terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Adega de Versos 63: Maria do Rosário Bessas

 

Sammis Reachers (A garganta do Topete)

Sim, essa é outra história de nosso querido Paulo Paixão, o homem que vive em apuros.

No tempo de Fagundes, Paulo fazia o chamado turno duplo. Após a primeira pegada ou etapa, os carros eram levados para a Ilha da Conceição, em Niterói, onde se localizava uma garagem de apoio da empresa.

Bem, diversos motoristas largavam ao mesmo tempo, e juntos se dirigiam para o bairro de Ponto Cem Reis, onde pegavam o ônibus para a garagem do bairro Laranjal, em São Gonçalo, para prestar conta da féria arrecadada.

Pois lá foi o Paulo, junto a diversos cobradores e motoristas, dentro de um ônibus da linha Apolo x Niterói. Naquela hora da manhã, só haviam leões (rodoviários) dentro do ônibus. Paulo sentou-se num dos bancos da frente. Do outro lado do salão sentou-se o motorista Márcio, conhecido popularmente como Topete.

Falador, Topete logo sacou um enorme celular, e começou a contar vantagem:

- Tá vendo esse celular aqui, Paulinho? Achei ontem! Olha aí, que pancadão! Bluetooth, WiFi, autofalante potente.... Fui ver nas Casas Bahia: um celular desses custa uma grana, mano!

Realmente o celular era, à época, de último modelo, com todas as melhores funcionalidades que a tecnologia permitia. Paulo apenas observava, em silêncio.

Pois então eis que, aproximando-se o veículo da altura do bairro de Novo México, se levanta um indivíduo que estava sentado logo no banco grande lá da frente, até então apenas ouvindo a história que estava sendo contada às suas costas. Ele olha para Topete e Paulo, saca uma arma e aponta para... Paulo.

- Você aí! Perdeu, mané! Me passa o celular de que você tá falando aí!

Paulo, pego de surpresa, ainda tentou argumentar, ao perceber que o ladrão imaginara ser ele quem falava do tal celular:

- Eu? Mas meu celular é velhinho e está com defeito...

O malandro não acreditou e apanhou o celular que Paulo apresentou.

- O dinheiro, agora me dá o dinheiro!

- Mas eu não tenho dinheiro. Eu sou motorista e trabalho com cobrador, e não fico com o dinheiro.

Enquanto todo esse diálogo transcorria, o presepeiro do Topete já havia escondido seu poderoso celular. Vendo que Paulo não tinha mais nada para perder, e satisfeito por ter ganho o celular, o malandro puxou a cigarra (campainha) e desceu no ponto do Novo México, sem roubar mais ninguém, deixando para trás alguns passageiros bastante assustados.

Quanto ao sacana do Topete, ele ria baixinho, feliz por o indivíduo ter confundido o Paulo com ele. Já o nosso querido Paulo, lendário sofredor que, de "bucha", perdera seu velho Motorola "tijolão", estava desconsolado...

Só mais um detalhe: O celular de Paulo, que o malandro levara achando tratar-se de um último modelo, além de velho, estava com defeito: o miserável só falava no viva-voz.

Pobre Paulo. E pobre ladrão.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Olivaldo Júnior (Cristais Poéticos) = 3 =

ALMA LIVRE

Livre, a alma sopra onde quer,
seja homem, seja mulher,
como se fosse uma bolha
e tivesse a própria escolha
uma outra forma de ser.

Sou como Deus manda,
ou como roda a ciranda,
que giramos todos na mesma
indefinível roda da vida,
que viver é que é mesmo preciso.

Preciso ser livre, penso,
mas meus pés por vezes
têm chumbo nos vãos
dos meus dedos e, doido,
doído, dolorido, vão,
me perco da própria mão,
desvãos.

Livre, a alma sopra, mas
nem sempre supre
o que lhe cabe suprir.

Suprassumo de mim,
sem perder minha essência,
descubro isso enfim:
que sempre fui essencial...
para mim.
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CARRO DE BOIS

Para o artista plástico Paulo Reis


Foi no meu carro de bois
que passei a minha vida,
sem pensar no que depois
iria vir: a partida.

A partida é quando rangem
minhas pálpebras de dor,
inda que muitos não manjem
ao me verem todo em cor!...

Lá no meu carro de bois,
éramos minha alma e eu
como se fôssemos dois...

Como se fôssemos reis
de uma estrada que cresceu
das tintas de suas leis!
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NÃO PERTURBE
(or Do not disturb)


Não, amor, não me perturbe.

As estrelas já se achegam
e se fazem de colchão
para os meus ossos,
tão cansados de esperar
a mais pura e fluida
água dos seus poços...

Não, amor, não me perturbe.

Essa noite é uma criança,
e eu sou feito um sacizinho,
que, distante do seu bando,
nada faz senão, sozinho,
pitar seu cachimbo
e chorar.

Não, amor, não me perturbe.

Sem notar o seu reflexo,
mirando a mim mesmo
nas águas de tanta ilusão,
"narcísico" ao extremo,
me encanto com a flauta
nada mágica da razão
e raciono-me a poesia,
o encantamento
a que teria direito.
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UMA LUA DE PRESENTE

Para a amiga Patrícia*


De presente, no quintal da minha amiga,
uma lua se insinua e lhe pergunta
onde é que anda o seu amigo, onde fica
a casa dele, e faz que não assunta,
mas assunta, só pra ver se ela lhe conta
onde é que mora quem faz de conta
que o amor não conta, mas conta muito
para ele.

Para ele, que foi passarinho em outra
encarnação, em outra forma de ser,
em outra vida, em outra página, outra
história a ser escrita com seu viver...

A lua, lá no céu, de presente, sorri,
se insinua um pouco mais e pede
que minha amiga lhe diga se ali,
onde há pouco ele esteve, é que
ficou seu rastro poético,
seu rastro de estrelas,
o que todo bom poeta
deixa ao entrevê-las,
ainda que nem saiba,
ainda que nem caiba
em sua própria órbita.
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Poema escrito a partir de fotografia enviada por Patricia de Campos Occhiucci

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UMA ORQUÍDEA COMO AQUELA

Para a amiga que me mandou a foto de sua orquídea cattleya


No quintal daquela amiga,
com a cigarra e a formiga,
entre várias borboletas,
ou monarcas, ou plebeias,
uma orquídea cattleya
espreita o dia.

Espreita o dia,
que é feito a rósea poesia
de suas pétalas,
artimanhas poéticas
para ver se algum inseto
vem ter com elas
seu colóquio amoroso,
honra aos poetas.

Não, o quintal dessa amiga
não é uma floresta tropical,
mas guarda um ar especial
para que uma flor que intriga
seu sonho enfim prossiga
e se mostre, gloriosa, linda,
no quintal daquela amiga!

Fonte:
Poemas enviados pelo autor.

Isabel Furini (O Natal de Antônia)


Éramos vizinhos. Morávamos no bairro Portão, em Curitiba. Ninguém tinha família por perto. Ocupávamos um predinho de três andares. Pintura amarela escancarada. No térreo e no primeiro andar, lojas, e no segundo andar, quitinetes de vinte metros quadrados enfileiradas ao longo do corredor externo, mal iluminado. Os moradores eram um espetáculo digno de menção, a começar pelo Zé Cervejinha, todo mundo o chamava assim, ninguém lembrava o seu verdadeiro nome. Zé Cervejinha ganhou esse apelido porque nunca ficava feliz com uma garrafa. E antes das 23 horas lá vinha ele, subindo as escadas vagarosamente, com os olhos apertados, a camisa desabotoada e um bafo insuportável. Atravessava o corredor cambaleando, mal conseguia colocar a chave na fechadura. Às vezes era auxiliado pelo Yoga (assim chamado porque era praticante). Ninguém lembrava o seu nome, para todos era Yoga. Sua quitinete cheirava a incenso. Só sabia falar de espiritualidade. Não era má pessoa, não. Sua irmã, Dalmira, que ocupava a quitinete úmida e escura do final do corredor, essa sim era mais perigosa do que cascavel. Uma língua afiada. Ela decidia. Ordenava. Controlava.

Na outra quitinete, Luciano, um moreno simpático que estava doente. A quitinete cheia de plantas era de Ramona, a velha setentona que havia se esquecido de morrer, como todos diziam. Sempre vestia blusas estampadas de cores berrantes e saias indianas para fingir alegria e descontração. Coitada! Nunca escutara um “eu te amo” na sua vida. Nunca fora esposa, nem mãe, nem sequer noiva. Os pais morreram e ela ficou sozinha, sem profissão, sem família, um eterno lamento. Ela dizia que a depressão não a abandonava, o problema real era que ela se sentia tão sozinha que não abandonava a depressão. Na quitinete contígua, duas lésbicas pareciam felizes. Eram muito prudentes, quase não falavam com ninguém.
               
Nas duas quitinetes maiores, dois vizinhos que não participaram da festa: a viúva – com seus cabelos que chegavam até a cintura e sua saia que nem deixava ver os tornozelos – enfatizou que não celebrava o Natal porque era festa pagã; e um advogado obeso e fracassado, que foi passar as festas no litoral.

E nesse Natal nos reunimos. Estávamos todos sozinhos, menos as lésbicas, é claro. Elas tinham muitas amigas para festar. Somou-se à trupe estranha a ruiva sardenta. Era muito alta e esquelética. Havia nascido em Matinhos, mas morava em São Paulo, comprou a quitinete para relaxar da cidade grande nos feriados. Tentava vender imagem de triunfadora. Enganou, a princípio, mas em pouco tempo os vizinhos foram notando que a triunfadora que havia morado em Nova York e havia voltado ao Brasil buscando seu próprio lugar, não era assim tão triunfante.  O cabelo vermelho fogo não dava para confundir com o natural. Tinha cara de ratinho assustado, e toda sua pose de mulher livre e soberana não conseguia esconder. Dizia ter dezenas de amigos, reconhecimento profissional e homens querendo casamento. Papo furado! Em um final de semana chegou com um rapaz um pouco mais jovem do que ela. Cara de safado. Ninguém gostou dele. Cheirava a trapaça. Só veio uma vez. Cansou-se rápido da tranquilidade do bairro. E a pobre ruiva voltou a ficar sozinha com seus sonhos.

E nesse Natal nos reunimos. Zé Cervejinha, Delmira, Yoga, a velha Ramona, Luciano, as lésbicas, a ruiva e eu. O Yoga ficou encarregado das compras, era um constante ir e voltar do mercado. No forno da Delmira, um leitão. A velha cozinhava um peru. A ruiva se dedicou a preparar saladas exóticas e arroz. As lésbicas fizeram várias sobremesas. Eu, que sou uma nulidade para a culinária, ajudei a descascar batatas e a cortar tomates.

Os homens colocaram as mesas, com toalhas muito brancas, enfileiradas no longo corredor e, entre uma cervejinha e outra, encheram os balões coloridos que foram pendurados no teto. A ruiva colocou uma árvore de Natal pequena, carregada de enfeites sobre um banco de madeira, no final do corredor. Por fim, tudo ficou preparado para a festa. Cada um trouxe sua cadeira e sentamo-nos, sorridentes, ao redor das mesas. Apesar do leitão bem dourado, do peru – com as asas torradas – das saladas com molhos desconhecidos, das cervejas, dos refrigerantes, das piadas, dos risos, cada um de nós cheirava a naftalina e a solidão. Era como se estivéssemos num barco à deriva. Água por todos os lados. Só céu e água. Marinheiros em um mar inacabável, parecia que seríamos engolidos pelas ondas das lembranças. Delmira alternava as críticas, ora criticava o primeiro marido, ora o segundo. Yoga pronunciava frases bonitas, Zé falava das festas no Rio de Janeiro e da ex-esposa que tinha um amante, a velha tinha o olhar sem vida, Luciano queixava-se de dor na coluna vertebral, a ruiva tentava manter a pose... com sua carinha de rato.
               
De repente os fogos de artifício preencheram o céu de cores. Todos nos levantamos das cadeiras, alguns ficaram apoiados na varanda. E eu olhei o céu e vi essa cascata vermelha, azul e laranja, linda. Lindíssima! Depois desci os olhos para olhar essa trupe vagabunda. A solidão dançava sobre nossas testas. Estávamos reunidos e cada um de nós estava sozinho, segurando-se nos destroços do barco – uma madeira, um pedaço de convés, um fragmento de armário, a perna de uma mesa. Tentávamos nos manter flutuando. O barco havia naufragado. Estávamos reunidos nesse Natal e éramos um grupo de náufragos arrastados pelas correntes do viver. O Natal já não mais renovava os sonhos. Havia perdido sua magia.

Jaqueline Machado (O sentido do Natal)

O termo Natal tem origem na palavra do latim “natalis” que, por sua vez, é derivada do verbo nascer (nāscor). O Natal representa o nascimento de Jesus e, também, o nosso próprio renascimento. Renascimento de todos que desejam dissipar mágoas, vícios e tristezas para vivenciar uma nova jornada, cheia de luz e de esperança.

O Natal teve origem em festas pagãs da antiguidade, onde muitos romanos celebravam a chegada do solstícios de inverno e cultuavam o Deus Sol, que no sincretismo das culturas religiosas atuais, simboliza Jesus Cristo para os seguidores do cristianismo e o Orixá Oxalá, na fé umbandista.

A escolha da data foi determinada pelo Papa Julius I (337-352) e, mais tarde, foi declarada feriado nacional pelo Imperador Justiniano, em 529.

O natal, também é sinônimo de muitos simbolismos. O principal deles é o presépio que foi montado pela primeira vez por São Francisco de Assis, no  século XIII, na Itália, com a intenção de recriar a cena do nascimento de Jesus para explicar ao povo como e onde teria nascido o messias. Já o simbolismo do pinheiro enfeitado, foi idealizado por Martinho Lutero, o principal personagem da Reforma Protestante, que montou a primeira árvore iluminada de luzes em sua casa. A figura do natal é inspirada no bispo São Nicolau que costumava deixar moedas próximas às  chaminés das famílias mais pobres. São Nicolau se tornou popular e deu lugar ao aspecto que hoje conhecemos do Papai Noel, que em vez de moedas, deixa presentes às crianças que se comportam bem ao longo do ano. E a Santa Ceia teria surgido na Europa, onde as pessoas costumavam deixar a porta das suas casas abertas para receber viajantes.
    
Ela simboliza a união e a confraternização das famílias. Assim, na véspera de Natal, os familiares se reúnem à mesa para a tradicional ceia.

Essa data também faz lembrar a mensagem trazida pelo livro de Charles Dickens, o famosíssimo “Um Conto de Natal” que conta a história de  Ebenezer Scrooge, um homem de negócios, egoísta, avarento que não se relacionava bem com ninguém, e não gostava das festividades natalinas, até que certa noite, ele recebe a visita do fantasma de seu falecido sócio, Jacob Marley, que avisa ao antigo amigo que outras três assombrações aparecerão para ele: o Espírito dos Natais Passados, o Espírito do Natal Presente e o Espírito dos Natais Futuros. Segundo Marley, o ex-sócio, esses três fantasmas são a única esperança para Scrooge escapar do terrível destino que está reservado para ele.

Os espíritos chegam sucessivamente e levam o velho ranzinza a uma viagem pelo tempo e pelo espaço, com a intenção de fazer com que Scrooge mude sua opinião sobre o Natal depois de ver exemplos de amor e a família dele e a de um seu funcionário comemorando a data com muita simplicidade e união entre si. Depois disso, ele passa a valorizar o que realmente vale a pena na vida. A partir desses eventos, o velho torna-se bom e passa a praticar ações solidárias entre todos que dele se aproximam. Pois o sentido do natal é justamente esse, renovar-se, espalhar amor e alegria.

Salve essa doce magia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 540

 

Lima Barreto (Fim de um sonho)

Foi mesmo um sonho, mergulhado no qual vivi cerca de três meses, meu caro. Durante eles, sonhei dia e noite. De dia, então eu nada percebia com nitidez. A luz do sol, dura e crua, me era estranha, feria-me, fazia-me mal. Discernia com dificuldade as fisionomias e as coisas. Eu me havia transformado em um animal noturno muito especial que só pode viver em luz elétrica. Só, sob incidência dessa luz artificial, é que o mundo das coisas e dos entes saía, para os meus olhos, da bruma, das trevas, da hesitação de formas; fora daí, houvesse o mais radiante sol que houvesse, tudo era pastoso, turvo e mal tomavam corpo e figura as vidas e os objetos.

Erguia-me sempre tarde, porque me deitava alta madrugada. Vinha para casa em automóvel que o clube punha à minha disposição. Metia-me no quarto da pensão chique, que era hermeticamente fechado como convém a essas pensões, e arejado astuciosamente pelo rodapé e pelo teto. Dormia até às três horas, tomava banho e almoçava quando os outros iam jantar. Saía à boca da noite, fazia horas pelos botequins até ir jantar num restaurante do centro e, depois, encaminhava-me para o clube, o lindo “Incroyable-Club”, decorado luxuosamente, com um luxo e gosto nem sempre de grande aprumo, mas que a profusão de luz elétrica, derramada aos jorros, fazia suntuoso e maravilhoso que nem um palácio de Mil e uma Noites.

Nunca vira aquilo tudo; e embora, por conhecer alguma coisa de arte, detestasse as duvidosas pinturas das paredes, gostava, entretanto, das mulheres que não me pareciam ser tão artificiais assim. Em começo, fazia o meu serviço, bebendo cerveja; por fim, champanhe; e, afinal, travei conhecimentos com cavalheiros amáveis. Eram todos estrangeiros e chamavam-se: Wassíli Alexandróvich Sóbonoff, engenheiro russo, de grande capacidade em coisas elétricas, emigrado de sua pátria, por causa do “Soviet”, e contratado para dirigir uma poderosa usina de produção elétrica em Mambocaba, a fim de extrair mecanicamente turfa*, que abundava naquela localidade, e beneficiá-la também.

O outro era dinamarquês ou tcheco e só o conheci pelo nome de Peteo. Pretendia servir-se de um pouco da força da usina de Wassíli, para obter matérias corantes dos resíduos da turfa deste; e o terceiro era o barão de Hermeny, magiar* com muitos quarteirões de nobreza, descendente de santo Estêvão e não sei quem mais. Corria mundo enquanto não se restabelecia o trono do seu augusto e santo avô, para então retomar os seus cargos e as suas fartas rendas.

Nunca conheci cavalheiros tão amáveis e educados. Sempre corretamente vestidos, injuriados discretamente, conversavam comigo sobre todos os assuntos com conhecimento profundo de causa. Sabiam todo o movimento político do mundo e as suas previsões eram sempre seguras. Desde que os conheci, nunca mais paguei champanhe nem ceias. Para estas, eles traziam variadas damas que lhes falavam numa geringonça arrevesada que mesmo não sei que língua era. Eu ficava babado diante daquelas beldades, daqueles colos azuis que nos são pouco familiares e daqueles rostos polpudos, daquelas sobrancelhas negras a poder de ingredientes, daquelas orelhas cheias de bichas e daquelas ancas... Por momentos, vendo aquelas mulheres, aquelas luminárias, aqueles tapetes, aqueles jarrões com pequenas palmeiras, esquecendo as figuras das paredes, eu me julgava um sultão ou pelo menos, um aprendiz desse ofício, mas que já podia tirar o lenço...

Um dia saí com o barão húngaro e convidei-o para tomar o “meu” automóvel. Quando ele ia entrar, chegou-se um sujeito, apresentou-lhe uma carteira e disse-lhe:

— O senhor está convidado a ir à Polícia Central.

O barão não relutou e respondeu galantemente:

— Deve ser algum engano. Vamos.

Depois, dirigindo-se a mim:

— O doutor me desculpe... As autoridades brasileiras ainda não estão bem informadas de quem sou...

— Quer ir no “meu” automóvel?

— Não! Seria incomodá-lo. Vou mesmo num táxi aqui com o senhor — disse, voltando-se para o agente.

No dia seguinte, soube que o tal barão era um terrível ladrão de bancos que a polícia do Chile perseguia, por ter roubado, com grande audácia, a um de Santiago, em cerca de cento e cinquenta contos. Não era húngaro, como se intitulava: era rumaico ou coisa que o valha.

Continuei, porém, no meu sonho de nada pensar de sério na vida. Quase não lia jornais; livros e revistas esperavam que lhes apontasse as páginas, em cima da mesa; não respondia às cartas ou mal as respondia, às pressas. Que mais queria? Tinha encontrado, ao mesmo tempo, os “Campos Elísios”, o “Éden”, o “Paraíso” cristão e o de Maomé. O clube de jogo juntava-me tudo isto no meu sentir e para o meu gozo. Vivia num arrebatamento deste mundo, fora dele e das suas coisas triviais, num encantamento divino... Que delícia!

— Como acabou, meu caro? — perguntou-lhe o amigo que o ouvira calado até aí.

— Uma noite destas, fui para o serviço do Club, como de costume, e o porteiro, logo à entrada, me avisou: “A ‘casa’ fechou doutor. A emenda do senador Sá foi avante: não há mais jogo”.

Não quis subir, pus-me na rua e acendi o último dos “havanas” que o tal engenheiro russo me havia dado, na véspera. Fumei-o com volúpia e vagar, sacudindo as cinzas com pena — as cinzas do meu sonho! Certamente, esse seria o último que fumaria na minha vida... Foi um sonho!
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* NOTAS
Magiar = húngaro.
Turfa = é um material orgânico constituído por elementos procedentes da decomposição de vegetais. Este material é de cor castanha (escura ou clara, dependendo do tipo) e é muito rico em carvão. ... Usa-se principalmente em jardinagem formando parte do substrato.

Fonte:
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIV

ERA ISSO MESMO

 
Era isso mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
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ERAM VARÕES TODOS
 
Eram varões  todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.

E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.
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E TODA A NOITE A CHUVA VEIO
 
E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite o meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.

E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição do ar.

E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração
Na garganta da minha vida.
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EU
 
Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória,
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo herdeiro só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.
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EU AMO TUDO O QUE FOI
 
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
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É UMA BRISA LEVE
 
É uma brisa leve
Que o ar um momento teve
E que passa sem ter
Quase por tudo ser.
Quem amo não existe.
Vivo indeciso e triste.
Quem quis ser já me esquece
Quem sou não me conhece.

E em meio disto o aroma
Que a brisa traz me assoma
Um momento à consciência
Como uma confidência.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Minha Estante de Livros (“Cartas do meu moinho” e “Bilac vê estrelas”)


CARTAS DO MEU MOINHO, de Alphonse Daudet

Depois de várias tentativas de alcançar o sucesso na vida literária e uma vida pessoal tumultuada, Cartas do meu moinho trouxe alegria e reconhecimento ao autor francês Alphonse Daudet. Depois viria aquele que seria o seu clássico: Tartarin de Tarascon que reaviva muitos dos aprendizados do autor em sua passagem pela Argélia.

O livro possui contos ambientados na região da provença francesa, e de inicio já nos apresenta uma declaração de compra do moinho, é fictícia, mas dada a perfeição no estilo e escrita é pra lá de convincente. Sua vida no moinho não é definitiva já que ele é um citadino, possui um cotidiano muito tranquilo com seus papéis, as visitas dos coelhos, um certo convívio com os camponeses e, claro, a coruja que habita o primeiro andar. Em meio a ótimos contos temos 'Os Velhinhos' em que o narrador, o autor no caso, visita um casal idoso a pedido de um amigo de Paris, e o leitor é convidado a fazer essa visita também.

Cartas do meu moinho é um sensível conjunto de narrativas breves, contos pueris e encantadores. Em pleno século XIX, Daudet antecipa o que hoje é traço comum da literatura contemporânea: um certo jogo entre ficção e realidade. O autor escreve como se fossem memórias, mas todas as narrativas são ficcionais. Porém, os leitores tiveram tamanha empatia com os personagens e os lugares que acreditavam fielmente que se tratavam de experiências vividas pelo autor no sul da França.

Os personagens são simples e movidos por sonhos cotidianos, e os cenários declamam seu amor pela exuberante natureza francesa. A literatura sensível desse escritor francês conquistou os leitores pela simplicidade e pelo grande senso de humanidade.

Os contos, selecionados entre os 24 que foram publicados em 1869. São narrados na primeira pessoa, para dar a entender ao leitor que é o próprio escritor que revisa suas memórias. O Segredo de Mestre Cornille é sobre um moleiro inconformado com a chegada das máquinas à vapor; em A Cabra do Senhor Seguin, a cabrinha Branquinha quer viver livre para sempre; Os Velhos aborda a visita de um moleiro aos avós de um amigo; já A Lenda do Homem com o Cérebro de Ouro exibe personagem que se desfaz de sua riqueza por amor e por ter sido roubado e enganado; As Três Missas Baixas é a história do reverendo que, no Natal, cai no pecado da gula, morre e não pode entrar no céu: e Os Gafanhotos se passa na Argélia, onde um estrangeiro enfrenta destruidora tempestade de gafanhotos.
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Alphonse Daudet (1840 – 1897) estreou com a coletânea de versos "Les Amoureuses" aos 18 anos, ao ir para a capital francesa. Em Paris, tornou-se íntimo de Goncourt e Emile Zola. Ao publicar "Cartas do meu moinho", em 1869, alcançou o sucesso. Tornou-se secretário do Duque de Morny, presidente do Senado e, por problemas de saúde, viajou pela Argélia, onde se inspirou para escrever "Tartarin de Tarascon", em 1872. Fez várias tentativas no teatro, mas só teve algum sucesso com "A Arlesiana", em 1872.

Sofreu muito nos seus últimos quinze anos, morrendo em 1897, vítima de uma ataxia incurável (que poderia ser normalmente uma degeneração ou bloqueio de áreas específicas do cérebro e cerebelo). Encontra-se sepultado no Cemitério do Père-Lachaise, Paris na França.

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BILAC VÊ ESTRELAS, de Ruy Castro

No começo desta história, que se passa no Rio de Janeiro, no início do século XX, Olavo Bilac está em seu posto de observação na calçada da célebre Confeitaria Colombo. Com a própria glória garantida, só uma coisa o preocupa: como é efêmera a glória alheia. De repente, uma manchete gritada por um jornaleiro interrompe os seus pensamentos: um negro encontrado morto em Paquetá pode ser o jornalista da Abolição José do Patrocínio, grande amigo de Bilac.

Por causa disso, ele se mete numa trama envolvendo um fabuloso dirigível, inventado por Patrocínio e objeto da cobiça de dois aeronautas franceses e de uma traiçoeira espiã portuguesa. Na tentativa de se apoderar dos planos do balão, a espiã e seu cúmplice, fazem Bilac literalmente ver estrelas com uma bengalada na cabeça, que o leva ao espaço e ao Olimpo.

O cenário e a época de Bilac vê estrelas são reais: boa parte da história se passa nas ruas do Rio durante a agitada Belle Époque carioca, e os personagens também são de carne e osso. Mas o documentário é só o pano de fundo para a ficção. Em meio aos arranca-rabos desse caso hilariante de espionagem industrial, Ruy Castro faz Bilac ser atacado na cama pela bela e tórrida portuguesa, deixa-o para morrer desacordado num hangar em chamas, obriga os bandidos a fugir numa charrete em disparada pela rua do Ouvidor, e tudo isso durante a vinda de Santos-Dumont ao Brasil. Bilac vê estrelas é quase uma comédia-pastelão à brasileira.

Em sua estreia na literatura, Ruy Castro revela-se um ficcionista que, como seus leitores já sabiam, é um especialista em bom humor.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 14

 

Imagem da gata obtida no site Pinterest

Aparecido Raimundo de Souza (Copo transbordado)

ALTAS HORAS DA NOITE, o Augusto Cabeleira, o derradeiro freguês ao deixar o bar da Lili Tomba Fêmea, como sempre, mais bêbado que um gambá descontrolado, sem saber exatamente para que direção seguir, ao invés de tocar o bonde para a sua residência, por sinal, perto do estabelecimento, se enveredou por uma viela diferente e desembocou numa mais distinta que a sua. Nela só morava rico. Se não tivesse entornado todas, saberia que aquela não era a rua da sua casa, e mais, entenderia que nunca antes havia estado ali, embora o bairro onde morava fosse pequeno e tirando um ou outro beco, as outras ruelas e desvão, ele nunca havia sequer cruzado as suas esquinas.

Nesse tropeçar vacilante, segurando ora num carro estacionado, ora se apoiando em postes, entrou com tudo no primeiro portão de uma garagem escancarado que encontrou pela frente. Bateu palmas, enquanto se segurava na mureta onde havia um interfone. A moradora, uma jovem aí pelos trinta anos, acondicionada num pijama de flanela vermelho, veio atender. Assim que divisou o vulto, trôpego, ocasionado pela ingestão das doses ingeridas, Augusto Cabeleira fez a pergunta que bailava na ponta da língua:

— Boa noite, dona! Seu... seu ma... ma... rido está em casa?

A mulher, sem entender o que aquele esquisito fazia na sua frente, de pronto não disse nem sim, nem não, mas indagou, curiosa:

— Quem é o senhor? O que quer com meu marido?

— Ele... ele está?

— Sim, está. Por? Acaso precisa de alguma coisa? Quer ajuda? Vou chamá-lo...

— Des... des... des... culpe... Não há neces... Necessidade. Tchau!

Augusto Cabeleira deu meia volta com dificuldade cada vez mais acentuada e sem deixar de trocar as pernas, se afastou.

Bateu na segunda porta. A do doutor Rubião, delegado de polícia. Augusto Cabeleira não sabia, nem de longe, que o delegado de polícia da cidade morava ali. Veio atender uma senhora idosa, olhar cabreiro, expressão carrancuda e franzina. Todavia, armada de um possante trinta e oito (posto que estava acostumada a ser acordada no meio da noite, não só por pessoas da comunidade, como pelos próprios policiais que estavam a serviço de seu esposo) gritou, segurando a maçaneta que acessava todo o resto da habitação:

— Boa noite. Quem é o senhor? O que quer com meu marido? Algum problema na delegacia?

— Senhora, me diga... Ele está...?

A senhorinha não viu nada demais em responder:

— Sim, ele está no banho. Rubião acabou de chegar da chefatura. Quer que eu vá chamá-lo?

— Per... Per... dão... Foi... foi mal...

Augusto Cabeleira tratou de se escafeder dali o mais depressa possível. Se o delegado doutor Rubião viesse ter com ele, certamente seu resto de noite seria um inferno. Dormiria no xilindró. Sabia, pelos amigos de copo, que o sujeito se constituía numa carne de pescoço difícil de ser ingerida. Segundo relatos de seus companheiros, o homem não gostava de aturar beberrões. Ainda mais pinguços chatos. E ele, quando bebia, ia muito além da condição de maçante e pegajoso. Relembrara de uma história que, certa vez, contara o Botão Sem Casa, sobre Pingado Batatinha, um dos muitos amigos das noitadas que se prolongavam até altas horas.

Pingado Batatinha fora conduzido à presença da criatura, depois de ter quebrado uma cadeira nos cambitos de uma sirigaita, com a qual transara e se negara a pagar pelos serviços da prostituta. Além de uma boa sova nos costados, os fardados ainda lhe deram um prolongado banho frio de mangueira e, para acalmar os vapores do álcool, o doutor Rubião o colocou para dormir pelado no meio de outros detentos. Foi o diabo! Por conta desse evento, até hoje corre uma notícia na comunidade, alimentada, logicamente pelos boquirrotos e coscuvilheiros de plantão.

Se verdadeira, ou não, o fato traz à baila uma resenha ignóbil dando conta de que o infeliz do Pingado Batatinha saiu do prédio da brigada policial, na manhã seguinte, capengando, em face de ter sido agarrado por um sujeito alto, careca, parrudo e sem nenhum dente que pudesse lhe agradar o sorriso.

Encostou na terceira casa. Esta ao menos, tinha campainha. Tocou. Veio atender uma moça nova, e apesar da ebriedade saliente e destacada, percebeu nos braços dela, um gatinho branco:

— Pois não, senhor?

— Des... Des... culpe... Pe... pelas horas... Seu mari... seu mamariii... iiiido se encontra?

A beldade respondeu imediatamente de forma rígida e severa:

— O que quer com meu marido?

— E... Ele... es... Está?

— Quer que vá chamá-lo? Isto lá são horas de bater na casa de um advogado? Por que não foi no escritório dele? O senhor está com algum problema na justiça? Na delegacia, talvez?!

— Es... Esque... esquece... dona... tchau...

Trocando as pernas e ainda necessitando da ajuda dos carros estacionados ao longo da rua e sem perder de vista as árvores, vomitou numa delas, até as tripas. Cinco casas depois da nojeira que lhe saíra boca afora, em outra quadra, quase a ponto de ser mordido por um cachorro de modos violentos e pouco afeito a amizades, tocou a campainha de outra edificação.

Pintou, no pedaço, apesar do adiantado das horas, um encanto de mulher. Rosto de rainha, os cabelos soltos ao acaso da noite, metida num shortinho minúsculo mostrando uma barriguinha tipo tanquinho, um umbigo com um piercing grudado em formato de coração, as pernas compridas, sem falar no resto. A encantada abriu a porta de supetão e saiu afoita, como se esperasse a chegada de um príncipe encantado montado num cavalo branco como nos filmes dos contos de fadas.

Augusto Cabeleira quase teve um desmaio repentino, diante daquele augusto pedaço de mau caminho, que fazia emergir, de uma só vez, todos os pecados voluptuosos e devassos existentes dentro de si:

— Boa noite, senho... Senho... senhorita... por acaso... por aca... acaso... seu ma... marido se encon... se encontra?

— Bem, meu senhor... Ele ainda não chegou...

Augusto Cabeleira teve um breve reconforto na alma tomada pelo consumo das cervejas e pingas que emborcara goela abaixo:

— A senhori... A senhorita tem cer... a senhorita... tem... cer... cer... teza?

— Claro. Acha que não conheço meu marido e não sei quando está ou não em casa?

— En... Então, por... por genti... gentileza... chega um porco... Mais per... perto...

— Como é que é, cavalheiro? Porco? Que porco?!

— Eu... Eu disse... eu disse porco? Não, me desculpe. Pedi pa... pedi, para chegar um pouco... um pouco mais... mais perto... de onde a senhori... de onde a senhoooooorita tirou o porco?

E completou, quase indo de fuça ao chão:

— Por que eu faria isso? Por... Porco? Pelo amor... pelo amor de Deus... chega mais perto.

— Eu é que pergunto: Por qual motivo eu faria tamanha idiotice de chegar mais perto do senhor? Nem lhe conheço!

— Desculpe... Por favor, me perdoe... roro... rogo, chega mais perto e venha ver...

— Ver o que, senhor?... Vou chamar a polícia.

— Não, não precisa. Só venha até aqui... se aproxima um bocadinho mais...

— Insisto, meu senhor, para eu ver exatamente o quê?

— Venha... Venha conferir se eu não... venha ver e me dizer, com todas as letras, se não sou eu... Se não sou eu... dro... droga... venha fazer uma acareação e me dizer, se eu não sou o seu marido...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 7

CARIDADE DA LUZ


Santa - a moeda amiga ao tornar-se carinho
em todo lar sem pão que a penúria flagela,
enaltecida sempre - a roupa mais singela
que protege a nudez ao vento e ao desalinho!...

Glorificado seja - o pouso que tutela
o enfermo relegado às pedras do caminho,
preciosa - a afeição para quem vai sozinho,
trancando-se na dor em que se desmantela!...

Nobreza em toda ação que represente amparo
do auxílio de um vintém ao apoio mais raro,
que a simpatia expresse e a bondade presida!...

Brilhe em tudo , porém , com mais força e grandeza
a palavra do bem que apure a natureza,
iluminando o amor e libertando a vida!…
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MENSAGEM DE IRMÃ

Enquanto a carne em treva brande a vara
da amargurosa dor que te alanceia,
acende, em paz, a lúcida candeia.
da sublime esperança que te ampara.

A fé transforma a noite em manhã clara.
Não te canse o deserto... Ara e semeia
e arrancarás da imensidão de areie
a flor da primavera e o pão da seara...

Que o grilhão do passado te não prenda.
Faze do amor a rútila oferenda
do próprio ser ao mundo estranho e escuro!

E ave de luz tornando ao pátrio ninho,
encontrarás, feliz, o áureo caminho.
para a esfera de glórias do Amor Puro!
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PERDOA

Repara a fonte diligente e boa
escravizada ao solo em que destila.
acolhendo, a cantar, doce e tranquila,
a saliva do charco que a magoa.

Envolvente e translúcida coroa
que afaga e nutre o coração de argila
passa ajudando ao chão em que se asila,
tanto mais pura, quanto mais perdoa...

Como a fonte que olvida toda a ofensa,
abraça na bondade a luz imensa
que te guarda, no mundo, a alma sincera.

E, estendendo o perdão por onde fores,
encontrarás na cruz das próprias dores
a alegria divina que te espera...
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PRESENÇA DO AMOR

Deus abençoe o pão que dás à porta
aos romeiros cansados da agonia,
o teto aos que se vão em noite fria
na dor em que a nudez se desconforta.

Deus te abençoe o raio de alegria
com que a força da fé se te transporta,
no rumo da esperança semimorta
para trazê-la à glória de outro dia.

Deus te abençoe por tudo quanto fales
para extinguir tristezas, dores, males,
que se amontoam na penúria imensa...

Deus te abençoe, porém, com mais ternura
a presença da paz e da aventura
de todo amor que dês sem recompensa…
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QUERIDA NINA

Querida irmã, que amamos ternamente,
mensageira do bem, linda e singela,
que Deus te guarde a luz brilhante e bela
e a pureza de lírio alvinitente.

És para nós o amor que se desvelo,
a generosa fé, que segue à frente,
consolo ao coração aflito e crente
quando negrejam sombras de procela.

Jardineira da paz e da ternura,
como é sublime a rica semeadura
que te engrandece o místico jardim!...

Deus te guarde e esperança nobre e calma
e espalhe no céu claro de tua alma
as estrelas do amor que não tem fim!...

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Júlia Lopes de Almeida (No muro)


A Julião Machado


Ao fundo do quintalzinho, o alto muro branco estava na sombra. De um único canteiro, à esquerda, evolava-se o aroma de manacás em flor. Do outro lado, a haste débil de uma árvore nova, uma arália talvez, balançava, em meneios vagarosíssimos, a sua folhagem mimosa e leve.

Tudo em silêncio na casa. As crianças dormiam já, abatidas pelo calor; a criada mal dera as boas-noites, e lá saíra pela porta fora; só Maria Teresa, repousada da confusão do seu dia trabalhoso, cerrava os olhos preguiçosos, para cá e para lá, na cadeira de balanço, perto da janela da sua sala de jantar.

Nem o gás quebrava o silêncio que a envolvia. A claridade é uma voz; só a treva é muda. Aprazia-lhe aquele sossego a que entregava descuidada o corpo e o espírito. E assim esteve muito, muito tempo, com o seu rosto de histérica, longo e pálido, volvido para o escuro do quintalzinho estreito.

Mas a lua, que há pouco lhe clareava a frente da casa, as cortinas rendadas e os tapetes do escritório e da sala, lembrou-se de lhe galgar o telhado e de ir insinuando pouco a pouco a sua luz melíflua pelo alto muro branco do quintal.

Maria Teresa, descerrando os grandes olhos pardos, viu a claridade vir lambendo a parede, numa carícia mole e frouxa. Ela bem sabia que aquele grande laivo escuro, desenhando no alto uma ligeira curva e descendo depois em uma linha reta perpendicular, era um pouco de limo e mais nada. O muro, velho, requeria conserto; tinha, entretanto, intervalos de uma alvura virginal, que brilhavam à claridade, como linho estendido.

Maria Teresa sorriu; que visão aquela! Dir-se-ia que a longa fita escura se movia agora em uma oscilação lenta, arrastando o seu longo corpo de réptil.

Na verdade, uma cobra andaria assim?... E mais adiante, falhas de caliça, umas esguias, outras redondas, quadradas ou elípticas, entravam a mover-se, a adquirir formas estranhas, mal distintas, incertas, que no tremor da luz mal firme se dissolviam para tomar novamente corpo e forma... Ao princípio aquilo tudo era mal esboçado, confuso e inculto; mas, de repente, como a luz caísse melhor, Maria Teresa viu, como se olhasse para um espelho singular, refletida no muro a sua vilazinha mineira, de onde o marido a trouxera para a vida turbulenta da cidade.

Tal e qual! Lá estava no alto a capela da Conceição, com o campanário, a casa do padre e aquela grande nogueira, cujas nozes magníficas ela ia colher com Josefina, a irmã, e mais o namorado...

Embaixo, um pedaço de tijolo nu, não é que reproduzia, em miniatura fiel, o largo da vila, com as suas casas abarracadas, espaçadas e desiguais? E aquelas figuras, que no começo se assemelhavam a animais informes, não se moviam agora quais criaturas humanas, umas embiocadas em mantilhas a caminho do outeiro e da igreja, outras à beira do rio, lavando aqueles lençóis cor da neve que tanto brilhavam à luz?

Que tolice! Maria Teresa, melhor que ninguém, sabia que aquele tufo de vegetação que irrompia do muro não era a grande floresta da sua saudosa vila... era uma touceirinha de erva de bode que ela por desleixo não mandara ainda arrancar... Sabia; mas que lhe importava?

Aquilo representava agora ali o papel sagrado de floresta virgem... Era um dos raros pedaços da Terra não maculados ainda pelos pés do homem; o altar puro e sublime do Deus grande, poderoso e único!

Alma de crente, alma de ingênua, espírito propenso ao sobrenatural, Maria Teresa acreditava quase que os seus olhos viam uma verdade; e assim, saudosa da sua terra natal, delineava-lhe os contornos, em um grande fervor de imaginação.

Uma oscilação do galho da arália cortou com uma pincelada negra o encanto do quadro... a árvore voltou à posição natural, mas as figuras do muro pareciam já outras, embaralhadas, dançando no tremor da luz.

Era uma procissão, talvez... frades com capuzes seguiam a passo, nos seus hábitos escuros... Ao longe, na bruma, após um lago de neve, um alto castelo esguio se confundia com as nuvens...

Maria Teresa lembrou-se das velhas histórias medievais que lhe contava uma escrava da família, mulata nortista, de inteligência viva e falas mansas... a Teodora. Seria a alma dela, que a visitava nesse instante de sossego e de solidão, e, doce, quieta, bondosa, lhe reavivava, em painéis rápidos, as passagens da sua infância?

No Cavaleiro da Pluma lembrava-se de uma cena idêntica: os frades iam cantando em coro ao castelo da princesa morta. Mas, assim como nem os médicos chamados pelo rei a puderam salvar, também as orações dos frades não a ressuscitaram... E foi então que o Cavaleiro da Pluma, num corcel branco, galopou através de montes e vales e trouxe à exânime princesa a vida com um elixir roubado ao deus Cupido.

A velha Teodora estrelava as histórias com as suas frases de ouro bruto. Seria mesmo a alma esquecida da mulata que vinha num raio da lua desenhar tais coisas em um muro branco?

A Maria Teresa parecia então ouvir, em um sussurro delicado e longínquo, a voz da escrava, dizendo:

– Lembra-se, Iaiá?!

Pobre Teodora! De nada se esquecera Maria Teresa, a não ser dela, a sua escrava velha e imaginosa, que lhe florira a infância com os seus contos sem par, histórias em que os heróis eram deuses de grandiosos feitos...

Lembrava-se da sua vila, das casas dos amigos, mesmo dos mais indiferentes, das árvores, tais como a nogueira do padre, e do rio, das noites de dança, das festas da igreja, dos pais, das irmãs, das suas rixas, dos seus abraços, das fazendas dos arredores, de tudo... menos dela, da mulata Teodora, que, já velha, passava noites em claro a embalar--lhe a rede, que lhe refrescava o corpo com o banho, que lhe penteava os cabelos, que lhe engomava os vestidos, que a perfumava, que lhe dava os primeiros doces de qualquer tachada, que lhe contava as mais compridas histórias de fadas que nunca língua humana soube dizer!

O Natal... o Ano Bom... os Reis... tudo isso despertava saudades no espírito de Maria Teresa; de todos e de tudo se lembrava com lágrimas, e em nenhuma vira nunca refletida a figura simples da velha Teodora, risonha, doce e plácida...

A alma da escrava vinha pela primeira vez fazer-se lembrada à sua Iaiá, sem um queixume. Ela, que morrera no exílio, longe da sua terra quente de palmeiras e de sol; ela, que por lá deixara os filhos, não tivera assomos nem impaciências para a criança alheia que lhe puseram nos braços ainda tristes e saudosos do seu fardo amado... e era aquela dedicação pura e heroica, que só agora ela compreendia, de relance, como se lhe fosse lembrada pela mão invisível de Deus.

E no muro branco, nos laivos do limo, nas manchas da umidade, nos esboroamentos da caliça, a lua pálida, sem nuvens, esfumava os quadros fugitivos da sua vida passada. As cenas régias das histórias da mulata eram substituídas por outras: as romarias, os pomares, a estrada e o cemitério... Lá estava o túmulo da mãe de Maria Teresa, de altos mármores e coroas de flores... lá estava o da irmã... os dos avós... os de outros parentes mais afastados...

E o da velha Teodora?

Esse, a imaginação de Maria Teresa não pôde descobri-lo... Estaria além entre as covas rasas, sem uma cruz... sem um número?

Estivesse ou não, a alma da escrava não lhe ensinou o caminho e depressa mudou para um cenário risonho o triste cenário da morte.

Maria Teresa ia desfalecer, quando se levantou de súbito e fechou a janela com brusquidão. Para que lembrar? A própria lágrima amarga é doce vista através da saudade. Que no velho muro branco a lua estendesse e recolhesse as sombras; ela fugia, salvando a sua alma abatida, à voz do marido que a chamava da porta.

Bem dizia a Teodora, no Cavaleiro da Pluma: há uma única força capaz de ressuscitar os mortos e de alegrar os vivos: o Amor.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Versejando 93

Montagem sobre imagem da senhora no tear, obtida no Youtube
 

Rubem Braga (O padeiro)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um “lockout”, greve dos patrões que suspenderam o trabalho noturno. Acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão na porta do apartamento ele apertava a campainha, mas para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o  uma vez: – Como tivera a ideia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e  ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era, e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”.  Assim ficara sabendo que não era ninguém.

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina. como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar, e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre - não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXV

JÁ NEM SEI...

MOTE:
Viver assim... Te adorando...
Já nem sei o que fazer...
- Se é melhor viver te amando,
ou te deixar e... sofrer!

Benedito Camargo Madeira
(Pouso Alegre – MG)

GLOSA:
Viver assim... Te adorando...

é sempre tudo que eu quis,
é gostoso estar gostando,
pois te amando, sou feliz!

Mas quando aperta a saudade,
já nem sei o que fazer...
se sou feliz de verdade,
ou se te amar, faz sofrer!

Fico, então, me questionando,
responde, meu coração:
- Se é melhor viver te amando,
ou viver sem emoção?

Não sei se sigo a sonhar,
não sei que devo fazer,
se continuar a te amar,
ou te deixar e... sofrer!
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PRAZOS...

MOTE:
Passa a noite... O dia morre,
mas eu prossigo risonho,
na ansiedade de quem corre
para agarrar outro sonho!
Cyrléa Neves
(Nova Friburgo – RJ, 2016+)

GLOSA:
Passa a noite... O dia morre,

mas um outro se anuncia
e a esperança me socorre
e me envolve de alegria!

Termina o prazo, bem sei,
mas eu prossigo risonho,
pois assim, não mais terei
o meu coração tristonho!

Essa alegria percorre
todo o meu ego e minha alma,
na ansiedade de quem corre
com tranquilidade e calma!

E nessa minha ansiedade,
a mim mesmo, então, proponho,
fantasiar a realidade
para agarrar outro sonho!
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TE ENTREGUEI

MOTE:
Foi quando eu te conheci
que um grande amor vislumbrei,
desde então vivo pra ti,
meu coração te entreguei!
Dalvina Fagundes Ebling
(Cruz Alta/RS, 2020+)

GLOSA:
Foi quando te conheci

que minha vida mudou
no momento em que te vi,
minha alma se apaixonou!

Foi mirando os olhos teus,
que um grande amor vislumbrei,
e todos os sonhos meus
nesse amor eu mergulhei!

Teus pensamentos eu li
e encontrei muita ternura,
desde então vivo pra ti,
és a sonhada ventura!

Naquele instante tão lindo,
ao te ver, logo te amei,
e com meu amor infindo,
meu coração te entreguei!
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SEMPRE QUE CHEGAS...

MOTE:
Sempre que chegas cansado
e me abraças ternamente,
o meu ser apaixonado,
volta a ser adolescente!

Delcy Canalles
(Porto Alegre – RS)

GLOSA:
Sempre que chegas cansado

do trabalho para o lar,
meu beijo, por ti, esperado,
vai correndo te encontrar!

Quando chegas e sorris,
e me abraças ternamente,
tu me fazes mais feliz
e eu fico bem mais contente!

Sentir que estás ao meu lado
faz vibrar todo o meu ser,
o meu ser apaixonado,
que recomeça a viver!

Vibrando, então, de emoção,
todo o amor, em mim latente,
explode em meu coração
volta a ser adolescente!
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RIMAS DE AMOR...

MOTE:
A saudade que angustia
o meu peito sonhador,
é rima que eu não queria...
em minhas rimas de amor!

João Freire Filho
(Rio de Janeiro – RJ, 1941 – 2012)

GLOSA:
A saudade que angustia,

que faz meu pranto rolar,
a que me rouba a alegria,
não quer partir, me deixar!

Essa saudade magoa
o meu peito sonhador,
que fica chorando à toa
magoada com tanta dor!

Essa imensa nostalgia,
maior que o próprio Universo,
é rima que eu não queria...
não queria no meu verso!

Somente rimas perfeitas,
sem tristeza, pranto ou dor,
queria que fossem feitas
em minhas rimas de amor!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 22: Lucy Sother da Rocha

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 39 –

A escrita?

Gosto de apascentar a escrita. Penso e penso, escrevo, reescrevo, leio e leio, releio, releio, e no caminho ponho todos no seu lugar, os mais importantes, os menos - indagações, palavras, vírgulas, pontos e vírgulas, dois pontos, exclamações, reticências . . . Estas conduzem (ideias). E nos vamos, tantas vezes, pelos caminhos do insondável, onde tudo se busca e nada se encontra. A jornada dos escreveres tem semelhanças com as veredas dos viveres - garimpamos com ardor e mesmo na dor nos realizamos.

Escrever é bem como a vida, ser simples, claro, direto, objetivo. Dizia o mestre Drumond:  "Escrever é cortar palavras". E escreveu o mineiro Graciliano : "Escrever é rasgar, rasgar, e rasgar".

O mister das palavras não tem mistérios, cada um com suas interpretações, e o ideal de um texto está calcado antes de mais nada na leitura - que é busca, investimento, saber.
Ela dá desenvoltura e liberdade para as ideias.

O restante é com o escritor, que põe o sentimento, a capacidade e o esmero no texto. E lembro o francês Buffon: "O estilo é o homem".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jessé Nascimento (Solidariedade Humana)

O cidadão tinha os braços tomados por embrulhos e caminhava fazendo verdadeiros malabarismos temendo, certamente, que algum dos pacotes fosse ao chão.

Quando passava bem em frente a um ponto de ônibus, o que mais temia aconteceu: um ligeiro desequilíbrio e lá se foi um dos embrulhos projetar-se - para cúmulo do azar - justamente numa poça de lama, resultado de chuvas caídas no dia anterior.

O cidadão olhou o embrulho entristecido. E agora, o que fazer? Como apanhá-lo? Impossível? Mas deixá-lo ali, isso não. Olhou para os lados como que a pedir ajuda e também para ver se não se aproximava algum carro. Não, não vinha. Nem carro e nem ajuda.

Dobrou os joelhos e começou a contorcer-se numa dança involuntária e desgraciosa. O que não podia deixar era que os demais embrulhos caíssem também. Tentou soltar alguns dedos, firmando os demais com mais raiva e gana. Virou daqui, virou dali, nada!

Parou por alguns instantes, olhou os braços totalmente tomados, depois olhou o fugitivo no chão, já meio enlameado. Novos movimentos se sucederam, mas todos se revelaram inúteis.

Houve um momento, no entanto, em que deve ter tomado uma decisão definitiva. É agora ou nunca! Ou o pego ou o deixo!  E partiu para mais uma desesperada tentativa. Com um dos braços apertou parte dos embrulhos contra o peito com mais firmeza. Com o outro, parcialmente tomado, tentou chegar ao pacote caído. Desvencilhou dois dedos - sabe Deus como! - levou-os em direção ao pacote e... conseguiu! Bem a tempo, pois um ônibus já se aproximava, buzinando nervoso e impaciente.

Seus lábios murmuraram alguma coisa inaudível. Talvez um grito de alegria sufocado ou um palavrão a custo contido.

Tornou os olhos, paternalmente, ao molhado embrulho, já rasgando-se e reiniciou a caminhada, fazendo malabarismos.

Seu drama foi assistido, desde o início, por duas dezenas de indiferentes. Inclusive eu.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXI

A amizade não tem preço
nem é tão perene assim,
assim como tem começo
também pode ter um fim.
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Alguém diz: eu sonho e espero
ser um grande vencedor,
bem melhor um não sincero,
do que um sim enganador.
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Aquela aragem fresquinha
que a noite sempre irradia,
eu sinto qual fosse minha
a despedida do dia.
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Borboletas sobrevoam
rente as matas perfumadas,
tal aroma elas povoam
suas frondosas ramadas.
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Deus não dá, mas oferece
sua luz pra iluminar
a vida, quando escurece
e a força pra caminhar.
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É no outono que acontece
a colheita do produto,
porque nele amadurece
o sonho em forma de fruto.
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Escrevo, falo e não minto,
debruçado sobre um tema.
Em versos, tudo o que sinto
posso expressar num poema.
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Levo a mensagem distante,
pra perto trago a amizade,
tal a estrela cintilante
brilhando na eternidade.
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Luz é vida, paz e amor,
porém só, também não basta,
do Sol vem luz e calor
que das trevas nos afasta.
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Mesmo que nunca mereça
alcançar nobre conquista,
devo erguer minha cabeça
e seguir sempre otimista.
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Muita paz eu vim trazer,
assim no mundo nasci,
se mais não pude fazer
foi porque não consegui.
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"Nada podemos fazer";
afirmam os fracassados.
Tudo, sem nada dizer,
alcançam os esforçados.
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Nas estradas, quem caminha,
se dispõe a tropeçar,
embora a roseira espinha,
tem a flor pra compensar.
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No alvorecer da existência
os grandes sonhos florescem,
logo após a florescência
alguns definham, fenecem.
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O inverno quando está perto
a natureza descansa,
aguarda o momento certo
de renovar a esperança.
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O mundo mostra dois lados:
um devemos escolher,
não sejamos enganados
durante o nosso viver.
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O sol, sobre a terra fria,
lança seu grande fulgor,
espalha luz e energia
misturadas com calor.
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Para que sua premissa
não lhe seja refutada,
siga a linha da justiça
sendo à luz sempre pautada.
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Primavera faz da flor
a grande ornamentação,
enche de perfume e cor
toda e qualquer plantação.
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Que a dor não se dissemine
contaminando o viver,
queira Deus, não contamine
a essência do nosso ser.
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Se temermos o perigo,
dele nos afastaremos,
e andando com um amigo
o temor superaremos.
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Somos sumamente gratos
pelos dons que recebemos,
sejamos sempre sensatos
com a vida que hoje temos.
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Tantos passos foram meus,
dados com estes meus pés,
pés que me levam a Deus
sem temer qualquer revés.
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Tenho o dever de cumprir
o que me cabe, até o fim,
se do meu papel fugir
ninguém o fará por mim.
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Verão de tantas culturas
numa mesma melodia,
tem altas temperaturas
na maior parte do dia.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Conflito de gerações)

– Maria Eduarda, eu e seu pai precisamos ter uma conversa com você.

– Já sei. Vão começar tudo de novo.

– Não, Maria Eduarda, não vamos começar tudo de novo. Vamos continuar a conversa que vimos tentando ter com você faz tempo, mas você é rebelde, não quer conversar nem ouvir seus pais.

– …

– Quando é que você vai parar com essa teimosia? Até onde vai seguir com essa vontade de ser “diferente”?

 – Mãe, eu sou diferente!

– Não, Maria Eduarda, não é. Você é uma menina de 17 anos, igual a todas as meninas de 17 anos, com os mesmos anseios de toda menina de 17 anos. Não faz sentido você continuar se recusando a fazer uma tatuagem! Todas as suas amigas estão tatuadas da cabeça aos pés, e você aí… com a pele intacta. Até onde você vai querer ir com isso, Maria Eduarda?

– Mãe, eu não gosto. Eu acho feio. Só isso.

– Maria Eduarda, que mal faz uma mandala? Um ying e yang? Uma caveira?

– Mãe…

– Uma borboleta na nuca não mata ninguém, Maria Eduarda! Um dragão, uma fênix, qualquer coisa, mas… acho horrível ver você assim, com a pele toda… toda…

– Mãe, não começa a chorar, por favor!

– Choro, sim, Maria Eduarda. Choro de vergonha. Onde foi que eu errei na sua criação? Todas as filhas de todas as minhas amigas estão completamente rabiscadas e você aí, com a pele… virgem.

– Mas eu não sou mais virgem, tá, mãe?

– Nem sei como alguém conseguiu se interessar por você, com a pele imaculada desse jeito. No mínimo foi um daqueles rapazes esquisitos que querem ser dentistas ou – deusmilivre – engenheiros civis. Desse jeito que você anda, de cabelo castanho, com roupa sem um rasgão ou um pircinzinho que seja, você nunca vai arrumar um grafiteiro, um uebidizáiner, um crosfiteiro. Ou um confeiteiro.

– Mãe, fica tranquila…

– Como eu posso ficar tranquila sabendo que você não vai ao tatuador uma vez por semana, nem que seja para fumar narguilé? Que não tem uma serpente subindo pelo pescoço, uma flor de lótus na virilha, uma frase em latim no omoplata, nada!

– Mãe…

– Faz pelo menos uma tribal no tornozelo, filha!

– Mãe, eu…

– Um infinito no pulso, uma âncora no antebraço, qualquer coisa…

– Mãe, eu acho que…

– Você não sabe a vergonha que eu passo na frente das minhas amigas na yoga. Todas têm filhas tatuadas. A Gislaine tem uma filha que fechou o braço. Fechou o braço, sabe o que é isso? A filha da Marta tatuou toda a fauna do cerrado, em protesto pelos incêndios no Pantanal. Ela não é boa em Geografia, eu sei, mas o tatuador fez uma jaritataca linda no ombro dela, e um teiú que sobe pelas costelas e vai até o seio. Quando ela colocar implante, o teiú vai ficar com uma cara enorme, linda. Você vai colocar implante, não vai?

– Não, mãe, não vou.

– Maria Eduarda! Sem tatuagem aos 17 e sem implante antes dos 20! O que você quer da vida, minha filha? Sabe como as pessoas vão te olhar? Como uma aberração!

– Mãe, eu…

– Tatua nem que seja um “Fellyppe, amor eterno”, por favor!

– Eu não conheço nenhum Fellyppe, mãe.

– Não interessa. Tatua só para arrepender e tatuar alguma coisa por cima. Aposto que todas as suas amigas já se arrependeram de uma tatuagem dessas e tatuaram outra maior por cima.

– Sim, todas fizeram isso. Aos prantos.

– Viu? Custa fazer? Escolhe um nome qualquer, porque vai fazer outra por cima mesmo. Bernnardho, Artthur, Karollayne, qualquer coisa. Mas tatua, exibe, chora dizendo que se arrependeu e faz uma de rosas vermelhas, ou de uma onça, em cima. Pronto. É só isso que estou te pedindo. Para eu não ser a mãe da menina esquisita que não tem tatuagem. Faz isso por mim, Maria Eduarda. Pelo seu pai, que vem fazendo uma poupança para essas tatuagens desde que você tinha 15 anos.

– Mãe…

– Um código de barras na coxa, filha… O que é que custa? Um ideograma, uma logomarca, um pacote de miojo, qualquer coisa…  Você quer chegar à velhice como sua avó, sem parecer um muro de periferia? Sem lembrar uma obra do Dali, com relógios derretendo porque o peito caiu?

– Tá, mãe, semana que vem eu faço.

– Promete, Maria Eduarda?

– Vou pigmentar aquela manchinha branca que eu tenho no peito do pé, aí fica da cor da pele.

– Faz uma caranguejeira, filha! Fica lindo uma caranguejeira bem realista subindo pelo peito do pé!

– Não, mãe. No máximo, uma joaninha.

– Bem colorida?

– Ok, mãe, uma joaninha bem colorida. Já posso voltar a estudar?

– Pode. Te amo, Maria Eduarda. Mesmo você sendo estranha desse jeito, mamãe te ama. Mas por que você não aproveita que vai fazer a joaninha e coloca um pírcim no umbigo?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Adega de Versos 62: Fernando Pessoa

 

Pablo Neruda (Poemas Escolhidos) – 1 -

Pablo Neruda é o pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto


I
 
MATILDE, nome de planta ou pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura,
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por enxames de fogo azul-marinho,
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh! Nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragrância do mundo!

Oh! Invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me, se queres, com teus olhos noturnos,
mas em teu nome deixa-me navegar e dormir.

II

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal* não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu, juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa*,
pensar que separados por trens e nações

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.

III

Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores, corola da cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada?

O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.

IV

Recordarás aquela quebrada caprichosa
onde os aromas palpitantes subiram,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Recordarás os dons da terra:
irascível fragrância, barro de ouro,
ervas do mato, loucas raízes,
sortílegos espinhos como espadas.

Recordarás o ramo que trouxeste,
ramo de sombra e água com silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.

V

Não te toque a noite nem o ar nem a aurora,
só a terra, a virtude dos cachos,
as maçãs que crescem ouvindo a água pura,
o barro e as resinas de teu país fragrante.

Desde Quinchamalí* onde fizeram teus olhos
aos teus pés criados para mim na Fronteira
és a greda escura que conheço:
em teus quadris toco de novo todo o trigo.

Talvez tu não saibas, araucana*,
que quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos
meu coração ficou recordando tua boca

e fui como um ferido pelas ruas
até que compreendi que havia encontrado
amor, meu território de beijos e vulcões.
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* Notas:
Araucana = Relativo à Araucânia, região da América do Sul que abrange a província de Arauco, no Chile.
Boroa = é um povoado situado no município de Nueva Imperial, Região da Araucanía (Chile), nas ribeiras do rio Cautín.
Quinchamalí = é um pequeno povoado localizado na região de Ñuble, província de Diguillín , dependente do município de Chillán (Chile).
Taltal = é um município da província de Antofagasta, localizada na Região de Antofagasta, Chile.


Fonte:
Pablo Neruda. Cem sonetos de amor. Publicado em 1959.