segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Izo Goldman (Trovas Humorísticas) - 2 -


A cozinha da maloca
é tão baixinha e apertada,
que, na panela, a pipoca,
não pula... fica sentada!!!
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A mulher do carvoeiro
diz que o marido é uma... "graça".
pois faz fogo o dia inteiro
mas, de noite, é só fumaça…
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A noiva, por ironia,
na mala só vai levar
a camisola-do-dia,
que à noite... nem vai usar...
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Diz a vaga-lume ordeira
ao vaga-lume estouvado:
– Não me sentes na cadeira
que me queimas o estofado!...
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Diz ela, sem esperança:
– Toda noite eu armo o... "bote",
mas, quando tento a... "cobrança",
meu marido... dá o calote!
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Foi bem no peito a pedrada!!!
E o Manoel não gostou!!!
Vira pra trás, voz zangada,
e pergunta: "Quem jogou?...”
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Grita o ajudante "fiel"
ao pintor, lá na calçada:
– Se segura no pincel
que eu vou precisar da escada!
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Minha sogra está doente,
e o diabo apavorado!
Se ela morre de repente,
ele está desempregado!...
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Não melindre os portugueses!
Conte as piadas assim:
– Era uma vez dois chineses...
Manoel e Joaquim...
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O genro, com voz macia,
chama a sogra de... "Charada..."
Pensando: – Quem sabe um dia,
alguém "mata" a desgraçada!…
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Pergunta o pai bigodudo,
com a voz meio engasgada:
– Quem foi que pôs cola-tudo
no pote da marmelada?…
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"Pratos rápidos", dizia,
lá no boteco o cartaz;
e quando o prato saía,
o freguês corria atrás!!!
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Pulando do nono andar,
o otimista diz a alguém
que, no quarto, o vê passar:
– Até agora... tudo bem!!!
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Se a saudade fosse pão,
eu simplesmente poria
na porta do coração
esta placa:  "Padaria"!
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Tomou Viagra... Fracasso...
Foi cobrar de quem vendeu:
– E agora, como é que eu faço???
– Enterra! Que já morreu!!!
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Se a gente fosse dar crédito
ao que diz a maioria,
só de “autor de livro inédito"
tinha uns mil na Academia!...
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Vai bem o namoro, até
que o pai dela chega, e então,       
o garotão dá no pé
e a moça fica... na mão…
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Vai haver muito freguês
no dia em que alguém disser:
– ”Pague duas, leve três!!!”
e, o “produto”, for... mulher...
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"Vem aí um furacão!!!,
avisa a rádio, – Cuidado!!!"
E o genro, por precaução,
põe a sogra... no telhado!!!
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Vida de pobre é engraçada,     
ou é dura e divertida:
enquanto dança lambada,
leva “lambadas” da vida...

Fonte:
Izo Goldman. Trovas de quem ama a trova.

Marcelo Spalding (Cabra-cega)


O lápis encosta na folha branca, amassada, amarrotada, um tanto úmida, mas ainda branca. Lápis de grafite negro, de base comida, o negro do grafite deslizando na superfície machucada da folha. Ali caberiam sonhos, projetos, desejos. Maria poderia, com o negro do grafite e o branco da folha, amenizar o sofrimento da filha, dar-lhe conselhos, confessar seus crimes, protegê-la de seus próprios erros. Maria poderia apelar para algum antigo cliente, um vizinho, alguém haveria de acreditar nela e procurar um bom advogado, quem sabe até amenizar aquele sofrimento todo. Maria poderia contar de suas colegas de cela, as ameaças, as brigas, as noites insones à espera da primeira unhada, do primeiro abuso.

Mãe (estranho chamar você assim), prometi para o pai e para a vó que nunca ia te escrever, nunca mesmo. Mas desde que segurei o primeiro lápis e numa folha colorida escrevi meu nome, nosso nome, sempre esperei por este dia, o dia em que poderia escrever tudo o que ficou entalado aqui, tudo o que devia ter dito nas visitas que nunca te fiz. Por que, mãe, por quê? Porque se meter com essa gente, nos abandonar assim? O pai sofreu tanto! Tivemos de sair da cidade, disso você deve saber. E a cada um ou dois anos mudamos de lugar para não nos acharem. O pai tinha muito medo. Eu, nem tanto, perdi quem poderia ter me dado uma infância, você, e com isso perdi a vontade de acreditar, levantar, partir, voltar, esperar. Não espero mais nada, mãe, não espero te perdoar um dia, ouvir tuas razões, mas também não posso acreditar nas do pai. Não, não posso...

Apertando forte o grafite negro, Maria aos poucos faz uma linha grossa, marcada, passeia com o lápis de um lado para o outro. Ela não tem a pretensão de transformar aquelas linhas em palavras, nem traços, simplesmente rabisca e lembra o dia que marcou sua vida para sempre. O olhar da pequena, ainda com cinco aninhos, de mochila nas costas para mais um dia de aula, o latido estridente do cão tentando espantar os homens, o sumiço repentino do marido, para nunca mais. Poderia escrever tudo isso, mas Maria não teve a chance de aprender a escrever, nem tempo de aprender a ler.

Você não estava aqui pra ver meus primeiros cadernos, pra me ajudar na primeira menstruação nem pra conhecer meu primeiro namorado. Mas sabe, mãe, talvez tenha sido melhor a gente viver separada, assim eu vou pra sempre pensar que você é melhor do que realmente é. Posso imaginar que a prisão foi um erro, que você só piorou as coisas tentando fugir porque não aguentou ficar longe de mim, que o pai mentiu o tempo todo. Posso nos ver passeando de mãos dadas por um parque, você me ensinando o alfabeto, você me perguntando qual cor de batom eu prefiro. Nos sonhos a gente pode tanto...

Segura as páginas enviadas pela filha como se a pegasse no colo depois de anos. Pesam, e pesam mais que o bebê, mais que a menina deixada com o pai depois daquele dia. Preenche os espaços vazios das letras, faz um pingo no lugar do ponto do “i”, pinta com cuidado cada “o”, e finge que as letras são dela, as palavras são dela. Prefere assim, acredita que a sentença proferida por aquelas palavras seria mil vezes mais definitiva que a de qualquer juiz, tem certeza da condenação, da raiva que a menina sente pelos anos distantes. Aprendera a viver sem a filha, agora aprenderia a viver com suas folhas brancas manchadas pelo grafite negro, e as guardaria como tesouro.

O pai, você sabe, nunca foi um pai. E eu, nunca fui uma filha. Precisava de alguém para cuidar da casa, cozinhar, e outras coisas de homem. Homem é homem. Também nunca mais falava de você, aliás ele fala pouco, desconfiava dos vizinhos, da própria mãe, de mim. A vó morreu e não deixou saudades. Estivesse viva e eu não poderia escrever, não poderia te mandar essa carta como não pude mandar as outras tantas que escrevi desde os sete anos.

Um dia uma das colegas de cela perguntou o que estava escrito na carta. A resposta, simplória e inevitável, foi: não sei, não sei ler. A outra pegou o papel das mãos de Maria e com dificuldade leu a primeira linha, “mãe (estranho chamar você assim), prometi...”. Mas Maria gritava tanto, e tão alto, que logo vieram as monitoras e a confusão começou. Maria não queria que lessem a carta para ela, não queria saber o que estava escrito, tinha medo de cada uma daquelas letras, medo e fascínio. Talvez adivinhasse o final que a filha reservara para ambas.

Mas escrevo agora, mãe, para você saber que amanhã estaremos mais perto do que nunca. Sei que eu errei, sei que vou pagar caro, mas eu precisava me libertar, às vezes a prisão é nossa própria casa e as grades, nossos medos. Sempre tive medo de fugir e depois o pai me achar, me achar e depois me bater, me bater e depois... Sempre tive medo, e pensei em morrer, e pensei em matar. Agora, não mais. Agora está feito. E sei que mais cedo ou mais tarde, a gente vai se encontrar.    
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Marcelo Spalding é professor, escritor, editor e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.

Como professor, dirige a Metamorfose Cursos, que mantém a Oficina de Criação Literária Online e o Curso Livre de Formação de Escritores. Foi professor de Língua Portuguesa, Escrita Criativa, Jornalismo Cultural e Mídias Digitais na UniRitter, onde atuou como professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Letras, editor-executivo da Editora UniRitter e coordenador do Curso de Especialização em Produção e Revisão Textual. Como editor, dirige a Editora Metamorfose e já editou mais de 100 livros.

Como escritor, é autor dos livros 'Escrita Criativa para Iniciantes', 'As cinco pontas de uma estrela', 'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro', 'Minicontos', 'Mitos Virtuais' e 'Liga da literatura', além de organizador dos livros 'Contos de Som e Silêncio', 'Minicontos Coloridos', 'Metamorfoses', 'Diálogos', `Metamorfoses do Amor`, `Literaflix`, `Contos de Mochila`, entre outros. Recebeu três Prêmios AGES Livro do Ano e um Prêmio Açorianos de Literatura. É o idealizador do movimento Literatura Digital, tendo publicado dois projetos inéditos de literatura digital, 'Minicontos Coloridos' e o hiperconto 'Um Estudo em Vermelho'.


Fonte:
Site de Marcelo Spalding

Versejando 30


 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Versejando 29

 

Antônio Torres (Bodas e pêsames...)


Há duas situações sociais capazes de inspirar terror: a situação do noivo e a de representante da família de um defunto, logo depois da missa de sétimo dia. Um noivo, só por si, já é uma figura vagamente ridícula, pela maneira por que é pretendente: solicitando “a mão da noiva” por intermédio de terceiros; fazendo-lhe uma primeira visita, toda cheia de timidez e comoção, fiscalizado pelos pais ou pelos irmãos pequenos durante o tempo em que ele está na sala, no jardim, ou no alpendre com a prometida. Junte-se a esta carga de ridículo íntimo a sobrecarga das pompas mundanas de um casamento entre nós, e teremos a medida mais ou menos exata do constrangimento moral de um noivo, se ele é homem de sensibilidade. Eu não sei realmente como um homem não estoura de vexame, quando se mete com a noiva num landau enfeitado de flores de laranjeira e puxado por parelhas de cavalões brutais, de patas pintadas de branco e cheios de guizos e chocalhos e xiquexiques que fazem barulho de feira e recordam os palhaços que, no interior, saem à rua anunciando espetáculo no circo equestre. Casos desses justificam o suicídio...

Outra situação desesperadora é a de pessoas que convidam os amigos para ouvirem missa de sétimo dia por alma dos mortos queridos. Quer aqui no Rio, quer no interior, manda a etiqueta que, depois da missa, todos os convidados se aproximem das “pessoas da família” e as abracem. Começa, então, para cavalheiros e senhoras da família do defunto, um suplício de que não cogitou a Inquisição; abrir mecanicamente os braços, receber entre eles quem quer que se aproxime, apertar um pouco essa pessoa e dar-lhe nas costas as três palmadinhas do estilo, murmurando: “Muito obrigado”! Está bem visto que esses abraços nada significam de parte a parte, quanto à sinceridade; porque, em consciência, é impossível que quinhentas pessoas, sete dias depois da morte de um cidadão, de quem não são parentes, ainda estejam comovidas...

De maneira que essa etiqueta inquisitorial e ridícula só produz um efeito: ajuntar um tormento físico ao suplício moral da família. Eis por que compreendi perfeitamente a atitude de certa família de boa sociedade, que, convidando, há tempos, as suas relações para uma missa de sétimo dia, declarou nos convites que dispensava o abraço do costume; bastando que cada um dos assistentes deixasse o seu nome num livro adrede colocado à porta da igreja. Eis o que devia ser geralmente adotado; uma vez que o abraço é apenas a prova de que F. fez ato de presença, substitua-se o abraço pela assinatura num livro. Lucra a família, que se livra de uma tortura, e lucram os assistentes, que, depois de assinarem o nome no tal Registro de Pêsames, podem fugir tranquilamente à maçada de uma missa fúnebre.... Podemos ficar certos de uma coisa: é que, se se invertessem os papéis, quero dizer, se fôssemos nós que estivéssemos na cova, e se o defunto, que aliás não seria defunto, fosse à nossa missa de sétimo dia, faria o mesmo, isto é, assinava o nome na lista e fugia pela porta da sacristia...
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Antônio dos Santos Torres cursou Seminário, ordenando-se padre em 1908. Em 1911, depois de atritos provocados por artigos que escreveu, colocando-se contra a catequese de índios por sacerdotes estrangeiros, abandona a batina. Passa, então, a colaborar ativamente na imprensa carioca (O País, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, Revista ABC e A Notícia) e paulista (A Gazeta), tornando-se um dos mais veementes polemistas da imprensa brasileira. Também atuou na carreira diplomática, servindo como cônsul em Londres, Berlim e Hamburgo.
Como polemista, seus alvos principais eram a colônia portuguesa, o jornalista Paulo Barreto, o poeta Hermes Fontes, entre outros. Em As razões da Inconfidência (1925), descreveu o quadro da exploração a que os portugueses submeteram o Brasil. Apesar de não ter participado do Modernismo, contribuiu para desmoralizar os parnasianos e passadistas. Segundo Alfredo Bosi, "foi temperamento virulento e polêmico, de fundo moralista, no mais amplo sentido da palavra: daí sua prosa de historiador e de cronista, que persegue, no fato diário, as contradições e fragilidades da sociedade carioca da época". Seus livros de maior sucesso foram: Verdades indiscretas (1920), Pasquinadas cariocas (1921), Prós e contras (1922), As razões da Inconfidência (1925), etc.


Fontes:
Antônio Torres. Uma antologia. RJ: Topbooks, 2002.
Uol Educação (biografia)

Contos e Lendas do Mundo (O Pássaro Dourado)


Era uma vez, há muito tempo, num reino distante, havia um rei que tinha um pomar muito belo nos fundos de seu castelo. Nesse pomar havia uma árvore que produzia maçãs de ouro muito deliciosas. Quando as maçãs amadureciam eram contadas uma a uma. Certo dia o rei notou que faltava uma maçã e então deu ordem para que todas as noites alguém ficasse vigiando a macieira.

Esse rei tinha três filhos, príncipes herdeiros, e então enviou o maior deles, ao cair da noite, a vigiar o pomar e a árvore; porém, antes da meia-noite o jovem não se conteve de sono e adormeceu profundamente. Na manhã seguinte, ao despertar, notou que faltava uma maçã. Na noite seguinte o rei enviou o filho do meio a vigiar o pomar. E da mesma forma este não teve melhor sorte que seu irmão mais velho. Adormeceu antes mesmo da meia-noite e, quando despertou na manhã seguinte, notou que faltava uma maçã na árvore.

Terceira noite. Chegou a vez do menor, do caçulinha cuidar do pomar. O rei, porém, não botava muita fé no menorzinho e achava que aconteceria o mesmo com ele, e que não teria melhor sorte que seus irmãos mais velhos, motivo pelo qual não queria deixá-lo ir. O jovem, porém, pediu, implorou e insistiu tanto que o seu pai acabou consentindo. Então o caçula postou-se debaixo da árvore, ficou alerta, em vigília, e não deixou que o sono o vencesse. Ficou de olhos bem abertos e vigiando a macieira.  

À meia-noite, como era noite enluarada, ele ouviu um grande barulho no ar e viu um grande pássaro voar ao redor da árvore - suas penas eram de ouro puro e brilhavam sob a luz do luar. O pássaro pousou na macieira e bicou uma maçã. Ao fazer isso o príncipe caçula pegou o estilingue e atirou-lhe uma pedra. O pássaro voou com a maçã no bico mas, atingido na cauda, deixou cair uma pena dourada.

Na manhã seguinte o caçula levantou-se, pegou a pena e levou-a ao rei, e contou-lhe o que vira durante a noite. O rei então reuniu os sábios do seu reino e todos foram unânimes em dizer que uma pena de ouro daquelas era raríssima, mais cara que todo o seu reino. Então o rei lhes disse:

"Se uma pena assim é tão valiosa, então de nada me adianta ter apenas uma pena dourada. Eu quero o pássaro todo, vivo."

No dia seguinte o pai chamou o filho mais velho e enviou-o em busca da ave. Ladino, pôs-se a caminho em busca do pássaro de ouro, acreditando que logo o acharia. Mal havia andado alguns quilômetros quando, ao entrar em uma floresta, viu uma raposinha à beira do caminho.

Preparou a espingarda e mirou. A pobre raposinha suplicou:

"Por favor, não me mate. Eu vou lhe dar um bom conselho: Você está em busca do pássaro dourado, não é mesmo?  Pois bem, hoje à tarde, antes mesmo do por do sol, você irá chegar a uma aldeiazinha. Logo na entrada, na primeira rua dessa aldeiazinha você verá duas pensões - uma diante da outra. Uma delas estará toda iluminada e com música alta. Lá só tem folia e algazarra. Não entre nessa não. Vá à outra, do outro lado da rua, mesmo que ela tenha um aspecto horrível – mas essa é boa."

E o príncipe pensou consigo:

"Só se eu fosse muito bobo pra seguir um conselho dessa raposa tola...”

E assim pensando, apertou o gatilho da espingarda mas errou o alvo e não acertou a raposinha que esticou a cauda e os pelos e correu para dentro da floresta. Então o príncipe continuou seu caminho. Ao cair da tarde, chegou a uma aldeiazinha onde havia duas pensões, uma em frente da outra.  Numa delas, só música, festa, folia e bagunça e, na outra, silêncio e um aspecto não muito agradável aos olhos.

E pensou consigo:

"Eu seria um tolo se eu me hospedasse naquela espelunca feia que mais parece uma favela e cemitério...”

E assim dizendo, entrou na casa onde imperava a bagunça e a folia. E viveu a vida comendo e bebendo, dançando e gastando tudo.  Esqueceu-se do pássaro, do seu pai e de tudo de bom que havia aprendido.

Como o tempo se passou e o filho mais velho não retornava, o pai enviou o filho do meio. Este se pôs a caminho em busca do pássaro dourado.  E, da mesma forma como acontecera com o seu irmão mais velho, encontrou a raposinha à beira do caminho, a qual deu-lhe conselhos. Porém ele não a ouviu. Chegando àquela aldeiazinha viu, pela janela da casa de folia, seu irmão bebendo e dançando. E lá dentro só algazarra. Seu irmão o chamou. Ele entrou e também levou a vida só no bem-bom.

Passou-se o tempo e, como nenhum dos dois irmãos retornava, o caçula quis partir em busca do pássaro de ouro, porém seu pai não botava fé nele e não queria deixá-lo partir. Então o rei, seu pai, falou-lhe:

"É inútil. Se seus irmãos não encontraram o pássaro dourado, você não terá melhor sorte... Você é muito pequeno... “

E tanto insistiu, e implorou o caçula, que o rei acabou consentindo na sua partida.

No caminho, logo na entrada da floresta, o príncipe-caçula encontrou a raposinha a qual disse-lhe que se não a matasse ela lhe daria bons conselhos. O caçula gostava de animais e adorou a raposinha, e disse-lhe:

"Fique tranquila, raposinha bonitinha, eu não vou causar-lhe mal algum... Eu não vou matar você não..."

E a raposinha disse-lhe:

"Meu nome é Sabedoria. Seguindo meus conselhos você não irá se arrepender... E para que você chegue mais depressa, suba às minhas costas."

Nem bem o jovem havia subido às costas da raposinha esta correu como um raio, passando sobre paus e pedras, até que chegaram àquela cidadezinha. O jovem príncipe desceu e, sem olhar para os lados, seguiu o bom conselho da raposinha. Pernoitou na casa feia, porém sossegada e limpa por dentro, e adormeceu tranquilamente.

Na manhã seguinte, ao prosseguir seu caminho, deparou-se novamente com a raposinha à beira do caminho, a qual lhe disse:

"Eu quero continuar lhe ajudando, aconselhando e dizendo o que você deve fazer. Vá sempre em frente, direto e reto, sem olhar para os lados, até que você irá chegar a um castelo diante do qual há um batalhão de soldados, deitados. Mas não se preocupe, pois todos eles estão dormindo e roncando. Passe por entre eles, entre no castelo e vá até o último quarto. Dentro desse quarto você irá encontrar o pássaro dourado dentro de uma gaiola velha, de madeira, pendurada na parede. Ao lado dessa gaiola de madeira estará uma outra gaiola, de ouro maciço, porém vazia; tome cuidado! Não pegue o pássaro de ouro e o coloque na gaiola dourada. Se você fizer isso algo de mal irá lhe acontecer...."

Após dizer-lhe essas palavras, a raposinha abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta correu tanto que até o vento zunia e assobiava.

Chegando ao castelo o caçula encontrou tudo conforme a raposinha lhe havia dito. O príncipe foi até o quarto onde o pássaro dourado estava dentro de uma gaiola de madeira. Notou que, ao lado, pendurado na parede, havia uma gaiola de ouro.

Então ele pensou:

“Até parece uma piada.... Já pensaram ! Eu levar um pássaro de ouro em uma simples gaiola de madeira e deixar aqui uma gaiola de ouro...??? Brincadeira, né???... . “

Assim pensando, abriu a gaiola de ouro e colocou o pássaro dourado nela.

No mesmo instante o pássaro dourado começou a piar e a grasnar muito forte e alto acordando todos os guardas do castelo, e fugiu da gaiola. Os guardas do castelo entraram correndo no quarto, prenderam o príncipe caçula e o lançaram na cadeia.

Na manhã seguinte ele foi levado a julgamento e condenado à morte.  Porém, o rei daquele castelo disse-lhe que poderia dar-lhe uma chance e salvar-lhe a vida se lhe trouxesse o cavalo de ouro e de crina branca, o qual era mais veloz que o vento e, ainda por cima, poderia ganhar de presente o pássaro e a gaiola de ouro.

Triste e desconsolado o príncipe pôs-se a caminho. Mas, onde encontrar o cavalo de ouro?  Pensando nisso ele viu sua amiga raposinha, à beira do caminho, a qual lhe disse:

"Viu só? Eu não lhe falei? Você não seguiu meus conselhos... Tudo isso lhe aconteceu porque você não deu ouvidos aos meus conselhos... Mas, coragem. Você terá outra chance. Eu vou lhe mostrar como conseguir o cavalo dourado. Você deve seguir direto e reto esse caminho, sem olhar para os lados nem para trás, até que você irá chegar a um castelo onde encontrará o cavalo dourado em um estábulo. Diante do estábulo você verá, deitados, muitos guardas, mas não se preocupe, pois eles estarão dormindo e roncando. Passe por entre eles, entre na estrebaria, pegue o cavalo e parta a galope. Mas, cuidado! Coloque sobre ele a sela feita de madeira e couro e não a feita de ouro que estará pendurado ao lado, senão algo de ruim irá lhe acontecer”.

Após dizer-lhe essas palavras, a raposinha abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta corria tanto que até o vento zunia e assobiava.  Chegando ao estábulo o caçula encontrou tudo conforme a raposinha lhe havia dito. Foi até onde o cavalo de ouro estava, com uma sela de madeira e couro.  Pendurada, ao lado, havia uma sela de ouro puro.

Então ele pensou:

“Até parece uma piada.... Já pensaram ! Eu levar um cavalo bonito e alazão como esse com uma simples sela de madeira e couro velho?... E deixar aqui uma sela novinha de ouro?   Brincadeira, né ?...”

Assim pensando, rechaçou a sela velha e colocou a de ouro no alazão. No mesmo instante o cavalo começou a relinchar tão alto e forte que acordou todos os guardas do castelo, os quais vieram e prenderam-no levando-o diante do rei.

Depois o jovem príncipe foi posto na cadeia.

Na manhã seguinte ele foi levado a julgamento e condenado à morte. O rei daquele castelo, porém, disse-lhe que poderia dar-lhe uma chance e salvar-lhe a vida se lhe trouxesse a princesa que morava no castelo de ouro. Se trouxesse a princesa poderia levar de presente o cavalo e a sela de ouro.

Muito triste e com o coração angustiado o jovem pôs-se a caminho em busca do castelo de ouro e da princesa que nele morava. Por sorte ele logo encontrou no caminho a fiel raposinha, que lhe disse:

"Eu deveria abandoná-lo à sua própria sorte, mas eu tenho pena de você e quero ajudá-lo mais uma vez. Siga esse caminho direto e reto, sem olhar para os lados nem para trás. Ao entardecer você irá chegar a um castelo dourado. Ao soar meia-noite, quando tudo estiver em silêncio, a princesa sairá para nadar na piscina. Então, assim que ela entrar na piscina, mergulhe também e beije-a. Então ela irá seguir você. Porém não a deixe despedir-se e beijar os pais, porque se você deixá-la fazer isso, algo muito ruim irá lhe acontecer."

Após dizer-lhe essas palavras, a raposinha abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta corria tanto que até o vento zunia e assobiava.

Quando o príncipe chegou ao castelo dourado encontrou tudo conforme a raposinha lhe havia dito. Esperou dar meia-noite e, quando tudo estava calmo e silencioso a jovem e bela princesa foi até a piscina, entrou, e logo a seguir o príncipe mergulhou e deu-lhe um beijo. Ela disse-lhe então que havia gostado dele, que o amava, e que gostaria de ir embora com ele, porém, antes teria que despedir-se de seus pais. Ele, lembrando-se dos conselhos da raposinha, disse que não. Mas ela tanto chorou e implorou e beijou-lhe tanto que ele acabou consentindo que ela se despedisse dos pais.

Logo que a jovem princesa entrou no quarto de seus pais, que estavam dormindo, beijou-os, e estes despertaram. Acordaram também todos que estavam dormindo no castelo. Houve uma gritaria e o jovem foi preso e colocado na cadeia.

 Na manhã seguinte o rei daquele castelo disse-lhe:

"Sua vida está por um fio, mas você poderá salvá-la se conseguir retirar esta montanha que está diante do meu castelo, montanha difícil de ser transposta e que me impede de ver o outro lado do meu reino. Mas veja bem, você tem que fazer isso no prazo de oito dias. Faça isso e você terá a mão de minha filha em casamento."

E o príncipe começou a cavar, a retirar terras, paus e pedras da base  da montanha que ficava diante do castelo. E trabalhou, e trabalhou e, no sétimo dia não havia feito muitos progressos, tinha retirado pouca terra. Cansado e exausto, caiu, desanimado e desesperançado, chorou.

Ao entardecer do sétimo dia apareceu novamente a raposinha sua fiel amiga e disse-lhe:

"Você não merece que eu o ajude pois foi desobediente e não seguiu meus conselhos. Última chance. Deite-se e durma ali na grama que eu vou fazer esse serviço em seu lugar”

E começou a cavar.

Na manhã do oitavo dia, quando o rei acordou e olhou pela janela, a montanha havia desaparecido. Por seu turno, feliz da vida, o jovem príncipe correu ao castelo e disse ao rei que agora este teria de cumprir a palavra e a promessa e dar-lhe a mão da princesa em casamento. Então, alegres e felizes, partiram ambos, príncipe e princesa, em uma carruagem muito bonita, puxada por seis cavalos brancos.

Não demorou muito, a raposinha apareceu-lhe no caminho e falou:

- "O melhor você já conseguiu, mas acontece que o cavalo dourado  também é da princesa do castelo de ouro..."

- "Mas como eu poderei pegá-lo?” - perguntou o príncipe.

- “Eu vou lhe explicar. Primeiramente você apresenta ao rei daquele castelo a princesa que ele lhe pediu. Então haverá uma grande alegria naquele castelo e irão lhe dar o cavalo dourado com a sela dourada. Despeça-se de todos no castelo, um por um, e deixe de despedir-se da princesa por último. E, quando você for abraçar a princesa, agarre-a, coloque-a no cavalo e parta a galope dali, pois ninguém conseguirá pegá-los porque o cavalo dourado é mais rápido que o vento."

E tudo aconteceu exatamente assim. Após pegar o cavalo, a sela e a princesa, partiu a galope. No caminho encontrou a raposinha que lhe disse:

"Agora irei ajudá-lo a conseguir o pássaro dourado. Quando você se aproximar do castelo onde o pássaro dourado vive, apeie do cavalo dourado e o conduza até o interior do castelo. Ao virem o cavalo dourado, haverá grande alegria naquele castelo e então irão lhe trazer o pássaro dourado na gaiola dourada. Quando você estiver com o pássaro e a gaiola na mão, monte no cavalo, pegue a princesa e parta dali a galope, pois ninguém conseguirá pegá-los porque o cavalo corre mais rápido que o vento."

E tudo aconteceu exatamente assim. Após pegar o cavalo, a sela, o pássaro dourado e a princesa, o príncipe partiu a galope.

No caminho encontrou a raposinha que lhe disse:

"Então, como você já conseguiu tudo que queria, agora é hora de você me recompensar pela ajuda que lhe prestei.”

"O que você quer em troca ? “ Perguntou o príncipe.

"Quando entrarmos na floresta, mate-me; decepe-me a cabeça e as patas.”

E o príncipe disse:

"Mas isso seria uma ingratidão de minha parte... Isso eu não farei.”

A raposinha falou:

"Então eu não poderei mais continuar do seu lado. Se você não fizer isso eu vou lhe abandonar; antes, porém, vou lhe dar mais um conselho: Não compre corpo de enforcado ou espancado e nem sente-se à beira de poço."

Após falar isso a raposinha entrou na floresta.

Então o jovem príncipe, pensou:

"Mas que bicho estranho essa raposinha... Tem cada mania estranha… Quem iria comprar carne enforcada? E também nunca me passou pela cabeça e nem tenho vontade alguma de sentar-me à borda de algum poço...."

E assim pensando, ao lado da jovem princesa, cavalgando, continuou em direção ao castelo de seu pai. No caminho teve que passar por aquela cidadezinha na qual haviam ficado na bagunça seus dois irmãos mais velhos. Havia ali um tumulto e barulheira infernais.

Perguntando sobre o que estava acontecendo, soube que dois rapazes seriam enforcados. Ao se aproximar mais, viu que eram seus dois irmãos que estavam sendo espancados e iriam ser enforcados porque haviam cometido muitos crimes naquele vilarejo e contraído muitas dívidas. Então ele perguntou ao carrasco se podia resgatá-los e libertá-los, ao que o carrasco respondeu:

"Pagando bem, que mal tem… "

O príncipe deu-lhes uma pena de ouro e seus irmãos foram libertados; ambos subiram em uma carruagem e se puseram em marcha rumo ao castelo do velho rei e pai.

Chegaram novamente à floresta onde haviam visto a raposinha pela primeira vez. Os irmãos mais velhos viram um poço e, como estavam com sede, disseram:

"Pare a carruagem, deixe-nos descansar um pouco aqui à beira desse poço e beber água... "

O jovem príncipe, bobinho, consentiu. Conversa vai, conversa vem, sentou-se à beira do poço e esqueceu-se dos conselhos da raposinha. Os seus dois irmãos então empurraram-no para dentro do poço, pegaram a jovem princesa, o cavalo, a sela, o pássaro dourado e a gaiola e partiram pra casa, em direção ao castelo. Lá chegando, disseram ao velho rei e pai:

"Pai, não trouxemos somente o pássaro dourado, mas também a gaiola dourada, o cavalo dourado, a sela dourada e a princesa do castelo de ouro."

E a alegria naquele castelo foi imensa. Muita festa.  

O cavalo, porém, não queria comer, o pássaro não queria cantar e a jovem princesa ficava sentada a um canto, triste e chorando.

Entrementes, ao cair no poço, o jovem príncipe não morrera. Por sorte o poço estava seco e ele caíra sobre um lodo macio, sem se machucar, porém não conseguia subir porque o poço era muito fundo. Gritando e pedindo por socorro, a raposinha, sua fiel amiga, não o abandonara, veio em seu socorro, estirou-lhe a cauda e retirou-o do fundo do poço e disse-lhe para não se esquecer dos seus conselhos, acrescentando:

"Eu não posso abandoná-lo, eu tenho que mostrar toda a verdade."

Após dizer-lhe essas palavras a raposinha disse-lhe que o levaria até o castelo de seu pai. Abaixou-se, o jovem príncipe subiu-lhe às costas e esta corria tanto que até o vento zunia e assobiava.

A caminho do castelo a Sabedoria lhe dizia:  

"Você não está totalmente livre do perigo - seus irmãos não estão seguros de que você tenha morrido, por isso enviaram bandidos a lhe procurar pela floresta para então dar cabo de sua vida. Portanto, não se deixe notar.”

Então o príncipe encontrou um mendigo pelo caminho, vestido com farrapos, e com ele trocou as roupas, motivo pelo qual, ao chegar ao castelo de seu pai não foi reconhecido. Só que, lá dentro do castelo, nesse exato momento, o pássaro dourado começou a cantar, o cavalo começou a comer e a bela princesa parou de chorar. Notando a mudança repentina, o rei perguntou:

“O que significa isso???”

E a jovem princesa respondeu:

"Eu não sei... Eu estava tão triste e depressiva e de repente fiquei alegre... É como se meu verdadeiro noivo estivesse por perto... “

Apesar de os dois irmãos malvados terem-na ameaçado de morte, caso contasse ao rei a verdade, ela relatou ao rei o que de fato havia acontecido e o modo como os dois irmãos mais velhos procederam com o caçula.

O rei chamou e reuniu todas as pessoas de seu reino e, dentre elas estava o jovem príncipe em trajes de mendigo. A jovem princesa logo o reconheceu, beijou-o, lançou-se ao seu pescoço e o abraçou. Os irmãos malvados foram julgados e expulsos do reino. O jovem príncipe casou-se com a bela princesa e herdou todo o reino e os tesouros.

Mas, o que aconteceu com a raposinha?  

Certa vez, estando o príncipe e a princesa passeando pela floresta depararam-se com a raposinha, a qual lhe disse:

"Agora você está feliz e possui tudo que desejava. A minha sorte, porém ainda não está completa e está em suas mãos resolver meu problema."

E tanto ela insistiu que o jovem príncipe decepou-lhe as patinhas e a cabeça. Logo a seguir a raposinha transformou-se em um belo e forte rapaz. Para surpresa de todos, esse jovem era ninguém mais que o irmão da jovem princesa e que havia sido enfeitiçado por uma bruxa malvada e transformado em raposinha. Desfeito o encanto, voltaram para o castelo e viveram felizes para sempre. O príncipe, a bela princesa e a Sabedoria.

Fonte:
Blog da Professora Telma Régia Soares Bezerra = Contar e Encantar.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Versejando 28


 

Varal de Trovas 469

 


Arthur de Azevedo (Um capricho)


Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viúvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e sobretudo, muito caprichosa. Chamava-se Zulmira.

Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito.

Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai.

A moça exigiu dois dias para refletir.

Vencido o prazo, respondeu:

- Consinto, sob uma pequena condição.

- Qual?

- Que o seu nome seja impresso.

- Como?

- É um capricho.

- Ah!

- Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça.

- Mas isso é a coisa mais fácil...

- Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua.

Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou:

- Arranje-se!

E repetiu:

- É um capricho.

Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa.

Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome.

Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha.

Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência.

Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez!

"Consta-nos que o Revmo. Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte."

"O Ilmo. Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos."

"Tem chovido bastante estes últimos dias", etc.

Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu:

"O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria."

Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas...

Mas não foi publicada.
* * *

O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro.

- À Corte! À Corte! – dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas*, há de ser impresso o meu nome!

E veio para a Corte.

Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo:

- Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante.

- Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome?

- Epidauro Pamplona.

O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança.

- Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome.

Queria ver-se livre dele. No dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume.

Epidauro não desesperou.

Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes.

- Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona.

E foi levar cinco mil-réis à redação.

Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu:

Epifânio Peixoto 5$OOO

Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO.

Saiu:

"Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc.

Está fechada a subscrição."
* * *

Uma reflexão de Epidauro:

Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona...

E era.

Daí, talvez, o capricho de Zulmira.
* * *

Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente.

Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Não seja tolo."
* * *

Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar.

Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio.

Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido:

- O seu nome?

- Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira.

O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal:

- Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente – que cedeu a alguma rapaziada.

Ele quis protestar.

- Eu sei o que isso é! – atalhou o oficial. – De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos.

E noutro tom:

- Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias.

- Mas...

- Descanse, o seu nome não será publicado.

Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido.

O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia:

- Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho!
* * *

Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo!

A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome!
* * *

Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública.

O resultado seria publicado no dia seguinte.

E, com efeito, foi: "Houve um reprovado."

Era ele!

Tudo falhava.
* * *

Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo.

Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém.

A última tentativa não foi a menos original.

Epidauro lia sempre nos jornais:

"Durante a semana finda, S.M. o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc.

Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.

- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa Majestade, e saio.

Mandou fazer casaca, mas no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama.
* * *

Voltemos a Mar de Espanha:

Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas.

Entra um pajem.

Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio.

A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona.

– Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho.

É no obituário:

"Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. – Febre perniciosa."

O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta:

- Coitado! Foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
_____________________
* fás ou por nefas - por bem ou por mal.
  
Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis. Publicado em 1889.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 8


dois loucos no bairro

um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
* * * * * * * * * * * * * * * *  

bate o vento eu movo
volta a bater de novo
a me mover eu volto
sempre em volta deste
meu amor ao vento
* * * * * * * * * * * * * * * *  

hoje o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher linguiça
entre um triunfo e um waterloo
* * * * * * * * * * * * * * * *  

você
que a gente chama
quando gama
quando está com medo
e mágua
quando está com sede
e não tem água
você
só você
que a gente segue
até que acaba
em cheque
ou em chamas
qualquer som
qualquer um
pode ser tua voz
teu zum-zum-zum
todo susto
sob a forma
de um súbito arbusto
seixo solto
céu revolto
pode ser teu vulto
ou tua volta
* * * * * * * * * * * * * * * *  

esperas frustras
vésperas frutas
matérias brutas
quantas estrelas
custas?
* * * * * * * * * * * * * * * *  

oração de pajé

que eu seja erva raio
no coração de meus amigos
árvore força
na beira do riacho
pedra na fonte
    estrela
        na borda
             do abismo
* * * * * * * * * * * * * * * *  

dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de glauber
ter sempre uma cabeça cortada a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos normais
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor
delícia
de experimentador
* * * * * * * * * * * * * * * *  

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
* * * * * * * * * * * * * * * *  

como um coto caro ao roto
incrédulo tiago
toco as chagas
que me chegam
do passado
mutilado

toco o nada
aquele nada que não para
aquele agora nada
que tinha
a minha
cara

nada não
que nada nenhum
declara tamanha danação

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.

Carina Bratt (O violento silêncio de um novo recomeço)


Depois que a nossa vida foi completamente destruída, seja por desfazimento de um casamento, pela perda do emprego onde ganhávamos razoavelmente bem, pelo falecimento de algum ente querido, ou qualquer outro item que eu não tenha citado neste pequeno rol, como recomeçar? Muitas e muitas vezes nos quedamos diante dos escombros com esta indagação entalada na goela: como recomeçar?

Existe alguma cartilha, ou um truque para se tirar de dentro de uma cartola (como os ilusionistas, nos palcos da vida circense, um buquê de flores, ou uma pombinha branca, ou via igual, da manga da blusa, um pacote de dinheiro, para saldarmos todas as nossas dívidas e começarmos do nada, ou seja, do zero?). A resposta é NÃO.

Na verdade, não colocaram, ao nosso dispor, para consultas rápidas e rasteiras, nenhum dispositivo prático —, um modelo livre de trapaças —, um livreto padrão, correto e sem erros, bonitinho e bem elaborado, bem escrito, explicando, com todos os passos corretos para serem seguidos, à risca, e vencermos as dificuldades e intempéries.

Quando nos pegamos acabadas, literalmente no fundo do poço, estraçalhadas, nada vem em nosso socorro, a não ser os destroços de nós mesmas. Grudados neles, o estupor de um silêncio pesado e denso, que nos fere, que nos machuca, que nos leva às raias da neurastenia. Nestas horas, diante do espelho do nosso destino, contamos somente com a nossa coragem, ou com o que dela sobrou intacta.

Tentamos nos reerguer, nos levantarmos do tombo dos fracassos e dissabores (sejam eles, quais forem). Enfim, arriscamos, aventuramos, ousamos sair ilesas da vida abrupta, despedaçada, juntando os caquinhos, um por um, aqui e ali, depois e acolá, colando de volta, num trabalho de pacienciosidade (tipo as formiguinhas), até completarmos todo o mosaico dos nossos sonhos destruídos.

A reconstrução é difícil, penosa, cansativa, por vezes temerária. Às vezes, levamos anos e anos para nos aprumarmos, até vermos de novo, diante de nossa estupefação, os horizontes brilharem à frente de nossos percalços e estorvos, incômodos e entojos, irritações e achaques.

Cair é fácil. Basta estarmos em pé. Tropeçar, idem. Um simples descuido, um cochilo, um desvario e pimba, damos com tudo no rés do chão. Difícil é levantarmos, notadamente se não tivermos um alicerce, um suporte à altura de nosso tombo. Geralmente (dependendo do baque, as feridas, as contusões e as lesões produzidas por este declínio), arranjamos feridas profundas, mágoas difíceis de serem cicatrizadas.

Apesar dos pesares que surgirem, ou que nos vierem molestar, não importam as avarias produzidas. Temos, nestas horas, a obrigação, o dever, a tarefa imperativa de sermos fortes o bastante, robustas o suficiente para nos colocarmos em posição de luta e de peleja. Encararmos o porvir e, partirmos com tudo, para a guerra.

Quando falamos em guerra, devemos esclarecer que a vida é um eterno conflito de interesses, onde concebemos matar um inimigo oculto a cada dia. Os antagonistas encobertos e clandestinos são muitos e os mais diversificados. Apesar destas pedras no meio do caminho, jamais pensamos ou imaginamos em desistir das refregas, das contendas e das repressões.

Em mente, sempre, a ideia auspiciosa de sacudirmos a poeira das roupas. O anfêmero* nos ensina, a duras penas, que nunca deveremos desistir do combate. Vencer e vencer se tornou, não só uma saída à nossa volta mas, sobretudo, uma trilha aberta no meio do nada, nos impondo mecanismos de defesa para o enfrentamento diante da vida madrasta.

Neste tom, ainda que aos trancos e barrancos, seja rastejando, capengando, pulando numa perna só, temos que ter a iniciativa, a dignidade, o senso prático de nos aprumarmos. Mantermos a cabeça erguida, os sentidos a todo vapor e partirmos em busca dos objetivos almejados.

Em tempo algum jogarmos a tolha, ou darmos meia volta, fugindo das agruras e ensombramentos que vierem nos fazer frente, grosso modo, nos peitar. Ainda que tudo esteja a nosso desfavor ou que o dia a dia se apresente esquisito e tenebroso, nada de desânimos. Bola pra frente. Chutar pra gol é a meta, o propósito, a ambição, acima de qualquer outra coisa.

As vias pelas quais teremos que nos embrenhar estão diante de nossos narizes, aguardando a nossa coragem, a nossa valentia, a nossa ousadia e, claro, estas rotas contam com o nosso apetite voraz de engolirmos cada adversidade revestida de um espectro mal acabado que, porventura, venha pintar no pedaço, intencionando a se meter a besta com a nossa obstinação de vencermos e sermos novamente felizes. Temos, todas nós, o direito líquido e certo de sermos felizes.

O avejão* que nos rodeia está por aí, à solta. Belo e folgado. É uma aparição sem voz, sem rosto, sem braços e pernas. Apesar de uma completa manquitola, fará de tudo para nos impedir de seguirmos adiante, em busca do nosso sucesso. Todo recomeço não deixa de ser um afronte, um agravo à nossa sensibilidade feminina.

E nós, como Mulheres com ‘M’ Maiúsculo, o Belo Sexo, o Encanto da melhor parte da maçã, não poderemos jamais ser capachos desta ou de qualquer outra infâmia que se nos apresente com agressividade, imposições, brutalidades ou descomedimentos imoderados. Nascemos para os reveses, renascemos das cinzas, viemos de um Universo Divino prontas e aptas para sermos completas e felizes. Surja, pois, o que surgir, haja o que houver, ainda que chova canivetes, TEREMOS O MUNDO INTEIRO AOS NOSSOS PÉS.
_____________________
Vocabulário:
Anfêmero – cotidiano.
Avejão – espectro, assombração, fantasma.


Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Versejando 27

 

O Voo da Gralha Azul

 











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O Voo da Gralha Azul (Um Blog exclusivamente de Trovas)



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Rubem Braga (A primeira mulher do Nunes)


Hoje, pela volta do meio-dia, fui tomar um táxi naquele ponto da Praça Serzedelo Correia, em Copacabana. Quando me aproximava do ponto notei uma senhora que estava sentada em um banco, voltada para o jardim; nas extremidades do banco estavam sentados dois choferes, mas voltados em posição contraria, de frente para o restaurante da esquina. Enquanto caminhava em direção a um carro, reparei, de relance, na senhora. Era bonita e tinha ar de estrangeira; vestia-se com muita simplicidade, mas seu vestido era de um linho bom e as sandálias cor de carne me pareceram finas. De longe podia parecer amiga de um dos motoristas; de perto, apesar da simplicidade de seu vestido, sentia-se que nada tinha a ver com nenhum dos dois. Só o fato de ter sentado naquele banco já parecia indicar tratar-se de uma estrangeira, e não sei por que me veio a ideia de que era uma senhora que nunca viveu no Rio, talvez estivesse em seu primeiro dia de Rio de Janeiro, entretida em ver as árvores, o movimento da praça, as crianças que brincavam, as babás que empurravam carrinhos. Pode parecer exagero que eu tenha sentido isso tudo de relance, mas a impressão que tive é que ela tinha a pele e cabelos muito bem tratados para não ser uma senhora rica ou pelo menos de certa posição, deu-me a impressão de estar fruindo um certo prazer em estar ali, naquele ambiente popular, olhando as pessoas com um ar simpático e vagamente divertido. Foi o que me pareceu no rápido instante em que nossos olhares se encontraram.

Como o primeiro chofer da fila alegasse que preferia um passageiro para o centro, pois estava na hora de seu almoço, e os dois carros seguintes não tivessem nenhum chofer aparente, caminhei um pouco para tomar o que estava em quarto lugar. Tive a impressão de que a senhora se voltara para me olhar. Quando tomei o carro e fiquei novamente de frente para ela, e enquanto eu murmurava para o chofer o meu rumo – Ipanema – notei que ela desviava o olhar; o carro andara apenas alguns metros e, tomado de um pressentimento, eu disse ao chofer que parasse um instante. Ele obedeceu. Olhei para a senhora, mas ela havia voltado completamente a cabeça. Mandei tocar, mas enquanto o velho táxi rolava lentamente ao longo da praia eu fui possuído pela certeza súbita e insistente de que acabara de ver a primeira mulher do Nunes.

– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse uma vez um amigo.

– Você precisa conhecer a primeira mulher do Nunes – me disse outra vez outro amigo.

Isso aconteceu há alguns anos, em São Paulo, durante os poucos meses em que trabalhei com o Nunes. Eu conhecera sua segunda mulher, uma morena bonitinha, suave, quieta – pois ele me convidara duas vezes a jantar em sua casa. Nunca me falara de sua primeira mulher, nem sequer de seu primeiro casamento. O Nunes era pessoa de certo destaque em sua profissão e afinal de contas um homem agradável, embora não brilhante. Notei, entretanto, que sempre que alguém me falava dele era inevitável uma referência à sua primeira mulher.

Um casal meu amigo, que costumava passar os fins de semana em uma fazenda, convidou-me certa vez a ir com eles e mais um pequeno grupo. Aceitei, mas no sábado fui obrigado a telefonar dizendo que não podia ir. Segunda-feira, o amigo que me convidara me disse:

– Foi pena você não ir. Pegamos um tempo ótimo e o grupo estava divertido. Quem perguntou muito por você foi a Marissa.

– Quem?

– A primeira mulher do Nunes.

– Mas eu não conheço …

– Sei, mas eu havia dito a ela que você ia. Ela estava muito interessada em conhecer você.

A essa altura eu já sabia várias coisas a respeito da primeira mulher do Nunes; que era linda, inteligente, muito interessante, um pouco estranha, judia italiana, rica, tinha cabelos castanho-claros e olhos verdes e uma pele maravilhosa – “parece que está sempre fresquinha, saindo do banho”, segundo a descrição que eu ouvira.

Quando dei de mim eu estava, de maneira mais ingênua, mais tola, mais veemente, apaixonado pela primeira mulher do Nunes. Devo dizer que nessa ocasião eu emergia de um caso sentimental arrasador – um caso que mais de uma vez chegou ao drama e beirou a tragédia e em que eu mesmo, provavelmente, mais de uma vez, passei os limites do ridículo. Eu vivia sentimentalmente uma hora parda, vazia, feita de tédio e remorso; a lembrança da história que passara me doía um pouco e me amargava muito. Além disso minha situação não era boa; alguns amigos achavam – e um teve a franqueza de me dizer isso, quando bêbado – que eu estava decadente em minha profissão. Outros diziam que eu estava bebendo demais. Enfim, tempos ruins, de moral baixa e ainda por cima de pouco dinheiro e pequenas dívidas mortificantes. Naturalmente eu me distraía com uma ou outra historieta de amor, mas saía de cada uma ainda mais entediado. A imagem da primeira mulher do Nunes começou a aparecer-me como a última esperança, a única estrela a brilhar na minha frente. Esse sentimento era mais ou menos inconsciente, mas tomei consciência aguda dele quando soube que ela ganhara uma bolsa esplêndida para passar seis meses nos Estados Unidos. Senti-me como que roubado, traído pelo governo norte-americano. Mas a notícia veio com um convite – para o jantar de despedida da primeira mulher do Nunes.

Isso aconteceu há quatro ou cinco anos. Mudei-me de São Paulo, fiz algumas viagens, resolvi parar mesmo no Rio – e naturalmente me aconteceram coisas. Nunca mais vi o Nunes. Aliás, nos últimos tempos de nossas relações, eu me distanciara dele por um absurdo constrangimento, o pudor pueril do que ele pudesse pensar no dia em que soubesse que entre mim e a sua primeira mulher… Na realidade nunca houve nada entre nós dois; nunca sequer nos avistamos. Uma banal gripe me impediu de ir ao jantar de despedida; depois eu soube que sua bolsa fora prorrogada, depois ouvi alguém dizer que a encontrara em Paris – enfim, a primeira mulher do Nunes ficou sendo um mito, uma estrela perdida para sempre em remotos horizontes e que jamais cheguei a avistar.

Talvez fosse mesmo ela que estivesse pousada hoje, pelo meio-dia, na Praça Serzedelo Correia, simples, linda e tranquila. Assim era a imagem que eu fazia dela; e tive a impressão de que seu rápido olhar vagamente cordial e vagamente irônico tentava me dizer alguma coisa, talvez contivesse uma espantosa e cruel mensagem: “eu sei quem é você; eu sou Marissa, a primeira mulher do Nunes; mas nosso destino é não nos conhecermos jamais…”

Fonte:
Revista Manchete. RJ. Outubro de 1957

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 7 –

Augusto Gil
Porto, 1873 – 1929, Lisboa

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE

Ao charco mais escuso e mais imundo
chega uma hora no correr do dia
em que um raio de sol, claro e jucundo,
o visita, o alegra, o alumia;

pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
nesta contínua e intérmina agonia,
nem tenho uma hora só dessa alegria
que chega às coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
a movimentam vossas mãos leais
num aceno impulsivo e repentino,

sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! não é um seixo que esmagais;
olhai que é – o coração de um homem!...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Camilo Pessanha
Coimbra, 1867 – 1926, Macau

CAMINHO (I)

Tenho sonhos cruéis: n’alma doente
sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
do peito afugentar bem rudemente,
devendo, ao desmaiar sobre o poente,
cobrir-me o coração de um véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d’harmonia,
toda a luz desgrenhada que alumia
as almas doidamente, o céu d’agora,

sem ela o coração é quase nada:
um sol onde expirasse a madrugada,
porque é só madrugada quando chora.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Eugênio de Castro
Coimbra, 1869 – 1944

A COROA DE ROSAS

A fim, oculto amor, de coroar-te,
de adornar tuas tranças luminosas,
uma coroa teci de brancas rosas,
e fui pelo mundo afora, a procurar-te.

Sem nunca te encontrar, crendo avistar-te
nas moças que encontrava, donairosas,
fui-as beijando e fui-lhes dando as rosas
da coroa feita com amor e arte.

Trago, de caminhar, os membros lassos,
acutilam-me os ventos e as geadas,
já não sei o que são noites serenas...

Sinto que vais chegar, ouço-te os passos,
mas ai! nas minhas mãos ensanguentadas
uma coroa de espinhos trago apenas!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Fausto Guedes Teixeira
Lamego/Alto Douro, 1871 – 1930, ????

EU QUERO OUVIR O CORAÇÃO FALAR

Eu quero ouvir o coração falar
e não os homens a falar por ele!
Enquanto a gente fala, há de parar
no peito a vida estranha que o impele.

Independente à forma de o expressar,
o sentimento existe, e ai daquele
coração triste que se julgue dar
na cerração em que a palavra o vele.

Astro no peito, é sobre a língua chaga.
Dizer uma alegria ou um tormento
é um mar em que sempre se naufraga.

Era a essência de Deus vista e atingida!
Se é a força da vida o sentimento,
fez-se a palavra pra mentir a vida.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

José Duro
Lisboa, 1875 – 1899

DOR SUPREMA

Onde quer que ponho os olhos contristados
– costumei-me a ver o mal em toda a parte –
não encontro nada que não vá magoar-te,
ó minh’alma cega, irmã dos entrevados.

Sexta-feira santa cheia de cuidados,
livro d’Ezequiel. Vontade de chorar-te...
E não ter um pranto, um só, para lavar-te
das manchas do fel, filhas de mil pecados!...

Ai do que não chora porque se esqueceu
como há de chamar as lágrimas aos olhos
na hora amargurada em que precisa delas!

Mas é bem mais triste aquele que olha o céu
em busca de Deus, que o livre dos abrolhos,
e só acha a luz das pálidas estrelas...

Fonte:
Sergio Faraco (org.) Livro dos sonetos: 1500-1900. Porto Alegre/RS: L&PM, 2016.

Rachel de Queiróz (Terra nova)


Diz que certa vez o duque de Windsor, em Paris, foi visitar a exposição que lá fazia Portinari e se interessou por comprar um quadro:

―  O senhor não terá alguma pintura de flores?

E Candinho, botando o seu olho azul e irônico no ex-rei:

―  Não senhor. Só tenho miséria.
*

Assim me sinto hoje em dia. Queria escrever uma história gentil, contando a adaptação de uma família pau-de-arara que deixou as asperezas da catinga nativa pelas grandezas de São Paulo. Mas não saem flores, só sai miséria.

Começa o caso com o embarque de trem no Quixadá, em procura do Crato, ponto final da linha de ônibus para São Paulo.

Mas passemos por alto essa viagem de quatrocentos e tantos quilômetros no trem superlotado, atrasado, descarrilado; a chegada ao Crato já tarde da noite, a procura de pensão, as crianças chorando, as trouxas perdidas, nem uma porta aberta onde se comprasse uma bolacha.

Passemos, ah passemos ainda mais por alto a viagem de ônibus, três mil e quatrocentos quilômetros através da Transnordestina e depois a Rio-Bahia e depois a Via Dutra. Tudo são dores e enjoo, calor e poeira, sacolejos e esperas de dias quando há um prego, sempre no maior desconforto, sem falar na saudade e no medo da mudança, que isso já nem são desconfortos, são metafísicas. E a gente queria contar uma história gentil.

Depois vem a chegada em São Paulo.

Foi Ribamar, o irmão, que numa loucura de generosidade mandou chamar a tribo toda, incluindo a mãe viúva, os irmãos casados, a mana solteira e os dois sobrinhos órfãos. Pagou as passagens, mas não os pôde esperar na estação. O ônibus não tem hora de chegada, quando muito tem um dia, e isso não contando os pregos. Felizmente o Ribamar teve a ideia de mandar em carta o número do telefone de um botequim de onde o poderiam chamar por favor na obra em que trabalhava.

Mas aí veio o problema de falar no telefone, coisa que ninguém da família sabia. E de onde telefonar? O Eliseu, o mais velho e mais expedito, teve a ideia de perguntar a um passante se ele sabia onde é que ficava aquele telefone. O paulista aí gozou a besteira do baiano, e o Eliseu foi se danando, porque para começo de conversa ele não é baiano, nunca teve parente baiano e até não gosta muito de baiano. Mas o paulista depois de gozar um pouco, mostrou a sua boa vontade e deu o telefonema, chamando o Ribamar. Que mandou a família esperar com paciência na rodoviária, enquanto ele tomava condução e os alcançava. Se acomodaram mal e mal pelos bancos da estação e ficaram esperando. Horas, horas. Cansados, com fome. E o frio? Frio aliás já vinha ocupando lugar importante na vida deles, penetrando os uniformes de brim dos homens, os vestidos delgados das mulheres, desde que haviam começado a escalar as altitudes de Minas Gerais. E agora ali na cidade, enquanto uma garoa fina começava a penetrar o ar escuro, o frio passava pelos panos de algodão como luz pelo vidro, furava a pele e ia morder os ossos.

Afinal apareceu o Ribamar ―  de óculos escuros, blusão de couro, quem visse dizia que era um aviador. Falando animado, mas sentia-se que estava um pouco tonto com aquele povaréu todo que lhe caía assim às costas, nove pessoas!

Como é que ia botar tudo no quartinho de aluguel que arranjara numa favela improvisada pros lados da Cantareira, por nome a Nova Bahia?

Aliás, segundo explicava um carioca lá residente, o povo só chama aquilo de favela é por ignorância. Porque favela, em linguagem do Rio, quer dizer morro, paisagem, arquitetura de passarinho e não aqueles barracos sujos entre a lama e o alagadiço. Favela é berço de samba, que o carioca dizia. Mas o pessoal deu para chamar favela a tudo que é acampamento de pobre e depois do diário da Carolina ficou por favela mesmo e pronto. Ninguém pode com literatura.

A tia da namorada do Ribamar arranjara-lhe um cartão de matrícula para a família na seção de empregos das Obras Sociais de São Jorge.

Mas caridade particular, quando é feita em escala muito larga, vira igual coisa de governo: se burocratiza. As moças da Obra têm muita boa vontade, fazem as cartas de recomendação solicitando emprego às firmas, mas não vão saber se as cartas são atendidas, não é mesmo?

Seria impossível acompanhar cada pobre. Ver se o bilhete é recebido. Se o hospital tem leito vago. Se há vaga de emprego.

Organiza-se uma imensa máquina para trabalhar pelo amor de Deus ― mas parece que Deus não gosta de máquinas. Ademais, os caminhos de Deus são tão difíceis. Quem faz o gesto já acha que fez muito. E acaba ficando tudo na formalidade da apresentação — depois se entrega a Deus. E parece que até Deus se cansa.

Fica o coitado andando de Pilatos a Herodes, com o cartãozinho da Obra. Quando os homens do emprego desenganam logo, ainda bem, mas quando ficam cozinhando com pouco fogo ― venha amanhã, venha depois, só passadas cinco horas, amanhã não que é sábado, segunda também não, pensando bem só na terça... E o pobre tomando condução pra lá e pra cá, e gastando sapato, e paciência, e esperança... Ai, só quem sente sabe.

No fim foram vendo que só podiam contar com eles mesmos, e como eram nove, não incluindo o Ribamar, era afinal bastante gente.

Quem primeiro se empregou foi mesmo o Eliseu. Numa construção. Imagine quem toda a vida foi vaqueiro, no costume de não carregar nem o próprio corpo, pois só andava montado, virar servente de pedreiro, com o mestre a toda hora gritando pela massa, e o pobre de chouto com a lata na cabeça. Já estava de moleira baixa de tanto carregar peso.

E ainda se dava por feliz porque sendo ele o primeiro a se empregar, foi a bem dizer também o único. Os outros ainda estão na mão. A Zuila se colocou de aprendiz num salão de manicure, mas sem salário. O Francisquinho está pensando em sentar praça para ter caderneta de serviço militar. Os pequenos precisam é de escola. A velha, quando arranja o quê, cozinha. E tudo comendo, vestindo, andando, gastando calçado e condução. E tirando de onde?

O Ribamar que o diga — já vendeu o blusão de couro, os óculos, e empenhou o relógio.

Ai, São Paulo é muito bom, mas cidade grande é fogo. E o Ceará tão longe! E ainda por cima ser tratado de baiano.
*

Desculpem. Mas eu não disse que só tinha miséria?

Fonte:
O Cruzeiro. RJ: 16 jun 1962

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Versejando 26

 

Varal de Trovas 468

 


Fernando Sabino (Ocasiões de ficar calado)


— Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?

— Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?

Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:

— Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...

E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:

— Terrível, não acha?

Mas ele não pensa assim:

— Não acho não: sou o atual marido dela.

A consciência de que a gafe em geral se compõe de duas partes distintas. Ficar sempre na primeira, jamais tentar consertar. Ao contrário da Loteria Federal, não insista, desista! Eis o que eu, empedernido praticante, tenho a aconselhar aos meus companheiros de infortúnio. A gafe é vertiginosa e se faz anteceder de uma espécie de aviso, antecipa-se na sensação de que caminhamos no ar, como num desenho animado:

— Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?

— Não posso, sou a dona da casa.

Ou esta outra, mais comum ainda:

— Com aquela mulher ali eu não dormia nem de graça.

— Aquela mulher ali é a minha esposa.

Se o infeliz acrescentar que neste caso dormia sim, não estará apenas caindo de quatro: estará se precipitando no abismo da mais imperdoável inconveniência, que vem a ser a repetição literal de uma velha anedota.

São gafes tradicionais, decorrentes em geral das relações de parentesco ou dos encontros de circunstância, a que os mais insensatos como eu raramente escapam. Não há como resistir ao poder magnético dos assuntos traiçoeiros, que vão espalhando armadilhas a cada passo, e nos levam sempre a falar em corda justamente na casa do enforcado.

Se sabemos que a gafe é irreversível, por que tentamos teimosamente remendá-la, afundando-nos cada vez mais?

É que ela nem ao menos é sincera. Fôssemos autênticos e verazes na convivência, a gafe se desarmaria ao peso de sua própria legitimidade. E deixaria de ser gafe.

Foi essa, pelo menos, a solução encontrada por um amigo meu, vítima também dessa maldita sina, e que ontem me dizia ter-se conformado, passando a praticá-la deliberadamente.

— Você é parente dele? Que horror!

— Morreu? Meus parabéns.

— Não sei como você, tão simpática, pode ter um marido tão chato.

— Fui cair logo ao seu lado neste banquete, mas veja só que azar o meu.

— Aliás, pelo que eu soube, a senhora não é tão velha quanto parece.

— Não aguentei ler até o fim. Ah, foi o senhor que escreveu? E ainda tem coragem de confessar?

Com isso, ele passou a ser considerado homem do mais fino espírito — excêntrico, desconcertante, é verdade — mas de esmerada educação. Apesar de tudo, outro dia recebeu o troco que lhe era devido, funcionando desta vez como receptor de uma gafe, ao dizer a uma jovem, que está escrevendo um romance: a história de um mau-caráter. 
 
E ela, inocentemente:

— Autobiográfico?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 4 –


A mão do bem que nos rege,
mostra-nos gestos de amor,
até na mão que protege
a inocência de uma flor!
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Amor de mãe, que esplendor,
ó, que divino mister...
Deus pôs a essência do amor
no coração da mulher!
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À noite, o que me conduz,
me acompanha e me rastreia,
é o tênue raio de luz
da solidão da candeia!
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Cantas preso, canarinho
consolando a tua dor!
Eu também canto sozinho
preso às redomas do amor!
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Contra o Sol, não há censura
e, ao bom pintor se assemelha,
quando pinta com ternura
a aurora, de cor vermelha!
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Daquele amor tão risonho
que moldou nosso roteiro...
Guardo o derradeiro sonho
como se fosse o primeiro!
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De volta à tapera antiga,
ouço uma voz que à distância,
era a mesma voz amiga
que eternizou minha infância!
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Feliz, não dá passos vãos
a lua, era seu caminhar,
enquanto, entrelaça as mãos
na barba branca do mar!
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Minha fronte encanecida,
já, pelo tempo, aos borralhos,
põe as auroras da vida
nos meus cabelos grisalhos!
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Não há estação perdida
para quem no amor se esmera!
Quem ama o outono da vida,
vive a eterna primavera!
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No aceno das horas mansas,
vejo na humilde casinha,
da infância, as ricas lembranças
da pobre mansão que eu tinha!
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O amor, em seus embaraços,
e às vezes, com seus desvãos...
Entrelaçou nossos braços
e amordaçou nossas mãos!
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O mar, de fatos e lendas
quando se zanga e se alteia,
se joga em lençóis de rendas
e espicha os braços na areia!
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O poeta, em suas cantigas,
em noites calmas, dá provas
de esquecer queixas antigas,
cantando as mágoas mais novas!
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O poeta e o passarinho,
são parecidos demais:
Quanto mais longe do ninho
mais cantam tristes seus ais!
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O sino desperta o sono
da tarde que silencia,
enquanto a lua sem dono
enche a noite de poesia!
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O tempo é roda fremente
num parque de diversões,
moendo os sonhos da gente
nessa roda de ilusões!
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Que ingratidão tão mesquinha,
que ausência de amor e brilho,
viver a mãe tão sozinha
ao lado do próprio filho!
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Quem contempla o amor, percebe
e, a todo instante, deduz...
Que, em tudo quanto recebe,
há uma centelha de luz!
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Quem crê na fé, na alegria,
não torna seus sonhos vãos.
Pois, cada mão que nos guia,
tem digitais de outras mãos!
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Se a cruz pesar mais, descreve
o que dela se deduz:
Que tudo quanto se deve,
Deus põe nos braços da cruz!
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Se for falta de agasalho,
ou porque não tenho escolha,
a escolha do meu trabalho
se agasalha em qualquer folha!
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Se o amor é cego e reclama,
reclama sem sentir dor;
quando um cego acende a chama,
é um feliz cego de amor!
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Tuas juras, sempre vãs,
compromissos de ninguém,
são velhas juras pagãs
ferindo o orgulho de alguém!
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Vejo que teus velhos braços
mantém a mesma medida,
com que mediste os meus passos
na primavera da vida!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Monteiro Lobato (Toque outra)


— ORA TOQUE, Sinhazinha, toque!

— Mas eu não sei...

— Não faz mal, toque assim mesmo, não se faça de rogada. Aquela valsinha...

A pálida menina geme novos luxinhos faceiros, torce os pingentes da almofada e por fim levanta-se, toda dengues, a desculpar-se.

— Vou errar tudo, não tenho estudado há muitos dias, estou esquecida...

— Não faz mal, toque!...

Sinhazinha senta-se ao piano, folheia a maçaroca de músicas e preguiçosamente abre diante de si uma valsa de Aurélio Cavalcanti. E toca: blem, blem, belelém...

A sala então, que só por aquilo esperava, afunda na conversa. O barulho do piano, abafando o tom geral da palestra, dá azo à delícia dos duos, em que cada um pega de cochicho com quem mais o atende. As matronas, donas de casa, caem no assunto dileto — os criados!

— Ai, os criados! Que gente, prima! Que pestes! Não fazem “isto” sem uma pessoa estar em cima; se vão a compras, roubam no troco... E não se lhes diga uma palavrinha! Pedem a conta e dizem desaforos, os demônios...

As meninas rodeiam o moço, que impa como um galo e desdobra o farnel da banalidade tão cara às mulheres; todas ouvem-no atentas, bebem-lhe os ditos, riem das suas pilhérias, acham-no “levado”.

Titinha diz, sorvendo-o com os olhos:

— Este seu Raul é mesmo da pele!

Num desvão da janela cochicha-se um namoro; a das Dores conta à do Carmo que não gosta mais do Luisinho por umas certas coisas que viu no último baile. Do Carmo comenta, sentenciosa:

— Os homens! Os homens!...

Duas em outro canto riem perdidamente, em casquinadas argentinas. Nisto Sinhazinha acaba a valsa. A sala dá pela coisa, interrompe a tagarelice e pede mais:

— Muito bem, Sinhazinha, muito bem! Toque outra!...

Sinhazinha ataca uma scottish.

A sala retoma os temas interrompidos.

— Mas... como eu ia contando...

Impossível negar as vantagens sociais da música.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas. s/d.