terça-feira, 21 de abril de 2020

Paulo Mendes Campos (Segredo)


Há muitas coisas que a psicologia não nos explica. Suponhamos que você esteja em um 12.º andar, em companhia de amigos, e, debruçando-se à janela, distinga lá embaixo, inesperada naquele momento, a figura de seu pai, procurando atravessar a rua ou descansando em um banco diante do mar. Só isso. Por que, então, todo esse alvoroço que visita a sua alma de repente, essa animação provocada pela presença distante de uma pessoa da sua intimidade? Você chamará os amigos para mostrar-lhes o vulto de traços fisionômicos invisíveis:  "Aquele  ali  é papai". E os amigos também hão de sorrir, quase   enternecidos, participando um pouco de sua glória, pois é inexplicavelmente tocante ser amigo de alguém cujo pai se encontra longe, fora do alcance do seu chamado.

Outro exemplo: você ama e sofre por causa de uma pessoa e com ela se encontra todos os dias. Por que, então, quando esta pessoa aparece à distância, em hora desconhecida aos  seus encontros, em uma praça, em uma praia, voando na janela de um carro, por que essa ternura violenta dentro de você, e essa admirável compaixão?

Por que motivo reconhecer uma pessoa ao longe sempre nos induz a um movimento interior de doçura e piedade?

Às vezes, trata-se de um simples conhecido. Você o reconhece de longe em um circo, um teatro, um campo de futebol, e é impossível não infantilizar-se diante da visão.

Até para com os nossos inimigos, para com as pessoas que nos são antipáticas, a distância, em relação ao desafeto, atua sempre em sentido inverso. Ver um inimigo ao longe é perdoá-lo bastante.

Mais um caso: dois amigos íntimos se veem inesperadamente de duas janelas. Um deles está, digamos, no consultório do dentista, o outro visita o escritório de um advogado no centro da cidade. Cinco horas da tarde; lá embaixo, o tráfego estridula; ambos olham  distraídos e cansados quando se descobrem mutuamente. Mesmo que ambos, uma hora antes, estivessem juntos, naquele encontro súbito e de longe é como se não se vissem há muito tempo; com todas as  graças  da  alma  despertas, eles começam a acenar-se, a dar gritos, a perguntar por gestos o que o outro faz do outro lado. Como se tudo isso fosse um mistério.

E é um mistério.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. do  Autor, 1961.

André Kondo (A Caligrafia)


Num mar negro. Nigérrimo. As ondas quebram violentamente em alguns momentos, para acalmarem-se pacientemente em outros. Tempo. No alvo plano, uma montanha negra se eleva em questão de segundos. Tempo. A geografia nasce em singelas pinceladas, vida e morte, na ponta de um pincel. Eternidade.

Nampo contemplou o mar. Seguia um ritual meticuloso antes de iniciar uma peça de shodo*. No caminho da caligrafia não deveria haver qualquer traço negativo. Para isso, era necessário apagar qualquer sinal que pudesse macular a pureza de espírito. Era necessário que a alma deslizasse no papel como em uma caminhada com destino certo, sem desvios e imprevistos que poderiam levar a um sentimento indesejável.

As peças caligráficas de Nampo poderiam trilhar o caminho da perfeição, repousando nas paredes dos mais santificados templos e dos mais suntuosos palácios de seu tempo. Certamente, sobreviveriam, mesmo quando os tempos se tornassem outros. Para um grande mestre da arte do shodo, escrever uma peça perfeita era como traçar a própria eternidade. No sumi* negro pincelado no alvo papel, na coreografia perfeita nascia a dança dos significados. Os traços ganhavam contornos de vida.

Uma peça caligráfica é escrita para uma determinada estação do ano, sendo substituída como as folhas que caem no outono, a neve que derrete na primavera, as flores de cerejeira sopradas ao vento, os frutos colhidos, as aves que migram, as vidas que passam. Uma sazonal eternidade.

Na fugacidade desses momentos que, à primeira vista, parecem tão efêmeros, existe um traço da eternidade. Estações passam, porém, sempre retornam, em um ciclo que se repete ao longo dos milênios.

É este equilíbrio, entre o traço aparentemente efêmero do mestre de shodo e a eternidade do significado das palavras traçadas, que caracteriza uma obra-prima da arte de escrever o que não se expressa com palavras.

Às costas de Nampo, encontrava-se uma dessas peças perfeitas. Aliás, não "uma dessas", mas "a peça perfeita". Desde que a arte da caligrafia surgira, há três mil anos, nunca houve e, provavelmente, nunca haverá uma peça que se iguale àquela exposta no relicário de Nampo.

Quando aquela peça foi traçada, o mundo parou por um segundo. E, nesse único segundo, a eternidade do satori* foi alcançada. A caligrafia iluminou-se como um Buda e criou um universo, além das esferas deste mundo. Porém, para Nampo, aquelas linhas traçadas naquele papel só atestavam uma coisa: a verdade.

Em sua juventude, Nampo havia se deparado com a austeridade de uma vida que deveria alcançar a perfeição. Seu pai era o mais poderoso senhor feudal de sua época. Desejando preparar o filho para ocupar o seu lugar no poder, instruiu-o com os melhores mestres. O pai de Nampo havia conquistado o Japão com a espada, cuja arte considerava superior a todas as outras. Era na arte da espada que o pai queria que o filho se especializasse.

Se havia aulas de cerimônia do chá, era para aguçar-lhe o sentido do sabor da perfeição. Se havia aulas de música, era para afiar-lhe o ouvido para a sublime canção da vitória. Se havia aulas de sumiê*, era para aguçar-lhe os reflexos em combate. Se havia aulas de caligrafia... era para que ele pudesse escrever o seu nome na História.

Dentre todas as artes, Nampo apaixonou-se pela caligrafia. Em nenhuma outra sentia-se tão pleno quanto na arte do shodo. Porém, havia um fato que talvez o tenha levado a escolher a arte do shodo em detrimento de todas as outras: Yumi.

Yumi, sua professora de caligrafia, era uma jovem promissora, cujo talento surpreendeu até o pai de Nampo, acostumado apenas a conviver com os maiores mestres em suas respectivas artes. Havia, no traço de Yumi, uma vivacidade rara. Geralmente, os grandes mestres de shodo eram já anciãos, que passaram a vida inteira aperfeiçoando-se nesta arte de traçar sentimentos. Por isso, a jovial genialidade de Yumi tornava-se ainda mais impressionante. Tão impressionante que atraiu o amor, não apenas de Nampo, mas também de seu pai,

— Cada peça de shodo é única. Veja, podemos traçar a mesma frase, a mesma palavra, os mesmos caracteres... Porém, observe o traçado de cada uma das peças. Nenhuma peça é igual a outra. “Vê?" — Yumi explicava.

— Um dia, Yumi, traçarei uma peça de shodo exatamente igual a uma das suas.

— Acabei de explicar que peça alguma pode ser igual a outra — Yumi sorriu.

— Yumi, em todas as artes, compreendi que tudo depende do fluxo do coração. É ele quem controla a intensidade de nossos movimentos, da nossa respiração. Um dia, quero ser capaz de sentir o que você sente. Tomar-me um com você. Pois é isto o que eu mais desejo. Unir minha alma à sua— disse Nampo.

Yumi ruborizou. Sua mão perdeu a firmeza. Não conseguiria traçar o mais simples kanji naquele dia. Não sabia se sorria ou se repreendia o aprendiz, que apesar de ser filho do senhor feudal, ainda era apenas um jovem. Ainda mais jovem do que ela própria.

Nampo se esforçava para penetrar no coração de Yumi. Tal esforço apenas provocava cada vez mais o afastamento da jovem mestra de shodo. Até que, não suportando mais fugir de um sentimento que perigosamente crescia não apenas dentro de Nampo, mas dentro de si também, decidiu solicitar o seu afastamento ao seu senhor,

— Yumi, concordo em afastá-la como tutora de meu filho.

— Muito obrigada! Agradeço a compreensão e generosidade...

— Pois será, em breve, minha esposa!

Surpreendida, Yumi sabia que aquela não era uma proposta que pudesse declinar. Era uma sentença. Perpétua.

Em uma época em que o senhor feudal era senhor não apenas das terras, mas dos homens que nela viviam, em que homens se sacrificavam em seppuku com um simples gesto de seu senhor, não restou outra alternativa, senão a submissão de Yumi. E de Nampo.

Na noite anterior à união de seu pai e Yumi, Nampo a procurou. A Lua brilhava tão intensa que seria uma pena deixar de imortalizá-la em um haicai. Porém, a poesia daquela noite era outra, traçada em negras curvas. O negro da noite e não a claridade da Lua seria o mestre daquele momento.

Nampo sentia o espírito arder. Também assim queimava a alma de Yumi. Quando duas paixões tão intensas se encontram, mundos colidem e sociedades desmoronam em chamas.

A respiração, O coração disparado. As curvas se definindo. Lentamente. Cada caminho levando a um único destino: o nascer de uma peça de shodo.

— Nampo, eis a minha alma, que entrego a você...

Nampo nada disse. Quando alguém lhe entrega a alma, não há palavras. O papel estendido. As mãos quase se tocaram. Quase. No encontro das almas, o corpo nunca está presente.

A despedida.

Nampo abandonou as terras de seu pai. Vagou pelo Japão em busca de alguma paz. Acompanhava-o em sua jornada a alma de sua amada. Porém, como viver apenas com a alma, quando seu corpo também clamava por companhia? Refugiou-se em uma cabana abandonada, em um promontório distante. Nunca mais saiu dali.

No relicário, a alma-viva de sua amada: a peça de shodo de Yumi. A peça que, pacientemente, entre um shodo e outro sobre sentimentos vãos, tentava imitar. Dia após dia, no momento em que mais sentia saudade, Nampo tentava seguir os caminhos trilhados por Yumi naquela peça caligráfica. Às vezes, quase conseguia. Porém, seus destinos haviam se separado para sempre. Destarte, nunca lograva seguir os caminhos de Yumi.

Saía ao mar em um pequeno barco, comprado às custas de sua arte caligráfica. Pescava. Em canteiros que cercavam sua cabana, plantava legumes e hortaliças. Essa rotina aparentemente pequena escondia a grandiosidade da vida. O traçado dos deuses sobre a terra criava os peixes no mar, os frutos na terra. Porém, quem apenas visse peixes e frutos perderia a verdadeira essência dos traços da vida: o mar e a terra.

A cada dois meses, um emissário de uma loja do vilarejo viajava dois dias para chegar à cabana. Levava as peças caligráficas de Nampo e em troca deixava algum item essencial para o corpo do artista e outros essenciais á sua alma. Um dos itens mais importantes que ele trazia era um pequeno bloco de sumi negro, que Nampo diluía em água para traçar suas peças de shodo. Este momento para ele era sagrado. O diluir do sumi era o diluir de sua alma, que se esvaía na ponta do pincel, imortalizando-o no papel.

Por anos, essa rotina se repetiu... Anos...

Nampo, já velho, observou o emissário retornar. Ao longo do tempo, os emissários mudavam, porém, o que não mudava era o sumi, de qualidade incomparável, que Nampo recebia com incompreensível prazer. Daquela vez, o emissário demorou--se mais do que de costume. E não trouxe o sumi. Não trouxe nada além de uma carta:

Nampo, peço perdão por esta vida... 

Tudo o que pude lhe dar foi uma peça de shodo, quando o que desejava era poder dar a você o que nela estava escrito. Por anos, imaginei que seria capaz de ser forte e cumprir o meu desejo. Porém, como deve ter percebido, nunca tive essa coragem.

Nampo, devo pedir perdão por algo mais terrível ainda...

Por todos esses anos, eu o tive ao meu lado... Senti cada dia de sua vida, a cada peça de shodo que você traçava. Pois saiba que adquiri cada peça sua, cada suspiro, cada toque... E, para aumentar ainda mais a minha culpa, ousei estar ao seu lado também...

Perdão, Nampo... Por esta atitude egoísta. Cada vez que recebia uma peça de shodo sua, empenhava-me em seguir os mesmos traços. Após terminar a minha peça, espelha da sua, queimava-a junto com a madeira, para que se tomasse a fuligem que usava para fabricar os seus blocos de sumi. Empenhei-me em fazer com que o dono da loja aceitasse enviar a você apenas o sumi que eu fabricasse. Fato que ele não questionou, pois eu era uma boa cliente, comprando todos os trabalhos de shodo que você vendia por intermédio dele. Foi um arranjo fácil. O difícil foi suportar a minha mesquinharia.

Como pude viver assim todos estes anos? Como pude desfrutar de sua companhia e ainda impor a minha a você? Desconheço algo mais vil nesta vida. Por isso tudo, peço perdão.

Nampo, perdão pelos meus erros... Muito obrigado, por estar ao meu lado nestes longos anos. Nampo, perdão por partir assim, mais uma vez, e desta vez, creio, para sempre...

Se está recebendo esta carta é porque, assim como o sumi que com carinho fabriquei para você, eu também me tomei pó, para servir de sumi ao pincel dos deuses...

Yumi


Nampo olhou para o mar, olhou para a caligrafia de Yumi, pendurada em seu relicário. Ali estava escrito, com todas as curvas da vida, a palavra: amor. Nampo ansiava retribuir o presente recebido, há tanto tempo. Finalmente, o seu coração estava preparado.

Abandonando o sumi, os pincéis e o papel, abandonando sua cabana, Nampo caminhou pela praia deserta. Lembrou-se, claramente, do último momento em que vira o rosto de Yumi. Ajoelhou-se.

Com a ponta do dedo, que nunca a havia tocado, Nampo passou a traçar a areia. Finalmente conseguiu o que tanto desejava: uma caligrafia exatamente igual a de Yumi.

O que está escrito no coração é a peça de caligrafia mais sublime, a verdadeira alma da escrita da vida, pois é traçada pelo equilíbrio entre a fugacidade de um único momento... e toda a eternidade de um sentimento.

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NOTAS:
* Shodo ("Caminho da escritura") é a caligrafia japonesa. É considerada uma arte e uma disciplina muito difícil de perfeccionar e é ensinada como uma matéria a mais às crianças japonesas durante a sua educação primária. Provém da caligrafia chinesa e é praticado no estilo antigo, com um pincel, um tinteiro onde se prepara a tinta nanquim, pisa-papel (peso de papel) e uma folha de papel de arroz. Atualmente também é possível usar um fudepen, pincel portátil com depósito de tinta.

O shodō pratica a escritura dos caracteres japoneses hiragana e katakana, assim como os caracteres kanji, os caracteres chineses. Atualmente existem calígrafos que são contratados para a elaboração de documentos importantes. Além de exigir alta precisão e graça pelo calígrafo, cada caractere dos kanji devem ser escritos segundo uma ordem de traços específica, o que aumenta a disciplina necessária daqueles que praticam esta arte. (wikipedia)
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* Sumi é uma tinta de origem chinesa, tradicionalmente usada no Japão. Descoberta a sua fabricação pelos chineses como sendo uma espécie de "nanquim mais barato", e que com o comércio chegou ao Japão, onde virou uma febre, e os japoneses que aprimoraram a técnica, transformando a tinta frágil contra umidade em outra com quase a mesma composição só que com mais durabilidade, a mesma durou pouco no comércio chinês pelo fato descrito anteriormente sobre a sua durabilidade, voltando lá, a ser usado o nanquim. Enquanto o nanquim é uma tinta com origem natural, vinda de polvos e lulas que o usam como modo de defesa, a tinta sumi é a mistura de fuligem, agua e condimentos usados na sua preservação e validade como podemos dizer. A arte da utilização da tinta sumi se chama sumiê, uma arte muito antiga no Japão provavelmente sendo adquirida no século XV d.c, quando a tinta chegou ao Japão, e como era de uma fabricação muito mais barata, virou uma febre no mesmo, pois o Japão na época não era tão desenvolvido quanto a China, então deste modo, o Japão nesta area não precisou mais do comércio com a China. (wikipedia)
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* Sumiêarte da utilização da tinta sumi. Suiboku-ga ou Shuimohua (chinês tradicional) é uma técnica de pintura oriental que surgiu na China no século II da era cristã. Da China o sumiê foi levado ao Japão onde tornou-se mais difundido. A palavra tem raiz japonesa e significa pintura com tinta. Seu conceito não tem ligação com a pintura praticada no ocidente. Primeiro porque a arte do sumiê é uma mistura de desenho com elementos de caligrafia, que também é uma arte para os orientais. Segundo, porque o artista deve passar sua mensagem de modo resumido e sem equívocos. Daí dizer-se que é a arte do essencial. Talvez para atingir essa simplicidade que o sumiê é basicamente monocromático.

Assim como o desenho, o material usado pelo artista é bem limitado: pincéis, uma tinta especial parecida com o nanquim e papel artesanal à base de arroz. O aluno começa o aprendizado com os desenhos mais simples, quase sempre bambus. O modo de segurar o pincel e o gesto de colocar a tinta no papel deve conter um delicado equilíbrio entre a pressão da pincelada, e a maior ou menor quantidade de tinta.

Trata-se de uma arte que exige, após muito treino, grande habilidade e concentração. É por isso que poucos atingem o estágio de mestre. A representação do tema importa menos do que a composição do trabalho. Na composição, que segue regras bastante rígidas, o artista revela sua alma, a elegância do traço e principalmente a harmonia que deve existir no seu interior.

No Brasil, provavelmente o introdutor da arte do sumiê foi Massao Okinaka. Por muitos anos manteve classes de alunos interessados em aprender essa técnica tão antiga, mas absolutamente nova para os ocidentais. (wikipedia)

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* Satori é um termo japonês budista para iluminação. A palavra significa literalmente "compreensão". É algumas vezes livremente tratada como sinônimo de Kensho, mas Kensho refere-se à primeira percepção da Natureza Búdica ou Verdadeira Natureza, algumas vezes conhecida como "acordar". Diferentemente do kensho, que não é um estado permanente de iluminação mas uma visão clara da natureza última da existência, o satori refere-se a um estado de iluminação mais profundo e duradouro. É costume portanto utilizar-se a palavra satori, ao invés de kensho, quando referindo-se aos estados de iluminação do Buda e dos Patriarcas.

"Satori é a raison d'être (Razão de ser) do Zen, sem o qual o Zen não é Zen. Portanto todo o esforço, disciplinário ou doutrinal, é dirigido ao satori."

No Brasil, uma vez ao ano, o mestre Satyaprem orienta o Satori, método desenvolvido com similaridade à imersão dos monastérios Rinzai Zen (de silêncio e isolamento) e a auto-indagação de Ramana Maharshi, e reestruturado por Osho. Inicialmente chamado de "iluminação intensiva" (awareness intensive), trata-se de um trabalho que conduz à realização da natureza búdica – à descoberta de quem/o que se é, além do corpo, além da mente –, no qual koans rompem o nível intelectual, dando possibilidade à autodescoberta existencial.

Seu primeiro contato com o método foi em 1985, nos Estados Unidos, através de Ma Yoga Sudha, discípula e terapeuta do universo de Osho, com quem trabalhou mais tarde. Por muitos anos, Satyaprem coordenou o Satori na Osho Multiversity, na Índia, e em alguns lugares da Europa e do Brasil, país onde, desde 2001, o trabalho é exclusivamente realizado no "Festival de Carnaval com Satyaprem" e tem sido uma das maneiras com que o mestre conduz ao fim da busca, mediante o encontro com esta questão fundamental: "Quem sou eu?". (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 245


Carlos Drummond de Andrade (O Dono)


O dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses mais antigos costuma oferecer, antes do menu, o jornal do dia “facilitado”, isto é, com traços vermelhos cercando as notícias importantes. Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta pelo nosso, se o temos; se não temos, por aquele regime começado em janeiro, e de que desistimos. Também pelos filmes de espionagem, que mexem com ele na alma.

Espetar a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a descontar o cheque a ser recebido no mês que vem (“Falta só uma semana, seu Adelino”).

Além dessas delícias raras, seu Adelino faculta ao cliente dar palpites ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, o palmito de primeira, a batata feita na hora, especialmente para os eleitos. Enfim, autêntico papo-firme.

Uma noite dessas, o movimento era pequeno, seu Adelino veio sentar-se ao lado da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também. O garçom estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Adelino, calado, olhava para a lista inexpressiva dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O garçom já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa resolveu colaborar:

— Que tal um fígado acebolado?

— Acabou, madame — atalhou o garçom.

— Deixe ver… Assada com coradas, está bem?

— Não, não tenho vontade disso — e seu Adelino sacudiu a cabeça.

— Bem, estou vendo aqui umas costeletas de porco com feijão-branco, farofa e arroz…

— Não é mau, mas acontece que ainda ontem comi uma carnezita de porco, e há dois dias que me servem feijão ao almoço — ponderou.

A freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:

— Aqui no menu não tem, mas quem sabe se há um bacalhau a qualquer coisa? — pois seu Adelino (refletiu ela) é português, e como todo lusíada que se preza, há de achar isso a pedida.

Da cozinha veio a informação:

— Tem bacalhau à Gomes de Sá. Quer?

— É, pode ser isso — concordou seu Adelino, sem entusiasmo.

Ao cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo o Gomes de Sá. A freguesa olhou o prato, invejando-o, e, para estimular o apetite de seu Adelino:

— Está uma beleza!

— Não acho muito não — retorquiu, inapetente.

O prato foi servido, o azeite adicionado, e seu Adelino traçou o bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.

Vendo que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:

— Como é, está bom?

Com um risinho meio de banda, fez a crítica:

— Bom nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em Macau. É bacalhau com batatas. E vou lhe dizer: está mais para sem gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau salgado em demasia, ai!

A cliente se lembrou, com saudade vera, daquele maravilhoso Gomes de Sá que se come em casa de d. Concessa. E foi detalhando:

— Lá em casa é que se prepara um legal, sabe? Muito tomate, pimentão, azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda acrescentam um ovo…

Seu Adelino emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando, desta vez em sorriso aberto:

— Isso mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas portuguesas, daquelas… Um santo, santíssimo prato!

Mas, encarando o concreto:

— Essa gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!

— Espera aí, seu Adelino, vamos ver no jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar.

Não tinha, infelizmente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 8


O CANTO DA TERRA!

Venho das profundezas da terra, do coração da terra,
onde se fundem todos os limites
e se confundem todas as idades...

Venho de onde a terra ainda está começando e onde há de terminar
e meu canto, retemperado ao fogo primitivo,
estremecerá a superfície do mundo como os abalos sísmicos
e romperá o solo, e rugirá surdamente, como a voz profunda
dos vulcões...

Ao meu canto de lavas, desaparecerão das encostas que se altearão
as terras onde há senhores e escravos,
os campos onde alguns lavram e outros esperam;
e todos os homens atônitos perceberão
que a terra não tem donos
e que nunca dominaram o coração da terra!

E as lavas descerão pelas encostas, e o céu se encherá
     de nuvens e de chamas vermelhas
e por momentos a terra estará coberta de cinzas
e o dia anoitecerá, e a noite apagará suas estrelas...

Meu canto não terá a luz serena e apostólica da estrela do  pastor
para que não seja crucificado entre ladrões,
meu canto será a voz da terra em revolta,
a voz poderosa da terra insubmissa
que levantará o dorso em corcovas de potro bravio
contra o dominador bastardo que a esporeia
e a explora!

Por isso meu canto será violento como a terra quando estremece
e sincronizará com a destruição dos tempos, provocada
pelos que terão que sucumbir...

Por isso meu canto é a voz da terra, da terra toda
  sem limites nem profundidade
e pregará que é também preciso ser fogo e ser lava
para que os donos desapareçam, para que os sobreviventes
compreendam
que nada lhes pertence e tudo lhes pertencerá,
e um mundo melhor possa ter início...

Depois do meu canto, será o silêncio,
um novo silêncio expectante de Gênesis

Depois do silêncio, será o trabalho,
e será a música, e será o vento, e será a semente que acorda,
e a terra verde, e a água clara, e o céu azul
e a nuvem que foge...
E será a terra sem donos, trabalhada e frutificando
para todas as bocas, para todas as mãos,
e será a noite serena, e a beleza ideal e eterna
das estrelas
E será a paz…
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O SÁBIO

Em meio da algazarra atordoante das partidas,
e a zoeira das alegrias
dos risos
dos foguetes,
dos trens transbordantes de quepes,
dos navios com canhões e mastros embandeirados,

ele conteve nos olhos uma lágrima grande
e brilhante...

Se perguntassem ao homem sozinho porque estava chorando
ele havia de dizer:
- estes que riem e cantam ainda estão partindo!
Eu... já estou voltando…
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ONTEM... HOJE...
(A Jacques Raimundo)

Antes dele partir a mãe chamou-o
apertou-o no peito mal contendo o pranto,
(bem o vi...)
- E então lhe disse: parte! é o teu destino!
é a pátria que precisa de ti...
Se ele quisesse pensar
se ele quisesse se lembrar
havia de dizer:
há muito tempo,
porque matei um passarinho
e destruí-lhe o ninho
minha mãe me chamou, falo-me comovida:
- nunca mais faças isso meu filho, que a vida
só Deus pode tirar...

Se ele quisesse pensar…
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ORAÇÃO DA VOLTA
(A Artigas Milans Martínez)
  
Aqui
destas terras vazias, destes chãos enxutos
nasciam sementes
que amanhã milagrosamente
seriam flores e frutos!

Aqui, se erguiam penachos louros e ressoavam ninhos,
aqueles da cor do sol pelos campos imensos,
e estes, pela borda dos caminhos
suspensos...

Aqui, havia uma casa pequena, - uma porta, uma janela -
ao centro de um cercado,
- uma criança a brincar no jardim, tagarela,
e um penacho de fumo a subir do telhado...

E por estas ruas quietas, hoje tristes, sossegadas,
e em solidão,
ruas sem alma, sem desejos,
se ouvia o riso feliz das bocas cheias
de pão,
dos lábios cheios de beijos!

Aqui havia uma escola onde um velho mestre exercia
seu magistério,
e adiante era o recreio... a algazarra, a alegria,
da garotada livre em gritos e folganças...

Hoje , - aqui é um cemitério
e onde estão as crianças?

Aqui, havia vida, hoje, não há mais nada...
Nem penachos ao vento e nem crianças contentes...
- há somente o silêncio, as visões delinquentes,
e a longa risca vermelha de uma estrada...
................................

O mundo está perdido... a terra está vencida...

Eu mereço, Senhor, vosso castigo!

Mas não sei se maldigo os homens, se maldigo a vida,
ou se vos maldigo!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Sílvio Romero (O Padre Sem Cuidados)


Havia um padre que nunca tinha tido na sua vida um cuidado. Nada o preocupava, a ponto dele ter escrito em sua porta o seguinte: “Aqui mora o padre sem cuidados”.

O rei, sabendo disto, ficou muito admirado e disse que queria saber se era verdade o que aquele padre tinha escrito em sua porta. Mandou-o chamar, e logo que ele chegou e perguntou qual o fim daquele chamado, disse-lhe o rei que era saber se com efeito ele nunca tinha tido em sua vida cuidados.

Disse-lhe o padre que na verdade não havia coisa alguma que o tivesse preocupado, que passava sua vida sem ter cuidados. Então disse-lhe o rei:

— Quero que daqui a três dias o senhor venha me responder, sob pena de morte, a três perguntas que vou lhe fazer.

Despediu-se o padre e saiu do palácio já todo cheio de cuidados. Chegou em casa só pensando na sentença dada pelo rei. Veio o jantar, mas ele não quis comer, tão preocupado estava, e deitou-se em uma rede muito pensativo.

No outro dia ainda não quis almoçar, o que vendo o criado, perguntou-lhe a razão por que ele estava tão triste e sem querer comer. Responde-lhe o padre:

— Ah, criado, é que eu estou cheio de cuidados. O rei mandou-me chamar e disse-me que, sob pena de morte, eu hei de ir responder a três perguntas que ele vai me fazer. Isto me tem dado muito que pensar, pois não sei mesmo o que hei de dizer.

O criado vendo o vexame com que estava o padre, disse-lhe:

— Não tem nada, se v. reverendíssima quer, eu vou em seu lugar responder às perguntas do rei.

O padre não acreditou nem quis aceitar a proposta do criado, mas este replicou dizendo que o padre lhe desse sua batina e que podia ficar descansado, que ele prometia desempenhar bem o seu papel.

No dia designado pelo rei, o criado rapou bem a barba e o bigode, abriu uma coroa, vestiu a batina do padre e foi para a casa do rei. Este mandou-o sentar-se, e na presença de toda a corte fez-lhe a seguinte pergunta:

— Diga-me quantos cestos de areia tem ali naquele monte?

O padre sem cuidados levantou-se, olhou para o monte designado pelo rei e disse:

— Ora, rei meu senhor, é isto? Saberá vossa real majestade que ali tem um cesto de areia.

Disse-lhe o rei:

— Um só, como assim?

Tornou o padre:

— Vossa real majestade mande fazer um cesto muito grande, que abranja todo o monte, e eis aí o que digo.

Aí todas as pessoas presentes bateram muita palma e o rei ficou muito satisfeito. Depois fez-lhe a segunda pergunta, que foi a seguinte:

— Diga-me quantas estrelas tem no céu?

O padre deu umas voltas pela sala e disse:

— No céu há tantos milhões de milhões de estrelas.

E deu uma soma muito grande. O rei, que também não sabia, concordou com que o padre disse. A terceira pergunta do rei foi:

— Quero que me diga o que é que eu estou aqui pensando?

Vira-se o padre para, ele e diz:

— Vossa real majestade pensa que está falando com o padre sem cuidados, mas está falando é com o criado.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

domingo, 19 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 244


Rachel de Queiroz (Graúna)


Ano passado, um tanto levianamente, prometi uma graúna a um amigo. E o patrão desse amigo, que é também meu patrão, leva a me cobrar a promessa, como se tivesse algum interesse nisso — o que eu não duvido.

Bem, o problema não é a graúna; graúnas aqui abundam, há uma que reside bem próxima à janela do meu rústico escritório, e suponho que não seria difícil induzi-la a entrar num alçapão. Os passarinhos daqui da fazenda têm direito permanente de asilo nas proximidades da casa, e sentem-se em tão grande segurança que os rouxinóis fazem ninho nas estantes por trás dos livros, na gaveta da mesa de alpendre, onde o dono da casa outrora tomava o seu vinho e hoje toma sua abstêmica limonada, olhando o açude.

Andorinhas também fizeram morada num rincão do dito alpendre. Canários, até o ano atrasado, ocupavam os frechais da copa e o pé de jucá do terreiro e tinha-se em casa uma cantoria permanente, era lindo. Mas desde o ano passado foram expulsos pelos cabeças-vermelhas, também chamados galos-de-campina. Os campinas são lindos de figura e agradáveis de canto, mas não chegam nem aos pés dos canários, que nos deixaram mortos de saudades. Mas assim é a lei da natureza, e creio que mesmo se acabássemos com todos os campinas, os canários não voltariam. Eles lá têm o seu brio.

Há ainda os beija-flores e o memorável episódio do ninho na antena de TV, que deu lugar ao gesto mais lindo do mundo do então presidente da Embratel. E há, last but not least, as graúnas que me acordam de madrugada e cantam enquanto trabalho.

Bem, suponhamos então que eu, fortemente motivada pela palavra dada e pelas pressões patronais, cometa um ato de traição e aprisione a incauta e cantadeira graúna. Daí, que é que eu faço?

Começa que nem sei direito o que que graúna come. Consultei os possíveis entendidos e há discrepâncias: come bichinhos, algumas sementes, algumas frutas. Outros dizem que ela não come bichinhos, só frutas. Outros que frutas, absolutamente só sementes. Que conclusões tirar?

Mas suponhamos ainda que, vencida a barreira dietética, eu consiga alimentar a prisioneira e vá tratar de a remeter para o Rio, Digam-me, senhores, como enviar uma graúna para o Rio, desde estas lonjuras inundadas do Quixadá? Tem que haver várias baldeações e centenas de outras improbabilidades. Daqui de casa para a estação, uma viagem de meia légua com a lagoa da Carnaúba em gloriosa enchente e o riacho dos Cavalos dando nado. Na estação, poder-se-ia pegar o trem — mas já me informei: no trem não há serviço especial de transporte de graúnas. O pássaro teria que viajar de grajau como um frango, e sujeito a todos os azares, atrasos e etc. do percurso.

Inclusive roubo e esmagamento, sem falar da sede e inanição. Chegando em Fortaleza, como fazer a baldeação para o avião? Porque de ônibus não se pode cogitar, ônibus não aceitam graúnas como passageiro. E navio, além de passarem poucos. quem cuidaria do conforto da graúna durante os oito dias da travessia marítima?

Agora então a última pergunta: e a Varig, a Vasp, a Transbrasil, a Cruzeiro aceitarão como carga ou encomenda uma gaiola de talisca de coqueiro aprisionando no seu interior uma graúna viva, sem acompanhante, traída e revoltada, possivelmente fazendo greve de fome?

São estas as dificuldades, meu caro patrão Daniel, que vêm me impedindo de cumprir aquela incauta promessa. Como vê, não é por falta de graúnas e boa vontade. É apenas por falta de uma infra-estrutura nacional que nos possa garantir a operação de transporte.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Augusto Vasconcelos Rubião (Baú de Trovas)


— Bom dia, Dona Alegria,
com tanta pressa, onde vais?!
— Vou plantar uma saudade
onde o Amor não volta mais!
- - - - - –

Casar é um verbo difícil
de conjugar de mãos dadas.
Às vezes, noivos ditosos,
no lar, são almas penadas.
- - - - - –

Dizem que existe feitiço
que nos deixa atormentado.
Hoje estou acreditando:
por ti ando enfeitiçado...
- - - - - –

Meu coração é relógio,
que vive sempre a bater.
Na dor está atrasado,
mas adianta no prazer.
- - - - - –

Minha terra tem mulatas
e broinhas de fubá.
Recordando os meus amores,
mais prazer encontro eu lá…
- - - - - –

Nossa casa é pequenina,
mas tem a graça de Deus.
De dia o sol a ilumina,
e de noite — os olhos teus.
- - - - - –

O meu peito é um país;
capital — o coração!
É Maria a imperatriz,
para dar-lhe a direção,
- - - - - -

Os teus seios são dois ninhos,
tão brancos como algodão;
neles vivem dois pombinhos,
em busca de um coração.
- - - - - –

Quando chegaste na igreja,
rezei a Salve-Rainha;
com as contas dos teus olhos,
cantei uma ladainha...
- - - - - –

Se a vista tivesse dente,
este mundo estava preto:
teu belo corpo seria
um descarnado esqueleto...

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

Irmãos Grimm (A Rainha das Abelhas)


Certa vez, dois filhos de rei saíram em busca de aventuras e se entregaram a uma vida tão desregrada e dissoluta que nem se lembravam de voltar para casa. O mais moço, que era chamado de Bobo, saiu à procura de seus irmãos. Quando finalmente os achou, só ouviu caçoadas, porque, sendo tão ingênuo, pensava em vencer na vida, enquanto eles, muito mais espertos, não tinham conseguido.

Os três puseram-se a caminho juntos e chegaram a um formigueiro. Os dois mais velhos quiseram remexer nele para ver as formigas fugirem alvoroçadas carregando os próprios ovos, mas o Bobo lhes disse:

- Deixem os bichinhos em paz, eu não suporto que vocês lhes façam mal.

Então eles continuaram andando e chegaram a um lago onde nadavam muitos, muitos patos. Os dois irmãos queriam pegar alguns para assar, mas o Bobo não consentiu e disse:

- Deixem os bichinhos em paz, eu não suporto que eles sejam mortos.

Por fim, chegaram a uma colmeia, onde havia tanto mel que escorria pelo tronco da árvore. Os dois quiseram acender fogo embaixo para sufocar as abelhas e poder tirar o mel. O Bobo tornou a impedir, dizendo:

- Deixem os bichinhos em paz, eu não suporto que eles sejam queimados.

Afinal, os três irmãos chegaram a um castelo. Nas cavalariças havia cavalos de pedra, e não aparecia pessoa alguma. Eles passaram por todas as salas até que, no fim, encontraram uma porta com três fechaduras. No meio da porta havia, porém, um buraquinho por onde se podia espiar o aposento. Viram lá dentro um homenzinho grisalho, sentado diante de uma mesa. Eles o chamaram uma, duas vezes, mas o homenzinho não ouviu. Quando o chamaram pela terceira vez, ele se levantou, abriu as fechaduras e saiu. Não disse uma palavra, mas os levou a uma mesa ricamente preparada. Tendo os três comido e bebido, ele conduziu cada um a seu quarto de dormir.

Na manhã seguinte, o homenzinho grisalho chegou-se para o mais velho, acenou chamando-o e o guiou até uma placa, onde estavam escritas três tarefas que poderiam desencantar o castelo.

A primeira dizia que no bosque, debaixo do musgo, estavam as pérolas da filha do rei, em número de mil, que precisariam ser catadas; e, ao por-do-sol, se ainda faltasse só uma, a pessoa que as procurava se transformaria em pedra. O mais velho foi e procurou o dia inteiro. Como, porém, o dia chegou ao fim e ele tinha achado só cem pérolas, aconteceu o que estava escrito na placa, e ele se transformou em pedra.

No outro dia, o segundo irmão assumiu a tarefa, mas não se saiu melhor que o mais velho, pois só achou duzentas pérolas e ficou transformado em pedra.

Por fim chegou a vez do Bobo, que procurou no musgo; mas era tão difícil encontrar as pérolas e demorava tanto, que ele se sentou numa pedra e chorou. Nisto, apareceu o rei das formigas, cuja vida ele salvara. Vinha acompanhado de cinco mil formigas. Não demorou muito, e os bichinhos acharam todas as pérolas e as amontoaram ali.

Mas a segunda tarefa era ir pegar, no fundo do lago, a chave do quarto da filha do rei. Quando o Bobo chegou ao lago, vieram nadando os patos que ele uma vez salvara, mergulharam e pegaram a chave lá no fundo.

A terceira tarefa era a mais difícil, pois das três filhas de rei que estavam dormindo ele devia escolher a melhor. Elas eram, porém, completamente iguais, não tendo nada que as distinguisse uma da outra, a não ser por terem comido, antes de dormir, três doces diferentes: a mais velha, um torrão de açúcar; a segunda, um pouco de melado; a mais moça, uma colherada de mel.

Então chegou a rainha das abelhas, que o Bobo havia protegido do fogo, e foi provando da boca de todas três; por fim ficou pousada na boca da que havia comido mel, e assim o Bobo reconheceu qual era a filha de rei certa.

Com isso, o feitiço se desfez, tudo no castelo despertou daquele sono, e quem tinha virado pedra retomou sua forma. O Bobo se casou com a mais jovem e melhor filha do rei e, depois que o pai dela morreu, ele ficou sendo o rei; seus irmãos, porém, casaram-se com as outras duas irmãs.

Fonte:
Contos de Grimm