domingo, 6 de setembro de 2020

Baú de Trovas XIII (para descontrair)


Maria beijou Aurora
no portão do seu jardim.
— Perdulária, joga fora
o que nega para mim...
ALFREDO DE CASTRO
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A um burro dizia um sábio:
— Pobre animal sofredor,
a muitos convém teu nome,
a bem poucos teu valor...
ANA ATAÍDE FERREIRA DA SILVA
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Carinho pra quê? Me deixe!
Agora estamos casados…
E ninguém dá isca a peixe
depois dos peixes pescados.
ANATOLE RAMOS
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Uma mosca sem valor
pousa, com a mesma alegria,
na cabeça de um doutor,
como em qualquer porcaria!
ANTÔNIO ALEIXO
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Poliglota conhecido,
dominar as línguas logra.
Excetuando-se, é sabido,
as da mulher e da sogra...
ANTÔNIO TORTATO
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Jovens lindas como aquelas
dão trabalho ao hospital,
pois, na esquina, quem, ao vê-las,
não se esquece do sinal?
ANTÔNIO WEBER
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"Barrigudinho!" — brincava,
dando-me bola, a vizinha.
— E tanto ela me invejava,
que ficou barrigudinha...
APARÍCIO FERNANDES
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Vi teus braços... que ventura!
Teu colo... as pernas... que gosto!
Agora, tira a pintura,
que eu quero ver o teu rosto.
BELMIRO BRAGA
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Duvide lá quem quiser,
mas, ó vida, me insinuas:
melhor do que uma mulher,
não há dúvida, só duas...
BENNY SILVA
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A minha sorte ferina
me passou um grande logro;
o teu pai, linda menina,
devia ser o meu sogro.
CALIXTO DE MAGALHÃES
- - - - - -
Dei-te meu livro de trovas,
mas os teus olhos moleques
parecem dizer: "de trovas?..."
melhor se fossem "de cheques".
CARLOS GUIMARÃES
- - - - - -
A mulher quando se arruma,
quanta roupa! Já notou?
E foi sem roupa nenhuma
que Teresa se arrumou...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - -
Não adianta nada agora,
eu já não perco a cabeça.
Mas, é bom ires embora,
antes que tal aconteça...
COLOMBINA
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O homem tem grande horror
ao vácuo, já descobri:
quando ele se vê vazio,
enche-se todo de si...
DJALMA ANDRADE
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Larápios de mil padrões
há neste mundo dispersos.
Até conheço ladrões
que roubam frases e versos...
ESMERALDO SIQUEIRA
- - - - - -
Meu amor, não cries caso,
se teu caso é se casar...
Se crias caso, não caso;
se não me caso... ora, azar!
FRANCISCO MADUREIRA
- - - - - –
A cova, que nos contrista,
serve, com a mesma avidez,
o talento de um artista
e a burrice de um burguês.
GUMERCINDO JAULINO
- - - - - -
A virtude, em muita gente,
é só falta de ocasião;
quanto virtuoso que sente
não ter sido um bom ladrão!
HÉLIO CHAVES
- - - - - -
De saia curtinha e rente,
estas garotas modernas
só sentam perto da gente
para mostrar-nos as pernas...
HERALDO LISBÔA
- - - - - -
É só, pois sente amizade
pelas mulheres feiosas.
E a mesma fraternidade
sentem por ele as formosas...
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - -
Até que deve a oratória
ser um dom dos mais divinos;
porém, tem levado à glória
muitos sujeitos cretinos...
JACY PACHECO
- - - - - -
Chamaste-me um dia, urgente,
para dizer-me um segredo!
— Nunca um homem tão valente
teve, talvez, tanto medo...
JOSÉ DUARTE COSTA
- - - - - -
Quem passa a vida sisudo,
só pensando em caixa alta,
depois que pode ter tudo,
não tem o que fez mais falta...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO
- - - - - -
Se todos fazem de si
tão duvidoso conceito,
menina, não queiras ter
a fama sem o proveito...
NOEL DE ARRIAGA
- - - - - -
Ouvi um cão indigente
a meu buldogue inquirir;
— O teu dono é inteligente?
— Se é? Só falta latir!
OLDEMAR LIMA DE ANDRADE
- - - - - -
Fiquei rindo de um gaiato
que caíra em plena praça,
não vi a casca de manga
e — pumba! — perdi a graça...
OLYMPIO S. COUTINHO
- - - - - –
Homens há tão insensatos
e de maneiras tão duras
que em vez de usarem sapatos
devem calçar… ferraduras!
PAULA FARIA
- - - - - -
Aquela jovem tão grácil
possui grandes qualidades:
além da palavra fácil,
tem outras facilidades...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
Se beijo pagasse imposto
junto aos cofres da moral,
que renda dava o teu rosto
nos bailes de carnaval!...
RENATO VIEIRA DA SILVA
- - - - - –
Quando por fraca poetisa
um critico se derrete,
o leitor logo ajuíza:
essa poetisa promete...
RODRIGUES CRESPO
- - - - - –
Na festa daquela gente,
o discurso que agradou
foi aquele, unicamente,
que depressa terminou...
SEBASTIÃO BENFICA MILAGRE
- - - - - –
O meu olhar é um peralta
que não tem jeito, mocinha:
aquilo que tanto escondes
o sem-vergonha adivinha...
SOARES DA CUNHA
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Nota do Blog: As trovas podem ser feitas rimando apenas o 2. com o 4. verso (sistema ABCB), contudo para efeito de Concursos de Trovas, normatizados pela União Brasileira de Trovadores,  existe a obrigatoriedade de rimar também o 1. com o 3. verso (sistema ABAB)

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

André Masini (Morrer, Dormir... Talvez Sonhar)


Era uma brilhante manhã de sol, e eu acabara de me sentar à mesa do café. A velha empregada aproximou-se com olhar triste, meia sem jeito, e contou-me que na calçada, diante de nosso portão, havia um cãozinho caído.

Corri para o portão, e lá estava ele. Era um Fox Paulistinha, minha raça favorita. Respirava com dificuldade e não esboçava qualquer reação ao ser tocado. Exibia pavorosos sinais de maus-tratos, que prefiro não descrever.

Entrei e liguei para o veterinário. Ao voltar ao portão, encontrei duas crianças: uma menina de uns 9 anos e um menino de uns 6. Estavam sérios, com os olhos tristes fixos no bichinho. Arfavam, como se suas respirações pesadas ajudassem o corpo cansado do animalzinho a continuar respirando. A presença delas ali foi para mim um grande alívio.

É surpreendente como -- nas questões realmente essenciais da vida - coisas terrenas como força, poder, idade, e intelecto revelam-se insignificantes... A companhia daquelas crianças, em toda sua fragilidade, teve mais valor para mim do que se lá tivessem estado presidentes, reis, cientistas, ou gênios da literatura.

Tem gente que pensa, nestes tempos materialistas, que solidariedade significa gente rica dar coisas para gente pobre. Mas solidariedade é muito mais: uma imensa força da natureza humana, que pode ser o bálsamo para as mais profundas e mais essenciais feridas da alma. Muitas vezes, o único bálsamo...

Na calçada estávamos eu, o cãozinho e as duas crianças...

O veterinário chegou, fez um breve exame no bicho, e, discretamente, deu-me a entender que o caso era sem remédio...

Olhei para as crianças num dilema: elas haviam escolhido estar ali e tinham absoluto direito de saber a verdade. Mas eu era um estranho para elas, e revelar-lhes cruamente o terrível ato que iria ocorrer, talvez fosse rude demais...

Acabei pedindo que fossem chamar sua mãe... que ela poderia ajudar, etc... Elas partiram correndo.

O cãozinho estava muito mal, já havia sofrido terrivelmente e era quase um milagre que ainda estivesse vivo, que tivesse conseguido andar até ali.. Ele havia gastado suas últimas forças, seus últimos instantes, sua última intuição... para chegar ao meu portão, à minha casa...

O veterinário foi claro: não havia nada a fazer senão sacrificá-lo e abreviar sua agonia.

Pegamos o cãozinho e o colocamos no carro. Quando íamos partir, as crianças reapareceram, num carro, com sua mãe, trazendo dois potinhos de plástico com comida e água. Eu disse que o estávamos "levando", sem maiores explicações. Despedi-me com um sorriso amarelo, e nunca mais as vi. Guardo delas uma lembrança afetuosa, de respeito e solidariedade.

Vida, morte... chegadas, partidas...

Vinte anos antes, em um dia ensolarado como aquele, eu pousara no aeroporto de Quito, no Equador. Fora para trabalhar, mas chegara como quem cai do céu, como uma criança que nasce para um mundo novo. Tudo era novidade: a língua, os costumes, as cidades, a selva. Aos poucos fui conhecendo aquele estranho mundo, e ele se foi tornando meu lar, minha vida.

Após um ano de intenso trabalho, eu estava tão habituado com aquela vida, que parecia ter estado ali desde o início dos tempos.

Depois, em uma nova manhã ensolarada, eu e outro geólogo voltamos àquele aeroporto para nos despedirmos de nosso mentor, o "velho professor". Num instante ele estava ali, como "sempre" estivera, e no instante seguinte havia partido, para sempre.

Voltei do aeroporto em silêncio, olhando pela janela do ônibus. O dia continuava ensolarado, e a cidade continuava igual, mas o professor já não estava lá para ver nada daquilo...

Subitamente me dei conta de que em breve eu próprio partiria, e também não estaria mais ali, e que aquelas ruas e casas e selvas tão familiares, aquela "minha vida", passariam a ser apenas lembranças.

Partidas... morte...

O veterinário aplicou a injeção no coração do cãozinho.

Em seu instante final, ele saiu do torpor em que estava, enrijeceu-se e chorou alto, com profundos e sentidos soluços que jamais esquecerei... a impressão que tive foi que, apesar de todos sofrimentos que padecera, ele lamentava partir desta vida... A tristeza e a intensidade daquele momento foram imensas. Em minha alma ficou gravada, para sempre, a ideia do apego que o cachorrinho tinha à vida.

Morrer, dormir... talvez sonhar...

Não sei se ele levou lembranças... mas para ele essa dúvida já não importa, nem causa angústia.

A morte faz parte da vida, parte dessa imensa e maravilhosa unidade que é a natureza. Não há outra atitude razoável senão aceitar e respeitar a morte, seja lá o que ela for. E para nós que ficamos, resta o bálsamo da solidariedade.

Voltei para casa. O dia continuava brilhante e ensolarado, e todas as coisas permaneciam como antes: o portão, a calçada, o mundo... mas o cãozinho já não estava mais aqui para ver tudo isso.

* * * * * * * * * * * * * * * * *

O objetivo desse texto poderia ser apenas um reflexão sobre a vida e a morte, mas é mais que isso.

Quando vi aquele heroico cachorrinho -- mesmo irremediavelmente doente e em imenso sofrimento -- chorar e soluçar por ter que deixar este mundo, não pude deixar de pensar nos milhares de outros, que gozam de plena saúde, mas que são friamente assassinados em nosso nome, a cada semana.

Essa foi a herança que o cãozinho deixou: um grito de alerta para que nós, humanos, compreendamos a imensa brutalidade que é essa matança.

Os cães são os maiores companheiros e o maior presente que a natureza nos deu. Eles nos amam incondicionalmente, sua fidelidade é sólida como as mais profundas fibras de suas almas de heróis (que sacrificam sem hesitação suas vidas para defender seus donos), sua alegria e seu carinho são lições que a cada dia nos ensinam a ser melhores e a viver melhor...

Não tenho ideia de o que fizemos para merecer tamanho presente...

Deveríamos agradecer a Deus e à natureza esse presente, e mostrar permanente respeito e carinho por esses seres infinitamente alegres e amigos, e que amam tanto a vida, e que a cada dia nos ensinam a amá-la também .

Mas, ao invés disso, criamos "centros de controle de zoonoses", as malfadadas "carrocinhas", que capturam os cães pelas ruas e os assassinam com bestial frieza!

Às vezes eu penso: o que, afinal, nossa espécie está fazendo na Terra? aonde queremos chegar? Não nos contentamos em estar destruindo cada um dos ecossistemas do planeta, não nos contentamos em nos comportar como verdadeiros playboys mimados, que -- sem qualquer consciência ou segundo pensamento sobre o fato de existirem outros seres -- dilapidamos a herança que a natureza nos deu, numa verdadeira orgia de inconsequência. Não. Além disso tratamos nossos melhores amigos, os cachorros, como se fossem resíduos descartáveis, não seres brilhantes e repletos de vida.

Vi outro dia na TV um certo professor da USP afirmando que a hostilidade da população contra a carrocinha é devida à "ignorância", pois a população não sabe que os cães podem (sic) "causar doenças". Pobre criatura vaidosa. Do alto de seu pedestal, ele nem sequer cogita a hipótese de que o ignorante possa na verdade ser ele próprio. A tal "população", as pessoas, pode perfeitamente saber da possibilidade de um cão transmitir uma doença - bem como da possibilidade de outro ser humano transmitir uma doença - mas nem por isso precisam acreditar que se deve sair por aí praticando extermínios.

O sábio professor nem percebe que seu raciocínio brota do mesmo campo de onde brotaram as maiores monstruosidades da história humana. A mente dissociada do coração é um mecanismo defeituoso e pervertido, que pode levar para absolutamente qualquer direção e fazer estragos sem qualquer limite. Não existe nada mais ignóbil do que a pseudo-sabedoria, que tenta mostrar a "lógica" de atos monstruosos através de argumentos "científicos", mas sem discutir os aspectos éticos da questão.
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Publicado no Jornal O Paraná em 27/abr/2004

Fonte:
Casa da Cultura

Antologia Spina (Inscreva-se!!)

Falta pouco mais de um mês para o encerramento das inscrições da Antologia SPINA.

Quem desejar participar, ainda dá tempo. As pessoas que escrevem SPINA's e não receberam o regulamento, mas desejam recebê-lo e fazer parte da Antologia, deixem um e-mail inbox para Solange Colombara ou Ronnaldo de Andrade que enviaremos. As que receberam e não se decidiram, reforçamos o convite.

Clique no link abaixo para entrar na página SPINA – Nova Forma Poética – Associação Brasileira de Poetas Spinaístas para se inscrever ou para obter mais informações sobre esta nova forma poética
https://www.facebook.com/groups/623841465028682

Esta é a Primeira Antologia exclusivamente de SPINA's. É um marco importante, por mais que não pareça.

Como estudioso de literatura, sei a importância de uma Antologia como essa na vidas dos autores participantes; talvez não imediatamente, mas em um futuro distante. Como, só para ilustrar nossa fala, os primeiros participantes da revista  Noigrandes (1952) dos poetas concretistas.  A revista Praxis (1961?)  da poesia-práxis, criada pelo ex-integrante da poesia Concreta, Mario Chamie, que com seu livro Lavra Lavra (1962) instaura o poema-práxis. Lembremos que o  livro mecionado foi o vencedor do prêmio Jabuti em 1963. E citamos  a Antologia Meus Irmãos Trovadores (1956). Este livro marcou o início do Primeiro Movimento Literário Genuinamente Brasileiro: O Trovismo. Existente até o momento. Muitos dos participantes desses livros/revistas são estudados e referências até hoje. Almejo isso para todos nós!

A Antologia SPINA será o nosso "Primeiro Manifesto" Spinaísta! O caminho é árduo, mas com objetividade, foco, determinação e estudos iremos alcançar, ao menos, parte do que desejamos e somos merecedores.

Vamos unir nossas vozes para que ecoem mais distantes.

Todos os participantes da Antologia ganharão uma página/brinde e participarão com no mínimo 8 SPINA's, além de mais um brinde para aquele que publicar um livro solo por uma das editoras parceiras nossas!

Desejamos a todos paz e bênção!

Os Organizadores
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Nota do blog:
Sobre esta Nova Forma Poética, mais detalhes neste blog em 29 de julho, no link:

Fonte:

Spina (facebook)

sábado, 5 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 369

 


Francisca Júlia (Isabel)


Isabel era uma menina de dez anos mais ou menos.

Desde a mais tenra a infância já mostrava o seu caráter vaidoso, um desejo de aparecer, de realçar, sobressair entre as demais.

Nessa idade tinham-se aguçado tanto as suas más qualidades e se acentuado a sua tendência para o aparato, que toda a vez que lhe faltava um enfeite ao seu vestido ou uma fita ao seu chapéu, revoltava-se, batia o pé, e, apesar de bonita, graciosa mesmo, e de um aspecto agradável, nesses momentos de cólera parecia feia e só inspirava repulsão e antipatia.

Sua mãe, mulher de costumes simples e de boa alma, educada na escola do carinho e da religião, tinha um grande desgosto com isso, e muitas vezes surpreendiam-na com o rosto entre os joelhos, chorando, afogada em soluços.

Chamava a filha para junto de si, sentava-a no colo, anediava-lhe os cabelos, num gesto bom de maternal ternura; dava-lhe bons exemplos, ensinava-lhe o caminho do bem, com uma paciência e resignação x de que só são capazes as mães extremosas.

Certo dia, Isabel aproximou-se de sua mãe e disse-lhe:

— Mamãe, há já alguns dias que resolvi abandonar todas as minhas amigas atuais, porque elas me parecem tão insignificantes!

— Fazes mal, minha filha, falou a mãe com tristeza. Entre as tuas amigas e companheiras há algumas de bons costumes e dignas da tua amizade. Não as abandones.

— Vou deixá-las, sim. Conheço uma menina que é melhor que todas elas. Chama-se Marieta. É elegante como nenhuma, graciosa, espirituosa, veste-se à última moda, e é o alvo da inveja no círculo das minhas colegas. Quero andar em companhia dela, para que todo o seu encanto reflita sobre mim e eu seja invejada também.

À mãe umedeceram-se-lhe os olhos de lágrimas. Envolveu a filha com um olhar de censura e, antes que uma repreensão violenta lhe saísse da boca, chamou a menina para junto de si e falou-lhe com brandura:

— “Certa vez uma semente de arbusto, na aproximação da primavera, ainda estava solta sobre a terra, sem coragem de aí deitar suas raízes, receando crescer ao relento ou sob os ardores do sol. Então deixou-se rolar ao vento, e foi indo, foi indo, até chegar-se ao pé de uma pequena árvore, que ostentava sua galharia verde e exuberante à margem de uma cisterna. Debaixo de sua folhagem havia uma sombra fresca onde crescia um viçoso musgo que se espalhava em feitio de veludoso e macio tapete.

“Foi aí o lugar em que a semente resolveu plantar-se.

“Plantou-se, criou raízes e cresceu.

“Foi crescendo pouco a pouco. Dia a dia iam-lhe surgindo novas folhas, novos brotos, novos galhos, até que, quando a primavera veio, e invadiu a campina inteira, encontrou o arbusto numa florescência bonita, sorrindo numa radiação de mocidade.

“O arbusto, como era muito débil e não tinha forças para lutar contra a violência da ventania, foi estendendo os braços e agarrou-se ao tronco da arvorezinha, que lhe servia de arrimo.

“Aconteceu, porém, que numa noite de tempestade e de trovões, um raio maligno caiu com grande estrondo e cortou a árvore. O arbusto encolheu-se de medo, mas salvou-se.

“No outro dia rompeu o sol, e o seu calor era tão intenso que crestou as folhinhas da pobre planta, lhe queimou o tronco, lhe secou a seiva e a matou.”

— Aí está a minha história, minha filhinha; ela servirá de exemplo para te corrigires. Nunca procures ter o valor que te emprestam os grandes, porque se eles morrem ou decaem do poder e da grandeza, tu cairás também como o pequeno arbusto, humilhada pelo desprezo de todos. Será melhor, pois, que tenhas o valor que te dão as tuas próprias qualidades, tuas próprias virtudes, e faças por sobressair por teu próprio esforço.

Daí em diante Isabel corrigiu-se e hoje é uma excelente menina, querida e simpatizada por todos.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Publicado em 1899.

Júlia da Costa (Poemas Escolhidos) II

 

ILUSÕES

Em vão te chamo nos murmúrios vagos
Da doce brisa que fugindo vai;
A voz se perde na procela horrível
Que sobre os mares à noitinha cai.

Em vão te chamo! só responde o eco...
Em vão almejo contemplar a ti;
Medonha nuvem de mistérios cheia
Te induz, ai! Sempre a te ausentar de mi’!

Aéreo sonho, mentirosa sombra
D’um sol no ocaso que a gemer tombou,
Em vão te busco nas mescladas nuvens
D’um céu querido que o luar banhou!

Nos rudes tempos d’ um passado estranho
À luz d’ um círio pela dor erguido,
Lampejam inda as ilusões ditosas
D’ um tempo estranho que lá vai sumido!

Assim, ó sombra, na minh’alma vives
Sem cor, nem luz, a divagar perdida...
Em vão te chamo! minha voz se perde
Por este espaço que chamamos vida!

Em vão te chamo! já me falta o alento!
Em vão procuro assemelhar teu canto!
És como a ave que a trinar na rama
Fugindo inspira ressentido pranto.

– És como a ave que na sombra solta
Os seus prelúdios de saudade infinda,
E que fugindo quando a luz se mostra
Os seus cantares sonorosos finda.
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MELANCOLIA

I

Nunca ouviste, alta noite, um som dorido
Como um eco infiel de teu pensar,
Ir saudoso chorar sobre teu seio,
E murmurar-te cantos de pesar?

Nunca ouviste, no albor, o doce arrulho
Da rolinha que chora amargurada,
Qual lira dedilhada
Em florido sertão? Ou harpa eólia
Pelo tufão tocada?

Nos arroubos celestes de tu’alma
Nunca ouviste um acorde esvaecido,
Pelas verdes palmeiras ciciando
Perpassar merencório entristecido?

Pois como o som dorido, e o vago arrulho
Da pombinha que chora o seu destino,
Desvairada, sem tino; –
É meu triste pensar sonhando o berço
Em que dormiu menino!

II

E o céu lindo! e a primavera vejo
Sorrir-me tão viçosa e amenizada!
Qual nuvem qu’é levada
No arrebol da manhã fulgente e belo,
De risos enfeitada!

E a natura trajando as brancas vestes
Do modesto noivado; – em mês d’ abril
Como a flor o sorrir-se entre perfumes: –
Os seus braços me estende, tão gentil!

E o mundo remanseia brandamente,
Qual ondinha ligeira vaporosa
Em seu berço de rosa!
Áureo, belo, gentil! seduz, fascina!
Imagem caprichosa!

Mas eu tristonha sou, bem como a estrela
Que sozinha cintila n’alvorada!
A saudade tornou minh’alma um lírio
Que descora de dor na madrugada!
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UMA FOLHA AO VENTO

A noite é negra – o areal é triste,
A praia imensa, taciturna e só!
Eu vou descalça caminhando à toa,
Me cega o vento, me sufoca o pó!

Queres seguir-me, caminheiro errante?
Eu vou em busca do meu pátrio lar!
Mas tenho medo deste mar de gelo,
Da voz do vento que me faz chorar.

Deixei meu ninho sobre a fralda escura
De uma montanha que se ergue ao sul!
E vou p’ra o norte procurar meu berço,
Ver as estrelas do meu céu azul.

Queres seguir-me? luminosa aurora
Talvez ressurja nesta noite densa!
Talvez perpassem repentinas auras
Pelas areias desta praia imensa.

Talvez à sombra do arvoredo amigo
Por entre redes de cheiroso orvalho,
Possa minh’alma descansar na pátria
Como a avezinha em florido galho.

Deixei meu ninho sobre a fralda escura
De uma montanha que se ergue ao sul!
E vou p’ra o norte procurar meu berço,
Ver as estrelas do meu céu azul.

Avante! as águas remanseiam tristes,
Aragem mansa me bafeja a fronte...
Alva igrejinha entrevejo ao longe
Por entre flores de encantado monte!

E a brisa geme, – dizendo,
E os sonhos tristes remurmuram lá!
Nota dorida de uma lira amiga
A meus ouvidos silencia já!

A pátria! a pátria! Sonhadora errante
Já vejo luzes no horizonte azul!
Já na minh’ alma desabrocham flores...
Adeus meu ninho... virações do sul!

Foi tudo sonho! A chorar acordo,
Olho e só vejo pelo céu a lua!
Nem as praias brancas, nem aragens meigas,
Só triste a brisa pelo mar flutua!

Fonte:
Júlia Maria da Costa. Flores Dispersas. Santa Catarina, 1867, in Júlia da Costa. Poesia. (org. Zahide Lupinacci Muzart). Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001.

Monteiro Lobato (Café! Café!)


E o velho major recaiu em cisma profunda. A colheita não prometia pouco: florada magnífica, tempo ajuizado, sem ventanias nem geadas. Mas os preços, os preços! Uma infâmia! Café a seis mil-réis, onde se viu isso? E ele que anos atrás vendera-o a trinta! E este Governo, santo Deus, que não protege a lavoura, que não cria bancos regionais, que não obriga o estrangeiro a pagar o precioso grão a peso de ouro!

E depois não queriam que ele fosse monarquista... Havia de ser, havia de detestar a República porque era ela a causa de tamanha calamidade, ela com seus Campos Sales de bobagem.

Que tempos! Pois até o Chiquinho Alves, um menino que ele vira em fraldas de camisa brincando na rua, não estava agora na chapa oficial para deputado? Que tempos!

E com as magras mãos de velho engorovinhado o major torcia com frenesi os bigodes amarelos de sarro. Todo ele recendia a passado e rotina. Na cabeça já branca habitavam ideias de pedra. Como essas famílias de caboclos que vegetam ao pé dos morros numa choça de palha, cercada de taquara, com um terreirinho, moenda e o chiqueiro e toda a imensidade azul e verde das serras e dos céus a insulá-las da civilização, assim a cabeça do major. As primeiras ideias que ali abicaram, e isso já de sessenta anos, nas remotas eras do bê-á-bá na escola do Ganimedes, meteram a foice na capoeira, fincaram os paus da cerca, aprumaram os esteios da morada, cobriram-na de sapé; e lentamente, à medida que vinham entrando, compelidas pela vara de marmelo e a rija palmatória do feroz pedagogo, foram erigindo a casa mental do nosso herói.

Depois, no começo da vida prática, como administrador da fazenda paterna, novas ideias e novos conhecimentos, filhos da experiência, tiveram guarida na choça daquele cérebro, acrescendo-o de mais uns puxados ou telheirinhos. Juízos sobre o Governo, apreciações sobre Suas Majestades, conceitos transmitidos por pais de família e coronéis da Guarda Nacional, ideias religiosas embutidas pelo roliço padre Pimenta, oráculo da família, receitas para quebrantos, a trenzama toda moral e intelectual da sua psíquica de matuto ricaço, por lá se arrumou com o tempo, apesar do acanhamento da choça e das dependências. Para o chiqueirinho foram as anedotas frescas e as chalaças pesadas aprendidas na botica do Zeca Pirula. E ficou nisso o meu major; se uma ideiazita nova voava para ele, batia de peito em seus ouvidos moucos, como rolinhas em paredes caiadas, caindo morta no chão; ou como borboleta em casa aberta, entrava por uma orelha e saía por outra.

Ficou naquilo o major Mimbuia, uma pedra, um verdadeiro monólito que só cuidava de colher café, de secar café, de beber café, de adorar o café. Se algum atrevido ousava insinuar-lhe a necessidadezinha de plantar outras coisinhas, um mantimentozinho humilde que fosse, Mimbuia fulminava-o com apóstrofes.

— O café dá para tudo. Isso de plantar mantimento é estupidez. Café. Só café.

— Mas, com seu perdão, major, se algum dia, que Deus nos livre, o café baixar e...

— O café não baixa e se baixar sobe de novo. Vocês não entendem dessa história — e depois, olhe, eu não admito ideias revolucionárias em minha casa, já ouviu?

E estava acabado, o pedreiro-livre murchava as orelhas e abalava de rabo encolhido.

Veio, porém, a baixa; as excessivas colheitas foram abarrotando os mercados, dia a dia os estoques do Havre e de Nova York aumentavam. Os preços baixavam sempre, cada vez mais; chegaram a dez mil-réis, a nove, a oito, a seis. O major ria-se e limpando as unhas profetizava:

— Em janeiro o café está a trinta e cinco mil-réis.

Chegou janeiro; o café desceu a cinco mil e quinhentos. “Em fevereiro eu aposto que vai a quarenta!” Foi a cinco.

O major emagrecia. “Em março eu juro pela alma de meu pai, que Deus haja, como o café há de subir a quarenta e cinco mil-réis!” O café em março desceu a quatro.

O major enlouquecia. Estava à míngua de recursos, endividado, a fazenda penhorada, os camaradas desandando, os credores batendo à porta. Já ia para três anos que o produto das safras não bastava para cobrir o custeio. Três déficits sucessivos devoraram-lhe as economias e estancaram as fontes. Mas o velho não desanimava. O cafezal estava um brinco, sem um pezinho de capim. As casas desmoronavam, o mato viçava nos terreiros, invadindo as tulhas, inundando tudo de clara verdura vitoriosa, o caruru já estava cansado de nascer nos lugares proibidos onde outrora, nem bem repontava medroso, já vinha um negro cambaio a arrancá-lo sem dó. O major passava a mandioca assada e canjica: nem pitava mais daqueles longos cigarros de palha, por economia. Todo dinheirinho que entrava das vendas do gado, de pedaços de terra, de empréstimos, de velhas dívidas pagas, tudo ia para o Moloch insaciável do cafezal.

Chegado o tempo da colheita, colhia muito, as safras eram ótimas, porém o produto das vendas nenhum alívio trazia à situação, antes agravava-a com um novo déficit. E como não, se o café estava beirando os três mil a arroba e lhe saía a seis a produção de cada uma?

Aconselharam-lhe o plantio de cereais; o feijão andava caro, o milho dava bom lucro. Nada! O homem encolerizava-se e rugia:

— Não! Só café! Só café! Há de subir, há de subir muito. Sempre foi assim. Só café. Só café!

E ninguém o tirava dali. A fazenda era uma desolação; a penúria, extrema; os agregados andavam esfomeados, as roupas em trapo, imundos, mas a trabalhar ainda, a limpar café, a colher café, a socar café. Os salários, caídos no mínimo, uma ninharia, o quanto bastasse para matar a fome. O velho roía as unhas rancorosamente, vomitando injúrias contra os tempos modernos, contra a estrangeirada, o Governo, os comissários, numa cólera perene, e trabalhava no eito com os camaradas a limpar café, a colher café.

— Sobe, há de subir, há de chegar a trinta mil-réis.

Para sustentar a luta vendeu uma nesga da fazenda — um pedaço da sua própria carne.

Depois vendeu outra, mais outra e outra. O Moloch insaciável, porém, engoliu tudo e pediu mais. Ele vendeu mais: vendeu os pastos, vendeu por fim a casa de morada com todas as benfeitorias e foi residir num ranchinho no cafezal.

A situação piorava, os preços continuavam a cair, o velho já estava sem unhas para roer e sem mandioca para se alimentar. Só possuía o cafezal, sempre limpo, sempre sem um matinho. Um dia desertou uma leva de camaradas: outros seguiram aqueles e em breve Mimbuia viu-se completamente só no seu ranchinho do cafezal. Levantava-se antes de clarear o dia e saía de enxada em punho, numa raiva surda, a capinar, a capinar o dia inteiro como um possesso.

Depois, como o cafezal fosse grande e ele um só, o mato brotou luxuriante, numa alegria verde-clara de vitória. O velho, possesso, dentes cerrados, surdo ao sol e à chuva, seminu, esfarrapado e macilento, baba a escorrer dos cantos da boca, torrado pela soalheira, sujo de terra, já não podendo vencer o mato exuberante, andava a arrancar as ervas mais atrevidas ou graúdas, catando uma aqui, outra ali.

A luta era gigantesca, de vida ou de morte. Pelo cafezal todo as ruas outrora vermelhas e varridas eram extensas faixas do verde vitorioso. A beldroega (1) alastrava-se, o caruru já florescia, o picão derrubava as sementes novas para nova seara mais farta e pujante. Pintassilgos inúmeros trilavam pelo chão banqueteando-se à farta nas sementes dos capins. As rolinhas rebolavam, arrulhando, roliças, de papinho duro. Os tico-ticos, como legiões de bárbaros, tagarelavam fabricando ninhos, pondo ovos, chocando-os, tirando ninhadas famintas. O sol rompia todas as madrugadas, fecundo, forte, vencedor, criando seiva intensa, acariciando as ervas transbordantes. Chuvas contínuas davam à terra magnífica um fofo de alfobre (2).

O velho Mimbuia estava um espectro, já nu de todo, os olhos esbugalhados a se revirarem nas órbitas com desvario. Um espectro sem carnes, só pele calcinada e ossos pontiagudos. Mas quando a boca se abria naquela barba hirsuta, o que vinha era uma coisa só:

— Há de subir, há de subir, há de chegar a sessenta mil-réis em julho. Café, café, só café!…
________________________________
Vocabulário:
(1) Beldroega – é um arbusto de folhas suculentas e flores coloridas. Na Índia é silvestre, e consumida há milhares de anos. É cultivada no Oriente Médio e em parte da França. Foi popular na Inglaterra na época de Elisabeth I. Tornou-se daninha em parte da América do Sul e do Norte. Desde a antiguidade tem sido usada na alimentação humana em saladas ou cozida. Toda a planta é comestível. No Egito e Sudão é cultivada comercialmente para o consumo. (wikipedia)

(2) Alfobre – Viveiro, normalmente de plantas. Era utilizado, e ainda é como local onde se colocam as sementes dos produtos que se pretendem cultivar, para, assim que ganham resistência, serem transplantados para um local definitivo de cultivo, de forma a se poder escolher a disposição na terra dos mesmos.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas. Publicado em 1919.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 368

 


Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 3



quadrinho em "O Indianópolis"

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Fernando Sabino (Fumar sem ser Fumante)


O MÉDICO proibiu Mário de Andrade de fumar:

— Se você largar o cigarro, ainda poderá ter uns vinte anos de vida.

E Mário, desencantado:

— De que me adianta viver mais vinte anos sem fumar?

A partir de então, trancava-se no banheiro para acender um cigarrinho, escondendo-se de si mesmo.

E o conhecido médico que um dia fez a solene promessa ao filho:

— Meu filho: dou-lhe a minha palavra de honra que você nunca mais me verá com um cigarro na boca.

Homem de palavra: o filho nunca mais o viu fumando. Tempos depois, ao entrar no escritório do pai, dá com uma fumacinha no ar, e eis o velho atirando rápido alguma coisa pela janela, depois se voltando com ar sonso:

— Que foi, meu filho? Por que está me olhando?

O rapaz se pôs a rir:

— Mas que flagra, hein? Você não tinha dado a sua palavra de honra que nunca mais havia de fumar?

O velho pigarreou, compenetrando-se:

— Meu filho, eu vou lhe dizer uma coisa, saiba de uma vez por todas: cheguei à conclusão definitiva de que honra e cigarro são duas coisas absolutamente incompatíveis.

Deixar de fumar. Conheço um que deixou durante três anos. Um dia viu Charles Boyer segurar delicadamente um cigarro na ponta dos dedos, levá-lo à boca, tirar uma daquelas tragadas francesas de encher o peito, e depois dizer para Michele Morgan “je t’aime”, soltando fumaça. Saiu do cinema, comprou um maço de Hollywood e fumou-o inteiro, um cigarro atrás do outro.

Estou proibido de citar a velha frase atribuída a Mark Twain, a Bernard Shaw, a Churchill: nada mais fácil — já deixaram umas vinte vezes. Pois aqui está o homem que deixou o cigarro. Mais um dia sem fumar! — diz ele, satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o dia onze de outubro de mil novecentos e setenta e dois (às três e trinta e cinco da manhã). Com isso exatamente nove meses. Está para nascer, de um momento para outro. Está para nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera de estômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundo o ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrança dos tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de se meter na cama — lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. No fundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquer coisa de ex-presidiário ou de défroqué (fora de moda): o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelo menos não morrerei de câncer” — conclui ele.

“Fumar é morrer um pouco” — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “os fumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que os que não fumam”.

Sou um homem de meia-idade; e, como deixei de fumar há coisa de meia hora atrás, a minha probabilidade de morrer neste instante ficou reduzida à metade. Resta a outra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, não creio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu posso abandonar, a não ser o de viver.

Viver faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Faz cair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nos ossos. Enfraquece a cabeça, combale o organismo e ataca o coração. É o próprio suicídio preconizado pelos que não têm pressa.

E o pior é que os fumantes nem ao menos têm o consolo de saber que estão afugentando a morte quando abandonam o fumo, pois diz aqui o tal artigo: “somente ao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em consequência do hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.

Dez anos? Sei de um que não fuma há nove — portanto durante um ano estará sujeito a morrer por ter fumado. E até hoje ainda sonha que está fumando, acorda engasgado com a fumaça.

Na adolescência cheguei uma ou outra vez a dependurar um cigarro na boca, mas só para parecer que já era homem e não ser barrado no cabaré. Comecei a fumar de verdade aos 20 anos, corrompido por meu amigo Hélio Pellegrino (que hoje não fuma).

Desde então me entreguei alegremente ao vício abominável. Fazer boca para o cigarro era um eufemismo que transcendia o simples cafezinho, para estender-se à própria vida até seu último instante. Pouco importava que fosse reduzida à metade, e daí? Fumar até o momento final, como um condenado — dar a última tragada e enfrentar impávido o pelotão de fuzilamento.

Como um condenado, me vi um dia sem um só cigarro em casa — era de madrugada e chovia. Ainda assim saí à rua para comprar, não poderia dormir sem fumar. Andei como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas de meu bairro, nem um botequim aberto. Já me dispunha a tomar um táxi e mandar seguir para o quinto dos infernos, onde quer que houvesse cigarros à venda. De súbito percebi a escravidão que aquilo significava. Chovia cada vez mais, relâmpagos cortavam a noite.

Nunca mais hei de fumar! — bradei para as potestades dos céus. No dia seguinte me agarrei com ferocidade à surpreendente decisão, fumando a todo momento um cigarro imaginário. Ao segundo dia meu propósito se robusteceu — eu tinha vencido: em breve estaria respirando melhor, sem corizas e pigarros. E ao terceiro dia enlouqueci.

Não sei como não me internaram. Passei a ter ímpetos homicidas dentro de casa, crianças fugindo espavoridas como galinhas. Agarrava-me com todas as forças ao novo vício: o de não fumar. Só falava nisso, só vivia para isso. Depois do primeiro mês a coisa se tornou mais fácil, mas eu vivia triste como se tivesse perdido algum parente próximo e querido. As pessoas me olhavam como quem diz: esse homem esquisito que não sabe onde põe as mãos positivamente já não é o mesmo. E sentado num sofá, vendo os outros fumarem, eu me sentia sem braços como um cavalo.

Com o correr do tempo me acostumei. E para provar que eu deixara mesmo de ser fumante, aceitei com naturalidade o cigarro que me ofereciam, depois de um jantar. Foi então que descobri a verdadeira e única fórmula de vencer o vício do fumo: deixar de fumar sem abandonar o cigarro. Um cigarro como complemento das refeições não faz mal a ninguém. Ou depois de um bom cafezinho — sejam quantas forem as xícaras tomadas diariamente. Um cigarrinho aqui, outro ali — podem mesmo ser tantos quantos os de antigamente, mas com uma diferença: na boca de alguém que, por convicção, deixou de ser fumante. Tudo nesta vida é pura questão de convicção.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Cecília Meireles (Poesias para Crianças) 3


A BAILARINA

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta bem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
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O MENINO AZUL

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
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OS CARNEIRINHOS

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.

Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.

Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã…
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RIO NA SOMBRA

Som
frio.

Rio
sombrio.

O longo som
do rio
frio.

O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
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SONHOS DA MENINA

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha ...

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Fonte:
Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Publicado em 1964.

Nelson Rodrigues (O Pastelzinho)


Uma noite, duas semanas antes do casamento, conversava com alguns amigos no café. Súbito, um deles baixa a voz e faz-lhe a pergunta:

— Sabe onde é que se decide um casamento?

— Não.

E o outro:

— Na primeira noite. A primeira noite é tudo e o resto não tem importância.

Sérgio ouviu, sem fazer comentário. O outro era casado, bem casado, e tinha a autoridade de quem conhecia o problema. Continuou e mudaram de assunto. Mas quando, uma hora depois, desfez-se o grupo, o amigo o levou até a esquina. E, lá, repete:

— Não te esqueças: — é preciso caprichar na primeira noite. Bye, bye.

O impressionado Sérgio balbuciou:

— Bye, bye.

EMOÇÃO

Morava na rua Adriano, no Méier. A caminho de casa, no lotação, ia pensando na advertência do amigo, que passava por ser uma enciclopédia amorosa. E Sérgio, que era por natureza um emotivo, sujeito a angústias inenarráveis, começou a entrever possibilidades nupciais as mais desagradáveis. Durante a noite sonhou repetidas vezes com o amigo, que lhe repetia sinistramente: — “Olha a primeira noite. Capricha, capricha!”. Acordou banhado em suor. Mais tarde, no trabalho, permanecia o mal-estar. E a situação parecia-lhe grotesca, hedionda: faltavam duas semanas para o casamento e já estava nervoso. Durante uma semana não pensou noutra coisa. Acabou indo a um médico. Chega lá e abre o coração:

— Doutor, o que há é o seguinte: — vou me casar daqui a uma semana. Tenho medo, justamente, do meu sistema nervoso, das minhas inibições.

O médico insinua:

— Quer um calmantezinho?

E ele, de olho aceso:

— Talvez fosse negócio, não, doutor?

Mas o outro volta atrás:

— Não precisa. Pra quê? A solução é ter confiança em si mesmo, procurar distrair as ideias.

Agoniado, quer saber: — “E não vou tomar nada?”. O médico, cheio de otimismo, deu-lhe o conselho:

— Faz o seguinte: — no dia do casamento, evita salgadinhos e doces. O ideal seria um bife, um bom bife. Carne assada, sangrenta. Nada de pastéis, de empadinhas, de coisas apimentadas.

Ao lado, o noivo escutava:

— Compreendo, compreendo.

Saiu crente do consultório que a chave da lua-de-mel era o aparelho digestivo. Ao descer do médico, dá de cara, por uma dessas fatalidades cômicas, com o tal amigo. Este diz-lhe, em tom cavo e voz profunda:

— A primeira noite é tudo!

NÚPCIAS

Eis a verdade: — a conversa com o médico dera-lhe ânimo novo. Passou a pisar mais firme, a olhar os outros de cima para baixo e, no telefone, ao despedir-se da pequena, encostava a boca no fone:

— Um beijinho bem molhado nessa boquinha!

Entre parênteses, a garota, com dezoito anos, jeitosa de corpo e de rosto, era, como dizia o próprio Sérgio, um “doce-de-côco”, um “arroz doce”. Educadíssima ou, segundo se comentava, “muito espiritual”, era incapaz de usar expressões de gíria, de dar uma gargalhada ou, simplesmente, cruzar as pernas. Fisicamente era um tipo fino, de poucas cadeiras, uma linha muito aristocrática. Ele dizia: — “Nunca espirrou na minha frente. E outra coisa: — não transpira! Te juro que nunca vi a Dalva suada”.

De fato, nenhuma pele mais isenta de espinhas, de manchas, mais fresca, mais cheirosa e mais suave. Custava crer que essa imagem de graça intensa, essa flor de espiritualidade tivesse nascido e, pior do que isso: — ainda morasse na Saúde. Muito carioca, estabanado, Sérgio mudava diante da noiva assim doce e assim macia. Sem querer, ele a tratava com relativa e involuntária cerimônia. O chamado “beijo bem molhado” era a máxima liberdade verbal que se permitia. Mas, na véspera do casamento, ela o chamou de lado. No seu jeito manso, começou:

— Vou lhe pedir um favor, meu filho.

Abriu-se:

— Pois não!

E ela:

— Eu não queria que você falasse mais em “beijo molhado”. Acho tão sem poesia!

Pela primeira vez, Sérgio quis resistir:

— Mas, meu bem, escuta cá: — por quê?

Explicou:

— É o seguinte: — quando você fala assim eu penso logo em saliva.

O outro animou-se:

— Mas por isso mesmo! A graça do beijo está, justamente, na saliva, meu anjo. — E insistia, já inspirado: — Na mistura de saliva.

Dalva encerrou a discussão com a sua doçura irredutível:

— Eu não penso assim.

Sérgio transigiu, imediatamente:

— Está bem, coração. Todo o meu interesse é de te agradar.

A TRAGÉDIA

No dia, houve o casamento, no civil e no religioso. Na igreja, de joelhos diante do altar, ele julgava ouvir, alternadamente, a voz do amigo e a do médico. Uma dizendo: — “A primeira noite é tudo”. E a outra: — “Nada de salgadinhos! Nada de doces!”. De fato, desde as primeiras horas do dia que observava um extremo rigor de alimentação. Renunciara ao leite, que podia fazer mal ao fígado; alimentara-se, sobretudo, de frutas acima de qualquer suspeita: — bananas e mamão. Não almoçara, porque a hora do almoço coincidira com a do civil. Ao sair da igreja, sentia fome. Chegara de volta à casa dos sogros com fome. Viu os salgadinhos, os doces e, a despeito de uma tentação violenta, manteve-se irredutível. De vez em quando, pessoas da casa passavam com pratos de sanduíches, de pastéis, de doces. Perguntavam:

— Aceita um?

Respondia, heroico:

— Não, obrigado.

Ficou, assim, inexpugnável, até o fim. A noiva que, por natureza, tinha um apetite de passarinho, não tocou em nada. Minto: — aceitou um pastelzinho. Ele ainda teve vontade de sugerir-lhe: — “Não faça isso!”.

Calou-se, porém. Por fim saíram, de táxi alugado, para um hotel no centro, onde tinha alugado um apartamento no décimo segundo andar para a lua-de-mel. Ao entrar no carro, Dalva balbucia:

— “Não sei, mas não estou me sentindo bem”.

Sem dizer nada, guardou para si a intuição:

— “Foi o pastelzinho”.

No meio do caminho, novo lamento:

— “Estou me sentindo tão mal!”.

Falara de dentes trincados. Disse ainda:

— “Tomara que a gente chegue logo, tomara!”.

Sentindo a angústia do ser amado, comandou o chofer.

— “Quer andar mais depressa?”.

Ao lado, Dalva crispava-se toda, gelada de dor. Sérgio baixa a voz:

— Queres que eu compre elixir paregórico?

— Não diz isso: Não diz nada. Só quero é chegar, meu Deus!

Ia balbuciando: — “Não sei se aguento! Não sei se aguento!”.

Ele finalmente diz: — “Foi aquele pastelzinho, não foi?”.

Ela arquejava, chamando a atenção das pessoas. Sobe o elevador com o marido, que apanhara a chave. Lá em cima, exigiu: — “Não entra, fica no corredor!”.

Ele espera uns vinte minutos. Nada. Empurra e vem, então, lá de dentro, o berro: “Não!”. Da porta, pergunta: — “Queres elixir paregórico?”.

Outro “não” violento.

Mais meia hora e quer forçar a situação. Entra. Mas quando Dalva percebe que o marido está ali, alucina-se. Ele a viu correr em direção da janela, trepar no parapeito e atirar-se lá de cima, do décimo segundo andar, deixando no ar o seu grito em flor.

Meia hora depois, chegam parentes, amigos, simples conhecidos. Diante da morte de uma noiva, em sua primeira noite, insinuou-se, em todos os espíritos, a ideia de um tenebroso crime sexual. O sogro de Sérgio agarrou-o pela gola e o sacudiu, aos berros:

— Ela matou-se por que?

Respondeu, num soluço imenso:

— Uma cólica a matou! Foi o pastelzinho!

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 367

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Mostra do More


Quem foi o diretor de “Casablanca”? Quem foi a protagonista de “E o vento levou”? Qual foi o primeiro filme de Orson Welles?... Hoje você vai ao Google e fica sabendo na hora. Mas até o final do século passado, pelo menos aqui em Maringá, se você quisesse saber algo sobre cinema, o modo mais fácil de obter respostas rápidas e precisas seria perguntar ao More.

Recentemente, mexendo numa velha pasta, encontrei o recorte de uma crônica que publiquei no “O Diário do Norte do Paraná” no dia 9 de junho de 1979. Falava dele: Morimassa Miyazato – o nosso pequeno grande More. Naquela data ele finalmente estava abrindo, no saguão da prefeitura, sua teimosamente sonhada “I Mostra de Cinema de Maringá”.

Mais de um ano antes ele começara a peleja, andando pra lá e pra cá, viajando de ônibus, de carona, visitando produtores, diretores e atores de cinema, pedindo a colaboração de jornalistas, cavando apoio do poder público, de empresas particulares e de amigos.

Botara na cabeça a ideia da Mostra e nada o faria desanimar. Bravo! Conseguiu.

Na abertura do evento reuniu uma pequena multidão, além de autoridades locais e celebridades do cinema que aqui vieram para ver de perto a Mostra do More. Palestras, debates, exibição de filmes. E uma bela exposição de fotografias, trilhas sonoras, folhetos, revistas, cartazes, autógrafos e antigos equipamentos cinematográficos.

Repito alguns trechos da crônica escrita há 41 anos:

“More realmente me faz acreditar que a esperança é a última que morre. Antes que morresse, aconteceu o sonho esperado. E só não morreu porque ele não deixou. O querido moço nissei venceu, e sua vitória é o item mais bonito dessa Mostra”.

”Nunca vi ninguém gostar tanto de uma coisa quanto o More gosta de cinema. Ele pesquisa, ele discute, ele coleciona, ele é um doutor nessa tal de sétima arte”.

“Você pode fazer perguntas sobre qualquer filme, antigo ou novo, nacional ou estrangeiro, ele sabe tudo. Diz e prova. Seus arquivos lhe dão segurança para falar do assunto sem risco de erro. Se eu fosse um desses homens grandes do cinema brasileiro que estão hoje em Maringá, levaria o More para o Rio ou São Paulo e aproveitaria ao máximo o seu gênio”.

“Gênio é justamente aquela pessoa que gosta malucamente de uma coisa e estuda essa coisa até a raiz. More é assim com o cinema. Sem recursos, enfrentando mil quebra-molas em seu caminho, ele decidiu que Maringá haveria de ter sua “I Mostra de Cinema”. A cidade acabou gostando da ideia e ajudou. Ajuda modesta, porém deu para transformar o sonho em realidade. Aliás, a Mostra nem precisaria ter sido um sucesso tão notável. Bastaria a gente saber que foi fruto do trabalho e do idealismo de um jovem maringaense fora de série”.

More continua em Maringá. Discreto como sempre, mas ainda intrinsecamente apaixonado por cinema.

Daqui lhe mando um abraço. Lá de dentrinho do coração .
****************************************
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-8-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carime Pires Mansur (Poemas Escolhidos)


CREPÚSCULO DO MEU BRASIL

Contemplando a beleza infinita do céu
e sentindo a atração sedutora do mar,
nesse enlevo e carinho com que estende em véu
de espumas, pela praia, a rolar... a rolar...

Vendo o sol descambar, soberbo, no horizonte,
num fundo misto de ouro, púrpura e de anil,
a encher de luz as terras, as planícies, o monte,
cada vez eu me orgulho mais do meu Brasil!

E o vento — alma, talvez, de um Gênio, a soluçar
beija e embala, do mar, as ondas, docemente!
E, revoltado, agora, agitando-se, o mar,
bebe o sangue do sol, vermelho, vivo, quente!

Sucedendo ao esplendor do Rei, surge a Rainha
da Noite, a Lua, numa bacanal de luz!
Feliz, eu me ajoelho e rezo aos pés da minha
Catedral, meu Brasil! TERRA DE SANTA CRUZ!
****************************************

CRISÁLIDA

No lirismo da noite suave e calma —
um sol de prata a explodir em luz! —
a brisa ao perpassar, canta à minha alma,
em murmúrios, o amor que me seduz!

O meu corpo se esvai, como fumaça,
volatiliza-se, em flutuações...
A minha aura cintila, na argamassa
da matéria, que vibra, em pulsações!

E nesta integração com a natureza,
sou fragmento do azul, sou luz, leveza,
sob a orquestra silvestre, a bailar, nua!

Sou — em véus diáfanos e brilhantes,
enluarada, em cores cambiantes —
crisálida... a espocar... à luz da lua!
****************************************

EGO

Eu, caprichosa como a natureza,
calma e sutil, ardente e impetuosa,
adoro a poesia, amo a beleza,
sou dedicada, meiga e carinhosa.

Às vezes, brisa leve e inesquecível
que acaricia a face, docemente!
Outras, tufão, que no furor terrível
tudo destrói, alucinadamente!

Triste, qual rola, que dolentemente
geme e soluça, aconchegada ao ninho,
vibro na dor e na alegria, ardente!

Um enigma vivo, mas que quer?
Tudo que sou, amor, ódio, carinho,
define-se na frase: Sou MULHER!
****************************************

INCÓGNITA

No mundo limitado que hoje vivo,
do homem hodierno e primitivo,
me debato em dor, conflito e medos,
a me esconder, em rápidos degredos!

E neste mundo, em que me sinto estranha,
aturdida e envolvida na artimanha
das trocas... Conformismo social!
Falo outra língua (pouca gente entende!)
Vivo outra vida, interiorizada.
Cultuo um ideal, que não se vende.
Vou mourejando a cruz pela escalada!

E entre erros e acertos, tropeçando,
sigo, a pagar pecados de outras vidas,
como água de cascata, depurando!
E então fico a indagar, com transcendência,
do ignoto passado e estranhas lidas,
que me trouxeram ao imo esta essência!

— Ó Deus meu, de que páramos eu vim,
de que caos, de que esfera?!... Que existência
anterior me fez tão cega assim?!
****************************************

MINHA CASA

Naquela rua — onde feliz, um dia,
me sentia rainha ao me apossar
do meu castelo de sonho e fantasia:
a casa que acabava de comprar! —

Entre fruteiras copadas e roseiras,
lá estava o antigo casarão.
E no imenso quintal, entre as mangueiras,
uma piscina ao sol, todo verão!

Hoje, porém, ao passar pela rua,
vejo a casa sombria, abandonada,
em ruínas, sem flores, frutos... Nua!

Fico tão triste ao ver a sua sina!
Pois eu que a amo... estou dela afastada!
Quem a possui... a maltrata e chacina!
****************************************

UMA ROSA SÓ

Em meio às flores
surgiste-lhe um dia
ofertando-lhe rosas
num sorriso gentil.
Entre mil amores
ela talvez seria
uma conquista a mais...
Mas no encontro de olhos,
encontraram-se almas!
E a verdade surgiu!
A verdade da vida.
A carne que atrai…
A mente que foge...
Volúpia... desejo...
ardor da paixão
que se acende num beijo!
A rosa na mão. ..
Cuidado com os dedos!
Segura, porém, com muita cautela,
que as pétalas no chão
não vão perfumar.
Precisa carinho...
amor... e ternura...
que a rosa que é pura
em troca terá
muito e muito pra dar.

Põe-na junto ao peito
e o teu coração
batendo... batendo...
a irá embalar!

E a rosa tão branca
de auréola dourada
de emocionada
vai se matizar.

E surgirá então,
por entre seus dedos,
um milagre de amor!
E uma rosa só
se transformará
de branca à rosa,
de vermelho à grená.
E, de uma apenas,
poderás, se quiser,
encontrar mil mulheres
numa única mulher!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.