quinta-feira, 23 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 248


Luiz Poeta (Transatividade Verbal)


- Você me ama, perguntei. - Amo - seu tolo!
... mas o seu verbo, que era tão... intransitivo...
ganhou ação e complemento... o seu consolo
passou a ser um pronome... reflexivo.

Revendo as regras,  expliquei que o verbo amar
é ideal, quando a  ação é transitiva,
e que o pronome essencial que a completar
tem que ser "te"... de forma  mais objetiva.

Ela me olhou - confesso, aquele olhar doeu -
e sussurrou: - Meu verbo é bem mais natural...
e o sujeito... meu amor... hoje sou "eu",
só sei, de cor, colocação... pronominal.

Se numa próclise, um romance se inicia,
uma mesóclise é a forma mais completa,
pois na conjugação a dois, amar-se-ia
na plenitude que a sintaxe  projeta.

Tornou-se enclítica nas suas exigências,
porém me disse, num tom bem coloquial:
"O seu pronome supre bem minhas carências...
mas cada verbo que conjugo é... passional.

Juro, optei pelos meus vícios...
de linguagem,
e no calor da nossa  Nova Ortografia,
os pleonasmos ganharam nova roupagem
e... hiperbolamos... nossas fisiologias.

Fonte:
Recanto das Letras

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Jornal do Chico


No início de 1955, quando para aqui mudei, havia dois jornais em Maringá: “O Jornal”, de circulação diária, e o semanário “A Hora”. Um dia, cerca de três meses após minha chegada à cidade, peguei a monareta e fui conhecer a redação de “A Hora”, localizada numa casinha de madeira na Zona 2. Lá encontrei o Chico de Souza, mistura de gerente, vendedor de anúncios, editor e tudo o mais. Apresentei-me, disse que gostava de escrever e perguntei se ele aceitaria colaboração. “Aceito sim, disse ele, e se quiser comece agora”. Tomei um susto, claro. Chico explicou que precisava fechar a edição, mas faltava o editorial. O redator-chefe adoecera na véspera e ele estava ali sem saber o que fazer. Indaguei qual seria o assunto. “É contra o prefeito”, acrescentou, dando as razões da briga. O prefeito era o Villanova, a quem eu só conhecia de nome. Mas tudo bem: sentei-me diante de uma velha máquina Remington e em poucos instantes o artigo estava pronto. Ele leu, arregalou os olhos, chamou o tipógrafo: “Rapidinho, cara, componha este texto e ponha pra rodar”.

Só depois dessa agitada cena o Chico me convidou para tomar um cafezinho e iniciou o interrogatório: quem era eu, de onde vinha, se queria emprego no jornal e coisa e tal. Respondi que desejava apenas publicar uma crônica semanal, sem remuneração. Aceita a oferta, assim se fez. O problema foi o remorso que bateu dias após, quando vi de perto pela primeira vez o prefeito Inocente Villanova Júnior e com ele bati um papo rápido. O homem era uma simpatia, um herói lidando com os desafios de uma prefeitura sem dinheiro e com mil coisas a serem feitas a curtíssimo prazo. Nunca mais falei mal dele...

“A Hora” era um jornal valente, composto numa daquelas tipografias antigas, sem nenhum desses recursos eletrônicos que hoje fazem maravilhas. O outro informativo da cidade, bem mais moderno (tinha até linotipo e impressora rotativa), era o “O Jornal de Maringá”, do saudoso jornalista Ivens Lagoano Pacheco, ancestral do atual “Jornal do Povo”, do nosso veterano mestre Verdelírio Barbosa.

Chegava a ser surpreendente um lugar tão novinho já contar com dois jornais de boa qualidade. Mas foi ali que os primeiros jornalistas de Maringá começaram a influir decisivamente na construção da história do município. Os maringaenses mais antigos se lembram do poder de influência dos editoriais do Ivens, dos artigos de Dom Jaime Luiz Coelho, do Dr. Mário Urbinatti, do Dr. Hellenton Borba Cortes, do Dr. Altino Borba.

Além dos dois jornais, havia a Rádio Cultura, a emissora pioneira, que por vários anos foi a única porta-voz da geração que inaugurou esta jovem urbe. Depois vieram outros jornais, outras emissoras de rádio, a televisão... Legal lembrar tudo isso.

(Crônica publicada no “Jornal do Povo” – Maringá – 12-3-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silvia Araújo Motta (Cordel Coletivo: As Gigantes Lições do Coronavírus)


Mote do Poeta-Cordelista Marconi Araújo.
Presidente da Academia de Cordel da Paraíba.


“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”


Cordel Coletivo Virtual nº 7.133
Céu escuro! Pensei no tal CORONA:
na tristeza que traz ao mundo inteiro;
sem vacina, não vale ter dinheiro...
O comércio reclama em toda zona!
A Oração nos dá fé que vem à tona.
Vírus faz chorar, mundo tem razão:
invisível visita e tem ação...
Chuva cai na vidraça, tão constante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

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Cordel Coletivo Virtual nº 7.137

COVID  é rosa que tem flor e espinho;
na distância faz crer no puro amor,
pois VACINA contém a bela cor.
O perfume-SAÚDE vem mansinho,
trazer calma, esperança ao bom caminho.
Esta DOR vai passar, em mar aberto.
A ORAÇÃO tem PODER:_ Ditado certo!
De mãos postas, eu sigo firme e avante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

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Cordel Coletivo Virtual nº 7.139

Nós iremos vencer o CAOS da dor.
A prudência faz parte e quer cuidar 
da Família e do Outro; vamos dar 
nossa VOZ e ORAÇÕES; fazer favor.
O contágio vê MORTOS; traz pavor .
DEUS é nosso refúgio...Fé conduz;
em VERDADE semeia PAZ, guia a LUZ
para a VACINA a estrela SER brilhante. 
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

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Cordel Coletivo Virtual nº 7.140

Toda CRISE tem fim, quer queira ou não.
Aceitar a MUDANÇA faz seguir 
nova trilha! Quem sabe se o partir  
será BOM, pois dará maior noção:
Energia capaz de dar lição,
diferente da espera!... DEUS presente
recupera o momento em nossa mente.
Ser FELIZ traz a Paz e Amor garante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”


continua…
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Sobre a Cordelista:
Cordel autobiográfico nº 7.135


Sou a Sílvia Professora
bem feliz, aposentada.
pela vida, apaixonada.
Violonista e escritora; 
eu também sou trovadora.
Chamam-me de sonetista.
Alguns julgam-me ensaísta.
Gosto muito de cantar;
de escrever e de dançar.
Aprendiz ...sou CORDELISTA.

Fonte:
– A Autora
Recanto das Letras

Irmãos Grimm (O Ladrão e seu Mestre)


Houve, uma vez, um homem chamado João, o qual desejava que o filho aprendesse um ofício, então foi à igreja e pediu ao bom Deus a graça que o filho encontrasse um ofício conveniente. Atrás do altar, porém, estava escondido o sacristão, que lhe sugeriu:

- Que aprenda o ofício de ladrão! O ofício de ladrão!

João virou nos calcanhares, foi para casa e disse ao filho que deveria aprender o ofício de ladrão, pois fora esse o conselho do bom Deus.

Partiram, então, os dois à procura de alguém que fosse perito nesse ofício. Andaram o dia inteiro, por fim chegaram a uma grande floresta, onde avistaram um casebre habitado por uma velhinha. João dirigiu-se a ela e perguntou:

- Não conheceis alguém que saiba ensinar o ofício de ladrão? Pois desejo que meu filho siga essa profissão.

- Oh, ele pode aprender muito bem aqui. Meu filho é mestre nessa arte. - respondeu a mulher.

E João perguntou ao filho da velha se realmente sabia a arte e podia ensinar ao seu com perfeição.

- Podes ficar descansado. - respondeu o filho da velha - Ensinarei tudo a teu filho. Volta daqui a um ano, se o reconheceres, não exigirei pagamento algum, mas se não o reconheceres, terás de pagar-me duzentas moedas.

João voltou para a casa e deixou o filho aprendendo a arte da feitiçaria e do banditismo. Transcorrido o ano marcado, o pai volveu ao casebre da floresta, mas ia profundamente aflito por não saber se reconheceria ou não o filho. Andando e choramingando, topou com um homenzinho, que lhe perguntou:

- Por quê te lastimas tanto e vais com essa cara tão triste?

- Ah! - disse João, - faz justamente um ano que deixei meu filho na casa de um ladrão para aprender o ofício. O mestre me disse para voltar daí a um ano e se fosse capaz de reconhecer meu filho ele não me cobraria nada, mas se não o reconhecesse teria de pagar-lhe duzentas moedas. Agora estou com receio de não reconhecê-lo e não sei onde poderei arranjar as duzentas moedas.

O homenzinho então lhe disse:

- Deves levar contigo um cesto de pão e sentar-te na pedra em baixo da lareira. Lá no alto, dependurada na trave, está uma gaiola com um passarinho espiando para fora. Esse passarinho é teu filho.

João seguiu o conselho do homenzinho. Levou um cesto de pão e postou-se diante da lareira. Daí a pouco saiu um passarinho da gaiola e veio bicar o pão olhando para ele.

- Olá, meu filho! Estás aqui?!

O filho ficou muito satisfeito ao ver o pai, mas o mestre resmungou:

- Foi certamente o diabo quem te sugeriu a maneira de reconhecer teu filho!

- Vamos embora daqui, meu pai. - Disse o rapaz.

Pai e filho, então, puseram-se a caminho de casa. Depois de andar bastante, viram passar uma carruagem e o filho disse:

- Vou-me transformar num belo galgo, meu pai, assim poderás arranjar dinheiro vendendo-me.

O senhor que ia na carruagem gritou para João:

- Olá, bom homem, queres vender-me o teu cachorro?

- Posso vender. - disse o pai.

- E quanto queres por ele?

- Quero trinta moedas.

- Trinta moedas! É muito dinheiro! Mas como é tão bonito pagarei o que me pedes.

Concluído o negócio, o senhor fez o cão subir para a carruagem, mas não haviam andado muito e o cão subitamente salta pela janela da carruagem e vai reunir-se ao pai. Já não era mais cachorro, voltara ao aspecto normal.

Prosseguiram juntos o caminho rumo de casa. No dia seguinte, havia feira na aldeia vizinha e o rapaz disse ao pai:

- Vou transformar-me num belo cavalo e tu poderás vender-me. Quando me venderes, tira-me antes o cabresto, ou não poderei voltar á forma humana.

João levou o cavalo à feira e eis que chega o mestre ladrão e compra o cavalo por cem moedas. Vendo tanto dinheiro, João ficou tão contente que esqueceu de tirar o cabresto. O mestre levou-o para casa e prendeu-o na estrebaria. Quando a criada ia passando perto da grade da estrebaria, o cavalo disse:

- Tira-me este cabresto! Tira-me este cabresto!

- Oh! Podes falar! - exclamou, espantada, a moça.

Foi até ele e tirou-lhe o cabresto. Imediatamente o cavalo transformou-se num pardal, que saiu voando. O mestre ladrão transforma-se, também, em pássaro e sai voando atrás dele. Alcançando pouco depois o pardal, desafia-o e batem-se, mas o mestre sai derrotado e se atira dentro da água, transformando-se cm peixe. Então o rapaz também se transforma em peixe, batem-se novamente e o mestre torna a perder. Então, ele se transforma numa galinha e o rapaz numa raposa que, com uma dentada matou a galinha, deixando-o morto para sempre. E morto continua até hoje.

Fonte:
Contos de Grimm.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 247


Aparecido Raimundo de Souza (Cada Louco com a sua Mania)


DIAS ATRÁS, MINHA FILHA Érica me ligou pedindo que eu fosse buscar minha neta Ellen, filha dela, no hospital onde estava dando plantão. Como uma doutora que a renderia não comparecera e ela precisava dobrar até as oito da manhã do dia seguinte, me solicitou que eu fosse urgente buscar a menina.

Ao chegar, me identifiquei dizendo à atendente quem eu procurava. Como já era esperado, ela chamou outra recepcionista a quem pediu que me acompanhasse até o segundo andar e me deixasse na enfermaria 234 da Ala A.

A caminho, fiquei sabendo que minha filha havia deixado ordens para que eu fosse levado até o pavimento onde ela cuidava de um paciente que acabara de vir a óbito. A jovem que me escoltou, muito simpática e atenciosa, se chamava Eva, e eu lhe disse que não havia necessidade de tanto incômodo, observando que conhecia aquele hospital melhor que os corredores de minha casa:

— É praxe. O senhor não pode subir sozinho…

Sorri e entramos no elevador. Quando chegamos à enfermaria onde Érica se encontrava, ela, sem tirar as luvas das mãos, a máscara do rosto e o estetoscópio do pescoço, veio até mim, me pediu a bênção e, como sempre, me enviou um beijo colocando o dedo indicador nos lábios.

Antes de dispensar Eva, minha filha sobrepôs uma proteção em mim e solicitou que ela, de regresso, passasse no primeiro andar e mandasse vir uma técnica em radiologia. Nesse meio-tempo, agradeci à beldade por ter me acompanhado e lhe enviei uma piscadela.

A especialista — igualmente novinha e também engraçadinha, parecia um anjo com o embuço branco — chegou, nos deu boa tarde e foi preparar o aparelho que se achava num canto do quarto. Nesse meio tempo, saímos para uma espécie de antessala dentro do próprio aposento, de onde continuamos a avistar a radiologista e o extinto, sem, no entanto, atrapalharmos o trabalho das tais chapas que seriam tiradas.

Tudo pronto e preparado. De repente, a jovem olhou para o homem que jazia sem vida na cama e disse-lhe, de um modo carinhoso, quase em sussurro, todavia num tom que conseguimos ouvir perfeitamente: “Não respire, por favor!”.

Segundos depois, terminado o procedimento com os raios X, voltou a olhar para o de cujus, do mesmo modo que antes e falou: “Ótimo! Bom menino! Desculpe o incômodo. Agora pode voltar a respirar”.

Surpresa com aquela cena, e após a radiologista ter batido em retirada, minha filha e eu nos aproximamos do cadáver:

— Papito, se esse sujeito respirar, juro ao senhor que imediatamente dou o fora daqui!

Em seguida, ela, rindo a não mais poder ao lembrar pelo ocorrido e eu, idem, subimos para a cantina no sexto andar onde minha neta nos esperava.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 4


CADÊ?!

“Cadê o teu sorriso tão sadio?
E aquela gargalhada tão festiva,
Aonde está? Quem foi que t’a roubou?'

"Cadê aquela voz apaixonada,
que vivia cantando noite e dia?
Aonde está? Quem foi que t'a roubou?

"E aquele corpo esguio como um galgo,
de grande resistência e agilidade?"
Aonde está? Quem foi que t'o roubou?

— Eu tinha só vinte e um anos,
quando ela por mim passou...
... E levou tudo que eu tinha!
— Tudo a Doença me roubou!…
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CIÚMES...

"Bom dia!,.. Pode entrar Felicidade...
Faça de conta que este lar é seu...
Tem andado sumida, de verdade...
Enfim até que um dia apareceu..."

E ela envolvida numa claridade,
tão brilhante que até me entonteceu,
reparou tudo com curiosidade,
fitou-me muito... mas não se moveu...

Depois me perguntou com ar zangado:
"Quem é esta que vejo e vive agora,
constantemente assim sempre ao seu lado?!"

(Ela via a Saudade ao lado meu...)
E foi por isso só que foi se embora,
e para sempre desapareceu...
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NUVENS

("Dando sombra e consolo aos que padecem")
Olavo Bilac


Invejo muito — ó Nuvem — teu destino...
Pois a Vida tu vês de muita altura,
que o Mundo te parece pequenino
e nem sabes que existe a Desventura…

Pouco paras... e assim em desatino,
veloz te leva o Vento com loucura,
e em fuga tu constróis no Azul divino,
castelos de esquisita arquitetura...

Assim quero meus versos sem valia...
– Se alegres, que extasiem aos demais,
como nuvens brincando à luz do dia...

Se tristes, como nuvens que escurecem,
caiam do Céu, em chuva, nos trigais,
dando consolo e pão aos que padecem…
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TÉDIO

A tarde vai passando amarguradamente!
E tão longa ela está, tão escura e tão fria,
que congela também até a alma da gente,
tornando-a bem mais triste e lúgubre e vazia...

A tarde com certeza está também doente...
Pois eu lhe sinto bem toda a melancolia!
E as horas vão assim tão vagarosamente
que duas tardes sinto apenas num só dia...

Nestas tardes sem fim é que percebo então,
que sou bem semelhante a velho e escuro prédio,
abandonado ao mofo e eterna solidão...

– Nem mesmo o Amor "sequer me serve de remédio,
pois de Saudade e fel, encheu-me o coração,
tornando ainda maior este meu grande Tédio...
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VELA BRANCA AO CREPÚSCULO

No Horizonte cor de rosa,
num crepúsculo sem par,
como és triste, vela branca,
no verde-escuro do mar!...

Vais seguindo, tristemente,
lá longe... tão devagar...
— que não sei se estás mais perto,
do Céu azul ou do Mar...

Por que vais, ó vela branca,
neste lento deslizar ?!...
— Se a Saudade pesa tanto,
porque a foste carregar?!

Barco à vela, ao Sol poente...
Gaivotas longe a voar…
— Por que atrás de um quadro destes
veio o tédio se alojar?

Vem do Barco esta tristeza?!
Do Céu, da Tarde ou do Mar?…
— Vem de ti, oh! poeta triste…
Reflexos de teu olhar…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Rubem Braga (O Crime (de Plágio) Perfeito)


Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora.

Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico, O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas  eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse, inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: "Então ponha um pseudônimo!"

Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu um prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado eu estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor eu cocei a cabeça - tive uma ideia.  Acabara de ler uma crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo - algo assim como Antônio João, ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.

Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado do Laio: a primeira estava esplêndida!

Daí para a frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever a máquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia para  substituir  ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o  crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale do Antônio João.

O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de  nada, e o que eu fazia não  era  propriamente  um  plágio,  porque  nem  usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação: "O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!"

O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter a certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas  vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde do Antônio João, isto é, à nossa.

Dos 25 mil réis que Laio me pagava, eu dava 5 para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu - e você em Minas não era infeliz.

Não creio que possa haver um crime mais perfeito.

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. RJ: Sabiá,1967.