segunda-feira, 25 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 277


Rachel de Queiroz (Falar e Escrever)


AGORA MUITO SE DISCUTE a linguagem, ou antes, a falta de linguagem dos jovens, que não falam nem escrevem e ninguém sabe como se comunicam — queixam-se os mestres deles e os entendidos em geral. Ora, talvez se comuniquem por grunhidos e acenos como os chimpanzés, ou por um curto vocabulário de nomes e verbos elementares, como os aborígenes australianos.

A crise é ameaçadora principalmente para nós que da palavra escrita e falada tiramos o nosso pão de cada dia. Mas os meninos — eles — não se queixam. A privação ou pobreza linguística evidentemente não os afeta nem lhes tira a alegria, nem sequer lhes dá complexo de inferioridade perante os mais articulados. Ou, se de alguma coisa se queixam, é de que a falação em torno já está um saco, pô!

A verdade é que nós, os adultos da velha geração, temos que nos conformar com o fato concreto de que as gentis artes da fala e da escrita estão em triste decadência nesta idade do mundo, e a tendência é a situação ficar cada vez pior. E não digo escrita me referindo só ao ato intelectual de botar pensamentos no papel, mas ao ato material de desenhar caracteres, de riscar letras compondo sílabas, palavras e frases, Ninguém tem mais letra, que dirá boa letra, A escrita dos jovens é um arranhar sumário de riscos ilegíveis, que os professores aceitam porque. naturalmente, se cansariam de lutar. Os trabalhos escolares dos meus netos, por exemplo, os poucos que já vi, se eu fosse professora deles punha os dois de penitência, copiando cada letra do ABC vinte mil vezes pelo menos. Mas, como me argumentou o mais novo, toda função sem uso tende a desaparecer e, com a escrita mecânica, a letra de mão não tem mais uso. “Você por caso escreve alguma coisa à mão? Pô.” O melhor, pois, será dar a eles uma máquina assim que se alfabetizarem, ensinar datilografia em vez de caligrafia e não se fala mais no assunto.

Quanto ao discurso e à redação não acho, como li num articulista, que os jovens repelem as nossas formas peremptórias de linguagem, já que nós não escrevemos como se fala. Essa não. Nós, os da minha geração, escrevemos como falamos, ou o mais aproximadamente possível. Quem escreve difícil e arrevesado e ininteligível é a geração meio termo, que ronda os trinta e os quarenta anos, querendo passar por nova, imbuída de tecnicismos, fazendo questão de mostrar cultura pelo uso de palavras raras, ou inventadas, ou mal traduzidas e em geral grotescas.

É entre eles e os muito jovens que se abre o tal vácuo de linguagem; e é contra eles que se insurgem os meninos, no que fazem muito bem. Os jornais e revistas vivem encaroçados de bobagens do pessoal da suposta intelligentsia, um abominável jargão que propriamente não quer dizer nada, e que poderia ser vertido em linguagem comum e bonita, sem o menor prejuízo, antes com lucro. E desses espúrios vocabulários hoje em uso, o pior, me parece, é o falar metido a psicológico ou psicoanalítico; eles não dizem que namoram ou vivem com uma pessoa, mas que “têm relacionamento”; se alguém os oprime ficam castrados (gostam muito da ideia: mãe carrasca é castradora, decepção é castrante, reprimir-se é castrar-se). Falta de educação é agredir, sujeito tímido tem bloqueio, a moça se joga nua da janela porque está carente, quem não se envergonha do que faz se assume. Aliás, fazer análise é o grande sarro, não há vedetinha nem subgalã de novela que não dependa do seu analista, nem há estrela que se respeita que não confesse pelo menos de dez a cinco anos de análise. Análise dá status, e status é uma das palavras mais em moda.

Assim, os meninos que ainda não estão contaminados pelo gongorismo tecnocrático dos seus pais, irmãos mais velhos e professores reagem como podem, reduzindo o seu falar às palavras de quatro letras e aos monossílabos elementares. E por isso mesmo eu não fico apreensiva quanto a essa inarticulação dos muito jovens, antes a encaro como reação natural ao intolerável e vazio pedantismo dos que lhes são imediatamente mais velhos pais, irmãos e professores. (Ah… os professores de ‘‘Comunicação  e Expressão’’, que é a velha gramática em novos termos!)

Talvez dessa recusa os meninos saíam para uma linguagem nova, ríspida e expressiva; à medida em que forem se desenvolvendo, terão necessidade de se exprimir melhor e criarão, ou recriarão, a linguagem necessária ao seu tempo e aos seus sentimentos, livres da enxurrada de bobagens festivas dos preciosos ridículos desta década. E nós, os avós que ainda estivermos vivos, estaremos às ordens para aplaudir e comemorar a rebelião linguística dos meninos; e até a auxiliá-los com alguns arcaísmos úteis, que os pernósticos de entre nós e eles terão posto fora de uso.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 1


quem é vivo
aparece sempre
no momento errado
para dizer presente
onde não foi chamado
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tem quem se proteja
por trás
de uma barragem
de bons dias
boas tardes
boas noites
assim não tendo
que ver o que está passando
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Achar
a porta que esqueceram de fechar.
O beco com saída.
A porta sem chave.
A vida.
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O tempo fica
cada vez
mais lento
e eu
lendo
lendo
lendo
vou acabar
virando lenda
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um dia desses quero ser
um grande poeta inglês
do século passado
dizer
ó céu ó mar ó clã ó destino
lutar na índia em 1866
e sumir num naufrágio clandestino
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contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
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sobre a mesa vazia
abro a toalha limpa
a mente tranquila
palavra mais linda

aqui se acaba
a noite mais braba
a que não queria
virar puro dia

somos um outro
um deus, enfim,
está conosco
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cesta feira

oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
as roupas brancas da cesta

oxalá teu dia de festa
cesta cheia
feito uma lua
toda feita de lua cheia

no branco
lindo
teu amor
teu ódio
tremeluzindo
se manifesta

tua pompa
tanta festa
tanta roupa
na cesta
cheia
de sexta

oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
oxalá teu dia de festa

Fonte:
Paulo Leminski. Toda Poesia.

Aparecido Raimundo de Souza (Bico de Adagas)




O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE BANANÔNCIO MORA possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampinha cinza e o buraco redondo com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém querendo falar com o morador, que, diga-se de passagem, nunca ninguém viu nem mais gordo, nem mais magro, existe, abaixo do olho mágico da porta uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente do lado de fora. Sempre que pinta uma viva alma no pedaço, Bananôncio fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo, longe disso. Simplesmente o alarme sonoro do subir e descer do elevador dispara um “plim” igual ao da Globo, e corroborando a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha engenhoca rangem desesperadamente.

Nessas ocasiões, o rapaz aproveita para explorar, claro, pelo visor da sua própria entrada e ver quem é a visita que anda à cata do vizinho misterioso. Curiosidade de quem não tem o que fazer, a não ser esperar passar os dias lendo um romance, vendo televisão e aguardando o INSS, todo final de mês, depositar na sua conta bancária a aposentadoria conseguida em decorrência de um acidente acontecido há um ano, quando um pesado cachorro que vivia na cobertura de seu prédio (e até hoje, não ficou bem esclarecido) despencou doze andares e veio com tudo, para baixo, caindo exatamente sobre seus costados. Fora essa lembrança amarga, espreitar quem bate no vizinho passou a ser um bom exercício para ajudar a passar o tempo e fugir da rotina. Bananôncio se depara, nessas ocasiões, com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Dias atrás uma moça loira, bem vestida, procurava pelo botãozinho da campainha. Ela não viu diante de si a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a futucar, na esperança de enfiar um dos dedos no buraco da tampinha cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada.

Talvez fossem os anéis que atrapalhassem. Quem sabe a cor dos cabelos. Em seguida ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de a qualquer custo fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Saiu furiosa, cuspindo marimbondos.

Não foi diferente com um cidadão baixinho, aparentando uns quarenta anos, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter a cara no olho mágico com a finalidade de ver se pastorava alguma coisa dentro da peça. Também teve problemas com os cordéis. Pelo visto, e pelo ar desagradável que fechou em seu rosto, deve ter tomado um tremendo de um choque. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando cobras e lagartos, deu meia volta e desapareceu.

Bananôncio chegou à conclusão que as pessoas, de um modo geral são levadas ao grotesco, e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém para, por alguns instantes, com a intenção de analisar o que está posto e visível diante do nariz. E pensar numa solução simples, que culmine num resultado rápido e prático. Às vezes, um problema insignificante, de finalização gritante e à vista, está logo ali, atropelando, esmagando, instigando, como se fosse uma cobra prestes a dar o bote. Todavia, a pressa, aliada à azáfama e à afobação, juntas, de mãos dadas, com a velha burrice derramam tudo a perder.

O incrível e cômico na história: quem quer que chegue logo se vê às voltas com os atalhos da campainha. Talvez, no fundo, seja essa a verdadeira intenção do dono do apartamento. Dar choque nos chatos que não desistem de vir até ali perturbar o seu sossego. O engraçado morador deve rir muito e se divertir um bocado. De qualquer forma, esse vizinho de Bananôncio não quer, decididamente, ser incomodado por ninguém. Ora, se não quer ser molestado, por que então fornece o endereço de seu domicílio?

Desse, por exemplo, o de uma tia, ou o de um amigo, ou da pizzaria logo ali na esquina, a menos de duzentos metros e preservasse a sua privacidade com unhas e dentes, não com fios desencapados. Mas os trocinhos do nariz sonoro daquela campainha, soltos, de certa forma instigam a atenção dos que acampam, de repente, diante da entrada do elemento, seja com pressa, suando em bicas, ou porque tenham outros afazeres a serem cumpridos, além daquele de estar ali. Pelo sim, pelo não, todos os que zanzaram até agora pelo corredor imenso, se olvidaram de atentar para os mínimos detalhes e de apertar o botãozinho correto, logo abaixo do olho de visão.

Bananôncio percebeu, e não só percebeu, aprendeu e muito com suas olhadelas clandestinas. Concluiu que cada pessoa reage de uma maneira diferente. Uns destratam, afrontam, espinafram, xingam. Outros fazem caretas, olham para todos os lados, desconfiados. Teve um visitante que, inconformado, se deu ao trabalho de urinar no pé da porta, e depois, seguir seu caminho. As mulheres, em meio a essa confusão são as mais interessantes de ser reparadas. Elas se ajeitam antes. Penteiam os cabelos, retocam a maquiagem, renovam o batom dos lábios num cunho estritamente ligado a favor da boa elegância. Os homens são menos exigentes com a aparência. Só corrigem o nó da gravata, os óculos, ou dão uma batida discreta, com uma das mãos no paletó para afastar algum pozinho ou cisco que, por ventura, tenha grudado. No geral, pensam em tudo, esses ilustres turistas, todavia se esquecem do mais comum e corriqueiro: apertar o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico, ou por outra, de baterem suavemente com os nós dos dedos produzindo um leve e quase inaudível toc, toc na porta sisuda, carrancuda e silenciosa, parada, estática, sem vida, bem ali, diante de suas imperturbáveis imbecilidades.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. Rio de Janeiro: Editora AMC Guedes, 2013

domingo, 24 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 276


Contos e Lendas do Brasil (Os Músicos Prosas)

Havia numa terra de Minas dois músicos, afamados clarinetistas. Ninguém podia com eles. Por isso mesmo, eram rivais e andavam sempre de rusgas. Pertenciam a bandas diferentes e seus admiradores constituíam-se em partidos.

Certa vez encontraram-se na rua e puseram-se a conversar. É que de mal, de mal mesmo, nunca chegaram a ficar. Sustentavam sempre boa política.

Um deles gabou-se:

— Há poucos dias, toquei numa festa do Senhor dos Passos em certa cidade e quando saiu a procissão a banda tocava um dobrado tão lindo que meti a clarineta na boca, seu compadre, com um gosto... Todo mundo me admirava e já nenhum outro instrumento sobressaía. Dali a pouco, viu-se o Senhor dos Passos mover-se no andor e como quis subir ao céu, embalado pelo sons que saiam da minha clarineta. Os padres, as irmandades, o povo, tudo estava voltado para mim e de boca aberta, diante daquele milagre. Foi preciso parar o dobrado para que a procissão continuasse a marcha e o Senhor dos Passos ficasse quieto no andor!

O outro músico ouviu com toda paciência a maranha do rival. Depois, pegando a palavra, saiu-se com esta:

— Isso é nada, compadre, em comparação com o que se deu comigo na mesma cidade de que você falou. Fui tocar no enterro de um graúdo. Gente que não acabava mais. Começamos uma marcha fúnebre. Minha clarineta estava mesmo manhosa; chorava que dava gosto. O povo ficou apatetado, olhando para mim, como se a minha música fosse coisa nunca ouvida, vinda lá do céu. Dali a pouco, não havia quem não chorasse, gabando a minha clarineta, dizendo que não havia coisa igual em toda a redondeza.    Eu continuei, modestamente e, quando ia no melhor da festa, o caixão começou a mover-se, a tampa abriu-se e, ao som do instrumento, o defunto foi-se levantando até que ficou de pé. E, voltando-se para mim, gritou entusiasmado:

- Vá tocar clarineta... nos quintos dos infernos!

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 14


O MAR E A NOITE...

MOTE:
O mar sentindo embaraços
na noite de lua cheia,
carrega a noite nos braços
para deitá-la na areia!...
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN


GLOSA:
O MAR SENTINDO EMBARAÇOS
no sabor de uma paixão,
quer entregar os abraços
que nascem do coração!

O mar fica mais sensual
NA NOITE DE LUA CHEIA,
num prateado sem igual
fala de amor à mancheia!

Com carinho, em seus espaços
explodindo de desejos,
CARREGA A NOITE NOS BRAÇOS
e a enche de ternos beijos!

O mar sendo amante e amigo,
aproveita a maré-cheia
e leva a noite consigo,
PARA DEITÁ-LA NA AREIA!…
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SOLIDÃO CONTIGO!

MOTE:
Dei um basta à indiferença!...
– Nem tentes mais meu perdão,
pois foi na tua presença
que eu conheci solidão!...
Clenir Neves Ribeiro
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
DEI UM BASTA À INDIFERENÇA,
pois vou ser feliz, sozinha;
não fazes parte da crença,
da crença de amor que eu tinha!

Não tentes chegar a mim,
– NEM TENTES MAIS MEU PERDÃO,
meu amor chegou ao fim,
é o que diz meu coração!

Vou sentir a diferença
de agora, ser bem feliz,
POIS FOI NA TUA PRESENÇA
que eu sofri, fui infeliz!

Foi nessa vida vazia,
vivida sem emoção,
que eu perdi minha alegria
QUE EU CONHECI SOLIDÃO!…
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TRÊS POR QUATRO

MOTE:
BEIJO-TE A FOTO... E NA ESPREITA
DESTE AMOR QUE EU IDOLATRO,
MINHA SAUDADE SE AJEITA
NO RETRATO TRÊS POR QUATRO.
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
BEIJO-TE A FOTO... E NA ESPREITA
a esperar-te, com emoção,
tu és, minha doce eleita,
dona do meu coração!

Vivo de sonho e lembranças,
DESTE AMOR QUE EU IDOLATRO,
desfilam as esperanças:
Personagens de um teatro!

Dessa angústia, nem suspeita
o meu eu apaixonado,
MINHA SAUDADE SE AJEITA,
vai se aninhando ao teu lado!

Essa peça não tem fim,
é da vida, o anfiteatro,
e eu mato a saudade, enfim,
NO RETRATO TRÊS POR QUATRO.
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PLANTANDO GUERRA

MOTE:
Quando há morte programada
pelos quadrantes da terra,
homens que não valem nada
sentem paz plantando guerra.
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

 

GLOSA:
QUANDO HÁ MORTE PROGRAMADA,
uma sombra de tristeza
é por tudo derramada
na pobre terra indefesa.

É como a voz do trovão
PELOS QUADRANTES DA TERRA,
voz sem nenhuma emoção
que dentro de si, encerra!

A justiça equivocada,
num triste engano, premia
HOMENS QUE NÃO VALEM NADA
que só plantam agonia.

Os governantes maldosos
(onde a bondade se ferra),
pensando ser poderosos,
SENTEM PAZ PLANTANDO GUERRA.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Guimarães Rosa (O Riacho Sirimim)


Só a vocês eu vou contar o riachinho Sirimim. Ele é só ali, não é de mais ninguém. Em uma porção de grotinhas, ele vai nascendo. São muitos olhos-d’água, de toda espécie, um brota naquela pedreira, que tem atrás da casa do Pedro. Na grota onde tem uma pedra grande, cortada pelo meio, e aí as abelhas aproveitaram uma fresta e fizeram casa dentro. Ali é a nascente mais alta, e uma das grandes. Ele nasce junto com o mel das abelhas.

A pedra é de blocos quadrados, bonitos, ela é toda dura, toda reta, entre árvores — um pouquinho da mata, que ficou. Pedra mais alta que esta casa. Em cima, cheia de cactos; debaixo, forma-se uma lapinha, em que entrou o tatu que o Pedro caçou; no meio, a fenda horizontal, dentro dela se instalou o enxame de abelhas oropa, que fugiu da casa de alguém. Uma abelha picou o Maninho, que então meteu a foice ali, colheu. Inácia coou o mel. Ali não dá formiga. Ali é uma noruega: todo este grotão — a matinha, a pedra; até a casa do Pedro. As abelhas estão lá. O mel também mereja*, daquela pedra, junto do lugar que nasce a água. A água vem descendo da pedra, pela face da pedra. Ele nasce ali, é mais um molhado na pedra. Só uns fiapos d’água, que correm pela pedra.

Simples, sem-par, águas fadadas — e inavegável a um meio-amendoim. De amor um mississipinho, tão sem fim. Ele já é o Sirimim.

E faz um pocinho e uma biquinha, ali onde o Pedro pegou o tatu. E o Pedro teve a especialidade de plantar inhames perto, para as folhas servirem de copos. Ali ainda é noruega, a água em inverno e verão está sempre fresquinha. O Pedro bebe nas folhas de taioba, mas diz: “É pena eu não ter um copo de vidro, pra se poder ver embaciar...”

Outro poço, entre as goiabeiras, o da Eva lavar as panelas. E, depois da biquinha de bambu, em que bebe gente, tem o pocinho para os bichos: as galinhas, as cabritinhas; lá bebia a Bolinha, de quem o Pedro gostava tanto, que caçava tanto, e que “era tão amiga, que, quando zangou, foi zangar pra longe...”

Daí, a primeira disciplinada que dão nele: a virada de um reguinho, que fizeram, desviando-o de não ir no pé da mangueira grande, que não gosta de água. Sonso, o leito dele, todo, é um berço — é sempre assim — o Sirimim.

Solto, dali passa no arrozal do Pedro, que é uma várzea pequenininha, fresca, entre a mangueira grande e o escarpado do morro; de arroz mais bruto, que se facilita, por não precisar de tanto trato. Porque o Pedro é ainda meio tolhido, da que teve, como lá ele mesmo diz: uma “doença de brejo”. Sirimim se faz uns quatro regos, e nele nadam já os peixes barrigudinhos. Sirimim vai se engrossando. Terreno todo ali mina água. Sirimim, água-das-águas, é menos de meio quilômetro, ele inteiro. Só isto, e a fada-flor — uma saudade caudalosa: Sirimim-acima Sirimim-abaixo — alma para qualquer secura.

Sobrevindo outro riachinho, de lá de um pé de embaúba, nova, já no caminho da casa do Joaquim, onde rebenta seu olhinho-d’água: no lugar, quando o Joaquim planta o milho, deixa uma moita de capim, para “favorecer” o miriquilho. Essezinho também nasce alto, ele vem descendo assim. A confluência dos dois é bem debaixo da pinguela, que mais bem é uma estiva, a ponte de paus.

Sirimim, mais, se revira, e entra na várzea grande, mais baixa, que o terreno vem sempre descambando. Aí a várzea cortada de canais, abertos para os muitos minadouros* e que querem-se todos ao Sirimim: um que vem do curral velho, uns que nascem debaixo das tajubas — árvores boas para fazer mourão. São esses os de volume maior, os que tantos se surgem do fundo da várzea grande; mas o mais cheio e alto é mesmo o da casa do Pedro, por isso deu-se tradição de ser nascente principal: o próprio, primitivo Sirimim, batizado num jardim.

Só daí ele vem ao arrozal do Joaquim. Sarapintam-no, onde, as traíras, tigrinas, hieninas. Sereno nosso riacho e seu caminho manso, por entre o chão chato, terras-águas de arroz — as lezírias* de verdes reflexos.

Seja que, desde depois, se vê, em uma sua margem, a única arte que ele faz, só esta maldade do Sirimim: o “chupão”, lugar em que a terra é encharcada e as pessoas podem se afundar. O genro do Joaquim uma vez afundou, tiveram de estender a ele um pau, e se ajuntaram, todos, para o tirar. Joaquim tenteou o chupão com um bambu, o bambu se some lá para dentro. Joaquim fincou uns bambus em volta, para avisar de que ali é lugar que podia dar desgraça. Sob mato: verde: uma moita que fica mais verde.

Súbito, então, os bambus. Sirimim passa-os, por baixo. Sirimim penetra um grande lugar, a horta, a partezinha de horta dele nilegíptico — com alfaces, libélulas, rãs e náiades. Serve-a em três canais principais, que Joaquim fez, às tortas, aproveitando os tortos troncos velhos de ipê, madeira dura, que estavam caídos ou enterrados, quando ele limpou o brejo. Num deles, surte-se a biquinha da Irene lavar roupa. Tem um pé de rosa: rosinha cor-de-rosa, que se desfolha à toa; mas, de longe, você já sente o cheiro. Tudo que é casa tem essa roseira — de rosinhas pequenas, em cachos — roseira própria para chamar abelhas. Joaquim tirou também um retalhado de reguinhos, e tapagem de pequenas represas, para proibir as formigas e reservar água de rega para a tarde da seca. Mas as solertes* enguias pretas, que são os muçuns, socavam o fundo dos açudinhos, furando túneis que dão fuga à água; e uma praguinha verde prospera recobrindo tudo, plantinhas ervas que parecem repolhinhos — as formigas aproveitam para passar por cima. Joaquim xinga: — “Não é que dá praga até na água?!” Joaquim também plantou umas laranjeiras, condenadas à umidade — elas estão sentidas, umas já morreram — mas ali é o único recanto em que formiga não ataca. Joaquim só diz: — “Antes delas morrerem, sempre dão alguma alegria à gente...”

Sirimim, sua margem sul: uma carreira de bananeiras. Sirimim segrega sob a ponte — por onde passa a estradinha da casa. Sirimim — e há agora o bambu, que tem o ninho do sabiá; o que foi cortado, mas brotou — só aquele breve tufo, com uns poucos penachos, bonitos: num deles, vê-se, o ninho do sabiá; Sirimim o deixa para trás. Seguinte — só os cinco metros — é a biquinha antiga, abandonadinha, aquela coisinha de bambu, que colhe água. Sirimim veio até aqui quieto, que dele não se ouve; mas, a biquinha antiga, saturada, aí a água cai tanta, que já faz som, aí ele começa a falar: ...se bem, bem, bem bom... — e lá se vai, marulho abaixo.

Sirimim traspassa agosto, setembro a abril, chovido fevereiro, dezembro e tudo, flui, flui.

Sirimim e a estrada se separam, ele vem um trecho quase reto, se sorrateia lá no fundozinho de seu vale, em meio a um espaço verde, sem lavoura, porque ali ficava para pastar a bezerrinha do pé quebrado.

Sirimim atravessa uma noite e um luar, muito claros, os vagalumes vindos, os curiangos* cantando, perto e longe, por cima do mundo inteiro.

Sirimim se curva — aonde vai ser o açude — à carícia destes lugares. Ali, bulha entre outros bambus, grandes; após, o lugar onde se planta o amendoim — que vem quase à margem, fim. Separa-se para outra horta, a da dona do encanto. Sirimim...

Ah, e no bambual de bambus muito grandes, ele sai-se, deixa-se — para entrar sumido no rio. A enseada do Sirimim, coisa tão gostosa, você sabe. Assim toda de branca areia no fundo, aonde o Sirimim solve-se em sucinto, tranquilo. Aí, quando é época de pouco, ele nem chega a ajuntar-se com o rio: só se espalha na areia, e embebe-se, liquidado.

Se o rio toma de se enchendo, porém, ele represa o Sirimim, que se larga, que invade e ocupa a várzea toda, coberto de espumas e folhas de bambu. Siriminzinho, então, possui-se, cheio de peixes grandes. Sirimim ronca e barulha: em vez de correr para baixo, sobe ao arrepio, faz ondas, empurra-se para trás com a tanta água do rio, supera o chão e o tempo e confirma: toda a vida, todas as vidas, sim.
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Vocabulário
Curiango – ave de plumagem muito macia e voo silencioso.
Lezíria – leito maior ou planície de inundação, junto a certos rios, onde há depressões que são invadidas pelas cheias.
Mereja – mareja.
Minadouro – nascente de riacho ou ribeirão, ou olho-d'água dentro de grota.
Solertes – espertas, diligentes.
Tajuba – é o nome popular de uma árvore, o mesmo que taiúva.

Fonte:
Guimarães Rosa. Ave, palavra. Publicado em 1970 (póstumo)

sábado, 23 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 275


Léo Buscaglia (História de uma Folha)


Era uma vez uma folha, que crescera muito. A parte intermediária era larga e forte, as cinco pontas eram firmes e afiladas. Surgira na primavera, como um pequeno broto num galho grande, perto do topo de uma árvore alta.

A Folha estava cercada por centenas de outras folhas, iguais a ela. Ou pelo menos assim parecia.

Mas não demorou muito para que descobrisse que não havia duas folhas iguais, apesar de estarem na mesma árvore.

Alfredo era a folha mais próxima. Mário era a folha à sua direita. Clara era a linda folha por cima. - Todos haviam crescido juntos. Aprenderam a dançar à brisa da primavera, esquentar indolentemente ao sol do verão, a se lavar na chuva fresca. Mas Daniel era seu melhor amigo.

Era a folha maior no galho e parecia que estava lá antes de qualquer outra. A Folha achava que Daniel era também o mais sábio. Foi Daniel quem lhe contou que eram parte de uma árvore.

Foi Daniel quem explicou que estavam crescendo num parque público. Foi Daniel quem revelou que a árvore tinha raízes fortes, escondidas na terra lá embaixo. Foi Daniel quem falou dos passarinhos que vinham pousar no galho e cantar pela manhã. Foi Daniel quem contou sobre o sol, a lua, as estrelas e as estações.

A primavera passou. E o verão também. Fred adorava ser uma folha. Amava o seu galho, os amigos, o seu lugar bem alto no céu, o vento que o sacudia, os raios do sol que o esquentavam, a lua que o cobria de sombras suaves.

O verão fora excepcionalmente ameno. Os dias quentes e compridos eram agradáveis, as noites suaves eram serenas e povoadas por sonhos. Muitas pessoas foram ao parque naquele verão. E sentavam sob as árvores. Daniel contou à Folha que proporcionar sombra era um dos propósitos das árvores.

— O que é um propósito? - perguntou a Folha.

— Uma razão para existir - respondeu Daniel.

— Tornar as coisas mais agradáveis para os outros é uma razão para existir. Proporcionar sombra aos velhinhos que procuram escapar do calor de suas casas é uma razão para existir.

A Folha tinha um encanto todo especial pelos velhinhos. Sentavam em silêncio na relva fresca, mal se mexiam. E quando conversavam eram aos sussurros, sobre os tempos passados. As crianças também eram divertidas, embora às vezes abrissem buracos na casa da árvore ou esculpissem seus nomes. Mesmo assim, era divertido observar as crianças. Mas o verão da Folha não demorou a passar. E chegou ao fim numa noite de inverno.

A Folha nunca sentira tanto frio. Todas as outras folhas estremeceram com o frio. Ficaram todas cobertas por uma camada fina de branco, que num instante se derreteu e deixou-as encharcadas de orvalho, faiscando ao sol. Mais uma vez, foi Daniel quem explicou que haviam experimentado a primeira geada, o sinal que era o inverno que estava chegando.

— Por que ficamos com cores diferentes, se estamos na mesma árvore? - perguntou a Folha.

— Cada um de nós é diferente. Tivemos experiências diferentes. Recebemos o sol de maneira diferente. Projetamos a sombra de maneira diferente. Por que não teríamos cores diferentes? Foi Daniel, como sempre, quem falou. E Daniel contou ainda que aquela estação maravilhosa se chamava inverno. E um dia aconteceu uma coisa estranha.

A mesma brisa que, no passado, os fazia dançar começou a empurrar e puxar suas hastes, quase como se estivesse zangada. Isso fez com que algumas folhas fossem arrancadas de seus galhos e levadas pela brisa, reviradas pelo ar, antes de caírem suavemente ao solo. Todas as folhas ficaram assustadas.

— O que está acontecendo? - perguntaram umas às outras, aos sussurros.

— É isso que acontece no inverno - explicou Daniel - É o momento em que as folhas mudam de casa. Algumas pessoas chamam isso de morrer.

— E todos nós vamos morrer?- perguntou Folha

— Vamos sim - respondeu Daniel - tudo morre. Grande ou pequeno, fraco ou forte, tudo morre. Primeiro cumprimos a nossa missão. Experimentamos o sol e a lua, o vento e a chuva. Aprendemos a dançar e a rir. E, depois morremos.

— Eu não vou morrer! - exclamou Folha, com determinação - Você vai, Daniel?

— Vou sim... Quando chegar meu momento.

— E quando será isso?

— Ninguém sabe com certeza. - respondeu Daniel

A Folha notou que as outras folhas continuavam a cair. E pensou: "Deve ser o momento delas". Ela viu que algumas folhas reagiam ao vento, outras simplesmente se entregavam e caíam suavemente Não demorou muito para que a árvore estivesse quase despida.

— Tenho medo de morrer. - disse Folha a Daniel - Não sei o que tem lá embaixo.

— Todos temos medo do que não conhecemos. Isso é natural. - disse Daniel para animá-la - Mas você não teve medo quando a primavera se transformou em verão. E também não teve medo quando o verão se transformou em outono. Eram mudanças naturais. Por que deveria estar com medo da estação do inverno?

— A árvore também morre? - perguntou - Para onde vamos quando morrermos?

— Ninguém sabe com certeza... É o grande mistério.

— Voltaremos na primavera?

— Talvez não, mas a Vida voltará.

— Então qual é a razão para tudo isso? - insistiu a Folha - Por que viemos pra cá, se no fim teríamos de cair e morrer?

Daniel respondeu no seu jeito calmo de sempre:

— Pelo sol e pela lua. Pelos tempos felizes que passamos juntos. Pela sombra, pelos velhinhos, pelas crianças. Pelas cores do outono, pelas estações. Não é razão suficiente?

Ao final daquela tarde, na claridade dourada do crepúsculo, Daniel se foi. E caiu a flutuar. Parecia sorrir enquanto caía.

— Adeus por enquanto. disse ele à Folha.

E depois, a Folha ficou sozinha, a única folha que restava no galho. A primeira neve caiu na manhã seguinte. Era macia, branca e suave. Mas era muito fria. Quase não houve sol naquele dia... E foi um dia muito curto. A Folha se descobriu a perder a cor, a ficar cada vez mais frágil. Havia sempre frio e a neve passava sobre ela. E quando amanheceu veio vento que arrancou a Folha de seu galho.

Não doeu. Ela sentiu que flutuava no ar, muito serena. E, enquanto caía, ela viu a árvore inteira pela primeira vez. Como era forte e firme! Teve a certeza de que a árvore viveria por muito tempo, compreendeu que fora parte de sua vida. E isso deixou-a orgulhosa. A Folha pousou num monte de neve. Estava macio, até mesmo aconchegante. Naquela nova posição, a Folha estava mais confortável do que jamais se sentira.

Ela fechou os olhos e adormeceu. Não sabia que a primavera se seguiria ao inverno, que a neve se derreteria e viraria água. Não sabia que a folha que fora, seca e aparentemente inútil, se juntaria com a água e serviria para tornar a árvore mais forte. E, principalmente, não sabia que ali, na árvore e no solo, já havia planos para novas folhas de primavera.

Fonte:
Leo Buscaglia. A história de uma folha: uma fábula para todas idades. Publicado em 1982.