quinta-feira, 21 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Provocado)


ANJOLINO ENTROU NA LOJA DE DEPARTAMENTOS...

... pisando forte, como quem penetra autoritário, na própria casa, carregando, com ambas as mãos, uma caixa enorme contendo um aparelho de som que havia comprado no dia anterior. Procurou pela jovem simpática que o atendeu, mas não a viu em parte alguma. Uma vendedora se aproximou solícita, sorriso aberto de canto a canto no rosto.

– Pois não, senhor? Posso ajudá-lo?

– Procuro pela vendedora Solimar.

– Que pena! A senhorita Solimar está em horário de almoço. Posso lhe ser útil?

– De repente... É o seguinte: Como é seu nome?

– Bonifácia...

–... Pois, então, Bonifácia. Comprei aqui, ontem, este aparelho de som e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Acontece que na hora de ligar, nada.

– O senhor ligou corretamente?

– Corretamente.

– Chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Que defeito ele apresentou?

– O Manual?

– Não, senhor. O aparelho.

– Simplesmente não quis funcionar.

– O senhor usou alguma tomada suspeita?

– Se você me explicar o que é uma tomada suspeita...

– Chamamos de tomada suspeita aquela não conectada aos padrões normais. Fios soltos, gatos, ou terminais que suportam acúmulos de aparelhos ligados ao mesmo tempo, como geladeira, fogão, forno de micro-ondas, ventilador, carregador de celular, computador...

– Já entendi. A tomada está dentro das especificações corretas.

– Faça o favor de aguardar um segundo. Vou ver com meu gerente.

Bonifácia voltou trinta minutos depois (o equivalente a um segundo no relógio dela) com um rapaz mediano de estatura, cara escanhoada e redonda, cabelo partido ao meio. Parecia um filho de cruz credo desmamado.

– Pois não, senhor?

– Qual sua graça?

– Gervásio Patuá, as suas ordens. Sou o gerente.

– Perfeito, seu Gervásio. Como falei com a Bonifácia, comprei aqui, ontem, este aparelho e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Na hora de ligar, nada.

– Entendo! O senhor ligou corretamente?

– Acabei de explicar tudo a sua funcionária.

– Ok. Sua rede é 110 ou 220?

– 110.

– O senhor chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Qual a vendedora que o atendeu?

– Uma tal de Solimar.

– Sei. É uma de nossas melhores vendedoras. Está em horário de almoço. Me diga uma coisa, por favor: na hora em que o aparelho foi testado aqui na loja, ou seja, na hora que o senhor foi ao estoque para receber o aparelho, notou alguma coisa errada?

– Nada, tudo normal. Sem problemas.

– O senhor se recorda se na hora do teste o rapaz fez alguma observação?

– Nenhuma que eu me lembre.

– Ao chegar em casa o senhor atentou para a voltagem atrás do aparelho?

– Amigo, o rapaz que testou já deixou no jeito.

– Bem, nesse caso, sua tomada deve estar com defeito.

– Não está, não. São todas novas. Mudei para o apartamento não tem dez dias. Peguei as chaves e a primeira coisa que fiz antes de levar a família, cachorro, periquito, papagaio, foi verificar se a parte elétrica estava nos conformes. Aliás, sou o primeiro morador.

– Vou pedir que o senhor tenha um pouquinho mais de paciência. Solicitarei ao rapaz encarregado da entrega dos produtos que são vendidos aqui para que faça um novo teste. Se me permite, levarei o aparelho comigo. Cinco minutos, não mais...

Esse “não mais” durou exatamente uma hora e meia. Retorna o gerente, com o aparelho e a moça que o atendera.

– E, então...?

–... O senhor tem toda razão. Realmente o aparelho não funciona...

– Tudo bem, seu Gervásio. Então, troque por outro e fim de papo.

– Infelizmente não podemos. O senhor terá que levá-lo na autorizada.

– Amigo esse aparelho saiu daqui apresentando esse defeito que o senhor mesmo mandou seu funcionário testar. Não sou o responsável por ele, nem lhe dei causa. Exijo que troque por outro igual e fim de papo.

– Cavalheiro, seu caso, agora, não é mais com a gente.

– A Solimar me falou que se houvesse algum imprevisto era só vir aqui e procurar por ela.

– Compreendo. O senhor está coberto de razão. Contudo, a Solimar também não poderá fazer nada. É norma da matriz. Temos que acatar. No seu caso, só a autorizada. A propósito: o senhor fez a garantia estendida?

– Não. O que vem a ser isso?

– Quando o senhor adquire um aparelho deve fazer imediatamente a garantia estendida. Acontecendo qualquer coisa de errado, como de fato aconteceu... A garantia estendida...

–... Meu prezado Gerásio, me ajude a juntar alguns pontos soltos...

– Gervásio, senhor. Que pontos soltos?

– Vocês fazem propaganda enganosa na televisão, ludibriam a boa fé dos clientes, sacaneiam os compradores como bem querem, e, agora, simplesmente vem aqui me dizer, quase duas horas de espera, que não podem trocar um aparelho, por outro, porque é norma da matriz? E ainda, para completar, tem a cara de pau de acrescentar essa balela de garantia estendida?

– Cavalheiro, não fazemos propaganda enganosa, não ludibriamos ninguém, tampouco a boa fé das pessoas, menos ainda sacaneamos. Nossa empresa é séria e está no mercado há mais de vinte anos. No seu caso, voltando a ele, nada podemos fazer porque o senhor não optou pela garantia estendida.

– E se na hora que esse seu funcionário estivesse testando a porcaria, essa droga não ligasse, que atitude vocês tomariam?

– Substituiríamos imediatamente o aparelho por outro...

–... Então... Substitua...

–... O senhor já saiu da loja.

– Fui direto para minha casa. O aparelho, como vocês estão vendo, voltou do mesmo jeito que saiu daqui.

– Concordo com o cavalheiro. Só há um problema o troço não está funcionando. Quando o senhor saiu com ele daqui, ontem, estava em perfeitas condições de uso.

– Tudo bem, tudo bem. Mas, meu amigo Germásio, eu cheguei em casa e ele deu pau. O que fiz foi embalar tudo de novo, do jeitinho que estava e voltar para trás.

– Cavalheiro, por favor, meu nome é Gervásio. Gervásio. Olhe meu crachá. Gervásio. Pois é como eu já lhe passei e volto a repetir. O senhor está coberto de razões, tem direito de reclamar, de brigar, de perder as estribeiras, mas nesse caso, sinto muito, só a autorizada.

– Meu amigo, entenda. Não estou lhe pedindo nenhum favor. Apenas exigindo o que está no Código de Defesa do Consumidor. É meu direito. Comprei essa droga em quinze vezes, sem entrada. O que acontece se eu resolver não pagar?

– Seu nome, senhor, será incluído no SPC.

– Vocês ainda têm o direito de sujar o único bem que prezo acima de qualquer coisa?

– Quando o senhor concretizou a compra, com a nossa vendedora Solimar, assinou um contrato. São as normas estabelecidas nele que nos apresenta várias opções, uma delas, enviar seu nome aos órgãos dos fichas sujas. Desta forma, se o senhor não honrar o que acordou...

–... Eu honro, e vocês? Custa trocar essa porra?

O gerente Gervásio fez um longo gesto de condescendência tentando acalmar os ânimos de Anjolino. Bonifácia sugeriu um café para serenar os vapores de uma possível combustão que, de espontânea, prenunciava acabar numa balbúrdia iminente.

– É complicado. Embaraçoso, admito, mas a loja nada pode fazer pelo senhor.

– Nada?

– Nada. Só a autorizada. Repetindo, se o senhor tivesse concordado com a garantia estendida...

–... Já percebeu que neste país a corda rebenta sempre para o lado dos mais fracos? No caso eu sou essa parte fraca. Venho aqui nesta espelunca, adquiro um aparelho com vocês, pago, por ele, o olho da cara... Me atiro de cabeça, num juro do caramba, a peça comprada apresenta um defeito, volto aqui menos de doze horas de efetivada a transação e vocês não podem fazer nada?

Começou a juntar gente. Pessoas que estavam no interior, em outras seções, se aproximaram para bisbilhotar e mexericar.

– Trouxe o carnê, a nota fiscal, tudo como manda o figurino e a loja simplesmente me diz que não pode fazer nada?

– Gostaríamos de poder estar resolvendo sua situação, mas repito, diante dessas circunstâncias, a empresa não arca com nenhuma responsabilidade, mau uso, ligações mal feitas...

Anjolino, em vista disso, perdeu de vez as estribeiras, a compostura, o bom senso. A sua brutalidade adormecida, em questão de segundos aflorou. E foi com essa altaneria à flor da pele, que partiu para o tudo ou nada. Levantou bem os braços para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo bem. Gritou alto, forte, imponente, cabeça ereta:

– Vocês não arcam com nenhuma responsabilidade? Me chamam de mentiroso, alegando que fiz uso indevido, tentam me convencer que liguei essa geringonça errada e terminam dizendo que se eu não pagar meu nome irá parar o rol dos caloteiros? Pois vou mostrar, seu gerentezinho filho da mãe, o que é que eu faço com essa droga.

Passou a mão no aparelho e, inopinadamente, num repelão, o arremessou contra uma dezena de televisores em exposição. Houve pequenas explosões em cadeia, o que colocou a galera em debandada. Não contente Anjolino chutou prateleiras e derrubou uma série de objetos que serviam de mostruário para promoção. A loja inteira, com esse ataque, ficou em estado desesperador. Nada restou inteiro para contar a história. Virou um caos. De um momento a outro, num abrir e piscar de olhos, tudo se transformou uma praça de guerra, um verdadeiro Deus-nos-acuda. A segurança do shopping foi acionada, a polícia requisitada, uma ambulância, uma guarnição do Corpo de Bombeiros e até soldados do batalhão de choque.

De Anjolino, entretanto, nem rastro.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Ed. AMC Guedes, 2013.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 272


Benevides Garcia (Felicidade, onde moras?)

Fonte: Facebook

A. A. de Assis (O Tesouro de Maringá)


O tesouro maior de uma cidade são as famílias que nela se formaram. Gosto dessa frase, não sei se minha ou se ouvida alhures. Gosto e assino embaixo.

Ele paulista, ela mineira. Chegaram aqui ainda meninos, no início da década de 1940. Conheceram-se num baile do Aero Clube. Namoraram, casaram, multiplicaram. Nasceram-lhes seis rapazes e quatro moças, logo vieram seis noras e quatro genros. Depois os netos, bisnetos. Na festa das bodas de diamante do casal pioneiro (60 anos de amor e solidariedade), o clã já reunia mais de cem pessoas.

Que família é essa? Tantas, parecidas todas. Basta pegar uma lista de telefones. Qualquer um daqueles sobrenomes daria uma bela história dentro da bonita história de Maringá.

O velho casal está entre nós ainda, recordando momentos marcantes. A inauguração da cidade no dia 10 de maio de 1947. A eleição do primeiro prefeito. A posse da primeira Câmara de Vereadores. As primeiras escolas. A chegada do primeiro avião, do primeiro ônibus, do primeiro trem. Os primeiros cinemas. Os primeiros desfiles cívicos. Os primeiros comícios. Os primeiros clubes. As primeiras grandes lojas. Os primeiros padres e pastores. Os primeiros doutores: médicos, dentistas, engenheiros, advogados, agrônomos. Os primeiros professores. O primeiro juiz. O primeiro promotor. Os primeiros bancos. Os primeiros jornais. As primeiras emissoras de rádio. A primeira emissora de televisão. A chegada do primeiro bispo. O primeiro Festival de Cinema. A inauguração da Catedral. A primeira faculdade, a universidade.

No início era pouco mais que uma aldeia, uma pequena comunidade em que todos se conheciam. As casinhas de madeira. As noites mal iluminadas. Ruas esburacadas. Homens calçados de botas, mulheres calçadas de galochas, para enfrentar o barro nos dias de chuva. Janelas fechadas nos dias de sol para abrandar a invasão da poeira. O passa-passa de jipes com as rodas acorrentadas, caminhões carregados de toras ou de sacas de café. A banda de música. O jipe 28. O Clube do Caçula. As matinês dançantes no Grande Hotel. Os piqueniques no horto florestal. O sorvete na Oriental. O aperitivo no Bar Colúmbia.

Aos poucos a cidade foi crescendo para o alto e para todos os lados, transformando-se num enorme aglomerado em que ninguém mais sabe quem é quem. Mais de 400 mil, quase 500 mil maringaenses, fora os vizinhos que diariamente aqui circulam.

Mas nas reuniões de família os elos permanecem. Cada clã é uma rosa, cada parente uma pétala. O maior tesouro de Maringá. Bonito isso.

Não faz muito tempo estive no jantar de aniversário de um amigo pioneiro. Quando o conheci, em 1955, eram só ele e os irmãos menores. Agora a seu redor está um grupão unido e lindo, desde os de cabelos brancos até a meninada de colo.

Poeta chora à toa. Chorei.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 07-5-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 3


Ah, este meu anjo!
Tendo asas
Até que poderia pra bem longe voar
Mas preferiu ficar e sofrer comigo.
É...eu vi
Uma lágrima de anjo.
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Ao nos encontrar
Nossos olhos fizeram um brinde
Tomei um gole de você
E a taça da saudade ficou menor.
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Depois de vírgulas e reticências
Na minha história de amor,
Você
Foi o meu ponto final.
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Dos matizes dos teus olhos
Empresto as cores
Para os meus versos.
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Em minhas mãos
Uma lágrima pingou
Regando a pétala do malmequer.
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Meus olhos choviam.
Mas a poesia,
Me ofereceu seu guarda chuva.
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Minhas alegrias ganharam pernas
E com as tuas
Bailaram no espaço.
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Na xícara de chá
A saudade ganhou sabor.
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Na delicadeza dos teus traços
Pinto no imaginário
Com as cores que eu te quero.
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Na pressa de te encontrar,
Outonalmente,
Vou despindo meus retalhos
Pelo caminho.
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Santas são as mãos de mãe.
Onde há sempre um remedinho
Que com muito carinho
Cura as feridas
E da alma tira a dor.
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Seu beijo
É a chave
Que abre meu apetite
Por você.
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Teus lábios:
Altar
Onde oferto os meus beijos.
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Um vírgula nos separa.
À tua margem,
Só meus olhos
Em ti mergulham.
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Você
Era tão presente na minha saudade
Que o mofo não tinha vez.
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Voo...
Nos olhos azuis de Helena
"O pássaro da poesia"
Extensão do céu fazia.

Fonte:
Facebook

Humberto de Campos (As Perdizes)


Chegado do interior de Minas, onde nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o capitão Venâncio Pimentel, coletor em Poço Fundo, ficou deslumbrado com o Rio de janeiro. Com uma dezena de contos no bolso, provenientes da arrecadação semestral da coletoria, tomou o simpático sertanejo a deliberação de conhecer a cidade, guiando-se por si mesmo, dispensando, em tudo, o auxilio de estranhos. Teatros, cinemas, restaurantes, subúrbios, estabelecimentos públicos, tudo isso recebeu, de passagem, a visita da sua curiosidade.

Nada, porém, lhe causou tanta admiração, como a quantidade de mulheres desacompanhadas que encontrava na rua, principalmente nas proximidades do ponto dos bondes da Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-lhe a procedência, e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se do forasteiro, olhando-o de esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio maneiroso e calculado. Ele fixava então, a leviana, que tomava o bonde, e acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a Glória, de onde voltava ao ponto de partida, para experimentar, de novo, quatro, cinco, seis, oito vezes, as mesmas sensações da conquista.

Uma destas noites, ia eu tomar o carro, às onze horas, em companhia do Sr. deputado Antônio Carlos, quando este descobriu, no ponto de costume, o capitão Venâncio, a quem me apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do seu velho correligionário e concidadão.

- Que gosto acha o senhor nessa extravagância, Sr. Pimentel? - perguntei eu, escandalizado, ao mineiro, acentuando as palavras com a tonalidade proposital da minha censura.

- Gosto? - atalhou o sertanejo. - Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é engraçado.

- Engraçado? - estranhei.

- Sim, senhor. Eu faço isso para me lembrar de Minas, das minhas caçadas no Poço Fundo. Cada mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.

- Perdiz? - interveio o Dr. Antônio Carlos, admirado.

- Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca andou caçando perdiz?

E explicou, ajudando a palavra com a mímica:

- A gente vai, às vezes, pelo mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com a espingarda calada, quando ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas. Olha, e vê: é a perdiz que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando pra gente. Sentindo-se descoberta, solta um voo baixo, rasteiro, junto do solo. A gente não atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando a bicha, até que ela, afinal, chega no ninho.

- E quando a perdiz chega no ninho, que é que faz? - indaguei, curioso.

E o capitão, rindo:

- Que é que faz? Deita-se!

E saltou para o estribo de um bonde, espantando uma revoada…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicada em 1921.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 271


Laé de Souza (Perneta na São Silvestre)


Aguinaldo que vinha se preparando para correr na São Silvestre, por Coxia, sofria o dissabor de com a perna quebrada, ter que desistir. De emergência, providenciou-se uma corrida eliminatória, chegando em primeiro lugar o Perneta. Após os prêmios, reuniram-se para discutir sobre a sua participação na São Silvestre. O secretário de esportes votou contra a saída da verba de sua secretaria para ajudar, pois via pouca chance de vitória, visto que numa corrida de tal envergadura, dificilmente um aleijado iria ganhar. Referia-se a uma leve torção que o corredor sofrera quando criança e que o levara até hoje a puxar da perna esquerda, o que lhe valera o apelido. Sabia também que o Sr. Avariando (nome do Perneta), era dado a tomar umas pingas, o que não condizia com o comportamento de um esportista. Perneta que tinha ficado calado até aquele momento, enfureceu-se; "Pera aí meu caro. O Ronaldo, lá de Descoberto, Minas Gerais, já teve anemia e nem por isso deixou de ganhar no ano retrasado. O baixinho não vai ganhar este ano, pois agora sou eu quem vai apresentar Coxia para o mundo. E de beber, é o seguinte: Sou igual a muitos motoristas, quanto mais bebo, mais corro." E foi saindo, sem querer saber de mais conversa. A oposição segurou o homem prometendo verba para as despesas.

Representante oficial de Coxia na corrida. Perneta era saudado por todos e fazia seus treinamentos diários com torcida. O patrão dispensou-o do trabalho, com direito a remuneração, pelo que prometeu nas entrevistas da vitória, elogiá-lo. Está certo que, normalmente, mais faltava do que trabalhava, mas valia a colaboração. Ermenegildo, pretendente a candidato a prefeito, mandou que o Perneta arrumasse empréstimo, que assim que recebesse um dinheiro que estava a juros, lhe daria para pagar. Mas tinha que prometer subir com ele nos palanques em sua campanha. Daria o dinheiro em janeiro. Quando perguntado pelo Perneta se daria o dinheiro, ganhasse ou perdesse a corrida, Ermenegildo, desconversava com um: "Você vai ganhar, você vai ganhar." Seu Quindim, que agora já não cobrava as pingas que o Perneta tomava em sua quitanda, dizia que a cachaça pela vitória, seria por sua conta. Fartos convites para churrascos, dificilmente recusados,

Chegara o grande dia. Reservaram hotel em São Paulo. O Perneta exigiu que pelo menos fosse quatro estrelas. Levou uma bandeira de Coxia, uma do Brasil e tinha pinta de atleta vencedor. Fretaram um ônibus para a torcida, que ficaria em um hotel mais barato. Na noite do dia 31, para festejar, reuniu-se com Pé Grande, Trator e o Chiquinho num bar do Bexiga e rolaram cantando samba e bossa nova, só interrompidos para tomar mais um gole da branquinha. Calibrados, dormiram na calçada mesmo, acordando com o pipocar dos fogos da meia noite, a chegada do Ano Novo e um bêbado que passava gritando viva aos quenianos.

Perneta não voltou à cidade nem para pegar suas roupas. Os três companheiros nem tocaram no assunto de tê-lo visto. Os mais velhos choravam a vergonha, enquanto outros gozavam e contavam piadas. O secretário aceitou as desculpas do prefeito e reassumiu seu cargo. Ermenegildo pessoalmente queimou as faixas e desmanchou o palanque.

Fonte:
Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000.

Vinicius de Moraes (Antologia Poética) IV


EPITÁFIO

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.
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POR-DO-SOL EM ITATIAIA

Nascentes efêmeras
Em clareiras súbitas
Entre as luzes tardas
Do imenso crepúsculo.

Negros megalitos
Em doce decúbito
Sob o peso frágil
Da pálida abóbada

Calmo subjacente
O vale infinito
A estender-se múltiplo

Inventando espaços
Dilatando a angústia
Criando o silêncio....
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SONETO AO INVERNO

Inverno, doce inverno das manhãs
Translúcidas, tardias e distantes
Propício ao sentimento das irmãs
E ao mistério da carne das amantes:

Quem és, que transfiguras as maçãs
Em iluminações dessemelhantes
E enlouqueces as rosas temporãs
Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes?

Por que ruflaste as tremulantes asas
Alma do céu? o amor das coisas várias
Fez-te migrar – inverno sobre casas!

Anjo tutelar das luminárias
Preservador de santas e de estrelas...
Que importa a noite lúgubre escondê-las?
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SONETO A OTÁVIO DE FARIA

Não te vira cantar sem voz, chorar
Sem lágrimas, e lágrimas e estrelas
Desencantar, e mudo recolhê-las
Para lançá-las fulgurando ao mar?

Não te vira no bojo secular
Das praias, desmaiar de êxtase nelas
Ao cansaço viril de percorrê-las
Entre os negros abismos do luar?

Não te vira ferir o indiferente
Para lavar os olhos da impostura
De uma vida que cala e que consente?

Vira-te tudo, amigo! coisa pura
Arrancada da carne intransigente
Pelo trágico amor da criatura.
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SONETO DE DESPEDIDA

Uma lua no céu apareceu
Cheia e branca; foi quando, emocionada
A mulher a meu lado estremeceu
E se entregou sem que eu dissesse nada.

Larguei-as pela jovem madrugada
Ambas cheias e brancas e sem véu
Perdida uma, a outra abandonada
Uma nua na terra, outra no céu.

Mas não partira delas; a mais louca
Apaixonou-me o pensamento; dei-o
Feliz – eu de amor pouco e vida pouca

Mas que tinha deixado em meu enleio
Um sorriso de carne em sua boca
Uma gota de leite no seu seio.
****************************************

SONETO DE LONDRES


Que angústia estar sozinho na tristeza
E na prece! que angústia estar sozinho
Imensamente, na inocência! acesa
A noite, em brancas trevas o caminho

Da vida, e a solidão do burburinho
Unindo as almas frias à beleza
Da neve vã; oh, tristemente assim
O sonho, neve pela natureza!

Irremediável, muito irremediável
Tanto como essa torre medieval
Cruel, pura, insensível, inefável

Torre; que angústia estar sozinho! ó alma
Que ideal perfume, que fatal
Torpor te despetala a flor do céu?
****************************************
SONETO DE VÉSPERA

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou – fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

Fonte:
Vinícius de Moraes. Livro de Sonetos. RJ: Sabiá, 1967.
Livro enviado pelo poeta.

Contos e Lendas do Brasil (Porque os Galos Cantam de Madrugada)

Certo dia Sua Majestade o Leão deu uma festa e para a mesma convidou todos os outros bichos. O pagode devia começar aos primeiros albores do dia e os convidados a essa hora já deveriam estar presentes.

A festa era de arromba, a mais bonita de quantas havia notícia até aquela data. Quando chegou o dia marcado, nenhum dos bichos teve sossego. É que nenhum queria faltar ao convite, muito menos perder a hora.

Ao clarear do dia, o rei dos animais já tinha a casa cheia. Uma multidão. Nenhum dos convidados faltara, a não ser mestre Galo. Ele se esquecera inteiramente do convite.

Notando a sua ausência, Sua Majestade enfureceu-se, achou que aquilo era pouco caso, não tinha desculpa e mandou uma escolta de dois gambás para trazer o galo à sua presença.

Quando os gambás entraram no galinheiro, foi um salve-se quem puder; a galinhada saltou dos poleiros e se pôs a esvoaçar pelo rancho, a cacarejar que nem maluca. Mestre Galo acordou, espreguiçou~se e não atinou com aquilo.

Um gambá falou:

— Viemos buscar-te, seu tratante, por ordem de Sua Majestade. El-rei Leão dá-te a honra de um convite para a maior festa do mundo e ficas a dormir.. .

O galo coçou a cabeça:

— Ah! É verdade! Esqueci-me, perdi a hora!

— Pois por isso mesmo estás pegado para Judas. Outra vez, darás um nó na crista, para não esqueceres, ..

— Perdão, camaradas! Não me levai para lá! Que desejará fazer de mim Sua Majestade?...

— Ainda perguntas! Comer-te, se tamanha honra te der, caso não queira entregar-te aos gambás, a fim de que nós demos cabo de ti!

E dizendo isso, um dos gambás foi destroçando toda a família de mestre Galo, sem deixar uma cabeça na extremidade de cada pescoço. Os gritos aumentaram e as penas
esvoaçaram no interior do rancho.   

O galo chorava, maldizia-se, mas em vão. Ordenou-lhe:

— Vamos! Para a presença de Sua Majestade!

Mestre Galo não teve outro remédio senão seguir na frente, mas cabisbaixo e jururu.  Chegados ao palácio do leão, a escolta e o preso foram ter à presença de Sua Majestade, que soltou um urro de raiva;

— Patife! Galo de uma figa! Com que então ousaste desobedecer ao meu real convite, não te apresentando à hora marcada para a minha festa? Pois vais pagar caro esse atrevimento.. .

— Saiba Vossa Majestade que não foi por querer, mas por lamentável esquecimento. Perdão! Eu me ajoelho aos pés do meu rei!

— Tens o que se chama memória de galo, cabeça de vento. Ia dar-te a morte, mas como te humilhaste, e para não perturbar a alegria da minha festa, vou comutar a pena. Daqui para diante, como castigo do teu esquecimento, não dormirás depois da meia-noite. Dormirás ao pôr do sol e acordarás logo depois. À meia-noite, cantarás, às duas amiudarás e ao surgir do dia cantarás ainda, dando sempre sinal de que estás alerta. Se dormires, se não cantares nas horas indicadas, tu com tua família correrás o risco de ser comido pelos animais inimigos de geração tão indigna. Assim não esquecerás mais e ficará punida tua vil memória!
*    *    *

Mestre Galo sentiu-se muito contente com a solução e, para não se esquecer de que havia de cantar à meia-noite, cantou também ao meio-dia. Dessa data em diante, passou a cumprir o seu fado, cantando pela madrugada a fora, por ter desatendido a um convite do monarca. E quando canta, fecha os olhinhos, fazendo força para não se esquecer de que tem de cantar outra vez, e canta de dia para se lembrar de que há de cantar de madrugada.

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.