sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXII

A injustiça neste mundo
causa tanta indignação,
gera um abismo profundo
em toda a população.
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A luz que brota do sol
não tem nem comparação,
mas a que vem do farol
ameniza a escuridão.
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Com dinheiro até podemos
ter o pão de cada dia,
mas dele nem sempre obtemos,
a paz que traz harmonia,
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Deus conceda os atributos
para a planta produzir
e àquela que não der frutos
venha a pó se reduzir.
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É impossível resgatar
o passado da memória,
sem termos que transitar
pelos caminhos da história.
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Fazer, por mera paixão,
tão distante da moral,
pode acabar num caixão
seguido de um funeral.
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Frente o mar, alguém calado,
fica tomado de espanto,
vendo águas por todo lado
no horizonte um tênue manto.
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"Lançai nas águas profundas
estas redes tão vazias!
As verão voltar fecundas
na maior das pescarias".
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Muitos dos que são eleitos
têm um bom 'papo furado',
só defendem seus direitos
e esquecem do eleitorado.
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Nada nos comove tanto
como a morte do inocente,
a dor se lava com pranto
num mergulho comovente.
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Não mates tua saúde
que é da vida o dom maior,
sem drogas e em plenitude
teu viver será melhor.
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Não podemos subjugar
tudo ao nosso bel prazer,
cada qual tem seu lugar
e algo bom para fazer.
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Nem todo o assassino é nato
e ao crime se converteu,
pois antes do assassinato
outros atos cometeu.
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Nenhum presente supera
a grande satisfação,
de saber que alguém prospera,
fruto da dedicação.
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Ninguém obrigue ofertar
aqueles que nada têm,
porém muitos pra não dar,
fingem ser pobres também.
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No universo dos prazeres,
queres chegar aos confins?
Bem melhor se então viveres
longe das drogas e afins.
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O assassino nunca pensa
no resultado da ação,
lhe resta a triste sentença
da cruel condenação.
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O estudante desatento
não vai ter aprovação,
se lhe faltar o talento
pode sobrar frustração.
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O grande valor da oferta
nunca está na quantidade,
muitos dão de mão aberta
mas com pouca qualidade.
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O homem forte não fraqueja
busca forças no seu Deus
e assim onde quer que esteja
sempre alcança os sonhos seus.
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O ponto frágil da corda
é o que rompe por primeiro,
o fruto sempre transborda
se encher demais o celeiro.
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Paisagens exuberantes
embriagam todo olhar,
com doses estimulantes
pro visitante voltar.
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Quando as águas do passado
nosso ser sedento invade,
poderá voltar molhado
com respingos de saudade.
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Se Deus sempre está por nós,
contra nós quem pode estar?
Nunca Ele nos deixa sós,
sua luz quer emprestar.
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Temos razões de sobejo
para à vida agradecer,
que nela o maior desejo
seja com razão, vencer.
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Toda a dor me faz sofrer:
diz o fraco com temor.
É preferível morrer
que sentir tamanha dor.
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Toda a vez que o sofrimento
não for bem interpretado,
a dor se torna um tormento
longe de um aprendizado.
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Trabalho e dedicação
são pilares do progresso,
demonstram a vocação
e o segredo do sucesso.
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Um sinal de salvação
neste mundo tão cruel,
deve ser todo o cristão
sendo a Deus sempre fiel.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 4

 
Publicado no Jornal “O Indianópolis”
Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn


Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Aparecido Raimundo de Souza (Brincando de quem sabe mais)

DOIS SUJEITOS discutiam na fila da casa lotérica. O primeiro, um baixinho sobejamente vestido, no rosto ostentando um óculos de aro banhado em ouro, camisa de seda e calça de terno de marca, tinha cara e pinta de intelectual. O outro, humildemente composto, carecia, na verdade, de tudo, a começar por um bom par de sapatos. Sem falar na camisa rasgada nas costas, a calça jeans com uma mancha de tinta vermelha na perna direita. Parecia, coitado, um ganso recém afogado numa bacia de água quente.

— Digo pra você uma coisa e pode ter certeza. A maioria do povo é burra. Ou melhor: os filhos da nossa terra são burros de pai e mãe.

— Não acredito. Existem pessoas inteligentes.

— Mas é uma minoria. O resto, pena. Topa tirar a prova dos nove?

— O que ganho com isso?

— Vamos fazer uma aposta.

— De que tipo. Se for dinheiro, aviso logo: aqui no bolso só disponho, miseravelmente dos trocados para o jogo da virada de ano. Quero entrar 2022 rico.

— Espera lá. Se eu ganhar, o amigo me compra vinte pães na primeira padaria que encontrarmos pela frente quando sairmos daqui. Se eu perder, lhe pago quarenta.

— É muito.

— Você não gosta de pães?

— Não é isso. Não posso pagar nenhum. Deixei a carteira em casa.

— Não terá que pagar coisa alguma, seu Mané. Basta me provar que existem pessoas inteligentes. Eu acho que a maior parte dos que aqui estão, grosso modo falando, não sabe nem por qual motivo resolveu sair de casa...

Um grandalhão sem camisa ouvindo essas palavras engrossou. Queria pegar o baixinho dos óculos de aro banhado em ouro e jogar para o alto.

— Burro é o irmão mais velho do seu tio, aquele que colocou você no mundo. Eu topo a parada. Pago os vinte do seu amigo aí, mais os quarenta e ainda entro na briga com vinte. Oitenta pães não se veem, todo os dias, numa mesa.

Para não ficar por baixo, o baixinho dos óculos de aro banhado em ouro topou.

— Fechado.

— Quem começa?

— Por favor, vá em frente.

— Vou sabatinar o prezado com perguntinhas fáceis.

— Eu escolho o tema.

— Nada disso: eu pergunto, eu escolho.

— Não tem graça.

Uma senhora que ouvia o papo dos três com atenção desmedida resolveu entrar no meio da confusão.

— Posso dar uma sugestão aos ilustres cavalheiros?

— Vá em frente, madame.

— Senhora...

— Que seja.

— Escreverei em pedacinhos de papel, algumas palavrinhas simples, ao acaso. Chacoalho nas mãos, vocês fecham os olhos e tiram um. Por exemplo, o Senhor aí, tirou “relógio”. O outro, aqui, “oligopólio”. Eu, então, perguntarei: o que é um relógio, ou o que venha ser oligopólio? A resposta deve ser rápida, simples e objetiva. Quem for mais sucinto será o ganhador. Podemos começar?

O dos óculos de aro banhado em ouro deu um passo à frente:

— Estou pronto.

— E eu aqui para o que der e vier.

Enquanto a bondosa senhora cuidava dos nomes, um outro cidadão com o boné do Flamengo resolveu entrar no desafio.

— Não pude deixar de ouvir a conversa fiada dos amigos. Quero provar aos distintos que não sou burro e levar para casa todos esses pães que estão em jogo...

— Pois tome guarda.

— Estou dentro...

A fila aumentava de tamanho a cada abrir e piscar de olhos. Na verdade, todos esperavam pelo desfecho da contenda. Saber quem seria o felizardo a ir embora com uma baita sacola de pães quentinhos. Num canto, onde havia uma espécie de bancada, a boa senhora grafava as tais indagações que seriam sorteadas entre os presentes. Uma funcionária avisada do que ocorria, bondosamente trouxe uma caixinha:

— Dona, a senhora põe os nomes aqui “drento” e balança...

A mulher agradeceu o gesto cortês da garota. Ao acabar de escrever, colocou todos os papeizinhos na caixinha, e, em seguida, se voltou para os competidores que a aguardavam, impacientes.

— Estão prontos?

Todos balançaram a cabeça, afirmativamente.

Nessa altura, a fila não era mais uma fila. Os que haviam chegado depois, procuraram se acotovelar em derredor, formando um grande circulo em torno dos desafiadores que tomariam parte da enxurrada de questionamentos.

— Quero alguém para sortear a primeira perguntinha.

Um senhor acompanhado de uma menina que puxava um cachorrinho por uma coleira, se prontificou. Meteu a mão na caixinha e trouxe na ponta dos dedos, uma tirinha rosa. Leu:

— Flauta.

O cara de óculos de aro banhado em ouro deu um passo à frente:

— Respondo.

— Quando quiser...

— Instrumento musical de sopro.

— Ótimo. Agora o senhor que respondeu por favor, puxe um papelzinho.

— Tabuada.    

Foi a vez do grandalhão sem camisa.

— Fácil. Livrinho que contém as quatro operações fundamentais.

— Bom. Agora tire a próxima disse a velhinha. Quem se habilita?

O grandalhão sem camisa leu a palavra: — Escanifrado*.

— Não sei...

— Aí está o primeiro burroooooo — completou a velhinha, eufórica.

Uma quase confusão restou formada. A senhora que intermediava, por pouco não levou uns tapas. Ao se ver acuada, deu uns gritos estridentes que reverberaram por todos os espaços da agência. Os funcionários vieram em socorro:

— Senhores, pelo amor de Deus, se comportem como adultos. Que coisa horrível! Quem souber, pode responder.

O silêncio se fez total. Ninguém, claro, sabia definir escanifrado.

— Bem, até agora o meu amigo dos óculos de aro banhado em ouro continua empatado com o nosso amigo grandalhão sem camisa.

— Pois vamos desempatar — se manifestou o senhor que rebocava a menina e o cachorrinho. – Se me permite, senhora, pedirei ao amigo do boné do Flamengo, por gentileza, que sorteie a pergunta seguinte.

— Atenção! — estrondou a senhora - quem acertar, leva os oitenta pães. Quem errar, paga. Entendido?

Todos fizeram que sim balançando a cabeça.

O homem do boné do Flamengo meteu a mão na caixa.

O silêncio se fazia total.

— Mentecapto...

O sujeitinho dos óculos de aro banhado em ouro olhou para o grandalhão sem camisa e o grandalhão sem camisa o encarou, de cima em baixo, desafiador.

— E então, seu intelectual de meia tigela? Passa ou responde?

— Não, eu respondo. E você?

— Também respondo...

— Cedo a vez. Solta a língua. Tá vendo, não sabe. Burroooooo...

— Você idem, também não sabe o que é mentecapto. Burroooooo...

— Você é um energúmeno. Está blefando. Burroooooo...

A boa velhinha resolveu apartar o que logo terminaria em briga.

— Vou contar de um a três. Quando terminar o que souber, responde e leva os oitenta pães. Lá vai: — Um...

Podia ser ouvida até a respiração dos rivais. A roda de curiosos cruzava os dedos, outros rezavam.

— Dois...

— É agora ou nunca: três.

O dos óculos de aro banhado em ouro resolveu abrir a guarda.

— Está bem. Desisto. Não sei a resposta...

— Burro, burro, burroooooo — ecoou a uma só voz em uníssono a galera que assistia e torcia pelos jogadores.

— Silêncio, gente, deixaram a educação no chiqueiro?

— Tudo bem, sou burro. Reconheço. Então diga qualquer um de vocês o que é mentecapto? Vamos, falem, vamos, miseráveis, desembuchem...

Os homens que se doeram ao serem taxados de miseráveis, do nada se engalfinharam e rolaram pelo chão, aos tapas e aos socos. Um corre-corre dos diabos tomou forma.

Os seguranças do estabelecimento precisaram entrar em cena, bem como alguns funcionários. Final da história: viaturas da polícia militar foram acionadas. Todos acabaram na delegacia, inclusive a boa velhinha que teve a ideia dos papeizinhos picados. Nem o idoso que trazia pela mão uma menina com um cãozinho atado a uma coleira conseguiu ficar de fora. Quando saíram escoltados pelos fardados, a multidão (não só das pessoas que esperavam para jogar), como uma dezena de transeuntes que passava na calçada deu novo clamor ao coro das chacotas,  em repeteco:

— Burroooooo!... Burroooooo!... Burroooooo!...
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* Escanifrado = muito magro; magrelo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Sá de Carvalho (Álbum de Trovas)


A gratidão verdadeira
vem de Deus e me apaixona,
é sentido sem barreira,
é bênção que me emociona!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Ao fim de longa batalha
encontrei meu grande amor...
Surge a vitória, se espalha
dentro de mim com ardor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Ao sair da depressão,
senti a vida chegar
com centelha de paixão
no meu peito a iluminar!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Bandeirinhas penduradas
balõezinhos coloridos...
São festas abençoadas
que nos deixam comovidos!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Beijou a mulher do guarda...
Jurou sofrer de miopia...
Enganação felizarda
para a cana que bebia!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Belas marolas do mar
com espumas borbulhantes
explodem a ronronar
no espírito dos amantes!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Da janela eu aprecio
a melodia a adentrar
no espaço do casario...
Triste violino a tocar!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Dei um beijo no bisneto
quando dormia quietinho...
Afaguei com todo afeto
o inocente nenenzinho!
(Ao Miguel)
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Esperamos o milagre,
ficamos esperançosos
que a mão de Deus nos consagre
com primores dadivosos!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Eu o tratei com respeito,
mas você foi muito infame!
Não creio no seu preceito,
nem que, de joelhos, proclame!
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Filhos são inexplicáveis!
Sangue e carne que comovem...
São também inigualáveis
na doçura que promovem!
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Há despedida que dói.
Há a que nos dá alegria,
aquela que nos corrói
e outra que é só poesia!
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Inverno! Tudo de bom:
cama, amor e cobertor!
Curtir um ótimo som,
almejar ser trovador!
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Meu mestre na arte do amor
é o tempo traiçoeiro
que se torna o consultor
de mim, pobre prisioneiro!
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Minha alma que dói, em pranto,
coração seco, sombrio...
São frutos do desencanto
por ter amor tão vadio!
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Mulher, tu és a guerreira
que lutas contra a violência!
Mulher, és a missioneira
que combate a turbulência!
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Na canoa sigo em frente...
Forte, luto contra o vento,
nesse mar tão turbulento
buscando um amor ardente!
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Naquele beijo roubado
ficou a eterna lembrança
de quem foi o mais amado
no silêncio da esperança!
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Nas horas das aflições
com desespero e temor,
busco o Senhor das ações
no reencontro de amor!
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No lindo olhar verde-mar
onde sozinho navego,
nas ondas do meu sonhar,
mil utopias carrego!
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No meu livro preferido
acho a folha perfumada
de quando eu, surpreendido,
recebi da minha amada!
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O burburinho dolente
no riacho acolhedor,
traz de volta, complacente,
o passado abrasador!
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Ó Francisco, padroeiro
da trova e do trovador,
de Jesus és o luzeiro,
do pobre és o defensor!
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Os seus olhos de criança,
meu coração disparado
são os frutos da esperança
de um amor afortunado!
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O Zé, cheio de cachaça,
se mete a tal valentão,
com a vizinha se engraça
e recebe um bofetão!
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Pé de moleque, cocadas,
canjica, bolo, quentão,
batidas tão perfumadas
pra esquentar o coração!
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Poder amar sem medida,
de peito aberto, sem medo,
chorar, cantar todo dia...
É a vida sem segredo!
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Quero abrandar a rudeza
tirar a dor que admoesta,
vestir-me com a leveza
das borboletas em festa!
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Senhor, meu Deus amoroso,
ponho em Ti minha esperança,
muda o que está nebuloso,
dê a nós mais segurança!
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Tanta dor e sofrimento
marcam o ano que findou,
mas Deus, num deslumbramento,
a vacina abençoou!
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Trovador não tem idade;
fala de Deus e do amor,
nas trovas mostra a saudade,
um coração sonhador!
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Ver o mundo com olhar
especial, glamoroso,
é um dom peculiar
próprio do poeta ardoroso.

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TROVAS PREMIADAS

A atitude petulante
que eu lia na sua face
foi de fato relevante...
Destruiu o nosso enlace!
(Menção Especial – São José dos Campos /SP)
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A justiça verdadeira
somente Deus pode dar.
A dos homens é matreira,
pretende ao povo enganar!
(4. Lugar – Menção honrosa – Ocara/CE – 2019)
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Aquela que tem piedade
é pessoa de valor.
Sabe unir fraternidade
com a caridade e o amor.
(2. Lugar – Cantagalo/RJ – 2017)
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Do negro céu estrelado
a estrela mais resplendente
dá ao mundo o mais sagrado
e iluminado presente!
(Cantagalo/RJ – 2020)
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Meninos... Bola de meia
no chão batido da vida,
buscam o que Deus semeia;
muita bênção merecida!
(2. Lugar – Menção Especial – Colômbia – 2020)
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Quando se vive a partilha
entre irmãos, finda a guerra...
Não mais a gente se humilha
todo conflito se encerra!
(5. Lugar – Curitiba – 2019)
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Sempre tive muita sorte,
mas sequer eu atinava
que era Deus o meu suporte
que a mim sempre abençoava!
(2. Lugar – Petrópolis/RJ – 2020)
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Viçosa, terra encantada!
Seu povo não é incréu,
bela serra abençoada
a orar na Igreja do céu!
(2. lugar – Maranguape/CE – 2016)

Fonte:
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.
Livro enviado por Jessé Nascimento.

Samuel da Costa (Em perpétuos ciclos)


Em memória de João Carlos Pereira

‘’Eu prefiro as certezas do sim!
Do que a incertezas do talvez.’’
Clarisse da Costa


Uma vaga leve fragrância de flor de laranja alternado por um forte olor almiscarado estava suspenso no ar. Uma explosão de fortes e vívidas cores irritou muito o agente de segurança que vagava pelo salão. O vai e vem de gente negra, de vários tons de pele escura, pulseiras reluzentes, enormes brincos, lenços na cabeça, turbantes variados e as roupas berrantes e chamativas.

E o som baixo e discreto de eufônicas de variadas línguas estrangeiras que se lançavam no ar e intercambiavam entre as pessoas que ocupavam os espaços como se fosse uma perfeita sinfonia. O agente de segurança de idade avançada sentiu um frio na espinha como nunca tinha sentido antes.
***

— Aquieto-me para recomeçar um novo ciclo professor Muteia. O texto quase parece com o de uma falecida autora. Mas a obra é minha com toda a certeza!

O rascunho estava na mesa, Adérito Muteia relutava em pegar o manuscrito para ler. O literato africano já tinha recebido uma cópia em mídia digital. Mas algo gritava dentro dele e de forma desesperada.

— Minha querida Fabiana de Lima, não creio que posso satisfazer os anseios de vossa senhoria no momento.

O palavrório afetado, com leve sotaque luso, irritou a jovial loura, vestida sobriamente como uma aluna de pós-graduação a apresentar uma tese, com seu tailleur chanel azul limão. Os olhos castanhos em chamas dela cravaram profundamente em Muteia, o africano devolveu semicerrando os olhos negros profundos. Seria uma reunião e tanto pensou Muteia àquela hora.

O agente de segurança passou ao lado de onde Fabiana e Muteia foram se alojar. O homem da lei, muito idoso para um agente de campo, parou e se voltou de forma abrupta para o casal. Mil vozes mínimas em desesperos urraram dentre dele, o casal impassível sequer deu pela existência do homem idoso impecavelmente vestido que andava com a ajuda de uma bengala e de óculos escuros. Cansado o homem sai da sala onde estava, sai como quem foge para salvar a vida cambaleando e lânguido.

— Então irá fazer mudanças no texto? Olha, ô miúda, eu não tenho muito tempo para aspirantes a escritores, és ambiciosa demais e não creio que...

— Balela, professor Muteia! — Falou em tom de desafio — Não vim de tão longe para ter a sua aprovação pessoal!

— Não me interrompa de novo, miúda! Não vou e não quero te dar aprovação alguma, não é este o meu papel!

Muteia estava falando com a jovem adulta na frente dele como se estivesse de novo em campo de batalha. O adido militar já tinha visto isto antes, bem falantes e corajosos jovens combatentes recém saídos de treinamento apressados, em desespero eles choraram e se esconderam quando os combates começavam de fato.

— Não quero ser grosseira professor, me desculpe, eu só vim de muito longe e quero ser publicada, eu quero ser mais útil!

Muteia sentiu um zumbido que crescia e crescia, um drone pensou, dois drones na verdade calculou o professor africano. E o literato ficou mais relaxado e pensou em um charuto, sentia a necessidade de um charuto a bem da verdade.

E não demorou muito um jovem secretário indiano bem alinhado veio com uma bandeja de madeira com as bordas artesanalmente decoradas. Nela uma caixa de charutos pintada a mão e de copo de cristal decorado, nela havia chá de lima-da-pérsia gelado. O jovem de cabelos negros e olhos negros vivazes serviu o casal e desapareceu tão rápido quanto chegou.

Miúda não somente querer, pensar ou mesmo desejar! Na verdade, é tudo isto junto temperado com as a casualidades que a vida nos impõe! E temos que viver e conviver não somente com as nossas escolhas, mas também com as escolhas alheias.

O zumbido ficou mais alto, e o literato esperou e esperou enquanto pegou o cortador de charutos Don Emmanuel e o isqueiro à querosene com tanque de óleo transparente. O professor, literato e adido militar preparou e acendeu o charuto cubano que tinha levado à boca e deu uma demorada baforada.

A jovem escritora levantou a mão fechada em punho na frente do Muteia, abriu e fechou! O drone parado a poucos metros dos dois se esmigalhou e caiu no meio da rua, caiu na calçada e não atingiu ninguém. Muteia dá uma segunda baforada seguida de um discreto sorriso de marfim e bate palmas.

— Jovem e impulsiva! E nada discreta pelo que vejo!

O segundo drone parado a quilômetros de distância caiu lentamente, foi para em uma mata fechada do que seria um jardim de uma luxuosa casa abandonada. Muteia, muito cansara em dar aulas para estes jovens impulsivos.

— Vamos ver com mais cuidado o que temos aqui. — Muteia pegou o manuscrito em cima da mesa e leu: Eu falo entre estátuas!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (Volpone ou A Raposa, de Ben Jonson)


Volpone ou A Raposa, é a história de um homem rico, velho e sem filhos, apaixonado pelas boas coisas da vida e sobretudo pelo dinheiro que as compra. Ao seu redor vive uma nuvem de falsos amigos que ambicionam se tornarem seus herdeiros. Para se divertir com eles, Volpone se faz passar por moribundo, fazendo com que cada um acredite que será seu beneficiário. Dessa exposição de vícios e mesquinhez resulta uma visão absolutamente cínica da natureza humana.

A penetração psicológica, a habilidade da construção dramática e sobretudo a verve utilizada por Ben Jonson fizeram de Volpone ou a raposa uma das melhores obras da literatura inglesa.
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Benjamin Jonson, conhecido como Ben Jonson (1572 - 1637), foi um dramaturgo, poeta e ator inglês da Renascença. Ben Jonson é considerado um dos três pilares da era elisabetana, ao lado de Marlowe e Shakespeare, entre suas peças mais conhecidas estão Volpone, A Feira de São Bartolomeu: uma Comédia e O Alquimista. De fundamental importância para a renovação do teatro na primeira metade do século XVII. Suas peças eram tão populares em sua época quanto as do próprio William Shakespeare (1564-1616), seu rival contemporâneo e conterrâneo. Mestre do diálogo e do perfeito delineamento de personagens, manejava enredos muito bem construídos e defendia que o teatro era para divertir e instruir. Sua fórmula de comédia de costumes, que tinha por base uma curiosa teoria dos humores, continuou a exercer profunda influência na dramaturgia europeia por mais de dois séculos seguintes.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 10

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 47, 48 e 49


O LAZER DA FORMIGA


A formiga entrou no cinema porque achou a porta aberta e ninguém lhe pediu bilhete de entrada. Até aí, nada de mais, porque não é costume exigir bilhete de entrada a formigas. Elas gozam de certos privilégios, sem abusar deles.

O filme estava no meio. A formiga pensou em solicitar ao gerente que fosse interrompida a projeção para recomeçar do princípio, já que ela não estava entendendo nada; o filme era triste, e os anúncios falavam de comédia. Desistiu da ideia; talvez o cômico estivesse nisso mesmo.

A jovem sentada à sua esquerda fazia ruído ao comer pipoca, mas era uma boa alma e ofereceu pipoca à formiga. — Obrigada — respondeu ela —, estou de luto recente. — Compreendo — disse a moça —, ultimamente há muitas razões para não comer pipoca.

A formiga não estava disposta a conversar, e mudou de poltrona. Antes não o fizesse. Ficou ao lado de um senhor que coleciona formigas, e que sentiu, pelo cheiro, a raridade de sua espécie. Você será a 7001a da minha coleção, disse ele, esfregando as mãos de contente. E abrindo uma caixinha de rapé, colocou dentro a formiga, fechou a caixinha e saiu do cinema.
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ONDE NINGUÉM ENTRA

Na casa do rei, que é um palácio de corindo e pórfiro vermelho antigo, não posso entrar, mas nos jardins do rei, abertos à visitação pública, eu e meus amigos e os amigos de meus amigos temos direito de passear e até de fazer piquenique.

Vivemos de olhos cravados nas janelas da casa do rei, pois há expectativa de ele assomar e saudar-nos ou fazer um gesto qualquer. Até agora isto não aconteceu. Começamos a suspeitar que o rei não mora, nunca morou em sua casa.

Então onde mora o rei, e se não mora ali, por que não nos franqueiam a entrada da casa? O guarda explicou-nos que seria contra o protocolo, e não pode haver rei sem protocolo. E que não fazia mal o rei, por hipótese, não morar ali ou mesmo em nenhum lugar, pois o rei não é propriamente uma pessoa, mas uma instituição, ao passo que nós, seus súditos, somos pessoas físicas e em geral não nos comportamos bem nos paços.

Um dia destes alguém, desconhecido de nós todos, tentou forçar a entrada na casa do rei e foi dissuadido com bons modos. Como insistisse, removeram-no à força. Meu filho de oito anos, que assistiu à cena, perguntou: “Quem sabe se era o rei que queria entrar?”.
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O PERGUNTAR E O RESPONDER

O espelho recusou-se a responder a Lavínia que ela é a mais bela mulher do Brasil. Aliás, não respondeu nada. Era um espelho muito silencioso. Lavínia retirou-o da parede e colocou outro, que emitia sons ininteligíveis, e foi também substituído.

O terceiro espelho já fazia uso moderado da palavra, porém não dizia coisa com coisa.

Um quarto espelho chegou a pronunciar nitidamente esta frase:

“Vou pensar”. Ficou pensando a semana inteira, sem chegar à conclusão.

Lavínia apelou para um quinto espelho, e este, antes que a vaidosa senhora fizesse a interrogação aflita, perguntou-lhe:

— Mulher, haverá no Brasil espelho mais belo do que eu?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Mário Quintana em Prosa e Verso – 18 –


DAS IDEIAS


Qualquer ideia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez, que vestir a verdade
Que dentro em ti se achava inteiramente nua…
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DA AMIZADE ENTRE MULHERES

Dizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual!
Haverá quem nisso creia?
Salvo se uma das duas, por sinal,
For muito velha, ou muito feia...
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DA FELICIDADE

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!
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DA REALIDADE

O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! Quanta vez a vida nos revela
Que "a saudade da amada criatura"
É bem melhor do que a presença dela...
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DO AMOROSO ESQUECIMENTO

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
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DA DISCRIÇÃO

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo de teu amigo
Possui amigos também...
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DA PREGUIÇA

Suave Preguiça, que do mau-querer
E de tolices mil ao abrigo nos pões...
Por causa tua, quantas más ações
Deixei de cometer!
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DO OVO DE COLOMBO

Nos acontecimentos, sim, é que há Destino:
Nos homens, não - espuma de um segundo...
Se Colombo morresse em pequenino,
O Neves descobria o Novo Mundo!
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DO MAL DA VELHICE

Chega a velhice um dia... E a gente ainda pensa
Que vive... E adora ainda mais a vida!
Como o enfermo que em vez de dar combate à doença
Busca torná-la ainda mais comprida…
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DA MODERAÇÃO

Cuidado! Muito cuidado...
Mesmo no bom caminho urge medida e jeito.
Pois ninguém se parece tanto a um celerado
Como um santo perfeito...
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DA CALÚNIA

Sorri com tranquilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade...
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DA EXPERIÊNCIA

A experiência de nada serve à gente.
É um médico tardio, distraído:
Põe-se a forjar receitas quando o doente
Já está perdido...
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DE COMO PERDOAR AOS INIMIGOS

Perdoas... és cristão... bem o compreendo...
E é mais cômodo, em suma.
Não desculpes, porém, coisa nenhuma,
Que eles bem sabem o que estão fazendo...
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DA CONDIÇÃO HUMANA

Se variam na casca, idêntico é o miolo,
Julguem-se embora de diversa trama:
Ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
Que o mais sutil dos sábios quando ama.
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DA PRÓPRIA OBRA

Exalta o Remendão seu trabalho de esteta...
Mestre Alfaiate gaba o seu corte ao freguês...
Por que motivo só não pode o Poeta
Elogiar o que fez?

Fonte:
Mário Quintana. O Espelho Mágico. Publicado originalmente em 1951.

Luís Fernando Veríssimo (Trapezista)

Querida, eu juro que não era eu. Que coisa ridícula! Se você estivesse aqui — Alô? Alô? — olha, se você estivesse aqui ia ver a minha cara, inocente como o Diabo. O quê? Mas como, ironia? "Como o Diabo" é força de expressão, que diabo. Você acha que eu ia brincar numa hora desta? Alô! Eu juro, pelo que há de mais sagrado, pelo túmulo de minha mãe, pela nossa conta no banco, pela cabeça dos nossos filhos que não era eu naquela foto de carnaval no Cascalho que saiu na Folha da Manhã. O quê? Alô! Alô! Como é que eu sei qual é a foto? Mas você não acaba de dizer... Ah, você não chegou a dizer... ah, você não chegou a dizer qual era o jornal. Bom, bem. Você não vai acreditar mas acontece que eu também vi a foto. Não desliga! Eu também vi a foto e tive a mesma reação. Que sujeito parecido comigo, pensei. Podia ser gêmeo. Agora, querida, nunca, em nenhum momento, está ouvindo? Em nenhum momento me passou pela cabeça a ideia de que você fosse pensar — querida, eu estou até começando a achar graça —, que você fosse pensar que aquele era eu. Por amor de Deus. Pra começo de conversa você pode me imaginar de pareô vermelho e colar havaiano, pulando no Cascalho com uma bandida em cada braço? Não, faça-me o favor. E a cara das bandidas! Francamente, já que você não confia na minha fidelidade, que confiasse no meu bom gosto, poxa! O quê? Querida, eu não disse "pareô vermelho". Tenho a mais absoluta, a mais tranquila, a mais inabalável certeza que eu disse apenas "pareô". Como é que eu podia saber que era vermelho se a fotografia não era em cores, certo? Alô? Alô? Não desliga! Não... Olha, se você desligar está tudo acabado. Tudo acabado. Você não precisa nem voltar da praia. Fica aí com as crianças e funda uma colônia de pescadores. Não, estou falando sério.

Perdi a paciência. Afinal, se você não confia em mim não adianta nada a gente continuar. Um casamento deve se... se... como é mesmo a palavra?... se alicerçar na confiança mútua. O casamento é como um número de trapézio, um precisa confiar no outro até de olhos fechados. É isso mesmo. E sabe de outra coisa? Eu não precisava ficar na cidade durante o carnaval. Foi tudo mentira. Eu não tinha trabalho acumulado no escritório coisíssima nenhuma. Eu fiquei sabe para quê? Para testar você. Ficar na cidade foi como dar um salto mortal, sem rede, só para saber se você me pegaria no ar. Um teste do nosso amor. E você falhou. Você me decepcionou. Não vou nem gritar por socorro. Não, não me interrompa.

Desculpas não adiantam mais. O próximo som que você ouvir será do meu corpo se estatelando, com o baque surdo da desilusão, no duro chão da realidade. Alô? Eu disse que o próximo som... que... O quê? Você não estava ouvindo nada? Qual foi a última coisa que você ouviu, coração?

Pois sim, eu não falei — tenho certeza absoluta que não falei — em "pareô vermelho". Sei lá que cor era o pareô daquele cretino na foto. Você precisa acreditar em mim, querida. O casamento é como um número de...

Sim. Não. Claro. Como? Não. Certo. Quando você voltar pode perguntar para o... Você quer que eu jure? De novo? Pois eu juro. Passei sábado, domingo, segunda e terça no escritório. Não vi carnaval nem pela janela. Só vim em casa tomar um banho e comer um sanduíche e vou logo voltar para lá. Como? Você telefonou para o escritório. Meu bem, é claro que a telefonista não estava trabalhando, não é, bem. Ha, ha, você é demais. Olha, querida? Alô? Sábado eu estou aí. beijo nas crianças. Socorro. Eu disse, um beijo.

Fonte:
Luís Fernando Veríssimo. As mentiras que os homens contam. Publicado em 2000.

domingo, 2 de janeiro de 2022

Versejando 95


 

Humberto de Campos (Ilusão)

Abraçado a um poste de iluminação elétrica, tonto de cerveja e de fome, o velho boêmio levantou os olhos para as estrelas longínquas, naquela madrugada fria, sentindo a terra, em torno, estremecer e rodar. Com medo de cair, o notívago apertou mais o poste de encontro ao peito, fechou os olhos e começou a sonhar.

A principio era um monte de moedas de ouro, postas umas sobre as outras, que lhe dava quase pelos joelhos. De repente, o monte começou a subir, a crescer, a avolumar-se, atingindo a sua altura e galgando o espaço, rápido, como um caule dourado de crescimento vertiginoso. O boêmio acompanhava o desenvolvimento daquela árvore curiosa, quando, no escândalo daquela ascensão, lhe viu desaparecer a ponta nas nuvens, estabelecendo uma corda de ouro, fina e imensa, ligando a terra ao céu. Olhava-a ele admirado, quando ouviu uma voz, que lhe dizia:

- Sobe, Alfredo!

O notívago segurou-se à corda de ouro, feita de moedas acumuladas, e principiava a subi-la, quando esta, de repente, estalou, partindo-se, fazendo-o vir aos trambolhões pela altura, estatelar-se, com força, no chão.

Abrindo os olhos, o boêmio sentiu-se assentado no calçamento da rua, ao lado do poste. Espantado, passeou a vista em redor, e, detendo-a em certo ponto, viu, no asfalto, caída da algibeira de algum transeunte, uma pequena moeda de cem réis. Estendendo a mão, apanhou-a, revirou-a nos dedos, examinou-a e, ao fim de tudo isso, pensou, num sorriso de consolo:

- Felizmente, sempre ficou, no chão, a ponta da corda!

E metendo o níquel no bolso, continuou, aos trancos, o seu caminho.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Ronnaldo de Andrade (Album de Spinas) 3

EM QUESTIONAMENTO

Aumento meus vícios,
destruo meus sonhos,
produzo meus versos

áridos, ásperos, azedos qual limão;
causas da estrada infinita amorosa!
A cabeça pesada, passos dispersos,
sinto-me alucinado, em um labirinto
de dúvidas; gostos vis, controversos.
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NOS PASSOS DO REALISMO

Arrancam as roupas,
transam pelas vielas,
vergonha não existe.

Andam aos gritos, cantarolam bêbados,
propelem pedras contra alguns animais,
enquanto o astro-rei escaldante assiste
às peripécias desses impudentes seres;
nessa desordenância a ordem preexiste!
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O VIAJANTE

Atraque seu barco,
atire-se nas águas,
viva esse instante.

Permita que a sereia cante
às dores de amores findos,
um hino para cada amante.
Depois siga avante. Vá, vá
singrando o mar, ó viajante.
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O VIAJANTE II

Singrando o mar,
furando as ondas,
avisto o barquinho.

Ele some assim, bem devagarinho,
naquele seu sobe, desce contínuo,
livre, semelhante a um passarinho.
Na bandeira levantada está escrito:
"Nenhum homem deverá ir sozinho".
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O VIAJANTE III

Tentando se libertar
da intensa sensação
de amor tresloucado,

que faz do nosso peito
um hospício; a paz (ah!
a paz) ser rio estourado;
sim, assim vai o homem,
sem o bem mais amado!

Murilo Rubião (A noiva da casa azul)


"A figueira começou a dar os seus primeiros figos; as vinhas, em flor, exalam o seu perfume. Levanta-te, amiga minha, formosa minha, e vem."
(Cântico dos Cânticos, II, 13)


Não foi a dúvida e sim a raiva que me levou a embarcar no mesmo dia com destino a Juparassu, para onde deveria ter seguido minha namorada, segundo a carta que recebi.

Sim, a raiva. Uma raiva incontrolável, que se extravasava ao menor movimento dos outros viajantes, tornando-me grosseiro, a ponto dos meus vizinhos de banco sentirem-se incomodados, sem saber se estavam diante de um neurastênico ou débil mental.

A culpa era de Dalila. Que necessidade tinha de me escrever que na véspera de partir do Rio dançara algumas vezes com o ex-noivo? Se ele aparecera por acaso na festa, e se fora por simples questão de cortesia que ela não o repelira, por que mencionar o fato?

Não me considero ciumento, mas aquela carta bulia com os meus nervos. Fazia com que, a todo instante, eu cerrasse os dentes ou soltasse uma praga.

Acalmei-me um pouco ao verificar, pela repentina mudança da paisagem, que dentro de meia hora terminaria a viagem e Juparassu surgiria no cimo da serra, mostrando a estaçãozinha amarela. As casas de campo só muito depois, quando já tivesse desembarcado e percorrido uns dois quilômetros a cavalo. A primeira seria a minha, com as paredes caiadas de branco, as janelas ovais.

Deixei que a ternura me envolvesse e a imaginação fosse encontrar, bem antes dos olhos, aqueles sítios que representavam a melhor parte da minha adolescência.

Sem que eu percebesse, desaparecera todo o rancor que nutrira por Dalila no decorrer da viagem. Nem mesmo a impaciência de chegar me perturbava. Esquecido das prevenções anteriores, aguardava o momento em que eu apertaria nos braços a namorada. Cerrei as pálpebras para fruir intensamente a vontade de beijá-la, abraçá-la. Nada falaria da suspeita, da minha raiva. Apenas diria:

- Vim de surpresa para ficarmos noivos.

O chefe do trem arrancou-me bruscamente do meu devaneio:

- O senhor pretende mesmo desembarcar em Juparassu?

- Claro. Onde queria que eu desembarcasse?

- É muito estranho que alguém procure esse lugar.

Não sabendo a que atribuir a impertinência e a estranheza do funcionário da estrada, resmunguei um palavrão, que o deixou confuso, a pedir desculpas pela sua involuntária curiosidade.

Juparassu! Juparassu surgia agora ante os meus olhos, no alto da serra. Mais quinze minutos e estaria na plataforma da estação, aguardando condução para casa, onde mal jogaria a bagagem e iria ao encontro de Dalila.

Sim, ao encontro de Dalila. De Dalila que, em menina, tinha o rosto sardento e era uma garota implicante, rusguenta. Não a tolerava e os nossos pais se odiavam. Questões de divisas dos terrenos e pequenos casos de animais que rompiam tapumes, para que maior fosse o ódio dos dois vizinhos.

Mas, no verão passado, por ocasião da morte de meu pai, os moradores da Casa Azul, assim como os ingleses das duas casas de campo restantes, foram levar-me suas condolências, e tive dupla surpresa: Dalila perdera as sardas, e seus pais, ao contrário do que pensava, eram ótimas pessoas.

Trocamos visitas e, uma noite, beijei Dalila.

Nunca Juparassu apareceu tão linda e nunca as suas serras foram tão azuis.

Logo que desci na estaçãozinha solícito, o agente tomou-me as malas:

- O senhor é o engenheiro encarregado de estudar a reforma da linha, não? Por que não avisou com antecedência? Arrumaríamos o nosso melhor quarto.

- Ora, meu amigo, não sou engenheiro, nem pretendo ver obra alguma.

- Então, o que veio fazer aqui?

Refreei uma resposta malcriada, que a insolente pergunta merecia, notando ser sincero o assombro do empregado da estrada.

- Tenciono passar as férias em minha casa de campo.

- Não sei como poderá.

- É coisa tão fantástica passar o verão em Juparassu? Ou, quem sabe, andam por aqui temíveis pistoleiros?

- Pistoleiros não há, mas acontece que as casas de campo estão em ruínas.

Tive um momento de hesitação. Estaria falando com um cretino ou fora escolhido para vítima de desagradável brincadeira? O homem, entretanto, falava sério, parecia uma pessoa normal. Achei melhor não insistir no assunto:

- Quem me alugaria um cavalo, para dar umas voltas pelas vizinhanças?

A resposta me desconcertou: não existiam cavalos no lugar.

- E para que cavalos, se nada há de interesse para ver nos arredores?

Procurei tranquilizar o meu interlocutor, pois pressentia estar sob suspeita de loucura. Menti-lhe, dizendo que há muitos anos não vinha àquelas paragens. O meu objetivo era apenas de rever lugares por onde passara em data bem remota.

O agente sentiu-se aliviado:

- O senhor me assustou. Pensei que conversava com um paranóico. - E, amável, se prontificou a me acompanhar no passeio. Recusei o oferecimento. Necessitava da solidão a fim de refazer-me do impacto sofrido por acontecimentos tão desnorteantes.

Não caminhara mais de vinte minutos, quando estaquei aturdido: da minha casa restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado caído, o mato invadindo tudo.

Apesar das coisas me aparecerem com extrema nitidez, espelhando uma realidade impossível de ser negada, resistia à sua aceitação. Rodeei a propriedade e encontrei, nos fundos, um colono cuidando de uma pequena roça. Aproximei-me dele e indaguei se residia ali há muito tempo.

- Desde menino - respondeu, levantando a cabeça.

- Certamente conheceu esta casa antes dela se desintegrar. O que houve? Foi um tremor de terra? - insisti, à espera de uma palavra salvadora que desfizesse o pesadelo.

- Nada disso aconteceu. Sei da história toda, contada por meu pai.

A seguir, relatou que a decadência da região se iniciara com uma epidemia de febre amarela, a se repetir por alguns anos, razão pela qual ninguém mais se interessou pelo lugar. Os moradores das casas de campo sobreviventes nunca mais voltaram, nem conseguiram vender as propriedades. Acrescentou ainda que o rapaz daquela casa fora levado para Minas com a saúde precária e ignorava se resistira à doença.

- E Dalila? - perguntei ansioso.

Disse que não conhecera nenhuma pessoa com esse nome e foi preciso explicar-lhe que se tratava da moça da Casa Azul.

- Ah! A noiva do moço desta casa?

- Não era minha noiva. Apenas namorada.

-  Não? Será que... - deixou a frase incompleta: - É o senhor, o jovem que morava aqui?

Para evitar novas perguntas, preferi negar, insistindo na pergunta anterior:

- E Dalila?

- Morreu.

Fiquei siderado ao ver ruir a tênue esperança que ainda alimentava. Sem me despedir, retomei a caminhada. Os passos trôpegos, divisando confusamente a vegetação na orla da estreita picada, subi até uma pequena colina. Do alto da elevação, avistei as ruínas da Casa Azul. Avistei-as sem assombro, sem emoção. Cessara toda a minha capacidade emocional. Os meus passos se tornaram firmes novamente, e de lá de dentro dos escombros eu iria retirar a minha amada.

Descolorida e quieta a Casa Azul está na minha frente. Caminho por entre os seus destroços. A escadinha de tijolos semidestruída. Aqui nos beijamos. Beijamo-nos no alpendre, cheio de trepadeiras, cadeiras de balanço, onde, por longas horas, ficávamos assentados. Depois do alpendre esburacado, o corredor. Dalila me veio fortemente. Subo a custo os degraus apodrecidos da escada de madeira. Chego ao quarto dela: teias de aranha. Vazio, vazio, meu Deus! Grito: Dalila, Dalila! Nada. Corro aos outros quartos. Todos vazios. Só teias de aranha, as janelas saindo das paredes, o assoalho apodrecendo.

Desço. Grito mais: Dalila, Dalila! Grito desesperado: Dalila, minha querida! O silêncio, um silêncio brutal responde ao meu apelo. Volto ao quarto dela: parece que Dalila está lá e não a vejo. O seu corpo miúdo, os olhos meigos, os cabelos dourados. Abraça-me e não sinto os seus braços.

A noite já estava aparecendo por entre o teto fendido. Grito ainda: Dalila, Dalila, meu amor! Corta-me a agonia. Corro desvairado.

Fonte:
Murilo Rubião. Contos reunidos. Conto publicado originalmente em 1947.

Jaqueline Machado (As veredas do grande sertão)

“Só se pode viver perto de outro e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Diadorim, meu amor! Como posso explicar o poder do amor que eu criei, minha vida o diga: Diadorim tomou conta de mim. E, eu o abracei com as asas de todos os pássaros.”

Com esse belíssimo trecho do célebre livro “Grande Sertão: Veredas”, de 1956, do escritor mineiro João Guimarães Rosa, dou início a um breve desabafo, o qual retiro agora de minhas entranhas, para falar desta obra.

Grande Sertão não foi escrito para ser apenas lido, mas sentido ... Caso contrário, quase nada será compreendido.

Não tive tantas dificuldades em me familiarizar com a sua mensagem, já que se trata de assuntos comuns à minha pessoa. Quem me conhece sabe o quanto me dedico a tentar desvendar as questões sobre o Bem e o Mal que circundam o nosso mundo externo e interior.

“- Nonada”, com essa palavra, que equivale a algo como: “: Que nada” ou “Nada disso” que dá início à narrativa do protagonista, um senhor de idade avançada, que literalmente do nada, passa a contar suas aventuras a um forasteiro, começo o meu relato sobre o livro:

Aos 14 anos, Riobaldo ficou doente e sua mãe fez promessas para o filho ficar bom. Quando o menino voltou a se sentir saudável, foi avisado por sua mãezinha de que precisaria ficar no Porto do Rio de Janeiro, esmolando. Um pouco do dinheiro que conseguisse, seria para pagar uma missa, e a outra parte que sobrasse deveria ser colocada numa cabaça para descer o rio São Francisco abaixo até chegar a um santuário.

No decorrer da missão, ele avista um jovem de expressão suave e olhos verdes, sentado debaixo de uma árvore, pitando um cigarro. Os dois ficam amigos. O menino de expressão doce, compra queijo e rapadura e o convida a um passeio pelo rio. Em certo momento, Riobaldo começa a temer as fortes correntezas. É quando o amigo diz: “Tem que atravessar. “É preciso ter coragem”. Durante o trajeto, essa frase é repetida três vezes como se fosse uma prece ou um mantra de proteção.

Ao completarem a travessia, sentam em um matagal cheio de bambuzais e, ali comem o queijo e a rapadura, aspirando uma certa solenidade divina. Aquela refeição nos remete a uma espécie de festim sagrado, que celebra a “travessia da vida”.

Riobaldo queria cruzar o caminho por uma margem mais simples, mas o novo amigo o fez entender que é preciso exercitar a coragem para estar preparado, pois quando a vida inventa de exigir que se faça um sacrifício, não costuma amenizar o problema.

Os rios possuem três margens: a da embarcação, a da chegada e a do fundo que estrutura as águas. Assim é com nossas vidas, entre o nascimento e a morte: há o meio. O transcorrer de nossas vontades. E o cumprimento, em si, da missão que nascemos para cumprir.

No entanto, por falta de coragem, nós, em sua maioria, nascemos, crescemos, procriamos e morremos sem passar pelas grandes aventuras ou pelos grandes sertões, veredas da vida. Isso acontece, porque fazer escolhas e superar os medos é difícil. É como diz outra frase famosa do livro: “Viver é muito perigoso”...

O protagonista da história bem sabia de tudo isso. Cresceu, virou jagunço, viu coisa que até o “demo” duvida. Ele próprio já fizera coisas erradas e até um pacto com o “coisa ruim”, que na verdade, ninguém sabe ao certo se foi efetuado ou não. E hoje, envelhecido, vive a filosofar sobre a existência.

Na busca pela compreensão da vida, observa a natureza e se utiliza de todas as religiões. Eis aí, vestígios de culpa... O velho protagonista sempre foi homem matuto, mas o tempo a sobrar em sua velhice lhe despertou imensa curiosidade e profunda sabedoria.

Sobre as existências ele diz:

“Se o diabo existe? Se existe é nos crespos do homem (no interior). Pois, como pode o homem ser bom e ao mesmo tempo capaz das maiores atrocidades?...

Ainda refletindo sobre o que existe ou não existe. Cachoeira, é um barranco de chão e água caindo, por ele retumbando. Consumindo a água ou desfazendo o barranco, sobra cachoeira alguma. Então, a cachoeira existe ou não existe? “Viver é um negócio muito perigoso”,


Continua ele no transcorrer dos assuntos: “Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é muito provisório. Eu queria rezar o tempo todo”.

E para encerrar, a frase na qual reconheci a mim mesma e que me fez chorar ... “Por toda minha vida pensei por mim. Forro! Sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo. Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa”...

Nesse diálogo de infinitas sapiências, pude apenas escolher alguns trechos para dizer: João Guimarães Rosa, ao sentar para escrever este livro, tinha como missão despertar nossas almas para sermos o que realmente somos. Sem temores...Não fazendo como o próprio Riobaldo, que apesar de se considerar forro, passou a vida relutando contra o amor que sentia pelo amigo, também jagunço, que futuramente veio a se chamar Diadorim.

Há, mas Diadorim era mulher vestida de homem... No entanto, apenas sua alma sabia disso. Por temer a travessia, só pode abraçá-la com as asas de todos os pássaros quando os olhos de seu amor haviam se fechado para a vida. E o seu tempo para amar havia se encerrado.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Adega de Versos 64: Silva Filho (PI)

  
Poesia obtida em Mensagens Poéticas, de Ademar Macedo n. 524,  6/ab/2012
não localizei mais dados sobre o poeta.

Humberto de Campos (Experiência)

Companheiros de mocidade, o comendador Otacílio Fagundes e o desembargador Portela haviam se separado, de repente, em uma das numerosas encruzilhadas da vida. Dedicados, um ao comércio, e outro a magistratura, havia cada um deles seguido o seu caminho, apertando a mão ao companheiro. E nunca mais tiveram noticia um do outro

E, no entanto, haviam os dois prosperado. Dirigindo-se para Santos, onde um tio, velho comerciante de café, lhe oferecia um lugar no escritório, progredira Fagundes rapidamente, até que se tornara, por morte do tio, o único proprietário da casa. Tomando o rumo da Corte, com a sua carta de bacharel, o amigo não havia sido menos feliz. Hábil, maneiroso, aproveitando as situações sem quebra de dignidade, não lhe foi difícil um cargo de juiz em pequena província do norte, onde regressara, afinal, ao sul, como desembargador aposentado.

Quarenta anos haviam decorrido, quase, sobre a separação dos dois infatigáveis campineiros, quando, um destes dias, indo receber um cheque no Banco do Brasil, o comendador Fagundes ouviu gritar, na pagadoria, ao portador de uma ordem de pagamento: - Francisco Ribeiro Portela!

Atendendo ao chamado, aproximou-se empertigado ainda, um ancião de sessenta anos, vestido com distinção, demonstrando nos modos, no porte, nas maneiras, saúde e prosperidade.

Ao anúncio daquele nome, o comendador Fagundes, que assinava o cheque em mesa próxima, voltou-se, rápido, com o peso das suas banhas e dos seus setenta anos, e encarou o outro. E encaminhando-se para ele, indagou:

- É o Francisco Portela, de Campinas?

- Sim, senhor.

- Eu sou o Otacílio Fagundes.

Um abraço enorme, que mais parecia um primeiro assalto de luta romana, selou esse encontro de duas saudades.

- Fagundes!

- Portela!

Três minutos depois estavam os dois velhotes a um canto, de pé, enxugando os olhos, trocando noticias da vida e da fortuna. O capitalista contou, primeiro, como ficara com a casa do tio; como lhe corriam admiravelmente os negócios; como lhe havia sido, em suma, favorável, no mundo, a roda do Destino. E o magistrado contou-lhe, depois, como subira, como prosperara, como enriquecera, como havia chegado, enfim, ao mais alto posto da sua carreira, no Estado. De repente, porém, o comerciante indagou:

- E constituíste família?

- Eu? Não. Continuei solteiro. E tu?

- Eu casei-me.

- Casaste?

- É verdade.

- Há muito tempo?

- Não. Há dois anos. Casei com uma menina de vinte anos, minha afilhada, e já tenho um filhinho.

- Um filho? - indagou o desembargador, recuando.

E ao ouvido do comendador, indignado:

- E de quem tu desconfias?

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXVI

VIVE O SONHO


MOTE:
Se a vida é sonho fugaz,
vive o sonho bem vivido,
que o remorso vem atrás
de cada instante perdido.
Carolina Ramos
(Santos/SP)


GLOSA:
Se a vida é sonho fugaz,

vive e sonha essa alegria,
inventa outro sonho e faz
mais feliz teu dia-a-dia!

Ao romper de cada aurora,
vive o sonho bem vivido,
não lamentes teu outrora...
que ele não volta, é sabido!

Sonhando, tu saberás
que, viver bem, é preciso,
que o remorso vem atrás
de um só momento indeciso!

E colhe os frutos da estrada,
volta, mesmo sem ter ido,
pra não te sentir culpada
de cada instante perdido.
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QUE VOLTASSES...

MOTE:
Que voltasses, era a prece
de minha alma desnorteada:
Tu voltaste, e hoje parece,
que estou sonhando acordada.
Colombina
São Paulo/SP (1882 – 1963)


GLOSA:
Que voltasses, era a prece

da minha noite e meu dia...
Sinto que esse amor merece,
a chegada da alegria!

Está grande o mar de pranto
de minha alma desnorteada:
Nas horas do desencanto,
sem você... choro meu nada!

Mas, minha dor anoitece,
pois és meu sol, minha luz...
Tu voltaste, e hoje parece,
que nem vivi minha cruz!

Estou tão feliz agora,
tão feliz e apaixonada
que parece, a cada hora,
que estou sonhando acordada.
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CASCALHOS

MOTE:
Pisei cascalhos e espinhos...
mas firme, em minhas andanças,
com as pedras dos caminhos
fiz castelos de esperanças.

Edmar Japiassú Maia
(Nova Friburgo/RJ)


GLOSA:
Pisei cascalhos e espinhos...
vi sangrarem os meus pés
seguindo nos descaminhos,
transpondo triste revés...

Continuei minha jornada,
mas firme, em minhas andanças
procurei encher meu nada
com minhas simples lembranças!

Lapidei com meus carinhos,
o que antes era cascalho,
com as pedras dos caminhos
eu construí meu atalho!

Segui, adiante... risonho...
E renovando as alianças,
para a prisão do meu sonho
fiz castelos de esperanças.
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MORADA NA TROVA

MOTE:
Pode o amor, banhado em sonhos,
construir morada nova,
nos braços sempre risonhos
dos quatro versos da trova.

Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:
Pode o amor, banhado em sonhos,
renovar-se, reviver,
mudando os dias tristonhos,
num eterno renascer.

E, assim, feliz e faceiro,
construir morada nova,
e seus dotes de engenheiro,
na construção, pôr à prova.

Apressar dias tardonhos
e atirar-se com alegria,
nos braços sempre risonhos
de ternura da poesia.

Essa morada bonita,
que a felicidade aprova,
tem a beleza infinita
dos quatro versos da trova.
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OS VERSOS QUE EU SONHO

MOTE:
Meu conflito e meu fracasso
é que as trovas que eu componho
têm sempre os versos que faço,
e nunca os versos que eu sonho.

Izo Goldman
(Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP)


GLOSA:
Meu conflito e meu fracasso

vivem sempre dentro em mim...
Caminho, passo-antepasso,
e não atinjo meu fim!

O que me tira a alegria,
é que as trovas que eu componho
não fazem brilhar meu dia,
e muito amor, nelas, ponho!

Sinto aumentar meu cansaço,
pois minhas trovas somente,
têm sempre os versos que faço
que surgem da minha mente.

Minha sensibilidade
é pouca, isso eu suponho,
pois escrevo a realidade
e nunca os versos que eu sonho.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Abril 2003.

Machado de Assis (O Sainete)

 Um dos problemas que mais preocupavam a rua do Ouvidor entre as da Quitanda e Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da tarde, era a profunda e súbita melancolia do Dr. Maciel. O Dr. Maciel tinha apenas vinte e cinco anos, idade em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos Cânticos do que as Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso dos frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia um dueto da Grã Duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense aos domingos da Escola da Glória. Donde vinha pois a melancolia que tanto preocupava a rua do Ouvidor?

Pode o leitor coçar o nariz à procura da explicação, a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr. Maciel ama, que uma "seta do deus alado" o feriu mesmo no centro do coração. O que a leitora não pode adivinhar, sem que eu lhe diga, é que o jovem médico ama a viúva Seixas, cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes. O Dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros. Amou-a desde certa noite e certo baile, em que ela, andando a passear pelo seu braço, perguntou-lhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo:

- Doutor, por que razão não quer honrar a minha casa? Estou visível todas as quintas-feiras para a turba-multa (*multidão), os sábados pertencem aos amigos. Vá lá aos sábados.

Maciel prometeu que iria no primeiro sábado, e foi. Pulava-lhe o coração ao subir as escadas. A viúva estava só.

- Venho cedo! - disse ele, logo depois dos primeiros cumprimentos.

- Vem tarde demais para a minha natural ansiedade - respondeu ela sorrindo.

O que se passou na alma de Maciel excede a todas as conjecturas. Num só minuto pôde ele ver juntas todas as maravilhas da terra e do céu, todas as concentradas naquela elegante e suntuosa sala cuja dona, a Calipso daquele Telêmaco, tinha cravados nele um par de olhos, não negros, não azuis, não castanhos, mas dessa rara cor, que os homens atribuem a mais duradoura felicidade do coração, à esperança. Eram verdes, de um verde igual ao das folhas novas, e de uma expressão ora indolente, ora vivaz, - arma de dois gumes - que ela sabia manejar como poucas.

E não obstante aquele intróito, o Dr. Maciel andava triste, abatido, desconsolado. A razão era que a viúva, depois de tão amáveis preliminares, não cuidou mais das condições em que seria celebrado um tratado conjugal. No fim de cinco ou seis sábados, cujas horas eram polidamente bocejadas a duo, a viúva adoeceu semanalmente naquele dia, e o jovem médico teve de contentar-se com a multidão das quintas-feiras.

A quinta-feira em que nos achamos é de Endoenças. Não era dia próprio de recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a Botafogo, a fim de pôr em execução um projeto, que ele ingenuamente supunha ser fruto do mais profundo maquiavelismo, mas que eu, na minha fidelidade de historiador, devo confessar que não passava de verdadeira infantilidade. Notara ele os sentimentos religiosos da viúva, imaginou que, indo fazer-lhe naquele dia a declaração verbal do seu amor, por meio de invocações pias, alcançaria facilmente o prêmio de seus trabalhos.

A viúva achava-se no toucador. Acabara de vestir-se, e de pé calçando as luvas, em frente do espelho, sorria para si mesma, como satisfeita da toilette. Não ia passear, como se poderia supor, ia visitar as igrejas. Queria alcançar por sedução a misericórdia divina.

Era boa devota aquela senhora de vinte e seis anos, que frequentava as festas religiosas, comia peixe durante toda a quaresma, acreditava alguma coisa em Deus, pouco no diabo e nada no inferno. Não acreditando no inferno, não tinha onde meter o diabo. Venceu a dificuldade, agasalhando-o no coração. O demo assim alojado fora algum tempo o nosso melancólico Maciel. A religião da viúva era mais elegante que outra coisa. Quando ela se confessava era sempre com algum padre moço, em compensação só se tratava com médico velho. Nunca escondeu do médico o mais íntimo defluxo, nem revelou ao padre o mais insignificante pecado.

- O Dr. Maciel? – disse ela lendo o cartão que a criada lhe entregou. – Não o posso receber. Vou sair. Espera! - continuou depois de relancear os olhos para o espelho - Manda-o entrar para aqui.

A ordem foi cumprida. Alguns minutos depois fazia Maciel a sua entrada no toucador da viúva.

- Recebo-o no santuário, - disse ela sorrindo logo que ele assomou à porta - prova de que o senhor pertence ao número dos verdadeiros fiéis.

- Oh! Não é da minha fidelidade que eu duvido; e...

- E recebo-o de pé! Vou sair. Vou visitar as igrejas.

- Sei! Conheço os seus sentimentos de verdadeira religião, - disse Maciel com a voz a tremer-lhe - vim até com receio de não a encontrar. Mas vim, era preciso que viesse, neste dia, sobretudo.

A viúva recolheu a abazinha de um sorriso que indiscretamente ia traindo o seu pensamento, e perguntou friamente ao médico que horas eram.

- Quase oito. Sua luva está calçada, falta só abotoá-la. É o tempo necessário para lhe dizer, neste dia tão solene, que eu sinto...

- Está abotoada. Quase oito, não? Não há tempo de sobra. É preciso ir a sete igrejas. Quer fazer o favor de acompanhar-me até o carro?

Maciel tinha espírito em quantidade suficiente para não perdê-lo todo com a paixão. Calou-se, e respondeu à viúva com um gesto de assentimento. Saíram do toucador e desceram ambos silenciosos. No trajeto planejou Maciel dizer-lhe uma só palavra, mas que contivesse todo o seu coração. Era difícil, o lacaio que abrira a portinhola do coupê, ali estava como um emissário do seu mau destino.

- Quer que o leve até a cidade? – perguntou – A cidade? – perguntou a viúva.

- Obrigado, respondeu Maciel.

O lacaio fechou a portinhola e correu a tomar o seu lugar. Foi nesse rápido instante que o médico. inclinando o rosto, disse à viúva:

- Eulália...

Os cavalos começaram a andar, o resto da frase perdeu-se para a viúva e para nós.

Eulália sorriu da familiaridade e perdoou-lha. Reclinou-se molemente nos coxins do veículo e começou um monólogo que só acabou à porta de S. Francisco de Paula.

- Pobre rapaz! – dizia ela consigo - vê-se que morre por mim. Não desgostei dele a princípio... Mas tenho eu culpa de que seja um maricas? Agora sobretudo. com aquele ar de moleza e abatimento, é... não é nada... é uma alma de cera. Parece que vinha disposto a ser mais atrevido, mas a alma faltou-lhe com a voz, e ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não foi mau este começo. Para um coração daqueles... Mas qual! c'est le genre ennuyeux! (*  é do tipo chato!)

Esta é a glosa mais resumida que posso dar do monólogo da viúva. O cupê estacionou na praça da Constituição, Eulália, seguida do lacaio, encaminhou-se para a igreja de S. Francisco de Paula. Ali, depositou a imagem de Maciel nas escadas, e atravessou o adro toda entregue ao dever religioso e aos cuidados de seu magnífico vestido preto.

A visita foi curta, era preciso ir a sete igrejas, fazendo a pé todo o trajeto de uma para outra. A viúva saiu sem preocupar-se mais com o jovem médico, e dirigindo-se para a igreja da Cruz.

Na Cruz achamos uma personagem nova, ou antes duas, o desembargador Araújo e sua sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva do deputado deste nome, que falecera um ano antes, não se sabe se da hepatite que os médicos lhe acharam se de um discurso que proferiu na discussão do orçamento. As duas viúvas eram amigas. Seguiram juntas na visitação das igrejas. Fernanda não tinha tantas acomodações com o céu, como a viúva Seixas, mas a sua piedade estava sujeita, como todas as coisas, às vicissitudes do coração. Em vista do que, logo que saíram da última igreja, disse ela à amiga que no dia seguinte iria vê-la e pedir-lhe uma informação.

- Posso dar já, respondeu Eulália. Vá embora, desembargador. Eu levo Fernanda no meu carro.

No carro, disse Fernanda:

- Preciso de uma informação importante. Sabes que estou um pouco apaixonada?

- Sim?

- É verdade. Eu disse um pouco, mas devia dizer muito. O Dr. Maciel...

- O Dr. Maciel? – interrompeu vivamente Eulália. Que pensas dele?

A viúva Seixas levantou os ombros e riu com um ar de tamanha piedade, que a amiga corou.

- Não te parece bonito? – perguntou Fernanda.

- Não é feio.

- O que mais me seduz nele é o seu ar triste, um certo abatimento que me faz crer que padece. Sabes de alguma coisa a seu respeito?

- Eu?

- Ele dá-se muito contigo, tenho-o visto lá em tua casa. Sabes se haverá alguma paixão...

- Pode ser.

- Oh! Conta-me tudo!

Eulália não contou nada. Disse que nada sabia.

Concordou, entretanto, que o jovem médico talvez andasse enamorado, porque realmente não parecia gozar boa saúde. O amor, disse ela, era urna espécie de pletora, o casamento uma sangria sacramental. Fernanda precisava sangrar-se do mesmo modo que Maciel.

- Sobretudo nada de remédios caseiros, concluiu ela, nada de olhares e suspiros, que são paliativos destinados menos a minorar que a entreter a doença. O melhor boticário é o padre.

Fernanda tirou a conversa deste terreno farmacêutico e cirúrgico para subi-la às regiões do eterno azul. Sua voz era doce e comovida: o coração pulsava-lhe com força, e Eulália, ao ouvir os méritos que a amiga achava em Maciel, não pôde reprimir esta observação:

- Não há nada como ver as coisas com amor. Quem suporia nunca o Maciel que me estás pintando? Na minha opinião não passa de um bom rapaz; e ainda assim... Mas um bom rapaz é alguma coisa neste mundo?

- Pode ser que eu me engane, Eulália, replicou a viúva do deputado, mas creio que há ali uma alma nobre, elevada e pura. Suponhamos que não. Que importa? O coração empresta as qualidades que deseja.

A viúva Seixas não teve tempo de examinar a teoria de Fernanda. O carro chegara à rua Santo Amaro, onde esta morava. Despediram-se. Eulália seguiu para Botafogo.

- Parece que ama deveras, pensou Eulália logo que ficou só. Coitada! Um moleirão!

Eram nove horas da noite quando a viúva Seixas entrou em casa. Duas criadas - camareiras, - foram com ela para o toucador, onde a bela viúva se despiu. Dali passou ao banho, enfiou depois um roupão e dirigiu-se para o quarto de dormir. Levaram-lhe uma taça de chocolate, que ela saboreou lentamente, tranquilamente, voluptuosamente; saboreou-a e saboreou-se também a si própria, contemplando, da poltrona em que estava, a sua bela imagem no espelho fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu livro de orações, e foi dali a um oratório, diante do qual com devoção se ajoelhou e rezou. Voltando ao quarto, despiu-se, meteu-se no leito e pediu-lhe que lhe cerrasse as cortinas, feito o que, murmurou alegremente:

- Ora o Maciel!

E dormiu.

A noite foi muito menos tranquila para o nosso apaixonado Maciel que, logo depois das palavras proferidas à portinhola do carro, ficara furioso contra si mesmo. Tinha razão em parte, a familiaridade do tratamento dado à viúva precisava de mais detida explicação. Não era, porém, a razão que lhe fazia ver claro, nele exerciam maior ação os nervos que o cérebro.

Nem sempre "depois de uma noite procelosa, traz a manhã serena claridade". A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a toda na loja do Bernardo, a fumar em ambos os sentidos - o natural e o figurado, a olhar sem ver as damas que passavam, estranho à palavra dos amigos, aos boatos políticos, às anedotas de ocasião.

- Fechei a porta para sempre! – dizia ele com amargura.

Pelas quatro horas da tarde, apareceu-lhe um alívio, debaixo da forma de um colega seu, que lhe propôs ir clinicar em Carangola, donde recebera cartas muito animadoras. Maciel aceitou com ambas as mãos o oferecimento. Carangola nunca entrara no itinerário de suas ambições, é até possível que naquele momento ele não pudesse dizer a situação exata da localidade. Mas aceitou Carangola, como aceitaria a coroa de Inglaterra ou as pérolas todas de Ceilão.

- Há muito tempo, disse ele ao colega, que eu sentia necessidade de ir viver em Carangola. Carangola exerceu sempre em mim uma atração irresistível. Não podes imaginar como eu, já na Academia, me sentia arrastado para Carangola. Quando partimos?

- Não sei: dentro de três semanas, talvez.

Maciel achou que era muito, e propôs o prazo máximo de oito dias. Não foi aceito; não teve remédio senão curvar-se às três semanas prováveis. Quando ficou só, respirou.

- Bem! disse ele, irei esquecer e ser esquecido. No sábado houve duas aleluias, uma na Cristandade, outra em casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da viúva Seixas contendo estas simples palavras: - "Creio que hoje não terei a enxaqueca do costume. Espero que venha tomar uma xícara de chá comigo". A leitura desta carta produziu na alma do jovem médico uma Glória in excelsis Deo. Era o seu perdão. Era talvez mais do que isso. Maciel releu meia dúzia de vezes aquelas poucas linhas, nem é fora de propósito crer que chegou a beijá-las.

Ora, é de saber que na véspera, sexta-feira, as onze horas da manhã, recebera Eulália uma carta de Fernanda, e que às duas horas foi a própria Fernanda à casa de Eulália. A carta e a pessoa tratavam do mesmo assunto com a expansão natural em situações daquelas. Tem-se visto muita vez guardar um segredo do coração, mas é raríssimo que, uma vez revelado, deixe de o ser até a saciedade. Fernanda escreveu e disse tudo o que sentia. Sua linguagem, apaixonada e viva, era uma torrente de afeto, tão volumosa que chegou talvez a alagar, - a molhar pelo menos, - o coração de Eulália. Esta ouviu-a a princípio com interesse, depois com indiferença, afinal com irritação.

- Mas o que queres tu que eu te faça? – perguntou no fim de uma hora de confidência.

- Nada, respondeu Fernanda. Uma só coisa: que me animes.

- Ou te auxilie?

Fernanda respondeu com um aperto de mão tão significativo, que a viúva Seixas compreendeu facilmente a impressão que lhe causara. No sábado enviou a carta acima transcrita. Maciel recebeu-a como vimos, e à noite, à hora habitual, estava à porta de Eulália. A viúva não estava só. Havia umas quatro senhoras e uns três cavalheiros, visitas habituais das quintas-feiras.

Maciel entrou na sala um pouco acanhado e comovido. Que expressão leria no rosto de Eulália? Não tardou sabê-lo. A viúva recebeu-o com o seu melhor sorriso, - o menos faceiro e intencional, o mais espontâneo e sincero, um sorriso que Maciel, se fosse poeta, compararia a um íris de bonança, rimado com esperança ou bem-aventurança. A noite correu deliciosa. Um pouco de música, muita conversa, muito espírito, um chá familiar, alguns olhares animadores, e um aperto de mão significativo no fim. Com estes elementos era difícil não ter os melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o domingo da Ressurreição também o foi para ele.

Na semana seguinte viram-se três vezes. Eulália parecia mudada; a solicitude e a graça com que lhe falava estavam longe de tal ou qual frieza e indiferença dos últimos tempos. Este novo aspecto da moça produziu os seus naturais efeitos. Sentiu-se outro jovem médico; reanimou-se, colheu confiança, fez-se homem.

A terceira vez que a viu nessa semana foi em uma soirée. Acabaram de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, donde se via um magnífico panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo. Ali foi fácil declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado. Ouviu-lhe Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a palavra de Maciel.

- Poderei crer no que me diz? – perguntou ela.

A resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão, e cravar nela uns olhos mais eloquentes que duas catilinárias. A situação estava definida, a aliança feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os viu regressar à sala. Seu rosto cobriu-se de um véu de tristeza. Dez minutos depois e o desembargador interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo Amaro.

A leitora espera decerto ver casados os dois namorados e espaçada a viagem a Carangola até o fim do século. Quinze dias depois da declaração inicial Maciel deu os passos necessários ao consórcio. Não têm número os corações que estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva Seixas. Esta pela sua parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o primeiro dos heróis da terra.

Donde veio este entusiasmo e que varinha mágica operou tamanha mudança no coração de Eulália? Leitora curiosa, a resposta está no título. Maciel pareceu insosso, enquanto lhe faltou o sainete de outra paixão. A viúva descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda, e bastou vê-lo preferido para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano, - o feminino pelo menos.
 
Fonte:
Machado de Assis. Contos Avulsos. (org. R. Magalhães Júnior). Editora Civilização Brasileira, 1956. Publicada originalmente em 1875