quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Moacyr Scliar (Zap)


Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai. É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento – zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso - nua, completamente nua.

Fonte:
Moacyr Scliar. Contos reunidos. Publicado em 1995.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Doutor Luiz, Um Homem Justo


Segunda metade da década de 1960. O prefeito era o Doutor Luiz Moreira de Carvalho, médico, nascido mineiro em Divisa Nova, pioneiro maringaense aqui chegado em 1949. A prefeitura funcionava ainda no prédio antigo, na esquina das avenidas Getúlio Vargas e 15 de Novembro.

Num certo dia lá chegou solicitando audiência com o prefeito um famoso ator que na época fazia sucesso no cinema e nas primeiras produções da televisão brasileira. Virou festa o paço. Funcionários e outras pessoas que no momento estavam no local se alvoroçaram pedindo autógrafos. Doutor Luiz foi informado, mandou o moço entrar e o recebeu com as devidas honras.

O ator estava na cidade para apresentar uma peça de teatro e queria um favorzinho, não me lembro se um patrocínio ou isenção de algum imposto ou taxa. O prefeito perguntou se o espetáculo seria público ou em recinto fechado, com ingresso pago. Sim, o ingresso seria pago, explicou o galã.

Doutor Luiz coçou os fartos bigodes, deu um sorriso meio encabulado, pegou a garrafa térmica na mesa ao lado, serviu um cafezinho ao visitante. Em seguida, com aquele vozeirão de Herón Domingues, caprichou na diplomacia: “Pois é, meu jovem, sou um admirador seu, aprecio muito o seu talento artístico, porém lamento não poder atendê-lo. Como o senhor sabe, lido com dinheiro do povo, que como tal só pode ser gasto quando em benefício da coletividade”.

Continuou: “Se o senhor fosse um artista amador residente em Maringá, e sua apresentação fosse feita com entrada livre, tudo bem. Mas o senhor é um ator profissional e vai receber justa remuneração pelo seu belo trabalho; portanto, como qualquer outro profissional, estará sujeito às normas fiscais vigentes no município. Desse modo, peço que me desculpe, mas não tenho como deferir seu pedido”.

O moço se levantou, deu um abraço no prefeito, respondeu: “Doutor, o senhor acaba de me dar uma grande lição de civismo. Não vou jamais esquecer isso. O senhor tem toda a razão e quem pede desculpa sou eu. Se me permite, vou lhe deixar dois ingressos de cortesia. Será uma honra enorme tê-lo na plateia, juntamente com sua esposa”.

Doutor Luiz agradeceu: “Aceito com alegria, mas faço questão de pagar, como qualquer outro espectador”.

Puxou a carteira, fez o pagamento e pediu um autógrafo do ilustre.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 9-7-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiano Wanderley (Baú de Trovas)


Ao homem, na sua essência,
diante a sua fraqueza,
deu-lhe Deus, com sapiência,
por amparo a fortaleza!
- - - - - –

Ao ver a morte estampada,
na face de uma criança,
vê-se, ali, riste, ceifada,
para sempre uma esperança.
- - - - - –

Até mesmo o passarinho,
deixa a seca, a região,
para formar novo ninho,
onde houver fartura em grão
- - - - - -

Cansado, depois da lida,
no campo, ao anoitecer,
nos dá uma lição de vida,
o pobre aprendendo a ler.
- - - - - –

Com frases que vem do peito,
meu coração se declara
ao verso mais que perfeito:
— A trova, esta joia rara!
- - - - - -

Como que por acalanto,
descerra a noite o seu véu.
Cobre a terra, com seu manto,
expondo estrelas no céu!
- - - - - –

Desista, irmão dessa guerra,
abrace a paz benfazeja,
pois, a vida, enfim se encerra,
onde o combate sobeja.
- - - - - –

Desisti das minhas lutas,
nos sufrágios, com cautelas,
vou votar nas prostitutas,
me cansei, dos filhos delas...
- - - - - –

Deus com sua sapiência,
rima pra Mãe não criou,
preservando, em sua essência,
a pureza ao seu louvor.
- - - - - –

Eis a serra majestosa!
Na natureza, um painel...
— Imponente, imperiosa,
altiva, buscando o céu!
- - - - - –

Ela vem com seu achaque,
nossa paz ela degreda,
a sogra é que nem conhaque:
— Aos poucos ela embebeda!
- - - - - –

Em noite de lua cheia,
envolto a tanto esplendor,
um poeta galhardeia,
versando trovas de amor.
- - - - - –

É uma alegria, incontida,
o nascer do filho amado,
que pelo amor, fez-se vida,
no seio mater, gerado.
- - - - - -

Gaivota! Um doce voar.
Com tua excelsa beleza,
quando pairas, frente ao mar,
és eterna realeza!
- - - - - -

Não podia acontecer!
Do verbo, qual seu conceito?
Diz Juquinha, sem temer:
— Preservativo imperfeito!
- - - - - –

Na roça, o suor do rosto,
mostra todo o ardor da lida.
e nesse cansaço, exposto:
— Uma esperança de vida!
- - - - - –

No plenilúnio, na noite,
do aconchego dos seus ninhos,
vem a lua como açoite,
aclarar os passarinhos!
- - - - - –

No voo, a linda craúna,
com graça e simplicidade,
entoa, por sobre a duna,
seu canto de liberdade.
- - - - - –

O bombeiro, seu Clemente,
no boteco faz seu jogo.
Lá se apaga na aguardente,
combatendo o próprio fogo!
- - - - - –

O fogo traz, seus horrores,
queimada, é devastação,
onde havia vida e cores,
há tristeza e solidão.
- - - - - -

O jardim perdeu as cores,
todo o belo feneceu;
as rosas, sem seus olores,
tal qual o destino meu...
- - - - - -

Para que tenhamos paz,
devemo-nos dar as mãos,
Na vida, nunca é demais,
o afago amigo, um irmão!
- - - - - -

Pelos caminhos da lida,
quantos castelos ergui...
— E esses sonhos, pela vida,
com trabalho os consegui!

Por ser um real tormento,
indefinível ao pintor
e um sublime sentimento:
– A saudade não tem cor!
- - - - - –

Por volúpia ou por feitiço,
todo amor se faz mister,
no encantamento e no viço,
dos braços de uma mulher.
- - - - - –

Quando a lua prateada,
resplandece na amplidão,
faz da trova uma morada,
em forma de inspiração.
- - - - - –

Quando a queimada ameaça
a vida, sem complacência,
a mata, pela fumaça,
vai aos céus pedir clemência.
- - - - - –

Quantas vezes, eu criança,
teus versos, Pai, eu ouvia;
hoje eu guardo a tua herança:
— O régio dom da poesia.
- - - - - –

Relógio que sempre atrasa
e um homem que não garanta,
de nada servem pra casa,
nenhum dos dois, adianta!
- - - - - –

Se a vida, traz cicatrizes
por algo, que nos aporte,
pelos meus dias felizes,
agradeço a Deus, a sorte,
- - - - - –

Se os bons ventos são bem vindos,
por trazer-nos, sempre o bem,
que levem após, advindos,
os nossos males também...
- - - - - –

Só a idade evidencia,
os anos da nossa essência,
nos dando a sabedoria,
consolidando a existência.
- - - - - –

Tendo a trova, como canto,
o poeta, em oração,
põe em versos, todo encanto,
da mais sublime expressão!
- - - - - –

Tens meiguice e sedução,
tens, oh! Mãe, tanta bondade,
és de Deus a criação,
que concebe a humanidade.
- - - - - –

Uma nasce pra titia,
outra varre os assoalhos.
Mulher feia e ventania,
só servem pra quebra-galhos.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Figueiredo Pimentel (O Afilhado do Diabo)

 
O sr. Aleixo Pitada era um homem honrado e bom, estimado, por todos que o conheciam, e vivendo sozinho, num recanto, com sua mulher e seus numerosos filhos. O pobre velho trabalhava na roça todo o santo dia, plantando legumes e tratando das frutas, e, aos domingos, vinha com o tabuleiro de quitanda, à cidade, para vender a sua mercadoria.

A mulher, que se chamava Engrácia, fazia o serviço da casa; ia ao mato cortar lenha, e à noite ainda ajudava o marido, descascando o feijão e amarrando os molhos de vagens. Apesar de trabalharem assim, tanto, passavam mal, viviam na maior miséria, e nunca tinham dinheiro para comprar o que precisavam, havendo até dias que nem tinham pão para os filhos.

– Olha, Engrácia; não podemos dar sustento a nossos filhos, senão trabalhando mais que um boi de canga. Por conseguinte, se viermos a ter mais algum, levá-lo-ei para a cidade, um domingo, quando for vender quitanda, e dá-lo-ei a quem quiser aceitá-lo, mesmo ao diabo, se ele me aparecer.

– Não digas isso, Aleixo, olha, que não será mais uma boca que nos virá atrasar a vida.

– Já te disse, mulher; se nascer mais algum filho, dá-lo-ei a quem quiser. Até ao diabo, repito.

Meses após tiveram outro filho; e, no domingo seguinte, quando o homem foi levar a quitanda ao mercado, a mulher vestiu o pequeno e entregou-o ao marido. Assim que Pitada chegou à cidade, encontrou na entrada da rua que ia dar ao mercado um cavalheiro bem vestido, perguntando o que era aquilo no braço.

– É um filho que minha mulher teve há uma semana, meu nobre senhor, e eu trouxe o pequerrucho para ver se alguém quererá ficar com ele. Sou muito pobre, e não posso sustentar meus filhos. São tantos, que resolvi dar os que vierem a nascer a quem os quiser.

– Pois eu aceito o menino, bom homem. Se tens que o dar a outro, dá-me, que cuidarei bem dele.

O pai entregou a criança, e depois de vender toda a quitanda voltou para casa muito satisfeito por ter encontrado facilmente um homem, tão distinto, de tão belas maneiras, que lhe pedisse o pequerrucho.

Chegando a casa, contou tudo à esposa, que exclamou:

– Que Deus o proteja, e faça dele um bom cristão!
***

O cavalheiro que tinha tomado o menino para criar era o diabo, que ouvira toda a conversa do casal, e viera buscar a criança. O menino vivia muito contente no palácio de seu protetor, onde nada lhe faltava, divertindo-se bastante, porque passeava e brincava em todos os lugares.

Notava, porém, que seu padrinho (como, ele chamava Satã), nunca lhe havia mostrado três quartos existentes no palácio, que estavam sempre fechados, e nos quais nunca tinha entrado. Mas, como o respeitava muito, jamais desejou entrar naqueles aposentos, que tanto despertavam a sua curiosidade.

Uma vez o diabo, indo fazer uma viagem, chamou o menino, que então já tinha quinze anos, e disse:

– Vou dar um passeio, e como me demoro alguns dias, deixo contigo as minhas chaves. Podes correr o palácio todo à exceção destes três quartos onde não deves entrar, o que te proíbo expressamente.

Demorou-se Satã fora do palácio quase um mês; e quando voltou pediu as chaves ao menino, que as entregou sem receio, pois tinha cumprido fielmente ordens recebidas. Passado um tempo, fez uma segunda viagem e, antes de partir, entregou ao afilhado chaves com a mesma recomendação.

Mas o rapaz, desta vez não pôde conter a sua curiosidade, e supondo que o padrinho nunca viesse a sabê-lo, foi abrir os quartos. Descerrando a porta do primeiro, ficou deslumbrado. Era um quarto todo forrado de cobre, transformado numa estrebaria, também de cobre, onde se via um cavalo castanho muito lindo, e que corria muitíssimo.

Entrando no segundo aposento, mais deslumbrado ficou: viu outro quarto todo de prata, e uma estrebaria também de prata, onde comia um cavalo branco, mais bonito e mais veloz que o castanho, o primeiro.

Entrou no terceiro compartimento, e não pôde conter um grito de surpresa. Era todo ele de ouro, e também a estrebaria, na qual estava comendo um cavalo preto mais bonito ainda que os anteriores, e que não corria: voava.

Aqueles três cavalos eram encantados.

O castanho chamou-o, e disse-lhe que não tinha tempo a perder, porque o diabo ia chegar da viagem; e, se o encontrasse ali, era capaz de matá-lo.

O menino ficou com muito medo, mas o cavalo recomendou:

– Vá à cozinha e embrulhe um pedaço de sabão num papel, noutro alfinetes, ponha um pouco de água em um vidro e venha ter comigo depressa. Mas não se demore, senão não respondo por sua vida.

O mocinho fez tudo aquilo, e quando voltou, o animal tornou a falar:

– Agora entre no quarto de ouro, porque ao sair estará dourado, e monte em mim, que quero salvá-lo.

O diabo, ao chegar, não encontrou o afilhado. Correu para os quartos e não vendo o cavalo castanho, compreendeu que o menino fugira.

Montou no cavalo preto e, como havia vento, voou, avistando-o horas depois. Assim que o castanho se viu perseguido pelo seu dono, que já estava perto, disse para o menino:

– Depressa, jogue o papel com sabão!...

Apareceu imediatamente um morro de sabão muito alto, que o cavalo não podia subir, pois escorregava.

O diabo voltou para casa, aborrecido, mas de repente lembrou-se que, se tivesse levado uma faca, bastaria para cortar o sabão para poder passar. Montou novamente e, quando já o ia alcançando, o castanho disse:

– Depressa, jogue o vidro com água, senão estamos mortos!...

Transformou-se o vidro em grande lagoa, e Satã, vendo tanta água, voltou com medo de se afogar. Chegando à casa lembrou-se que com o poder que tinha, podia fazer desaparecer a lagoa.

Tomou de novo o cavalo e voou em perseguição do fugitivo, e quando lá chegou não encontrou mais lagoa alguma.

Foi voando, até que chegou a vê-los de novo.

O castanho, assim. que sentiu a aproximação do diabo, disse:

– Atire os alfinetes, senão estamos perdidos...!

O menino fez o que aconselhava o seu cavalo e viu ,formar-se atrás de si um espinheiro tão cerrado que ninguém podia passar. O diabo, na fúria de pegar a criança, quis romper à força o espinheiro, ficou preso, e de tanto se debater para sair, morreu todo espetado.
***

Os outros dois cavalos foram ao encontro do menino, e depois de andarem muito chegaram à capital do reino, onde governava um rei poderosíssimo. Este rei tinha uma filha chamada princesa Aurora.

Quando ela viu aquele moço dourado, ficou apaixonada, e foi dizer ao pai que se casaria com ele, custasse o que custasse. Sua Majestade recusou-se terminantemente, porquanto o moço não era filho de rei, nem mesmo fidalgo. E receando que Aurora ficasse ainda mais apaixonada ordenou que os soldados formassem um grande quadrado, o colocassem no centro e o fuzilassem.

A princesa, sabendo daquela ordem, pediu-lhe que não fizesse aquilo, porque seria a morte do mancebo, que não poderia escapar a tantas balas. O soberano recusou-se, e as suas ordens foram executadas fielmente.

O moço pediu, antes de entrar no quadrado, que o deixassem morrer montado no seu cavalo:

Deu-se a voz de preparar ... apontar... e partiram os tiros. Aurora, ouvindo aquele estampido, teve um ataque e desmaiou.

Assim que a fumaça se dissipou, viu-se o moço dourado montado no cavalo preto, voando, do outro lado do quadrado.
***

O monarca, em vista daquele caso extraordinário, verdadeiro milagre, estupendo, inaudito, consentiu no enlace, compreendendo que não tratava de uma pessoa vulgar. Assim, pouco depois celebrou-se o casamento e logo que o padre abençoou o casal, viram-se três pombos brancos voando pelo céu em fora.

Eram os três cavalos que iam para o céu, já que o moço dourado não precisava mais da proteção deles.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 345

 

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Sete


QUESTÃO DE PURA LÓGICA

 

O PROFESSOR EVERALDO, da cadeira de matemática ergue com as duas mãos uma folha branca de papel, dessas A-4, e a exibe a seus alunos. Em seguida, pergunta para o Carlinhos, o guri sentado numa das carteiras logo à frente:

— Carlinhos, se eu dividir esta folha de papel em dois pedaços, com o que é que eu fico?

Carlinhos prontamente se levanta e responde:

— Com duas bandas ou duas metades, professor.

— Perfeito. Sandrinho, sua vez. Se eu dividir esta folha em quatro pedaços, com o que é que eu fico?

— O senhor ficará com quatro pedaços, ou quatro metades, professor.

— Ok. Toninho, a mesma indagação vai pra você. Se eu dividir esta folha que está aqui em seis pedaços, quantas partes terei?

— Seis partes, professor, ou seis metades.

— Muito bom, Toninho, muito bom.

O professor Everaldo pega uma segunda folha de papel igual a primeira e insiste na pergunta, agora ao menino Marcelinho:

— Marcelinho, e se eu dividir esta outra folha, ou melhor, se eu recortá-la com a tesoura. — Faz uma pausa, passa a mão na tesoura sobre a mesa — Repetindo, Marcelinho: se eu pegar esta folha e a dividir em oito pedaços iguais, quantos partes terei?

Marcelinho se levanta, pensa um pouco antes de responder:

— E então, Marcelinho, estou esperando. Qual é a sua resposta?

— Oito partes, professor, ou oito metades.

— Bravo, Marcelinho. Pode sentar. Estou vendo que meus alunos, a cada dia se esmeram em aprender a minha matéria. Estão mais confiantes, mais atenciosos. Para falar a verdade, estou gostando de ver.

Após estas palavras elogiosas, o professor volta a recortar a folha  em dez pedacinhos exatamente do mesmo tamanho:

— Bebel, minha linda, sua vez. Como pode ver, cortei a folha de papel em dez pedaços iguais. Vou repetir a pergunta que fiz anteriormente a seus coleguinhas. Pronto. Aqui está. Dez pedaços. Diga, minha princesa, com quantas partes fiquei?

Bebel se levanta de um salto e manda a primeira coisa que lhe vem à cabeça:

— Professor Everaldo, os cortes que o senhor fez aí são iguais?

O professor Everaldo estranha a pergunta, todavia, acha melhor esclarecer a dúvida trazida e deixar a menina em paz com a sua controvérsia:

— Claro, Bebel. Qual a sua dificuldade?

— É que olhando daqui, professor, essas tirinhas parecem diferentes umas das outras.

— Bebelzinha, são iguais.

— O senhor quer dizer, do mesmo tamanho?

— Sim, Bebel. Então, minha garotinha do coração: qual a sua resposta?

— Que resposta, professor?

— Com quantas partes eu ficarei?

— Bem, se o senhor está dizendo que a folha foi repartida em dez partes iguais, o senhor terá um total de dez partes, ou dez metades, ou dez oitavos.

O professor Everaldo sorri:

— Muito bem, Bebel, muito bem.

Assim, nessa ordem segue o professor repetindo idêntica aventura com as folhas A-4. Cada novo aluno chamado, subia o valor dos" despedaços". De posse de uma terceira folha, rasga-a em doze. Ato contínuo, em quatorze e dezesseis. Depois, cada vez em tirinhas menores, separa em dezoito, vinte, vinte e duas, vinte e quatro, vinte e seis, vinte e oito e, finalmente, dilacera em trinta fatias.

Chega a vez do pior aluno da turma. O Emanuelito Bocó. Emanuelito Bocó, além de chato e pedante, tedioso e sem noção, gosta de aparecer, o que faz o professor sair totalmente do sério, ficar irritado e terminar a aula abruptamente querendo mandar todo mundo para o inferno. Entretanto, Emanuelito Bocó faz parte da sua classe. Se não o chamar, terá problemas futuros não só com o Bocó, aluno, igualmente a galera da coordenação cairá feio sobre seus costados:

— Emanuelito, como pode ver, dividi esta A-4 em trinta partes. A pergunta que farei, se prestou atenção à minha aula é, sem tirar nem pôr, a que formulei aos seus demais coleguinhas aqui presentes. Consegui compartimentar na frente de todos esta folha em trinta pequenos estilhacinhos. Quase não consegui. Mas tudo bem. Aqui estão as trinta lasquinhas daquela folha de papel em branco. Com quantos quartos, ou com quantos oitavos eu fiquei?

— O senhor quer que eu fale só dos quartos?

— Por certo, Emanuelito.

— O senhor não vai perguntar depois, pelos banheiros, salas e cozinhas?

— Emanuelito, por favor. Não complique. Estamos tratando de quartos. Quartos!

Emanuelito Bocó, insiste, sorriso desdenhoso no rosto magro. Segue desafiando o pobre mestre:

— Eu sei professor. Mas onde tem quartos, costuma ter salas, varandas, dependências de empregada...

O professor Everaldo a partir daí começa a ficar perturbado e a tremer as mãos:

— Emanuelito, meu filho. Quartos. Piquei a folha A-4 em branco em trinta pedacinhos. Vamos lá. Com quantos quartos fiquei?

— Eu estou na dúvida, professor... Acho que até agora todo mundo aqui respondeu errado à sua pergunta.

— Emanuelito, vou ser mais claro. Esquece os seus coleguinhas, deleta os quartos, etc., etc. Vamos nos enveredar por outra ótica. Se eu rasgar, ou dito de forma mais objetiva, para você me entender... Se eu dividir esta folha em cem ou duzentos pedacinhos, o que terei?

Zombando descaradamente do professor, o moleque manda a pancada final:

— Bem, nesse caso, o senhor não terá nem quartos, nem salas, ou varandas. Menos ainda bandas, metades ou partes, ou pior oitavos. De onde o senhor e a Bebel tiraram o tal do oitavo?! No meu entender, se o senhor rasgar essa folha em trinta, ou cem, ou duzentos pedacinhos, não importa o número, terá sim um montão de papeizinhos picados pra jogar no lixo!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) II

 

CONSELHO DE AMIGO

Não lamentes, amigo, a sorte dura!
Solta esse copo e sai do botequim!
O amor é forte, mas também tem fim,
e um dia seca o lago da amargura.

Também já fui apaixonado assim!
Como tu, já sofri essa tortura...
Fui vítima também da desventura
de amar demais a quem sorriu de mim!

Minha amada também era morena...
Nos lábios tinha o riso da verbena
e um ninho de paixões ardendo ao peito.

Essa mulher traiu-me… E, por vingança,
eu tentei arrancá-la da lembrança,
mas nunca pude... E vivo satisfeito.

(Caicó/RN, 1956)
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MEU BEM-TE-VI


Do meu tempo de menino,
recordo saudosamente
um bem-te-vi que, contente,
improvisava seu hino
no juazeiro pequenino
que muito perto ficava
do mocambo onde eu morava
e escutava, com alarde,
o canto que toda a tarde
nos prados se derramava.

O tempo lerdo e ronceiro
foi passando, foi passando,
e eu feliz me deleitando
com a voz do belo troveiro;
porém houve um paradeiro
naquele terno cantar,
quando eu triste, a meditar,
perguntava até às relvas:
- Por que o músico das selvas
Deixou de me visitar?

Farto de sofrer sozinho,
mergulhei na mata um dia
para ver se ainda ouvia
o trinar do passarinho;
visitei ninho por ninho,
mas a esperança perdi
quando comprovei que, ali,
alguns meninos, em festa,
com mil flechadas de besta*
mataram meu bem-te-vi!

(Serra Negra do Norte/RN, 1955)
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(*) Besta (pronúncia aberta) é uma arma rústica formada de arco, cabo e
corda com que se disparam setas ou flechas.

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O ABORTO

Duas pessoas,
talvez se amando,
emocionadas
de tantos beijos,
cantam poemas
de encantamento,
e nem se lembram
que estão gerando
um novo ser
que também sonha
cantar um dia
o hino da vida,
como seus pais.
Só não se entende
que dos enlevos
de encantadoras
horas de amor
nasça depois
a ideia-crime
do triste aborto
que faz morrer
pobre inocente,
sem ter ainda
sequer nascido!

(Natal/RN, 1990)
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VIDA DE CIGANO


Vive o cigano a vagar
como eterno retirante,
um pobre judeu errante
sem esperança e sem lar;
não tem casa pra morar
durante um simples verão;
o seu travesseiro é o chão,
onde se estende arrasado...
Cigano velho cansado
Nas estradas do sertão!

Entre pedras e buracos
anda o pobre peregrino,
carregando, sem destino,
sua mobília de cacos;
na solidão dos barracos
inda existe o violão
que plange a triste canção
do trovador do passado,
cigano velho cansado
nas estradas do sertão!


Tem ele a pele tostada
do forte sol que o castiga;
na face, toda a fadiga
da longa e dura jornada;
já não ganha quase nada
numa leitura de mão.
É sempre a desilusão
que não sai mais de seu lado...
Cigano velho cansado
Nas estradas do sertão!


Montando a cavalgadura
que já não dá mais um trote,
só parece Dom Quixote
com sua triste figura;
se algum negócio procura
para conquistar o pão,
inda o chamam de ladrão,
de trapaceiro e safado,
cigano velho cansado
nas estradas do sertão!


Ao rigor da luta inglória
por desgraçados caminhos,
colheste muitos espinhos
sem os louros da vitória,
porém, nos anais da História,
desta civilização,
com certeza, meu irmão,
teu nome será lembrado,
cigano velho cansado,
nas estradas do sertão!


(Natal/RN, 1985)

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Stanislaw Ponte Preta (Testemunha Ocular)


Ele estava no aeroporto. Acabara de chegar e ia tomar o avião para o Rio. Sim, porque esta história aconteceu em São Paulo. Ele acabara de chegar ao aeroporto, como ficou dito, quando viu um homem que se dirigia com passos largos, pisando duro, em direção à moça que estava ao seu lado, na fila para apanhar a confirmação de viagem. O sujeito chegou e não falou muito. Disse apenas:

— Sua ingrata. Não pense que vai fugir de mim assim não — e, no que disse isso, tacou a mão na mocinha. Essa não era tão mocinha assim, pois soltou um xingamento desses que não se leva para casa nem quando se mora em pensão. E lascou a bolsa na cara do homem. Os dois se atracaram no mais belo estilo vale-tudo e ele — que assistia de perto — tentou separar o belicoso casal. Houve o natural tumulto, veio gente, veio um guarda e a coisa acabou como acaba sempre: tudo no distrito.

Tudo no distrito, inclusive ele, que já ia tomar o avião, mas que teve de ir também, convocado pela autoridade na qualidade de testemunha ocular.

Em frente à mesa do comissário (um baixinho de bigode, doido para acabar com aquilo) o casal continuou discutindo e o homem mentiu, afirmando que fora agredido pela mulher. Ele — muito cônscio de sua condição de testemunha ocular — protestou:

— Não é verdade, seu comissário. Eu vi tudo. Foi ele que avançou para ela e deu um bofetão.

— CALE-SE!!! — berrou o comissário.

— Mas é que.. .

— CALE-SE!!! — tornou a berrar o distinto policial, com aquele tom educado das autoridades policiais.

Ele calou-se, já lamentando horrivelmente ter sido arrolado como testemunha ocular. Ficou calado, preferindo que todos se esquecessem de sua presença, e ia-se dando muito bem com esta jogada até o momento em que a mulher que apanhara apontou para ele e disse para o comissário:

— Se esse cretino não se tivesse metido, não tinha acontecido nada disto.

— Eu??? — estranhou ele, apontando para o próprio peito.

— O senhor mesmo, seu intrometido.

— Mas foi ele quem a agrediu, minha senhora.

— Mentira — berrou o homem. — Eu apenas fui lá para impedir o embarque dela para a casa dos pais. Tivemos uma briguinha sem importância em casa e ela, coitadinha, que anda muito nervosa, quis voltar para a casa dos pais. (Dito isto, abraçou a mulher que pouco antes chamara de ingrata e premiara com uma bolacha. Ela se aconchegou no abraço, a sem-vergonha.)

E ele ali, num misto de palhaço e testemunha ocular. Quis apelar para o guarda que o trouxera, mas este já retornara ao posto. Estava a procurá-lo com um olhar circulante pela sala, quando ouviu o comissário mandando o casal embora.

— Tratem de fazer as pazes e não perturbar em público.

O casal agradeceu e saiu abraçado, tendo a mulher, ao virar-se, lançado-lhe um olhar de profundo desprezo. E, quando os dois saíram, virou-se para o comissário e sorriu:

— Doutor, palavra de honra que eu...

Mas o comissário cortou-lhe a frase com um novo berro. Em seguida aconselhou-o a não se meter mais em encrencas por causa de briguinhas sem importância entre casais em lua-de-mel.

— Eu só vim aqui para ajudar — admitiu ele, com certa dignidade.

— CALE-SE!!! — berrou o comissário: — E some daqui antes que eu o prenda...

Não precisou ouvir segunda ordem. Apanhou a valise e saiu com ódio de si mesmo. "Bem feito" — ia pensando — "que é que eu tinha que entrar nessa encrenca?" Entrou em casa chateado, ainda mais porque perdera o avião e a hora em que tinha de estar no Rio para assinar as escrituras com o corretor. Tratou de afrouxar o laço da gravata e pedir uma ligação interurbana, a fim de dar uma explicação ao patrão.    

Somente no dia seguinte retornou ao aeroporto para fazer a viagem. Saiu de casa cedo e foi para a esquina apanhar um táxi. Foi quando houve o assalto. Ia passando por um café quando três sujeitos saíram lá de dentro, atirando a esmo, para abrir caminho. Ele — coitado — ficou entre os três, com a mão na cabeça sem saber se corria ou se encolhia. Os assaltantes entraram num carro que já os aguardava de motor ligado e sumiram no fim da rua. Logo acorreram pessoas de todos os lados, na base do que foi, do que não foi. Um guarda tentava saber o que acontecera, quando um senhor gordo, que parecia ser o dono do bar assaltado, apontou para ele e disse:

— Seu guarda, esse homem viu tudo. Os assaltantes passaram por ele.

O guarda se encaminhou para ele e perguntou:

— O senhor viu quando eles deram os tiros?

E ele, com a cara mais cínica do mundo:

— Tiros? Que tiros???

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Luto em Família

 

Em virtude do falecimento do pai de minha "exposa", Aparecido Topan, em Ubiratã/PR,        aos 88 anos, não haverão postagens hoje.

Conto com vossa compreensão.

José Feldman


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 344

 

Dorothy Jansson Moretti (Pra Ver a Banda Passar)


Tenho lido neste jornal colunas e editoriais que dizem que se pretende criar (ou recriar) a banda em Itararé.

Que alegre notícia! Em minha opinião as bandas são um grande encanto das cidades do interior. Conheci tantas! Morei treze anos em Sorocaba, famosa por suas extraordinárias corporações musicais, a cujos concertos nas praças jamais deixei de assistir.

Sempre adorei ver a banda passar. Recuo no tempo aos meus cinco ou seis anos de idade, quando o Professor Miguel, meu cunhado, era regente da Lira Itarareense. A banda era um espetáculo! Ele era muito competente, tinha muito bom gosto e dentre as belas peças que seus músicos executavam, destacavam-se muitas de suas lindas composições; marchas, foxes, valsas, mazurcas, polcas, sambas, chorinhos, batucadas, maxixes...

Fato pitoresco: quando ele namorava minha irmã Sílvia, a banda parava em nossa esquina para fazer serenata. Os músicos perfilavam-se de frente para a casa de Seu Durval, dando as costas à nossa casa, artifício para despistar e evitar encrencas com meu pai, futuro sogro que — como todo pai que se prezava naquela época — era uma "fera"!

Eu não perdia uma passada da banda. Ao ouvir os primeiros acordes, corria para a calçada c ficava olhando até ela desaparecer numa esquina, morrendo de vontade de juntar-me aos moleques que a seguiam, marchando atrás.  

Sob a regência de Seu José Melillo, já mocinha, eu assistia aos concertos no velho coreto. (Por que o tiraram de lá? Era tão tradicional, tão relíquia!)
 
Nunca esqueci de um 1. de Maio, em que minha mãe, Gustavo, Linéa e eu fomos acompanhar meu irmão Antônio à estação, onde ele ia tomar o trem, de volta à sua cidade. Era madrugada e a banda de Seu Melillo estava fazendo alvorada. Ao passar pela Rua Quinze, tocava uma linda marcha cujas primeiras notas eram;
MI-FÁ-SOL LA-SOL-MI RE-DO-MÍ...

Qual era o nome dessa marcha? Gostaria tanto de saber! Ficou gravada em minha memória para sempre.

Lembro-me também das Sextas-feiras Santas e das músicas lentas e fúnebres nas procissões. Na madrugada do encontro de Maria com Jesus, a gente acordava com a música. Abria-se a janela e ficava-se apreciando. Seria por isso que a Semana Santa naquele tempo tinha mesmo uma cara de Semana Santa ?!

Em todas as festas de escola, em todas as reuniões cívicas ou sociais, lá estava a banda para animar a gente e dar o seu toque festivo.

Tomara que esse novo (ou velho?) sonho de Itararé logo se concretize! Quero voltar à nossa cidade, e como nos bons tempos de outrora, quero correr para a calçada... PRA VER A BANDA PASSAR.

(Publicado na Tribuna de Itararé – 19/06/1985)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 1

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Publicado em “O Indianopolis” – 1979.


Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

André Kondo (A Casa de Banho)

 


É sempre difícil voltar. Acaso Kotaro tivesse retornado apenas alguns dias depois, não conseguiria chegar. O vilarejo de Kuroyu, encravado no coração da província de Akita, é inacessível quando o inverno chega antes.

Estranha sensação, andar por ruas tão percorridas e, mesmo assim, tão desconhecidas. Quem era aquele garoto que marcava suas pegadas na neve? Não seria a mesma pessoa, agora já adulta, que caminha com passos lentos em direção ao onsen, aos banhos termais? Kotaro avistou o vapor fugindo pelas frestas da construção de telhado rústico, como velhos fantasmas. A quem vieram assombrar?

Pendurado na frente do estabelecimento termal, uma fria mensagem: luto.

Um sinete pendurado no teto tocou, ao ser incomodado pelo abrir da porta que o despertou de seu descanso. Não havia ninguém na recepção. Na antessala, um tabuleiro de go e outro de shogi. Não havia jogadores. No canto, algumas tigelas de chá repousavam, emborcadas para baixo, sem ninguém para servi-las. A folhinha do calendário não havia sido virada. Ainda era ontem.

Por mais terríveis que sejam as lembranças, o que seria mais terrível do que não se lembrar? O pai havia morrido assim. Sem lembranças, todas devoradas pela doença. Talvez tenha sido melhor assim. De que adiantaria a Kotaro retornar a casa, se o pai não se lembraria dele? Que diferença faria? Nenhuma. Morto, muito menos. Definitivamente, não faria diferença. Além do mais, havia o passado. O pai não se lembraria, mas o filho sim. Kotaro se lembraria de como partiu. Lembraria de quão duras foram as palavras paternas, lembranças petrificadas, como pedras a atingir o peito. Porém, não eram essas as palavras a lhe ferir. O que o machucava eram as palavras que ele havia atirado em resposta contra o pai. O pai não se lembraria, mas o filho nunca se esqueceria. O filho, que não teve coragem de retomar para o funeral do pai, mas não conseguiu deixar de tentar retomar para o funeral da mãe.

Olhou à sua volta. As paredes de madeira, o acabamento rústico de uma casa nas montanhas. O velho estabelecimento seria a sua herança. Um punhado de água quente e vapor. Nunca gostou daquele lugar. Aliás, o seu "nunca" começou na adolescência, quando seus próprios vapores ansiavam por uma fuga. Assim, tão logo suas pernas cresceram o suficiente para sair dali, saiu. Os pais sempre quiseram que o filho tomasse gosto pelo lugar. Que tomasse conta dos negócios quando crescesse. Era a tradição da família. Em seguidas gerações, a casa de banho nunca havia sido fechada. No Japão, o onsen é mais do que um mero local de banho. É um lugar onde as pessoas se refugiam. Onde se aquecem da frieza da realidade lá fora. Onde se limpam de qualquer tristeza, com as lágrimas quentes que brotam do solo. Onde encontram paz...

Paz que o filho abandonou.

Foram duras as palavras do pai. Que Kotaro não retornasse se não fosse para tomar conta do onsen. Que não voltasse jamais. O filho obedeceu. Não voltou, até aquele dia.

Não havia velado o pai e também não chegou a tempo de velar a mãe. Por isso, resolveu velar o lugar. Percorreu caminhos sepultados, falecidas lembranças. Aos poucos, foi tomado de uma estranha nostalgia. Sentiu o cheiro de batata doce assada, fugindo de alguma casa que poderia ter sido a sua. Adorava quando a mãe assava as batatas nos dias frios. Aquecia até a alma, ela dizia ao filho. Em outro canto, reencontrou os peixes que nunca pescou, no riacho em que caminhava ao lado do pai. Ambos eram péssimos pescadores. Riam-se disso.

Quando criança, tudo lhe parecia tão grande. O riacho, as batatas doces em suas mãos... Só mais tarde, quando adolescente, descobriu que ele é quem tinha sido pequeno, por isso, a grandiosidade da infância havia sido uma farsa. Kotaro cresceu, tudo ficou tão pequeno. Não havia percebido que a sua ambição é que havia se tornado grande demais.

Partiu para conseguir uma vida maior, em uma cidade maior. Deixou para trás as coisas pequenas, como batatas doces assadas pela mãe ou leitos de riachos percorridos com o pai. Porém, com o luto, sentindo-se pequeno, retornava ás coisas pequenas. Reaprendia o valor das lembranças.

A cada passo em alguma esquecida rua, acabava se lembrando de algo. Da alegria quando colheu uma flor para a mãe. Da felicidade quando recebeu um doce do pai. Tanto tempo...

Mergulhado em seu passado, retornou ao velho onsen de seus pais. Tirou a roupa vagarosamente. Ali, não tinha mais pressa. Havia deixado para trás as coisas grandes da cidade grande. Limpou--se lentamente, antes de entrar na banheira. Com a nudez purificada, mergulhou devagar nas águas termais. Abraçou os joelhos, como um feto... Aos poucos, foi sentindo o abraço da água, como se fosse envolvido pelo amor dos pais... Assim, voltou ao calor do ventre materno. Voltou.

Amanhã, retiraria a placa de luto.

Amanhã, renasceria.

(3. lugar no Concurso Literário Cidade de Lins/SP)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

domingo, 9 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 343

 

Jane Tutikian (O Acordeão e a Bicicleta de Motor)


Difícil de saber exatamente o que passou pela cabeça do pai, quando tomou aquela decisão. Talvez porque já tivesse tentado outras coisas. Talvez porque acreditasse que a educação devia mesmo passar por isso. Eu não sei. Mas estava decidido: teria, sim, que estudar música. Desta vez, estava decidido, seria acordeão. Por mais que tentasse — ou pensasse, melhor diria se dissesse — por mais que pensasse em explicar, dizer que não queria, que não gostava, por mais que pensasse em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, por mais que pensasse em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre - eu sabia, minha mãe sabia, minhas irmãs sabiam o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim.

Tínhamos tentado o piano, mas aqueles pedais que me colocavam em um carro de alta velocidade eram muito mais sedutores do que o teclado e. Aquelas partituras não eram mais do que esboços de pistas em que as curvas e os obstáculos se desenhavam pelas claves, pelas notas cheias e vazias. Era de tirar o fôlego de qualquer sujeito! Não aprendi música inteira. Uma que fosse, só para que meu pai se orgulhasse de mim. Não aprendi. Agora, entretanto, era o que passava pela sua cabeça, não haveria mais os pedais a distrair minha atenção. E, no final de tarde do final de semana, seria bonito, minhas irmãs sentariam ao piano e eu estaria ao lado delas, no acordeão. Pensei que sempre poderia deixar de comer ou deixar de falar. Mas. Minha intuição também não me deixava saída. Corri para o quarto. Bati a porta e fiquei longo tempo assim: em silêncio. Já sabia que, com ele, não adiantava discutir nem nada. Poderia, quem sabe, levar uma surra, mas isso não me assustava, me assustava o olhar pequeno, fechado, pensativo. Fizesse o que fizesse e teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida, com toda a turma da rua andando de bicicleta! ou trocando figurinha de carros de corrida! ou montando carrinho de lomba com rolimã de aço e tudo!, teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida a longos e intermináveis solfejos. Isso é de arrasar qualquer sujeito de quase 11 anos!

Quando a campainha tocou, me apresentaram dona Conceição. Ela era gorda, baixa, usava uma saia justa que avolumava ainda mais a barriga, onde acomodava, mesmo de pé, acomodava o acordeão. Usava uns óculos pretos, de aros redondos, que aparavam uns olhinhos pequenos e sempre sorridentes. Pensava que estava ali para me ajudar e foi o mais simpática possível. Essas coisas de mulher. Ela me chamou de querido, assim que me viu, e eu odiava que me chamassem de querido assim que me viam, sobretudo uma professora, sobretudo sobretudo uma professora de acordeão. Passamos para o escritório e começou o martírio. Primeiro a mão direita. Sem olhar para as teclas, queridinho. Odiava mais ainda que me chamassem de queridinho! Teria sido uma tarde inteira de dórémifásollásidódósilasolfámirédó, se minha mãe não tivesse entrado com uma limonada e uma fatia de bolo de milho. Vamos de novo, amor. Amor era absolutamente insuportável! Não esquece de abrir o instrumento, aqui, o fole. Muito bem. Assim. Ele precisa cantar. Não. Não olha. dórémifásollásidódósilasolfámirédó.

Ficou combinado: as aulas seriam às segundas, quartas e sextas, às quatro horas da tarde. Antes disso, eu faria os temas da escola. Não me parecia nem um pouco justo! Quando eu pudesse sair para a rua, a tarde já teria quase passado, e, quando fosse noite, eu teria de entrar. Pensei em falar com a minha mãe sobre isso, mas ela diria que o meu pai. Pensei .em falar com o meu pai sobre isso, mas. Se o assunto fosse aquele, como das outras vezes, ele não queria falar. Então, me conformei. Eu ia crescer, mesmo, um dia.

Tentamos a outra mão e ela batia palmas rápidas para que eu pudesse acompanhar. Tã -tã,tã-tã-tã,tã-tã. Depois, depois era questão de juntar tudo, mas. Só depois, porque em todos os agora que tentamos não conseguimos e, algumas vezes, os querido, queridinho, amor e amado eram acompanhados de uma visível irritação. Eu até que tentava me concentrar, mas sabia quando as bicicletas passavam, porque a gente prendia uma papeleta com prendedor de roupa, na roda, ela pegava nos raios e dava um barulho parecido com motor. É verdade! Eu até que tentava me concentrar, mas aí ouvia, ao longe, o barulho de um carrinho de lomba. E, então, eu ia, sentado no banquinho do escritório, com um acordeão vermelho e preto, imenso e pesado, muito maior do que eu, eu ia junto e sentia o vento na cara e tudo. E foi muito, muito tempo assim.

Agora, tentávamos uma música: Ó Minas Gerais! Ó Minas Gerais! Quem já te viu não te esquece jamais. Ó Minas Gerais! Eu não sabia por que tinha que tocar Ó Minas Gerais, não sabia, não queria saber e, mais do que tudo, não queria tocar. Agora, o desafio era tocar uma música inteira.

Passado um ano, meu pai achou que as aulas não estavam rendendo e decidiu dispensar dona Conceição que saiu com o coração pesado, porque, apesar de tudo, ela sabia que eu tinha certo talento, era só uma questão de tempo e de treino!, argumentou.

Eu? Fiquei entre o que se pode dizer de um homem feliz e um homem meio culpado. Dona Conceição não era tão ruim assim, pensei olhando as miniaturas de carros que tinha nas prateleiras do meu quarto, eu é que era, mas. Nada que durasse muito tempo, e meu pai anunciou que as aulas seriam, a partir de então, com o professor Clóvis.

Pensei, de novo, em explicar, dizer que não queria, que não gostava, em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre — mas. Não podia. Já tinha quase doze anos e sabia, de novo, minha mãe sabia, de novo, minhas irmãs sabiam, de novo, o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida e, desta vez, com o professor Clóvis. Além disso, agora, me dava certo prazer, quase físico, ficar tentando, uma hora inteira, três vezes por semana, tocar Ó Minas Gerais. Minha mãe trazia um olhar desesperançado, junto com cada fatia de bolo de milho com limonada, mas. Minhas irmãs, aos poucos, foram trocando os olhares debochados de risos furtivos por olhares desesperados, e disso eu gostava e imaginava que, um dia, os vizinhos viriam tocar à porta e pedir, por amor de Deus que. Só meu pai não mudava o olhar.

Soube que o professor tinha chegado, quando uma bicicleta de motor parou diante da porta da minha casa. Eu nunca tinha visto uma! Embora aquele homem alto, magro, curvado, de cabelos muito compridos, de olhos grandes num rosto encovado dissesse que era o professor Clóvis, e embora eu achasse um tipo muito engraçado, eu não conseguia responder nada, queria ver inteiro 0 que havia atrás dele: e o que havia atrás dele era uma bicicleta azulzinha, de guidão prateado e tudo, ali, na minha frente, atrás dele, tão na minha frente que parecia sonho e tudo.

Minha mãe disse-lhe que entrasse, fomos direto para o escritório e, enquanto ele queria explicar que aquele era um instrumento de sopro muito antigo, inventado em Viena, no século 19, eu queria falar daquela máquina maravilhosa que estava estacionada na frente da minha casa e da potência daquele motor, e da velocidade que andava e de como funcionava a correia. Ele, então, riu um sorriso magro e decidiu que, sim, certo, era do que falaríamos, e começou a me explicar o funcionamento. Quando minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim — enfim, alguém cúmplice que não me chamaria nem de querido, nem de queridinho, nem de amor, nem de amoreco! — quando a minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim e continuou a história do instrumento, que quando a conversa é para ser só entre homens é assim mesmo. Quando minha mãe saiu, quis fazer, de homem para homem, uma aposta. Pediu que eu mostrasse o que sabia e eu, rindo, de homem para homem, disse-lhe que não sabia nada, só o começo de Ó Minas Gerais, mas que nunca tinha tocado música inteira, o que ele, evidentemente, podia entender entendido. Foi quando o professor fez a proposta: quando tu tocares uma música inteira, pode até ser este Ó Minas Gerais, eu te deixo andar na minha bicicleta de motor, mas só uma volta na quadra.

Eu mal podia respirar de tanta excitação. Bastava tocar uma música inteira e eu subiria naquela máquina e daria a volta na quadra! Decerto toda a turma ia ficar me fazendo perguntas: de quem é? é tua? posso dar uma voltinha? E eu diria que sim e que não. Seria minha, como mulher que se ama de verdade, aquela bicicleta de motor de verdade, por toda uma volta na quadra.

— Fechado? - ele perguntou.

— Fechado - respondi, falando com um igual. Apertamos as mãos, a minha pequena e a dele enorme, quase seca, e ele foi embora.

Ninguém me perguntou sobre a operação do milagre e, se perguntasse, também não responderia. Acabada a aula, não fui para a rua e comecei a me exercitar: dórémifásollásidódósilasolfámirédó, era o aquecimento. Depois, a outra mão, e eu tinha no ouvido as batidas das mãos de dona Conceição: Tã-tã, tã-tã-tã, tã-tã. E foram muitas vezes seguidas, vezes repetidas, monótonas, enlouquecedoras. Minha mãe chamou para jantar, mas, embora a fome de sempre, eu não podia. Meu coração estava acelerado em uma bicicleta de motor azul, minha respiração estava difícil, o que me separava dela era só uma Ó Minas Gerais inteira. Às dez horas, meu pai disse que tinha que terminar com aquele barulho. Fiquei muito brabo, bem quando eu queria tocar ninguém me apoiava! Ninguém me apóia, resmunguei, sem resposta. Passei a noite tocando sem som, sem deixar que o instrumento cantasse, apenas tocando, levemente, tocando as teclas e os botões, enquanto imaginava Ó Minas Gerais.

De manhã, não pude ir ao colégio, e foi fácil fazer com que acreditassem no enjoo porque estava abatido por uma noite não dormida. Até minhas irmãs ficaram preocupadas! Quando o enjoo acalmou um pouco, pude voltar ao acordeão e voltei o dia inteiro.

Ninguém dizia nada, mas eu sabia — e até era engraçado saber — que todos estavam achando tudo aquilo muito estranho. Era um pacto e, de pacto, homem não fala, pensava, embora meu pai firmasse e reafirmasse como era bom aquele professor, tinha, enfim, achado a pessoa certa para lidar comigo.

Quando o professor Clóvis chegou — soube que ele havia chegado desde que dobrara a esquina, pelo ronco do motor — fui eu a abrir a porta, levei-o ao escritório e toquei, cheio de orgulho, toquei toda a Ó Minas Gerais, soltei o acordeão e perguntei: agora posso? Acho que o professor não entendeu muito, ou não esperava que o progresso fosse tão rápido. Disse que sim, claro, decerto profundamente arrependido, que tem coisas na vida, como as grande paixões, que a gente não empresta nunca — isso eu só descobri muito mais tarde — mas só uma volta na quadra, hein?, e me entregou uma chave pequeninha, a que guardava toda a minha felicidade.

Subi na máquina e fui para o lado oposto do que estava a turma. Não queria nada nem ninguém que pudesse atrapalhar aquele momento que me valera todo o sacrifício que havia por trás de uma Ó Minas Gerais inteira e andei. Difícil dizer o que eu estava sentindo porque, algumas vezes, o que se sente ainda e sempre é maior. Estava sentindo ainda e sempre maior A máquina, eu, a liberdade, as ruas o barulho do motor meu pai, eu, a liberdade, eu, grande a liberdade, a máquina meu pai, o motor acelerador, a máquina, as outras ruas, o professor que tinha ficado para trás gostava dele, a bicicleta de motor, aquele era meu amigo sim, a liberdade, eu de verdade, meu pai, as ruas, a minha casa lá atrás, a noite caindo, o chão andando, ruas desconhecidas, liberdade. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ou talvez só mais tarde, teria de voltar. Sabia que encontraria o professor, contrariado, na calçada, e o meu pai furioso, de olho apertado e faiscante, e a minha mãe chorando, e as minhas irmãs caladas de tanto susto. Sabia, mas tinha que arriscar, porque aquele isso dentro de mim me dizia que tinha de arriscar e arrisquei.

Quando voltei, o professor Clóvis disse que eu não sabia cumprir um acordo, pegou a bicicleta e não disse mais nada. Senti uma coisa, assim, forte, no peito, dessas que parecem dor e que a gente sente quando se dá conta de que está perdendo um amigo. Um amigo de duas aulas, mas amigo. Minha mãe me abraçou chorando. Minhas irmãs, pulando, nervosas, só diziam pulando, nervosas, que eu ia apanhar. Meu pai me mandou para o quarto e as vizinhas diziam, nas minhas costas, graças a Deus!, não aconteceu nada.

Tinha acontecido, sim, mas talvez ainda não fosse visível. Meu pai entrou no quarto, os cabelos grisalhos despenteados faziam com que ficasse arrumando com a mão a toda a hora, e me olhava como se quisesse dizer alguma coisa enquanto ia e vinha, e acho que, desta vez, quase conversamos. Tinha o olhar pequeno, fechado, decidido, o meu pai. Só não falamos porque ele estava ocupado: colocou o acordeão dentro da caixa e levou embora. Eu era um homem de 12 anos e, na linguagem dos homens e seus imponderáveis, ele começava a me enxergar.

Fonte:
Jane Tutikian. A rua dos secretos amores. Porto Alegre/RS: WS, 2003.

Jane Tutikian (1952)

Jane Tutikian nasce em Porto Alegre/RS, em 1952. Em 1970, é eleita Miss Porto Alegre e Primeira Princesa do Rio Grande do Sul. Ingressa no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  Em 1974, casa-se com o advogado Edemar Morel Tutikian. Neste mesmo ano publica seu primeiro texto, "Batalha naval", no "Caderno de Sábado" do Correio do Povo, passando a colaboradora. Conclui o curso de Graduação em Letras.  Ingressa no Mestrado em Literatura, na UFRGS. Em 1976 passa a colaboradora do suplemento "Mulher", da Folha da Tarde. Em 1977 obtém o título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa. Em 1978, recebe o "Destaque - Prêmio Apesul Revelação Literária. Em 1980, ingressa na Rede Pública Estadual como professora.

Em 1981 publica Batalha Naval, e em 1984, A cor do azul, recebendo neste ano o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Em 1986, é finalista da Bienal Nestlé de Literatura Brasileira - categoria conto - SP. Em 1987 recebe o Prêmio Érico Veríssimo da Câmara Municipal de Porto Alegre.

Em 1990 publica Geração Traída. Recebe o Prêmio Gralha Azul de Literatura Brasileira da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. 1994  publica Um time muito especial.

Em 1995, ingressa no Curso de Doutorado em Literatura Comparada na UFRGS, obtendo o título em 1998.

Em 1999 publica O sentido das Estações e Inquietos Olhares. Em 2000, publica Alê, Marcelo, Ju & eu.

Em 2001 ocupa a cadeira nº 39 na Academia Literária Feminina do RS. Em 2002, publica A rua dos secretos amores e também Aconteceu também comigo. Assume a Vice-presidência da Associação Gaúcha de Escritores. É patrona da Feira do Livro de Gramado.  Dá nome à Biblioteca da Escola Edvino Bervian, de Morro Reuter. E em 2003 publica JF e a conquista de "Niu Ei".

Em 2005 publica Entre Mulheres (contos de amor aprendiz). Em 2006 lança Olhos azuis coração vermelho (novela infanto-juvenil) e Velhas identidades novas (ensaios), resultado de seu Pós- Doutorado em Literatura, realizado na PUCRS.

Em 2005 inicia a organização das obras completas de Fernando Pessoa pela L&PM, tendo editado, neste ano: Mensagem, a obra de Caeiro, Campos e Ricardo Reis. É Patrona da  XVII Feira do Livro de Dois Irmãos.

Em 2007, publica Fica Ficando (novela infanto-juvenil). Recebe o prêmio Nacional O Sul por incentivo à literatura. É homenageada pela Feira do Livro de Caçapava do Sul. É Patrona da Feira do Livro de Triunfo.

Em 2008, é Patrona da Feira do Livro de Camaquã. Organiza para a L&PM a leitura comentada de Os Lusíadas.

Em 2009, assume a Direção do Instituto de Letras da Univeraidade Federal do Rio Grande do Sul e a cadeira n. 35 da Academia Rio-grandense de letras. Participa da antologia The Brazilian Short  Story in The Late Twentieth Century, publicada nos EUA pela The Edwin Mellen Press. Lança  Por que não agora? , novela Infanto-juvenil.

Em 2010 é eleita Vice-Presidente da Associação Internacional de Professores de Literaturas Africanas. Patrona da Feira do Livro de Guaíba.

Em 2011, primeira mulher  do séc. XXI e quarta dos 57 anos de história a ser escolhida  Patrona da Feira do Livro de Porto Alegre. Lança antologia de contos comemorativa aos 30 anos de carreira: Coisa Viva, pela Território das Letras. Eleita Vice-Presidente da Associação Internacional de Literaturas e Culturas Africanas – AFROLIC – em Ouro Preto. Passa a ser editora da Revista Conexão Letras do PPG-Letras

Em 2012, Recebe o Prêmio  Joaquim Felizardo por obra, concedido pela Secretaria Municipal de Cultura – Porto Alegre, Patrona da Feira do Livro de Caçapava do Sul e da Feira do Livro de Capão da Canoa. Assume a Direção do Instituto Confúcio da UFRGS.

Em 2014, organiza o livro: Fernando Pessoa – Obra poética VII – pela L&PM. Patrona da Feira do Livro de Esteio.

Tem participação em dezenas de antologias e livros organizados e traduzidos para o inglês e o espanhol.

Atual vice-reitora da UFRGS.

Fontes:
Jane Tutikian
Wikipedia

Célia de Cássia (Poemas Avulsos)


CARTA-SONETO

"Escrevo pra dizer-te", meu amor,
que minhas já não são as tuas cartas.
De folheá-las — velhas, já sem cor —
as minhas mãos nunca ficaram fartas!

As tuas cartas! Doces e amargas...
Luar iluminando com fulgor
a minha escura estrada! Portas largas,
abrindo pra jardins plenos de flor!

Vão publicá-las. Dei-as de presente
(perdoa, amado, essas ideias loucas
que a meu viver já deram mil escolhos...)

Quero, dando-as a ler a toda gente,
que o amor que morreu em nossas bocas
possa ressuscitar em outros olhos...
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CONFISSÃO NO CÉU


Um dia eu contarei a Deus
tudo que tive de bom
quando vivi na Terra:

Fui bonita!
E a beleza é uma coroa
deliciosa de se usar!

Fui rica!
E o dinheiro é um cetro
valioso de se empunhar!

Fui artista!
E a Arte é uma graça
maravilhosa de se desfrutar!

Fui... Não será melhor
fazer das coisas resumo?
Deus deve ser muito ocupado!

Direi, então, apenas que Amei...
E terei dito tudo, porque o Amor
é parcela maior que o todo!
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LOUCURA


Eu não creio em mais nada sobre a Terra!
Eu nego a luz que o sol gera e derrama!
Nego a virtude: todo mundo erra!
Nego a felicidade de quem ama!

Nego a bondade! Altruísmo? Não existe!
Nego a esperança! Fé? Que fantasia!
Nego a beleza que há na lua triste…
Nego o consolo sem par da poesia...

Eu nego tudo! Até o último esteio;
Eu nego Deus! Do nada o homem veio...
Eu nego o Céu, o Inferno e suas chamas!

Mas... por ironia do destino cego,
existe uma só coisa que eu não nego;
Eu creio, meu amor, que tu me amas…
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SÚPLICA

Tira-me — por piedade! — agulha e linhas,
tira-me da prisão desta cadeira,
que essas mãos não são as de uma freira,
são mãos de pecadora, são as minhas!

Tarefa! Estas paredes! Oh, tormento!
Não nasci pra fazer dessas fazendas,
bordados raros, preciosas rendas,
não tenho tempo! A vida é um momento...

Quero vivê-lo presa nos teus braços,
tecendo sonhos em teus olhos garços,
bordando beijos em teu lábio quente.

Tu és a plenitude em meu caminho,
eu me completarei com teu carinho,
em ti, por teu amor, unicamente!
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VIVESTE


Passaram… Uns ligeiros como o vento,
outros tão lentos como as agonias...
Trezentos e sessenta e cinco dias!
E em todos eles, no meu pensamento,

uma única imagem floresceu;
Tua imagem! Lembrança que o passado
plantou no meu Destino — doce amado —,
flor, sempre-viva, que nunca morreu;

em todos os instantes que hei vivido,
viveste, como eco em meu ouvido,
viveste no sabor da minha boca.

Por toda minha vida só de abrolhos,
viveste na retina dos meus olhos,
viveste sempre em meus sonhos de louca!
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VOCÊ QUE ME ENSINOU. . .


Você que me ensinou a ouvir do mar o canto...
a descobrir na lua feiticeira encanto…
a despertar bem cedo para ver a aurora...
a acreditar que a noite pelo orvalho chora…

Você que me ensinou que o Amor é um momento
que devemos viver com pureza de prece
para relembrar com saudade e encantamento!...
Você que me ensinou tanta coisa, querido,
por que não me ensinou também como se esquece?

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Dinah Silveira de Queiroz (Casa para Alugar)


Ontem fui ver uma casa vazia, que espera seus inquilinos. Onde fica, qual o seu aluguel, isto não são coisas contidas no ofício da cronista. Estava toda escancarada para um sol que lampejava enviesado, desconcertando pelo seu absurdo de má pintura. Já era quase noite num canto do céu. E havia um rasgão azul cintilante, feito para clarear a casinha, que se oferecia, toda branca e nova, para quem quisesse e pudesse. Quando entrei — um operário cantava, outro metia a cabeça pintalgada de branco sob a torneira do jardim. Havia água, espaço, terra em torno, muros cercando o pequeno domínio. Muitas pessoas têm ido ver a casinha vazia. As mulheres ficam perturbadas por um amontoado de sonhos que se desencadeiam, mal elas põem os pés no pequeno terraço. "Aqui fecharei com persianas; será quase um jardim, para que o neném não saia. E mandarei pintar da mesma cor da parede essa tremenda barra de cor verde, na sala de jantar, fingindo mármore". Depois de uma pausa, talvez ainda acrescentem:

"Este quarto será transformado em escritório, porque tem muita parede, e bem se pode nele instalar a grande estante de dois metros e oitenta. E neste canto do quarto cabe a cama de casal".

A casinha será medida, considerada por uma respeitável quantidade de pessoas. Alguém se alegrará com o quintal, nele instalando em imaginação a casa do seu cachorro ou o galinheiro. Pessoas poéticas verão crescidas, aninhando as paredes, amorosas trepadeiras, assim como as begônias no terraço, mais as avencas e os gerânios.

Gostei de ver a casinha desalugada. Ainda não se sabe de quem será! É um palco pequeno e adornado, esperando por seus atores. Até a música que o operário cantarolava me parecia qualquer canto de apresentação, antes de uma peça, cuja primeira parte constará, talvez, da invasão de uma família com sua velha e seu papagaio, seu piano que não encontra parede, sua moça que reclama tudo, e a mãe que briga com os fornecedores. Um gato morrerá, quase, de susto, traumatizado com a alvura das paredes desconhecidas. A jovem achará a barra de imitação de mármore o tipo da coisa suburbana. 0 pai, vindo de uma era de casas mais enfestadas, defenderá aquela aparência de suntuosidade com o calor que só as discussões domésticas podem ter. Haverá um filho estudando, brigas sobre o horário do almoço, objetos perdidos na mudança, e o martirológio da dona da casa entoado por ela própria, sem que ninguém se importe com seu drama. Pode ser que a moça se case, que haja na salinha de barra verde uma mesa com comes e bebes. Acontecerá, quem sabe, em certa madrugada, riscar o escuro o choro de uma criancinha recém-nascida pungentemente cantando dos difíceis começos, doloridos começos de qualquer vida. Haverá alegria, haverá dívidas de dar nó na garganta, e festa de formatura, e discussões políticas. A casinha nova, então, terá paredes riscadas, gordura sobre o forro da cozinha, portas sem chave, torneiras escorrendo. Na ex-cobiçada pequena casa pessoas baterão portas com raiva:

— "Esta casa é um inferno!"

Outras chegarão nela, já toda sabida e experimentada, como amante sem segredo, e irão diretamente a um canto mais fresco do terraço, ou para a profundeza de um quarto.

— "Eu estava morrendo de calor (ou de cansaço). Não aguentava mais a rua."

Terá a casinha tão perfeitamente pura, hoje, pregos caídos da parede, ladrilhos que faltam, como dentadura incompleta. Se passar algum tempo mais — talvez que o velho morra, e se enterre com a roupa feita ainda para o casamento da filha em seu caixão, que no alto será levantado, quando atravessar o portãozinho.

Ah, casinha que espera seus donos, branca e bonita como uma noiva menina! Estás preparada para teu destino. E, antes dos moradores — compactos fantasmas de vida e de morte já te povoam, eu sei.

Fonte:
Dinah S. de Queiroz. Quadrante 2. RJ: Ed. do Autor, 1963.