno, e eu o relatei com minúcias à minha vizinha.

Certo dia, apareceu no pátio, vindo pela estrada que ligava o colégio à cidade, uma distancia de quatro quilômetros, um indiozinho de uns catorze anos. Tinha um nome lindo e sonoro: Itáiro Igaiara. Coitadinho! Não se sabia o quanto ele havia andado, mas estava coberto de poeira, a roupa em frangalhos e os cabelos semi-longos sujos e cheios de piolhos! Deram-lhe "aquele" banho, vestiram-lhe roupas limpas, cataram-lhe os parasitas, e permitiram que ele ficasse no colégio, estudando em troca de pequenos serviços nas hortas, compatíveis com sua capacidade física.

Itáiro, não lhe bastasse a timidez, era menosprezado por quase todos os colegas masculinos e femininos. Eu tinha pena dele e tratava-o sem preconceito, conversando e procurando fazê-lo sentir-se mais integrado entre nós.

As coisas, porém, começaram a tomar um rumo que eu não previra. Ele tentou levar a amizade para o terreno de um namorico. Eu tinha só treze anos, e aquilo me pareceu uma coisa horrível! Fiquei indignada e passei a trata-lo com estudada indiferença. O pobre sentiu a virada e ficou tristinho, mas eu estava irredutível. Não nos falamos mais.

Chegou o fim do ano e em meio aos preparativos para as festas, Itáiro, por intermédio de Dona Anita, nossa governante, conseguiu conversar comigo. Pediu-me desculpas. Disse que não queria voltar para Mato Grosso, de onde viera, deixando-me magoada com ele. Profundamente tocada por sua humildade, eu "perdoei" Itáiro, e continuamos amigos novamente.

Enquanto eu contava esse caso à minha vizinha, não percebi que meu filho, que tinha seis anos, estivera atento à nossa conversa. Eu esqueci o assunto. Mais tarde, notei que Paulinho, sempre tão vivo e tagarela, estava meio macambúzio, mas não prestei muita atenção àquilo. No fim da tarde, muito quieto, de deitou-se e cobriu a cabeça. Fui ver o que havia. Estava doente? O que estava sentindo? Mas ele... nada!

À noite, minhas amigas Noemi e Elivir apareceram lá em casa. Contei-lhes que o Paulinho não estava muito bom. Elas foram vê-lo. Elivir achou-o muito quente e vermelho. Colocou-lhe o termômetro. Normal, mas ele não falava nem mesmo com elas de quem gostava tanto e que o agradavam demais.

Ficamos as três preocupadas, e eu resolvi obrigá-lo a dizer-me o que se passava. Cansado com minha insistência, ele finalmente reagiu, mas num pranto desesperado...

'*Buááá...”

"Mas o que é isso, meu filho. O que é que você tem?"

Chorando e fungando muito, a resposta, toda entrecortada, veio afinal:

"É... por causa... do índio...”

– "Índio? Mas que índio?"

Eu estava aturdida. Não tinha a mínima ideia do que ele queria dizer.

Soluços:

"O índio que queria casar com você,,, e você não quis... Ele usava pena, mamãe?"

Toda a minha preocupação acabou-se. Mentalmente reconstituí a cena da maneira como Paulinho a imaginara: um índio todo enfeitado de penas, querendo casar comigo e eu dizendo que não... Deu-me uma vontade louca de rir, e a custo consegui conter-me.

"Mas meu filho? A mamãe tinha só treze anos e o índio catorze. Não podíamos nos casar.”

Ele continuava num choro desconsolado. Abria as comportas retidas durante um dia inteiro. Eu mal sabia o que fazer. Muito menos Elivir e Noemi que ignoravam absolutamente o que se passava. Tive que repetir-lhes a história, depois, na cozinha, e elas riram a valer, às escondidas de Paulinho, para não magoa-lo ainda mais. E ele chorava, chorava…

Finalmente ocorreu-me uma ideia;

"Filho, mas e o papai? Se eu casasse com o índio, você seria filho do índio e não do papai Paulo... Você queria?"

Acalmando-se um pouco e ainda fungando muito, ele me olhou assustado.

Insisti:

"E então... onde é que o papai ficava nessa história?"

Agarrado ao pai do jeito que ele era, acabou por se conformar. Secaram-se as lágrimas e, como acontece em qualquer criança, dali a instantes já estava alegrinho, brincando com Noemi e Elivir, feliz da vida e esquecido - pelo menos momentaneamente ~ daquele índio de penas que tanto o fizera "penar"...

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Doce Aconchego das Trovas n. 1



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Melhor idade?… Bobagem…
lorota antiga… falácia…
– Velhice só traz vantagem
para o dono da farmácia!
A. A. de Assis
Maringá/PR

- - - - - –

A noiva diz que "ele aceita"
e vai se casar feliz,
porque está bem satisfeita:
achou o noivo que quis!
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos/SP

- - - - - –

A minha alma não se cansa,
- embora desiludida,
de acalentar a esperança,
que é o acalanto da vida.
Anis Murad Lamar
Rio de Janeiro (1904 – 1962)

- - - - - –

Una sonrisa sincera
siembra en tu bello vergel
y estará, por donde quiera,
multiplicándose en él.
Carlos Rodriguez Sanchez
Venezuela

- - - - - -

Não se compra, tendo em vista
que não se vende alegria;
felicidade é conquista
que se faz no dia a dia.
Dáguima Verônica de Oliveira
Santa Juliana/MG

- - - - - –

Sobre um fio, numa rua,
brincavam gato e criança,
sob a luz do Sol ou Lua,
fantasiados de esperança!
Delcy Canalles
Porto Alegre/RS

- - - - - –

Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se,
mas não engana a si mesmo.
Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE

- - - - - –

Em busca do meu futuro,
descobri o seu coração.
Este amor, tão prematuro,
tirou-me da solidão.
Jennifer Caroline Correia
Bandeirantes/PR

- - - - - –

Para ter felicidade
e ser, de fato, feliz,
aprenda a simplicidade
de São Francisco de Assis!
José Antonio de Freitas
Pitangui/MG

- - - - - –

Buscar a verdade, perto,
olho a olho, frente a frente,
parece o jeito mais certo
de se falar com quem mente.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN (1934 – 2015) Natal/RN

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Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz…
Grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
Lucília A. Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

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Em toda Mulher se vê:
o charme, o encanto, a alegria
e em todas elas há um quê
da doçura de Maria!
Maria Calil Zambon
Novo Horizonte/SP (1935 – 2012) Bandeirantes/PR

- - - - - –

Palabras aún en distancia
son vida para quien ama,
pueden saciarnos el ansia
amándonos con su llama.
Maria Cristina Fervier
Argentina

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Felicidade! – Eu te estudo
e não decifro a “charada”:
– Uns – infelizes com tudo…
– Outros – felizes sem nada!!!
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

- - - - - –

Aos ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!
Prof. Garcia
Caicó/RN

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Sinto Deus em toda escala...
Na vida, nos pensamentos,
no cheiro que a terra exala
entre a chuva e o próprio vento!
Nei Garcez
Curitiba/PR

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De estrelas toda bordada,
porta aberta para a rua,
a tapera abandonada
abriga os raios da lua.
Sônia Sobreira
Rio de Janeiro/RJ

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Felicidade?… É a que eu tenho
quando na vida ajo assim:
– Quero alguém feliz… me empenho…
e esqueço um pouco de mim.
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

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Cascata de Trovas

Olivaldo Junior
Mogi-Guaçu/SP

TROVAS PARA OS "ANTIGOS"

Nas "histórias da vovó",
o netinho embala os sonhos,
embalando, sem ter dó,
seus enredos mais risonhos.

Cada estrela na calçada,
logo após a noite fria,
se disfarça de alvorada
no clarão do novo dia.

As meninas contam flores
no jardim de nunca mais;
cada flor tem muitas cores,
mas a roxa tinge os "ais".

Solidão ficou velhinha,
nunca mais saiu de casa;
certa noite, na cozinha,
pôs-se em pé e criou asa.

Entre as faces que já tive,
uma delas me entristece:
a que finge que inda vive
neste rosto que envelhece.

Fonte:
https://doceaconchegodastrovas.blogspot.com