segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 550



Humberto de Campos (O Vestido)

Uma das minhas primeiras crônicas nesta folha, há três ou quatro anos, versou, se bem me lembro, sobre o milagre realizado por certas senhoras elegantes, as quais, tendo recebido do esposo um simples corte de seda, conseguem fazer com ele, por processos que só elas conhecem, quatro ou cinco vestidos de cores diferentes. Os esposos que ignoram, em absoluto, esses curiosos fenômenos de química, fecham os olhos, inteiramente, a todos os prodígios desse gênero; outros querem, porém, apoderar-se do segredo, e o resultado é tentarem obtê-lo à força, esgaravatando a esposa com uma faca ou, o que é menos bárbaro, com uma bala de revólver.

Deste último gênero, fiscalizando a mulher como quem fiscaliza uma fronteira ameaçada era, felizmente ou infelizmente, o Dr. Cantidiano de Sampaio Gutterres, figura tão conhecida no foro da cidade, e, principalmente, nas altas rodas mundanas. Chefe de família exemplaríssimo, o notável advogado não admitia que lhe entrasse em casa, sequer um alfinete sem o seu consentimento. As compras, as mais insignificantes, era ele quem as fazia pessoalmente, e isso, menos pelo temor de ser enganado no preço dos objetos adquiridos do que pelo programa, que se traçara, de tomar conhecimento de tudo que lhe entrasse no lar.

Desse cuidado do ilustre advogado, dá ideia, para honra sua, o episódio que lhe ia perturbando, há poucos dias, a vida doméstica, depois de doze anos de casado. O Dr. Gutterres havia comprado para a mulher, há um mês antes de partir para São Paulo, um vestido de seda verde, de uma que esteve em moda, no máximo, oito dias. De regresso, ao entrar em casa, sem ser esperado, encontrou-se, na escada, com a esposa, que vestia uma "toilette" nova, e, essa, amarela, gema d'ovo, e sobretudo, riquíssima. Ao defrontarem-se, ficaram os dois mais amarelos do que o vestido.

- Que quer dizer isto, senhora? - trovejou o esposo, crispando os dedos, de cólera.

D. Antonieta encarou-o, sem dizer palavra.

- Que significa este luxo, na minha ausência? - tornou, terrível, o marido. - Quem lhe deu esse vestido?

- Foi você... - sussurrou a pobre senhora, tremelicando o beicinho vermelho de "rouge".

- Eu? O vestido que eu lhe dei, então, não era verde? Como é que, agora, a senhora se apresenta com um vestido amarelo?

Ao cérebro da moça acorreu, de súbito, uma ideia, que fugiu logo, deixando apenas o rastro. Os olhos brilharam-lhe, vivos, úmidos, penetrantes, numa floração de luz, tornando-a mais jovem, mais fresca, mais linda.

- Era... - confirmou a moça

O marido encarou-a, esperando a confissão abominável. O rosto de dona Antonieta irradiou, de repente, no anúncio de uma surpresa, que podia ser um sorriso, ou uma lágrima.

- Era verde, sim... tornou, baixando os olhos: - mas...

E, perturbadíssima, sem encontrar outra saída:

- Amadureceu, Cantidiano...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Plácido Ferreira do Amaral Júnior (1958 - 2022)

O poeta faleceu neste sábado, 26 de fevereiro, devido a complicações da covid.
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A chuva bate à janela…
Numa expressão de vitória,
a natureza singela
mostra Deus na minha história.
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Ainda tenho esperança
de ter os s teus,
pois o tempo de bonança
vem sempre após um adeus.
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A sua grande vitória
foi vencer uma doença
que roubava-lhe a memória
e causava-lhe a descrença.
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A trilha de um andarilho
é feita de solidão,
num caminho sem ter brilho,
só bolhas de pés no chão...
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A vergonha que uma algema
provoca ao preso orgulhoso,
é bem maior que o problema
que lhe fez ser criminoso.
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A virtude que seduz
um olhar à compaixão,
é misericórdia, a luz
do fundo de um coração.
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Foi querer brigar de galo
encrencando numa festa,
mas sofreu um forte abalo
pois ganhou "galo" na testa!
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Lá no funk que ele ia
e bebia de montão,
ao pensar que era Maria,
agarrou um "Ricardão"...
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Meus boletos reunidos
lado a lado, em linha reta,
neste planeta, os vencidos,
dão uma volta completa!
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Não esperes vir do chão
o peixe a te alimentar,
e sim as iscas que irão
encaminhar-te a pescar.
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No Brasil, o IBGE
revela o nosso retrato.
E nos demonstra como é
a nossa nação de fato.
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Noite... Deite-me na cama!!!
E indague desta mulher,
por que ela não nos chama...
para o que der e vier...
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Nossa dura travessia
ninguém sabe o quanto dura,
sabe apenas que Deus guia
desde o ventre à sepultura.
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Num trem da velha estação,
meu destino anunciava
que na Rua Solidão,
tua ausência me esperava.
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Ofereceu seus cuidados
com total sinceridade.
Recebeu em troca dados
viciados de maldade...
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O meu signo não combina
com o teu, minha querida,
mesmo assim, a nossa sina
é viver a mesma vida.
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O tom da chuva parece
algum recado de Deus
ao julgar o tom da prece
que ele ouviu dos filhos seus.
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O velho monge ajoelha
no altar de quem é devoto;
nele, um noviço se espelha
e faz, com fé, o seu voto.
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Para o meu maior espanto,
hoje eu vi um senador
dando esmola para um santo!
Era um cheque ao portador...
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Quando quis cantar de galo
lá no quarto da vizinha,
levou coice do "cavalo"
que é marido da "galinha"...
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Respeitar é garantia
que só nos guia à moral
e faz da moral, um guia,
que nos guia contra o mal.
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Se eu medisse a minha dor
com a força do meu grito,
certamente o meu clamor
chegaria no infinito.
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Sementes eu plantei tantas,
lá no jardim da ilusão...
Só brotaram duas plantas:
a saudade e a solidão.
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Somos dois, nesta calçada
desta história que vivemos.
Mas sem um, não somos nada,
pois sem um, sei que morremos...
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Tens razão quando me dizes
para de ti, me afastar.
Somos cores com matizes
diferentes a pintar.
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Tua vida em nossas vidas
é um porto de acalantos.
Teus cuidados são guaridas
onde eu ancoro os meus prantos.
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Um “furo” de reportagem
para jornalista é gloria
gravada feito mensagem
em todos livros de História.
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Um pinto verde surgiu
no galinheiro da granja
e o papagaio sumiu,
pois se não... seria canja!
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Você que lê estes versos
nas ruas desta cidade,
não deixe em mãos de perversos
a biodiversidade.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 49) Bigode na Tuba

OSÓRIO ACHOU ENGRAÇADO a moça de bigode que pintou diante dele, no ponto, logo de manhã, enquanto esperava pela condução. Lembrou da mãe que não deixava de aconselhar: “Meu filho, com mulher de bigode, nem o diabo pode”. Aquela fêmea, contudo, trazia no rosto o sorriso descontraído da Joss Stone. Osório era gamado — gamado não, doido varrido maluco de pedra, embasbacado de carteirinha e não mudaria a sua preferência nem que a cantora inglesa pintasse diante dele de cueca samba canção, falando grosso, ou fumando um charuto cubano de Fidel Castro ou usando bigode à Olívio Dutra.

— Será que ela usa esses aparelhos que são vendidos por toda parte para fazer a barba? — cogitou com seus botões. Barba não, bigode... o dessa criatura está perfeito... pelo menos, ela cuida com apuro da epiderme...

Pensou, entretanto, em sua namorada, a Edifusa. A Edifusa, antes dele, havia namorado o Bigorna, um camarada alto e magro, grosso nos modos de tratar com as pessoas. Bigorna tocava tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo. Por isso, a Edifusa largou do sujeito. Sem contar que não parava em casa, vivia viajando para baixo e para cima e, quando dava o ar da graça, geralmente de quinze em quinze dias, não desgrudava da tuba. Edifusa reclamava que o cidadão queria que ela aprendesse a assoprar o instrumento. Edifusa, batia pé e nunca quis aprender coisíssima nenhuma, ainda mais tendo que botar na boca um “treco controlado por válvulas e feio pra chuchu igual aquele”.

— Prefiro assoprar um órgão! — disse certa vez à figura do ex ao seu ex.

— Órgão não se assopra. — de igual maneira teria respostado (*)  o mala sem alça, à contragosto. Órgão se toca com os dedos... tuba é melhor, Edifusa. Não cansa as mãos.

Ao que Edifusa insistia mudando o rumo da prosa:

— E quem toca tuba, o que é? Tubeiro, tumbeiro, tubista, ou tubuleiro?

— Músico, Edifusa. Músico. Quem toca tuba é músico. Eu toco tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo por partitura.

O primeiro ônibus se fez em carne e osso e a Cinderela de bigode não embarcou. Outros que esperavam levantaram acampamento. Só ficou ele e ela. Ela e ele. Ele, esperto e atento, aproveitou esse interregno de tempo e atentou melhor para a gazela. Um pedaço de mulher. Magra como ele gostava, altura mediana, atraente, dona de um lindo par de pernas, rosto bem trabalhado, e o mais espetaculoso. Os cabelos cor de mel compridos e bem cuidados, caindo sobre os ombros, em cascata estonteante. Só o bigodinho tirava um pouco a graça. No resto, estava longe de se jogar fora. Entre ela e a Edifusa, ganharia pontos, sem dúvida alguma, a incógnita deusa, apesar do bigode. Por um momento se imaginou nos braços dela, agarrado, como dois pombinhos apaixonados. Será que o bigode atrapalharia quando começasse a sentir a sua pele?

Deu asas a imaginação. O bigode faria cosquinha? Edifusa vivia reclamando que o do Bigorna, seu ex, tirava a sua concentração. O trocinho espetava, justo na hora das trocas das permutas dos afagos mais acentuados. Chegava mesmo a sentir arrepios, a ponto dos pelos de seu corpo encresparem de tanto que se assanhavam:

— Bigorna, não gosto de homem de bigode. Dá gastura... (*)  não adianta fazer a barba e não raspar a droga do bigode. Por que não faz, logo, de vez, barba, cabelo e bigode?

— Edifusa, o que você tem contra meu visual?

— Nada. Só maneira de falar....

Bigode, bigode, bigode. Tudo girava em torno dele. Pintou outro coletivo. De novo, por azar, a linha que o deixava na porta da empresa. Vazio, com meia dúzia de gatos pingados. A bela do bigode não deu sinal para o motorista. Nem ele.

Por certo, ao Osório a partir da perda desse buzu, ficava claro e evidenciado que chegaria fora do seu horário estabelecido. Diria ao chefe que o salto de seu sapato se soltara e, em razão disso, tivera que voltar em casa. Uau! Osório se mostrava contente com a sua decisão de ter se prostrado no ponto junto com aquela estrangeira que ele via pela primeira vez. E mais. Satisfeito com a mentira que contaria para engambelar o patrão. A do salto ter se soltado cairia como uma dádiva do céu. Mais criativa que a gafe contada por sua colega de serviço, a Fulmênia, na quarta passada. A funcionária chegou com uma hora e meia de retardo para bater o cartão contando a lorota de que haviam roubado seu aspirador de pó justo na hora em que trancava a porta da sala.

Meia hora depois, o terceiro ônibus sorrindo igual mala velha. Osório imaginou: “Agora a bigoduda se põem em marcha e eu pulo no seu vácuo”. Ledo engano! A dita cuja continuou ali, em pé, firme e plantada, sem se mover. Estaria esperando carona? Claro, alguém passaria e a arrastaria de carro. Suas suspeitas se confirmaram no instante em que, pela décima vez, a irrequieta  consultou o relógio de pulso. Osório, de repente, colocou em dúvida uma dúvida que até então ele mesmo tinha dúvidas se daria certo. Matutou: “E se essa história do meu sapato ter se soltado não colar? Vou ter o dia cortado”. O celular tocou. Osório encarou a moça, ou melhor, depositou as suas aflições no bigode dela. De novo, outra arrepsia (*), desta vez mais pirrônica (*) e contundentemente pertinaz: “Atendo ou não atendo? A droga da campainha não dava trégua. Espiou, sabendo de antemão, quem importunava. A Edifusa:

— O que você quer?

Edifusa parecia meio apreensiva e agitada:

— Amor, onde você está? Liguei no seu serviço e a secretária disse que você ainda não passou pela recepção!

— Perdi o ônibus.

— Perdeu como, amor?

— Perdendo, ora bolas.

— E agora?

— Meu sapato quebrou a sola... ou soltou, sei lá. Tive que voltar em casa e calçar outro par...

— Ta legal, amor. Mas você está bem?

— Ótimo.

— Ok, meu príncipe. Bom serviço. Beijos. Te amo!

Por azar, novo ônibus apontou na esquina. Diabos. Nada. A Majestosa do bigode não se decidia, nem ele. Firme e forte, ela se mantinha em pé e ele, idem, só filmando, os olhos atentos e esbugalhados no bigode. O celular novamente quebrou as suas divagações mais extravagantes:

— Edifusa, você de novo? O que foi dessa vez?

— Liguei para sua mãe, minha sogra. Ela está preocupada...

— Preocupada? Com o quê?

— Disse a ela que você chegaria depois da hora normal no emprego porque o seu sapato deu um problema no motor de arranque...

—... E ela?

— Garantiu, de pés juntos, que você não voltou em casa. E mais: seu quarto está do jeito que ela arrumou assim que você botou o nariz pra fora. O que é que está havendo?

Osório ia responder, mas se calou porque nesse exato momento, a estonteante do bigode se aproximou e puxou conversa. Constrangido, o rapaz não sabia se continuava falando com a namorada, ou se desligava e respondia à pergunta que a guria  lhe havia formulado. Optou por desligar. Porém, tarde demais. Edifusa, apesar do barulho reinante, conseguiu escutar a voz da outra. Fula da vida, Edifusa não se fez de rogada. Voltou à carga, agora com insistência descomedida. Sem jeito, Osório fez ouvidos de mercador. Por fim, como a praga da sua metade da maçã não desistia, resolveu. Mandaria a inconveniente da Edifusa às favas e fim de papo. Todavia...

— Sua mulher?

— Não.

— Namorada?

— Não tenho. Ando à cata de uma...

O caldo engrossou os ânimos:

— Osório seu filho de uma égua. A égua da sua mãe, minha sogra, que me perdoe. Quem é essa vagabunda que está ai ao seu lado?

Nessa altura da bomba estourada, surgiu um carro buzinando. A Rainha do bigode ficou faceira, ou melhor, ela toda em sua alegria infinda se abriu num gesto de alegria imensa que engalanou tudo ao seu redor. Até o bigode ficou mais envolvente:

— Legal te conhecer. Meu nome é Monique. A gente se “esbarra” outra hora...

Em seguida ela abriu a porta e acenou um adeus. Osório ia vomitar algo, mas estancou, atônito. Reconheceu, de imediato, aquele automóvel. E também atinou com quem pilotava o volante. O desgranhento do Bigorna. O ex da Edifusa, o tocador de tuba da Sinfônica de São Paulo. Mas alto lá: ele não estava viajando? Pois bem! A história do sapato não colou com o chefe. Osório se esqueceu que só usava tênis.
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* Vocabulário:
Respostado: dado em resposta,
Gastura:  arrepio, mal-estar,
Arrepsia:  dúvida, indecisão, vacilo
Pirrônica: Pessoa teimosa, cabeçudo, rabugento


Fonte:
Texto e vocabulário enviados pelo autor.
in Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da Vida na Privada.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 72: Thalma Tavares

 

Mia Couto (As lágrimas de Diamantinha)

Diamantinha chorava tão bem que as pessoas vinham de longe e lhe pediam:

— Chore por mim, Diamantinha.

O visitante sentava na sombra do djambalau e divulgava suas mágoas. Às vezes, pareciam tristezas de bichos. O homem, para ser humano, tem que ser desumano? O que é certo: ninguém tem ombro para suportar sozinho o peso de existir. Afinal, a vida se confirma à força de rasgão: ela dilacera logo no ato de nascer, separando mais que a própria morte. E assim, também naquela aldeia não havia quem não tivesse motivos para sentar no banco de Diamantinha, requerendo lágrimas na sombra da grande árvore.

Diamantinha gastava o tempo nesse desfilar de desgraceira. Única condição: ela devia olhar de frente o contador de tristezas, olhos nos olhos, lágrima de um umedecendo a alma do outro. No final, ela baixava o rosto, sacudindo os braços por cima da cabeça. E chorava. Cada lágrima aliviava o confessor, parecendo a mão de um anjo suavizando feridas.

Diamantinha chorava belo e aprazível: nunca ela ranhava, nem carantonheava (fazia caretas). Escorriam as lágrimas como simples transbordamento, trespassar de ondas sob as pálpebras, insuficientes diques. A tristeza despejava-lhe os olhos e lá vinha, abundante e gordo, o rosário das lagrimonas.

O marido, calculista, viu nos serviços da esposa uma hipótese de negócio. E havia até urgência: Dia mantinha se ia fatigando de brotar tanta água. Um dia, ela esgotaria as fontes. Antes que isso sucedesse, o marido decretou a seguinte ordem:

— Hoje em diante, você só chora para quem paga.

— Mas, marido, isso nem se pode.

— Não se pode!? Quem é você para saber destrançar o possível do impossível?

— É que lágrima é coisa sagrada...

— Conversa, mulher. Sagrados são os tacos, sejam cifrões, sejam cifrinhos.

— Não é desrespeito, mas me diga, marido: se é tão importante o dinheiro por que é que você não trabalha para o ganhar?

— Eu? Não posso, estou muito ocupado. Agora, por um exemplo, ando a deixar crescer os bigodes, um de cada lado.

— Você é quem sabe, marido.

O marido está sempre na mão de cima? Homem disfarça que comanda, mulher finge obediências. A ordem das coisas: mundo e vida são o inseparável casal.

E as pessoas continuaram afluindo, agora vertidas em clientes. O marido armara mesa, à entrada da sombra, e cobrava consulta. E se contentava, empilhando as moedinhas enquanto a esposa se derramava, liquidez feita. Aranha faz sua casa de quê? De lágrimas, aquilo parece seda mas não é senão o coração esfiapadinho. Disso sabia a lagrimeira Diamantinha.

Uma tarde, compareceu no djambalau um tal Florival, que mal se afamara como homem estranho, brutamonte. Dele se dizia ser bebedor de trevas, atravessado de serpente. Corria que o Florival fazia das outras vidas o que a jiboia faz com o cabritinho: enrolava-as e esmiudava-as até ficarem engolíveis. Diferença é que, depois, ele não engolia nada. Todavia, no caso real, o aspecto sobrava da aparência. O Florival tinha corpo magnífico mas era incompetente para maldades. O homem se aperfeiçoara a palerma, barata tonta, estupefato.

E tanto era que, aos domingos, o Florival se vestia de mulher, envergando sempre um mesmo vestido castanho com grandes girassóis amarelos. As flores no vestido contradiziam o aspecto malfeitor. O homem era alvo de zombarias gerais — dito, desdito e maldito. Até havia mãos que afagavam as falsas curvas do peito.

Pois nessa tarde, o Florival sentou-se na pedrinha, envergonhado a modos de justificar o vestido na conformidade de suas pernas peludas. O que ele confessou fez arrepiar a choradeira.

Disse assim: que ele desde há muitos anos lhe dedicava amor exclusivo, ímpar e imparável.

—Ama a mim, Florival?

Sacudindo a cabeça, ele lhe pediu para não ser interrompido. Pois, a cada dia lhe dava hoje, ele lhe rezava, lhe enviava as mais sutis prendas. Eram diminutas delicadezas: um raminho, um nó de capim, réstia de ninho. E ela, ela nem notava. E por razão de tanta indiferença o coração dele se encaroçou. Para poupança de sofrimento Florival se resolveu converter em mulher. Assim, colega do mesmo gênero, ele não a olharia como destino de seus desejos.

— Nós ambos somos iguais.

Diamantinha escutou tudo até ao fim. Levantou-se e espreitou entre os ramos do djambalaueiro. Puxou com força como se entendesse desventrar a árvore. Depois chorou, chorou como nunca havia feito. O marido, vendo a demora, espreitou e lhe fez sinal: havia mais para quem chorar. E fez ponto na sessão.

Na tarde seguinte, Florival regressou e foi o mesmo derrame de pranto. E de novo o marido, zeloso, ordenou parcimônia. Na terceira tarde, Diamantinha deixou que Florival se sentasse, em seus femininos trejeitos, e lhe disse:

— Não tenho mais lágrima.

E pediu um lugarzinho na pedra. Sentou-se, espremida no mesmo assento. Ficaram assim em silêncio até que Diamantinha pediu autorização para ajeitar um girassol que escapava do vestido.

—Está tão velhinho este meu vestidinho...

E trocaram conversas de mulher, os acertos que faltavam nos cabelos, o nó no lenço da cabeça, o anel que fugia pela magreza do dedo.

Diamantinha lhe pediu então:

—Dê me as suas mãos. Quero lhe dar uma coisa.

—Não precisa me dar nada, Diamantinha.

—São minhas últimas lágrimas. Me dê as suas mãos. Rápido antes que esfriem.

Florival estendeu as mãos em concha. E dos dedos de Diamantinha tombaram aqueles cristaizinhos, desfocadas águas tremeluzindo em fundo escuro. Afinal, aquilo eram diamantes, preciosos tesouros.

—São verdadeiros?

Em amor tudo é verdadeiro. Florival e Diamantinha se fitaram, até seus olhos perderem o pé. Sem dizerem palavra, se enfeitaram entre folhagens, furtando-se pelos matos. Dizem os caminhoneiros que, já noite, viram derivar pela estrada um casal de aparência estranha: ele vestido de mulher, e ela em roupas de macho. Tombava uma chuvinha leve, simulando fluir da terra para o céu. E Diamantinha, braços abertos, ajuntava novas gotas em seu peito choradeiro.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Ana Meireles (Caderno de Spinas)

CODINOME

Aturde meu corpo
velhas, renitentes dores.
Nenhuma tem nome.

Chegam sorrateiras, roubam meu descanso,
deitam sobre mim, são pesadas;
Querem subtrair até minha fome,
meus desejos, sonhos, minha alma
que suplica analgesia, um codinome.
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DIAS DE RENASCER...

Auroro minha vida
pensando como parir
dias de renascer.

Ouço tocar aquela música bonita
que lembra ilusão, desejos, sonhos,
tempo que passou; melhor esquecer!
Nos planos de agora, mansidão,
a quietude para saber viver.
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EFEMERIDADES!

Visitei teus olhos,
neles vi sonhos,
tristezas manchadas, saudades!

Um verbo que morreu sufocado
estrangulado, desdenhado por um amor
aprazível aos manejos das impetuosidades.
Os furacões que suplantam razões
guiam-se volúveis na paixão: efemeridades.
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OLHAR DISTANTE!

Sensível demais sou,
doem-me as lembranças,
o tempo passa...

Rastreia meu deserto, páginas alheias
que me doem, rumo incerto...
Na pele que resseca, argamassa!
Sobre a ferida, uivo silenciosa,
Um olhar distante me perpassa.
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PEQUENO COLIBRI

Esperei teu beijo,
meu pequeno colibri,
o dia inteiro.

Quanta falta faz teu carinho,
o teu amor me visitando
na solidão esquecida deste canteiro.
Espero-te com orvalho nas pétalas,
ansiando tua chegada, "seu" beijoqueiro.
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ROSTOS RISONHOS

Sorrisos de Sol
embalam as memórias:
Primaveras de antanho.

Povoam de imagens, rostos risonhos,
coloridos sonhos; alegres crianças brincando...
Bebem alegria sem medir tamanho.
Olhares vividos, bailando, rodopiando animados…
Cabelos esvoaçando, tons de castanho.
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TUAS MÃOS

Perfeitas são tuas
Mãos macias, ágeis
Quando me acariciam

Logo me fazem desejar mais!
Implorar que não parem; deslizam
Sobre meu corpo, ensaiando... Prefaciam
O texto dos nossos desejos
Encobertos nos gestos que evidenciam.
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VESTIDA DE POESIA, SOU
AMOR, FANTASIA, PAIXÃO!


Imagens, melodia, paixão,
vestem minha vida,
revelam-me em poesia.

Sou de nome, combustão forte,
bailo nas músicas das sensações,
sinto na pele misteriosa ventania,
que sopra nos dias, paz.
Amar e renovar-se em alegria.

Fonte:
Ronnaldo de Andrade e Solange Colombara. Primeira Antologia Spina. SP: Ed. Areia Dourada, 2021
Livro enviado por Solange Colombara

Sammis Reachers (Cleomir e a saída do baile funk)

Cleomir era um camarada baixinho e magricela, antigo morador do morro do Juca Branco, em Niterói, Era a figura do malandro: bom de lábia, cheio de ginga e com as gírias na ponta da língua. Cleomir trabalhou durante alguns anos na empresa Ingá, como cobrador. No início da carreira, não teve jeito: o malandro magricela teve que trabalhar no sereno (horário da madrugada) por algum tempo. Das linhas de sereno da Ingá, a pior naquela época (e ainda hoje?) era com certeza a linha 26 (Caramujo x Centro). O bairro do Caramujo quase sempre foi um bairro chapa-quente.

Durante alguns anos, lá ocorreu um tradicional baile funk. O baile era tão requisitado e conhecido que vinham galeras de outras comunidades (controladas, claro, pela mesma facção criminosa) para curtir o baile. Se você é rodoviário, deve saber como são as festas: as pessoas vão chegando aos poucos, espalhadas. Mas, na hora de ir embora, parecem sair todas ao mesmo tempo, e lotam o primeiro ônibus que estiver na reta.

E assim era o tal baile, até porque não havia mesmo outro ônibus senão aquele único que fazia o sereno.

Num belo (pelo menos até ali) final de madrugada, já prestes a dar sua última viagem, por volta das 4h20 da manhã, eis que o motorista chega à pracinha do Caramujo, onde a carona rolava solta, até mesmo durante o dia. Final de baile. O motorista parou o veículo e, macaco velho e vacinado, diante daquela multidão, abriu as duas portas. Todos ali, claro, entraram pela porta dianteira, sem pagar. O Cleomir estava lá atrás, na roleta, tranquilamente observando a movimentação e tentando perceber algum conhecido naquela    multidão,    ou    ao    menos    alguma gatinha. Mas que nada: nem havia mulher alguma, nem algum conhecido, e olha que o Cleomir conhecia era malandro!

Parte então o velho carroção, indo em direção ao centro de Niterói, onde faria ponto final no Terminal Rodoviário João Goulart. Mas antes de sair do Caramujo, uma discussão se estabeleceu entre alguns passageiros. Enquanto o ônibus avançava,    o    tom rapidamente    foi    subindo;    algum desentendimento entre uma galera da Vila Ipiranga com uma turma vinda de São Gonçalo era o motivo do falatório, Ao sair do bairro para pegar a estrada, parece que    um    sinal    tocou    em    algumas    daquelas    cabeças alcoolizadas, e a pancadaria rufou, como se diz. O que era uma troca de sopapos entre dois elementos rapidamente foi crescendo e contaminando todo o ônibus, para susto e desespero de Cleomir, que era malandro, mas sempre correu de briga. Rapidamente a pancadaria chegou à parte de trás do busão, e Cleomir viu-se encurralado.

Tentou gritar para o parceiro:

- Pare esse ônibus aí, Alfredão!

Mas lá na frente alguns elementos já haviam dito ao motorista, Alfredo,    que se parasse ele também    iria apanhar, e deveria acelerar para chegar logo na Vila Ipiranga.

Acontece que o porradal estava tão intenso que até o Cleomir, coitado, acabou levando uma cipoada de raspão na cara. Não sabendo o que fazer e desesperado, o malandro pensou: "Em rosto que mamãe beijou ninguém mete a mão não!"

Em seguida pulou de seu trono, enfiou-se entre dois elementos que se esmurravam perto dele e abriu a janela. Era mesmo uma "janela de emergência": o malandro havia há muito tirado os parafusos que impediam que a janela se abrisse por completo, e assim o vidro abriu-se de par em par.

Mas haviam dois problemas: Um - o dinheiro. Este Cleomir resolveu pegando as notas que estavam na gaveta, e deixando para trás as muitas moedas e seus apetrechos, como o carimbo que se usava para carimbar os vales-transportes, que naquele tempo eram de papel.

O outro problema era mais indigesto: Seguindo as ordens da vagabundagem, o motorista Alfredão acelerara o ônibus à toda, e neste exato momento descia o morro da Caixa D'água por conta de Satã! Ao tomar mais uma pancada, o pequeno Cleomir não pensou duas vezes: tomou coragem (ou chegou ao limite o medo de apanhar?) e pulou pela janela do carroção encantado em alta velocidade, se esborrachando no chão!

Mas o malandro estava com o sangue tão quente que parece nem ter sentido o baque: levantou-se e saiu correndo, e correndo sem parar, da descida da Caixa D'água até a portão dos fundos da empresa (a Ingá), algumas centenas de metros distante.

Chegou na garagem esbaforido, ralado e sujo. Os poucos funcionários presentes o reconheceram, mas estranharam tanto seu estado quanto a ausência do ônibus.

- O que houve, Cleomir? Dormiu na rua? Cadê o ônibus?

Cleomir recuperava as forças para falar.

- Ah... ah... a porrada comeu... a porrada comeu dentro do ônibus... mais de trinta cabeças...

- Caramba! - disse um. - E o carro tá aí fora?

– ... Tá não... aff... tá não.

- Ué, e como você chegou aqui? Tá todo sujo e lanhado por quê? Te baixaram a porrada também???

- Não... é ruim hein?! Tô todo ralado mas porrada eu não levei não! Eu vi que não tinha jeito e pulei pela janela, que não sou otário!

- Mas mano, e o motorista, cara, e seu parceiro Alfredão? Deixou ele lá com os trinta?

- Amigo, sei lá de Alfredão, quero saber lá de parceiro! Quem tem parceiro é bandido! Pulei pra salvar a minha vida e nem olhei pra trás! Farinha pouca, meu pirão primeiro!!!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros ("Contos do Nascer da Terra", de Mia Couto)


Além de ser um dos maiores escritores de língua portuguesa dos nossos dias, recentemente agraciado com o prêmio Camões, Mia Couto trabalhou por alguns anos também como jornalista e contribuiu para diversos veículos de imprensa. A maior parte das histórias que compõem Contos do nascer da Terra foi publicada originalmente em jornais e revistas em 1996, e depois adaptada pelo escritor para este livro, que traz ainda um punhado de contos inéditos. Ao todo são 35 histórias breves que se baseiam no cotidiano quase mágico de Moçambique e exploram a sonora linguagem do português africano, revelando na escrita a identidade de um povo e o domínio muito próprio da cultura e da criatividade literária. Vemos aqui essa África que o Brasil tanto proclama como parte de sua própria matriz surgir na forma de contos que dão conta da diversidade e complexidade do mundo que, começando do outro lado do oceano, está tão presente na alma brasileira.

Contos do Nascer da Terra é exatamente um livro sobre começos, inícios, novas chances, agarrar oportunidades, esquecer o passado, viver o presente, sentir saudades do futuro, não se assustar com as estranhezas da vida, se manter na terra, no nascimento…

Aforismos, construções diferentes, muitas metáforas, comparações incomuns. Um texto rico, sobre simplicidades da vida. Assim é Mia Couto, pseudônimo de Antonio Emilio Leite Couto, escritor moçambicano, que nasceu em julho de 1955.

Ter no mundo escritores como ele é como uma grande oportunidade para entender o ser humano, mas de um jeito muito efêmero, pois no final de cada conto do livro Contos do Nascer da Terra, o leitor fica um pouco atordoado, como se tivesse entendido tudo, mas ao mesmo tempo lhe foge a compreensão pelas palavras, pois é um preenchimento que envolve a cabeça e o coração, que avisa a descoberta de algo muito especial, como uma pedra preciosa. Ler Mia Couto é mergulhar em um espaço silencioso e completo.

A linguagem do autor sempre é muito comentada entre admiradores de sua obra. Há inclusive um termo pra designar as construções gramaticais que ele faz e também sobre as palavras que ele inventa, é o FALIVENTAR. Outro termo literário usado para caracterizar as histórias de Mia Couto é o Realismo Animista que dá vida a coisas da natureza, que envolve a poderosa cultura africana.

A vida é uma goteira pingando ao avesso.”

RESENHA DE ALGUNS CONTOS:

Viúvo


O nome do primeiro conto do livro “Contos do nascer da Terra” chama-se Viúvo e narra a história de um homem muito solitário que “vivia nesse constante apagar-se de si”. Conforme informa o título da história, o leitor irá conhecer o momento em que ele se tornou viúvo e assim, adentrar na difícil tarefa de desapegar-se, mas ele, uma pessoa tão silenciosa, de poucos amigos e sem muitas ambições, fica totalmente perdido com a sua nova condição de vida. Entretanto, o conto é muito além disso tudo que consegui colocar em palavras aqui, porque a força metafórica – e fora do convencional – que Mia Conto consegue empregar em sua linguagem é de uma beleza tão profunda que deixa qualquer leitor atônito.

A menina sem palavra

O conto brinca com metáforas que relacionam sonho e realidade de um jeito muito cru e lúdico. A menina, tão quieta, deixa o pai preocupado, porém, durante uma conversa sobre o mar, a única palavra que a garota uma vez pronunciou, ela e o pai descobrem juntos o poder das águas salgadas, as ondas, os sonhos… De um lado o medo do pai por ter uma filha que não fala, de outro, a criança mostrando ao pai a beleza de seu mundo. Se falar é preciso, que seja por causa de uma boa história.

O derradeiro eclipse

“O derradeiro eclipse”, o terceiro e também maravilhoso conto é sobre um marido ciumento que, antes de viajar, pede ajuda a um padre e a um feiticeiro, sobre o que fazer com a desconfiança que ele possuía sobre a sua esposa, uma mulher “linda de fazer crescer bocas, águas e noites” (p. 13).

Neste conto, é forte a presença de um realismo mágico. O desenrolar da história, a forma que o marido desconfiado busca ajuda e os elementos surreais que aparecem na história, deixam tudo muito belo, poético e, o mais interessante, Mia Couto desenha um cenário simples e deixa toda a complexidade da vida nas atitudes desses personagens, que parecem tão mágicos, mas também possíveis.

A carteira de crocodilo

O conto parece um clássico, com “moral da história” e tudo mais, para mostrar o quanto a palavra é poderosa e, sendo assim, é muito perigosa.

Viver é muito perigoso, já dizia o nosso Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Aliás, a linguagem de Mia Couto lembra um dos nossos maiores escritores, que brinca com as palavras de um jeito tão singular, que torna o texto ao mesmo tempo erudito e popular.

Falas do Velho Tuga


Relata uma forte experiência com a cultura africana e seus rituais exóticos. Um senhor, que sabe que está para morrer, conta como foi salvo pelas mãos de uma africana. Mas antes de chegar no ritual em si, vamos compreender sobre a solidão, “me assaltou um vazio como se não houvesse mundo” (p. 23) e então recebemos doses maravilhosas de sonho e realidade, alucinações e medo, com se um ritual africano fosse realmente algo para te colocar em outro mundo.

Governados pelos velhos mortos

Um diálogo muito misterioso, que provoca o leitor a pensar muito diferentes sobre questões tão simples, como o nome de um beija-flor e de uma árvore. Em um mundo desolado e sem esperança, o diálogo caminha para o vazio que mora quando termina a esperança.

sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho do mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa” (p. 28)

Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.” (p. 28)

O indiano dos ovos de ouro

Um conto que possui bom humor, mas também toda a profundidade dos outros contos do livro. Abadalah, o indiano dos ovos de ouro, faz conexão com o clássico infantil, porém, neste caso, “ovos” é no sentido pejorativo da sexualidade do personagem e uma poderosa maldição quando se troca um amor por dinheiro.

Minha crença é um pássaro. Sou crente só em chuva que cai e esvai sem deixar prova” (p. 29)

O baralho erótico


É um conto muito triste. Um marido violento se dá conta de que sua mulher só vai parar de sangrar, se parar de chorar. Mas ela chora porque ele mesmo bateu nela. E bate todos os dias. E é viciado em jogo, até que um dia, no próprio baralho erótico ele vê algo muito diferente do que poderia imaginar. E o que seria um acesso de fúria, o pior, que cairia diretamente em sua mulher, se transforma em um tipo de arrependimento, redenção, mas com muita vulgaridade.

A casa marinha

O conto parece um sonho maluco. Um velho, conhecido na cidade como louco, leva o narrador da história, um garoto, a caminhos muito diferentes, místicos, o que deixa os pais do garoto preocupados. O velho, como um ermitão, um guru, um monge, algo assim, passa para o garoto ensinamentos profundos por meio de uma linguagem estranha, com rituais e atitudes que, aparentemente, são simples, mas que nutrem grande valia, como procurar por galhos de madeira para construir um barco. A história é uma mistura de contemporaneidade, uma vez que não há a presença de elementos antigos, mas por outro lado, o nosso velho maluco tem alguma coisa de Noé.

“O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem.”

“Sono e fadiga: mãos que nos abrem janelas para o mundo.”

“Pois o futuro o que é? Se nem temos a palavra na nossa materna língua para nomear o porvir. O futuro, meu filho, é um país que não se pode visitar.”


Os negros olhos de vivalma

Mais um conto sobre violência doméstica. Vivalma, que possui um nome que já entrega para o leitor um pouco de sua personalidade, é uma mulher que vive com hematomas nos olhos, por apanhar do marido. As amigas do trabalho, ficam muito incomodadas com o sofrimento e também com a aparente inanição de Vivalma e decidem tomar uma atitude. Entre flores estragadas no chão, o mar, uma vida infeliz e conformada, Vivalma coloca o leitor na difícil tarefa de compreender o seu nome e a sua vida, de viva alma.

A vida é um por enquanto no que há de vir.

Gaiola de moscas

Um homem que vende a própria saliva para lustrar sapatos. É assim que começa o conto e se isso pode parecer estranho, a sequência dos acontecimentos deste conto é mais maluca ainda. Mas é aquela loucura boa de ler, curiosa, provocante, uma grande metáfora sobre o próprio nome do livro, o que vem da terra, o que nasce, o que transforma.

Há uma mulher triste por não ser beijada pelo marido, há um outro homem que decide comprar as moscas que irão repousar em seu corpo, depois que morrer. Há de tudo… e muitas loucuras, mas um sentido realista sobre a vida.

O homem da rua


Um acidente de carro que coloca dois homens a conversarem sobre a vida. O acidentado buscando vida no motorista que o atropelou, sem querer. E o motorista aprendendo sobre companhia, sobra a noite, o dia, a luz, algum tipo de iluminação surge, que acompanha também o maravilhoso estranhamento das frases de Mia Couto: “o homem sofre de incurável medo de ser noite”, mas a terra nasce, sempre nasce.

“Nem sabe como é bom haver um chão para a gente ter onde cair.”

“O homem sofre de incurável medo de ser noite.”


Contos do Nascer da Terra é exatamente um livro sobre começos, inícios, novas chances, agarrar oportunidades, esquecer o passado, viver o presente, sentir saudades do futuro, não se assustar com as estranhezas da vida, se manter na terra, no nascimento, por isso, e outras coisas que fogem à compreensão lógica, pois literatura é arte, a obra de Mia Couto consegue se manter tão forte em suas características moçambicanas e ao mesmo tempo contar uma história sobre o mundo inteiro.

A leitura de cada conto traz muita intensidade e vivência literária, o que transforma o livro numa leitura cuidadosa e muito especial.

Fonte:
Resenha por Francine Ramos, disponível em Livro & Café
Introdução, na Amazon

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 23

 

Contos e Lendas do Mundo (Grã Bretanha: Binnorie)

Era uma vez um rei que tinha duas filhas. Elas viviam em um pavilhão perto da linda represa de Binnorie.

Sir William veio cortejar a mais velha e conquistou seu amor, comprometendo-se com uma luva e um anel. Após um tempo, voltou-se para a irmã mais nova, de faces rosadas e cabelos dourados, e seu amor por ela cresceu tanto que ele esqueceu a mais velha. Então a mais velha passou a odiar a irmã por ter lhe roubado o amor de sir William e, como a cada dia seu ódio aumentava, ela logo começou a fazer planos para se livrar da irmã.

Certa manhã bonita e brilhante, disse para a irmã:

– Vamos ver os barcos de nosso pai chegando à linda represa de Binnorie.

Foram elas de mãos dadas. Quando chegaram na margem do rio, a mais nova subiu em uma pedra para observar a chegada dos barcos, e a irmã, aproximando-se por trás, segurou-a pela cintura e a atirou na represa turbulenta de Binnorie.

– Oh, irmã, irmã, estenda a mão! – gritou a mais nova enquanto era carregada para longe pelas águas – Você terá a metade de tudo que possuo ou virei a possuir.

– Não, irmã, não vou lhe estender a mão, porque sou a herdeira de todas as suas terras. Seria uma vergonha se tocasse em quem se interpôs entre mim e meu grande amor.

– Oh, irmã, oh, irmã, então me estenda sua luva! – gritou a mais nova, enquanto flutuava para mais longe ainda. – Você terá sir William de volta.

– Afogue-se! – gritou a princesa cruel. – Não tocará na minha mão nem na minha luva. O doce William será todo meu quando você tiver se afogado.

Dando-lhe as costas, voltou para o castelo do rei.

A princesa mais nova flutuou represa abaixo, ora nadando, ora afundando, até que chegou perto de um moinho, na hora que a filha do moleiro estava cozinhando e precisava de água para a comida que preparava. Quando foi buscá-la no riacho, viu algo flutuando em direção à barragem do moinho e gritou:

– Pai! Pai! Venha tirar algo aqui da represa. Há uma donzela ou um cisne branco como leite descendo o riacho.

Então o moleiro correu para a represa e deteve as pesadas e cruéis pás do moinho. Retiraram a princesa e a puseram na margem. Estava linda quando a puseram ali. Em seus cabelos haviam pérolas e pedras preciosas, um cinto dourado circundava sua cintura, e a barra dourada de seu vestido branco cobria seus mimosos pés. Mas ela se afogara.

Enquanto estava ali, deitada e bela, um famoso harpista passou pela represa de Binnorie e viu a doce e pálida jovem. Embora continuasse seu caminho para longe, não conseguia esquecer aquele belo rosto, por isso, muito tempo mais tarde, voltou para a represa de Binnorie. Mas, tudo que encontrou depois que a enterraram, foram seus ossos e os cabelos dourados. Então ele fez uma harpa com o osso do tórax e os cabelos da moça e subiu o morro da represa de Binnorie, até chegar ao castelo do rei, pai da princesa.

Naquela noite estavam todos reunidos no grande salão do castelo para ouvir o famoso harpista. O rei e a rainha, sua filha mais velha, seu filho, sir William e toda a corte pareciam se divertir.

Primeiramente o harpista cantou ao som de sua antiga harpa, fazendo o público vibrar de alegria ou se emocionar e chorar, segundo sua vontade. Mas, enquanto cantava, ele colocou a harpa que fizera naquele dia sobre uma pedra no salão, e ela começou a tocar e cantar por conta própria, em tom baixo e claro. O harpista parou para ouvir em silêncio, assim como todos os demais.

O que a harpa cantou foi:

Oh, além se senta meu pai, o rei,
Binnorie, oh, Binnorie;
E além se senta minha mãe, a rainha,
Perto da linda represa de Binnorie.
E além está meu irmão, Hugh, de pé,
Binnorie, oh, Binnorie;
E junto a ele meu William, falso e sincero,
Perto da linda represa de Binnorie.


Então todos ficaram curiosos, e o harpista contou como vira a princesa afogada na margem perto da represa de Binnorie, e como depois fizera essa harpa com seus cabelos e o osso do tórax. Nesse instante a harpa começou a cantar de novo, e isso foi o que ela cantou, em tom alto e claro:

E ali está sentada minha irmã, que me afogou
Na linda represa de Binnorie.


Então a harpa se partiu e nunca mais cantou.

Fonte:
Katharinne M. Briggs. Contos Populares da Grã-Bretanha.

Katharine Mary Briggs (1898 -1980) foi uma folclorista e escritora britânica, que escreveu A Dictionary of British Folk-Tales, e vários outros livros sobre fadas e folclore. De 1969 a 1972, ela foi presidente da Folklore Society, que estabeleceu um prêmio em seu nome para comemorar sua vida e obra.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVII

"DEUS NÃO TEM UNIDADE
" 

Deus não tem unidade,
Como a terei eu ?
= = = = = = = = = = = = =

"DEVE CHAMAR-SE TRISTEZA
"
 
Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza  -  mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
 De entre as mãos ricas de pó.
= = = = = = = = = = = = =

"DO FUNDO DO FIM DO MUNDO
" 

Do fundo do fim do mundo
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.

E eu disse, "É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser.

É assim com um gesto nobre
Respondi a a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
= = = = = = = = = = = = =

POEMA DOS DOIS EXÍLIOS   
"DÓI VIVER, NADA SOU QUE VALHA SER
"
 
Dói viver, nada sou que valha ser.
Tardo-me porque penso e tudo rui.
Tento saber, porque tentar é ser.
Longe de isto ser tudo, tudo flui.

Mágoa que, indiferente, faz viver.
Névoa que, diferente, em tudo influi.
O exílio nado do que fui sequer
Ilude, fixa, dá, faz ou possui.

Assim, noturno, a árias indecisas,
O prelúdio perdido traz à mente
O que das ilhas mortas foi só brisas,

E o que a memória análoga dedica
Ao sonho, e onde, lua na corrente,
Não passa o sonho e a água inútil fica.
= = = = = = = = = = = = =

"DÓI-ME NO CORAÇÃO
"

Dói-me no coração
Uma dor que me envergonha
Quê ! Esta alma que sonha
O âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena coisa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
= = = = = = = = = = = = =

"DÓI-ME QUEM SOU. E EM MEIO DA EMOÇÃO"

Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.

Sim tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.

Aparecido Raimundo de Souza (EBook Navegante das Palavras)


Colaborador do blog desde 2010, Aparecido possuí mais de 100 textos nele. Este ebook é uma compilação dos 52 melhores textos (segundo a concepção do editor do blog) deste escritor, aqui postados.

Aparecido é escritor e jornalista da revista Isto É Gente. Possui dezenas de livros lançados e entrevistas com escritores famosos. Escreveu a mini-série exibida na Rede Globo: "Ligações Perigosas"  

Faça o download do livro (em pdf) clicando
no link abaixo

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 17

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 46 -

A saga dos seres humanos mostra que somos gregários, gostamos de estar juntos,  viver em sociedade. É nossa gesta. Mas ampliamos o social junto a outros seres que nos são caros. Eu cá comigo tenho dois companheiros cachorrinhos - Frederico e Bela - que buscam atenção e companhia como se humanos fossem. Cada um no seu estilo.

O Fredy ou Dom Frederico é o ativo com olhos de lince e as passadas ligeiras sempre. Alvissareiro das manhãs, acorda sorrindo a espantar qualquer mau humor. Um lorde sempre a caminho. Indo ou vindo.

Dona Bela, a Belinha, é a criatura com olhar inefável, cativante, mas decidida, na dela. Tem a analogia das pessoas que não desistem dos seus intentos. Busca, insiste, não arreda.

Corpos incorporados ao corpo da casa, ensinam tanta coisa - obediência, paciência, generosidade. Têm a singeleza dos irracionais. Mágicos ou magias ? Cachorrias . . . Só quem vive com eles consegue entender a alma dos cachorrinhos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 2

A ganância que te ilude
que te arrasta à solidão,
é a mesma falsa virtude
que esconde a luz da razão!
= = = = = = = = = = = = =

A infância, é uma doce brisa;
passa logo, e de repente...
Vem o outono e se eterniza
no chão da vida da gente!
= = = = = = = = = = = = =

Ao vencer tempo e distância,
a velhice, abraço e aceito;
mas os bons tempos da infância
são crianças no meu peito!
= = = = = = = = = = = = =

Aquele retrato antigo
que o tempo tem castigado,
conversa sempre comigo
segredos do meu passado!
= = = = = = = = = = = = =

Cada verso que desliza
entre esses meus cegos dedos,
numa trova sintetiza
seus infinitos segredos!
= = = = = = = = = = = = =

Deus mostra ao mundo insensato,
injusto, cego e sem luz...
Que o infinito amor, de fato,
coube entre os braços da cruz!
= = = = = = = = = = = = =

Deus pôs no amor tanta essência,
que, o seu grande Benfeitor,
não permite que a ciência
ponha limites no amor!
= = = = = = = = = = = = =

Há uma paz no olhar da mata
quando a brisa em leve açoite,
soprando a velha cascata
embala o pranto da noite!
= = = = = = = = = = = = =

Lembrando os tempos antigos,
mesmo apesar da distância...
Escuto os passos amigos
dos meus amigos de infância!
= = = = = = = = = = = = =

Mãe, é poema de amor
que, a qualquer filho se apega;
alívio que afasta a dor
da cruz que o filho carrega!
= = = = = = = = = = = = =

Mãe - nessas tuas letrinhas
ouço os mais lindos fonemas
que formam todas as linhas
dos versos dos meus poemas!
= = = = = = = = = = = = =

Não vi mais meus pirilampos,
poetas de luz do meu chão,
que iluminavam meus campos
nas noites de solidão!!!
= = = = = = = = = = = = =

Na treva é que se carrega,
a dimensão do empecilho
da dor, que sente a mãe cega,
por não poder ver o filho!
= = = = = = = = = = = = =

Nos teus bilhetes queimando
vi com certo desconforto…
Frases de amor me acenando
das cinzas de um sonho morto!
= = = = = = = = = = = = =

Num mundo de desiguais,
onde há tantos desenganos...
Perdem-se, cada vez mais,
os sentimentos humanos!
= = = = = = = = = = = = =

Os teus cansaços não vão
impedir que o teu suor,
seja o fermento do pão
que te alimenta melhor!
= = = = = = = = = = = = =

Ousado e um tanto atrevido,
mas confesso, e se não fosse...
Jamais teria sentido
o mel de um beijo tão doce!
= = = = = = = = = = = = =

Prefiro os caminhos tortos
aos enlevos mais risonhos,
a ver os meus sonhos mortos
entre as cinzas de outros sonhos!
= = = = = = = = = = = = =

Quanta lágrima sentida
no olhar da mãe peregrina,
regando as rugas da vida
nas rugas da própria sina!
= = = = = = = = = = = = =

Quanta lágrima sofrida,
e na alma, essa inquietude…
Por não ter feito na vida
tudo aquilo quanto pude!
= = = = = = = = = = = = =

Se a flor da infância se afasta,
crê noutras flores bondosas;
que uma flor que o vento arrasta
não rouba a vida das rosas!
= = = = = = = = = = = = =

Sei que a saudade não mata,
mas provoca pranto e dor;
qualquer saudade resgata
saudosos sonhos de amor!
= = = = = = = = = = = = =

Sinto na mãe que se enlaça
nos braços de uma criança...
Que um sonho de amor se abraça
aos bracinhos da esperança!
= = = = = = = = = = = = =

Soprei cinzas!.. E, ao soprá-las,
entre as cinzas da lembrança...
Escutei todas as falas
do meu tempo de criança!
= = = = = = = = = = = = =

Sou como as folhas sem dono
que se arrastam pelo chão,
nas tardes tristes de outono
depois que os ventos se vão!
= = = = = = = = = = = = =

Tua carta de alforria
eu queimei sem embaraços,
porque quero todo dia
ser escravo de teus braços!
= = = = = = = = = = = = =

Vivo cercado de afetos!
Na paz do mesmo endereço...
Vejo em meus filhos e netos
a vida em seu recomeço!
= = = = = = = = = = = = =
Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Nilto Maciel (Para Escrever a Caminho do Nada)

A pequena obra de Tácito Bonifante, intitulada “A caminho do nada”, pode ser considerada conto, embora alguns críticos tenham falado em novela, conto-novela, novo-conto e quase-conto. O drama principal envolve dois personagens: Agnelo e Beatriz. No entanto, Agnelo se confunde com Beatriz, como se fossem um só personagem: “Agnelo saiu de casa ao meio-dia. Vestia paletó preto. Subia os primeiros degraus do patamar da igreja, parou subitamente, ajoelhou-se e gritou: Sou pecadora!” Segundo um professor de literatura, ocorreu aí um erro editorial ou um cochilo do escritor. Para outro estudioso, Agnelo é, na verdade, a própria Beatriz. Lembra este trecho do conto: “Nas noites de sábado ele se transforma. Não bebe álcool, não fuma maconha, mas em seus olhos se vê o brilho das estrelas novas.” Isto é, Agnelo, o cordeirinho, se veste de Beatriz, a que faz feliz alguém.

A história, se é que se pode falar em história, se constitui de intenso conflito interior ora de Agnelo, ora de Beatriz. Contudo, não é possível saber qual a relação de parentesco, de afinidade, de amizade entre o homem e a mulher. Seriam casados, namorados, irmãos, pai e filha, mãe e filho, vizinhos, amigos? “Enxugava o rosto Beatriz quando Agnelo passou pela calçada”. Onde se achava a mulher? Terá ela visto o homem? Terá este visto a mulher a enxugar o rosto? Estaria ela chorando? Por que estaria chorando? As manhãs domingueiras de Agnelo são de puro desespero: “Nunca mais me exilarei no reino do Muito Longe. Aqui, neste mundinho, viverei até a morte. No entanto, outros sábados virão e eu não terei forças para me agarrar às estacas de minha casa.”

O conflito interior não chega a ser narrado, mencionado com clareza. “Agnelo fechou os olhos. Nunca mais poderia ver aquela mulher.” A que mulher se refere o narrador? Três parágrafos adiante o leitor tem uma vaga ideia de por que o personagem nunca mais veria a mulher: “A viagem se iniciava. Mais dois passos e alcançaria o mar.” Um crítico se refere a suicídio. O homem iria se jogar ao mar. De onde terá arrancado tal conclusão? Desse trecho: “A canção de Dorival me deixa triste.” Refere-se à frase: “É doce morrer no mar.”

Durante toda a narrativa há uma só referência ao mar, o que não credencia o leitor a julgar que o personagem viva no litoral. Em um momento o narrador se refere a seres e objetos, ao ambiente de uma fazenda: “Os bois mugiam e Beatriz se enroscava no lençol. O cheiro de leite inundava o quarto; a mulher gemia. Um galo cantou. Uma voz de mulher cantarolou uns versos antigos. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, a alma da mulher desprendeu-se-lhe.” Estaria Beatriz sonhando? Ou imaginando a tranquilidade de uma fazenda? Veja-se Machado de Assis, do conto “As academias de Sião”: “Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também.”

Na verdade, os personagens pervagam, pelo menos psicologicamente, diversos lugares: “Na praça um mendigo dormia debaixo de um banco. Agnelo amassou o jornal e saiu às pressas.” Mais adiante “subiu a escada rolante, a olhar para os lados. Uma jovem descia pela escada ao lado. Mascava chiclete. Sorria, como se lembrasse de um beijo. Ao chegar ao fim da escada, Agnelo parou e sondou o andar de baixo. A moça havia sumido.” Como se monologasse sempre, o personagem deixa a escada e logo está em casa: “Retirou o paletó e se jogou na cama. Virou-se para o teto. A luz da lâmpada lembrava um grande sol.”

Também é impossível medir o tempo da trama, se é que há trama. O homem está sempre de paletó preto ou nu. Terá diversas dessas vestes? Beatriz, porém, aparece de vestido vermelho, de calça azul e blusa branca, de saia amarela, sem roupa, no banho, etc. Ora, poderá ter usado num só dia todas essas roupas. Há referências vagas a pelo menos cinco jantares, que podem ser o mesmo: “Passou mais de cinco minutos a ler o cardápio. O garçom ia e vinha, impaciente.” Em outra cena monologa: “Bife de coelho?” E o narrador reapresenta Beatriz: “Adorava coelhos. Não como iguaria, certamente. Preferia-os vivos, brancos, saltitantes. Olhou para o gato deitado no sofá. Vem cá, meu amor.” Cenas de carnaval há pelo menos três: “O homem arrependeu-se de ter saído de casa. Os foliões olhavam para ele como se vissem um ser estranho. Aquela camisa amarela não combinava com a grande festa.” Sendo assim, seriam pelo menos três anos de história. Ou seria o mesmo carnaval? Talvez não, pois mais adiante “Agnelo vestiu uma camisa listrada.” Poderia ter sido no mesmo dia ou no seguinte?

De volta à questão principal: Beatriz e Agnelo se conheciam? Não há um só diálogo deles. Ela dialoga com um homem sem nome explícito e com outra mulher. Ele parece sempre só. Ela não se refere, nas narrações, a ele, a não ser neste breve trecho: “Um homem chamado Agnelo não poderá jamais gostar de borboletas.” Não explica o porquê dessa afirmativa (ou negativa?). Veja-se o início da narração: “Na floresta vivia um sapo que gostava de borboletas. Ele saltava, pulava, e nada de capturar borboletas. Chamava-se Agnelo. Se fosse homem, talvez colecionasse borboletas.” No entanto, o sapo Agnelo não é o personagem do conto. Também ele, Agnelo, narra pelo menos três episódios, e em nenhum deles se refere a Beatriz. A não ser quando dá a uma mendiga o nome de Beatriz: “A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão e saiu. Deixou no chão um cobertor sujo e rasgado. A mendiga se aproximou do banco, olhou para as costas do mendigo, que ia longe, e se apoderou da roupa. Por acaso és dona destes trapos, Beatriz? Como sabes o meu nome? Está escrito em teus olhos. Conduzes a felicidade.” Veja-se a vampirização deste trecho do conto “O Suave milagre”, de Eça de Queiroz: “A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha.” Mas somente isto, porque no mais os dois contos nada têm em comum.

Não há propriamente um desenlace: Agnelo se avizinha da ponte e olha para baixo: “Ninguém é dono de nada.” A frase pode ser dele ou do narrador. Do outro lado da ponte surge Beatriz. Alguns críticos veem nesse momento o encontro dos dois. Há um sapo na água e dois mendigos à beira da lagoa ou do rio, a banharem-se. Frases sem aparente sentido se embaralham: “Eu sou o que não sou” (Agnelo?), “meus passos me seguem e seguirão” (Beatriz?), “a água se turva e o céu agradece” (narrador?), “desta água beberei” (mendigo?), “banho, véspera da morte” (mendiga?), “o caminho, feito de passos, abria-se para todos os lados, em círculo, como um sem-fim” (narrador?), “aqui estou” (Agnelo? Também a última fala de Jesus, no conto de Eça).

“A caminho do nada” é, talvez, o conto mais enigmático de Tácito Bonifante, uma narrativa que aceita as leituras mais diversas e abriga o doce prazer de ler e querer escrever a história lida.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 32: Waldir Neves

 

Dorothy Jansson Moretti (Seu Victorino e a Rua São Pedro)

– A rua está linda! Gosto de vê-la de dia, ao sol e sob o céu azul, com as árvores verdinhas como são nesta época do ano. Gosto de vê-la à noite, com os paralelepípedos brilhando à luz das lâmpadas dos postes, enquanto as folhas das árvores se movem e farfalham ao ventinho constante de nossas noites bonitas.

Rua São Pedro. Soa tão bem!

Será que algum outro nome ficaria melhor para ela?

Quase ninguém sabe disso, mas já houve ocasião em que quiseram mudá-lo. Foi durante a ocupação das forças vitoriosas na Revolução de 30. O administrador da cidade, nomeado pelo comandante da praça, era o saudoso jornalista Walfrido Rolim de Moura.

Certa manhã, acompanhado por seu filho Plínio, ele entrou na farmácia de Seu Victorino, que ficava em frente ao Foto Jansson. Ambos discutiam um assunto, e a certa altura dirigiram-se a ele, pedindo-lhe a opinião.

"Seu Victorino, estamos querendo homenagear o grande vulto da revolução, o saudoso governador da Paraíba, e pensamos em mudar o nome desta rua para João Pessoa. O que o senhor acha?"

Seu Victorino foi franco:

"Desculpem , mas não concordo. Acho que não se deve mudar um nome que é querido pela população, e tradicional, sendo até ligado ao nome original da cidade: São Pedro do Itararé".

Walfrido achou que era "carolice":

– "Só porque é nome de santo?"

"Não, Seu Walfrido. Eu nem sou católico. Mas olhe, aí vem Seu Claro Jansson. Vamos perguntar a ele".

Meu pai, apesar de também não ser católico, foi totalmente contra a ideia. E logo em seguida, o médico protestante Dr. Onofre Di Giacomo, que acabava de entrar na farmácia, consultado, também manifestou-se contrário.

O jornalista, em minoria, pareceu um tanto agastado;

"Bem, eu vou pesquisar a opinião pública. Se me for favorável, mudo o nome da rua, quer o senhor queira, quer não!"

Seu Victorino também foi teimoso:

"Pois, Seu Walfrído, se o povo concordar em que se mude o nome da rua, eu me ofereço para doar-lhe as placas para sinalizá-la".

Não ficou sabendo se houve a pesquisa. Poucos dias depois, o administrador voltou à farmácia;

"Olhe, Seu Victorino, em atenção à vontade de amigos, decidi conservar o nome da rua. Mas o Largo de São Pedro vai-se chamar Praça João Pessoa". (Hoje, Francisco Alves Negrão)

"Está bem, Seu Walfrido. De pleno acordo. A nossa teima era só a rua..."

Foi assim. E é por isso, graças a Seu Victorino, que a nossa mais bela e importante artéria continua ostentando em cada placa de esquina o nome querido e tradicional do grande apóstolo guardador das chaves do céu.

Rua São Pedro. Soa tão bem!

Será que alguém ainda pensaria em mudá-lo?

Nunca!

(Tribuna de Itararé-28/11/84)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Hinos do Brasil (Estados de São Paulo e Minas Gerais)

Estado de São Paulo
O Hino dos Bandeirantes, como também é chamado o hino oficial de São Paulo, foi instituído em 1974. A canção é proveniente de um poema homônimo do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969). Sua letra tem como inspiração a Independência do Brasil e a conquista da liberdade em relação aos portugueses.

Hino dos Bandeirantes
Letra por Guilherme de Almeida
Melodia por Spartaco Rossi


Paulista, para um só instante
dos teus quatro séculos ante
a tua terra sem fronteiras,
o teu São Paulo das «bandeiras»!

Deixa atrás o presente:
Olha o passado à frente!

Vem com Martim Afonso a São Vicente!
Galga a Serra do Mar! Além, lá no alto,
Bartira sonha sossegadamente
na sua rede virgem do Planalto,
Espreita-a entre a folhagem de esmeralda;
beija-lhe a Cruz de Estrelas da grinalda!
Agora, escuta! Aí vem, moendo o cascalho,
botas-de-nove-léguas, João Ramalho,
vem subindo a roupeta...
de Nóbrega e de Anchieta.

Contempla os Campos de Piratininga!
Este é o Colégio. Adiante está o sertão.
Vai! Segue a “entrada”! Enfrenta! Avança! Investe!

Norte-Sul-Este-Oeste,
em “bandeira” ou “monção”,
doma os índios bravios;
rompe a selva, abre minas, vara rios;
no leito da jazida
acorda a pedraria adormecida;
retorce os braços rijos
e tira o ouro dos seus esconderijos!

Bateia, escorre a ganga,
lavra, planta, povoa
Depois volta à garoa!
e adivinha através dessa cortina
na tardinha enfeitada de miçanga,

a Sagrada Colina
ao Grito do Ipiranga!
Entreabre agora os véus!
Do Cafezal, Senhor dos Horizontes,
verás fluir por plainos, vales, montes,
usinas, gares, silos, cais, arranha-céus!
= = = = = = = = = = = = =

Minas Gerais
‘Oh, Minas Gerais’, é uma adaptação de uma tradicional valsa italiana, chamada Viene sul mare, introduzida no Estado por companhias líricas e teatrais daquele país que vinham ao Brasil no século XIX e início do século XX. A letra foi feita pelo compositor mineiro José Duduca de Morais, o De Morais, gravada em 1942.


Oh, Minas Gerais
Letra por José Duduca de Morais
Melodia: adaptação da valsa italiana Viene sul Mare.


Tuas terras que são altaneiras.
O teu céu é do mais puro anil.
És bonita, oh terra mineira,
Esperança do nosso Brasil!

Tua lua é a mais prateado
Que ilumina o nosso torrão!
És formosa, oh terra encantada!
És orgulho da nossa nação!

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Teus regatos te enfeitam de ouro.
Os teus rios carreiam diamantes
Que faíscam estrelas de aurora
Entre matas e penhas gigantes.

Tuas montanhas são preitos de ferro
Que se erguem da pátria alcantil!
Nos teus ares suspiram serestas.
És altar deste imenso Brasil!

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Lindos campos batidos de sol
Ondulando num verde sem fim
E as montanhas que, à luz do arrebol,
Têm perfume de rosa e jasmim.

Vida calma nas vilas pequenas,
Rodeadas de campos em flor,
Doce terra de lindas morenas,
Paraíso de sonho e de amor.

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Lavradores de pele tostada,
Boiadeiros vestidos de couro,
Operários da indústria pesada,
Garimpeiros de pedra e de ouro.

Mil poetas de doce memória
E valentes heróis imortais,
Todos eles figuram na história
Do Brasil e de Minas Gerais.

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Fontes:

Rubem Penz (A carta na garrafa)

Socorro, salve-me! Estou num lugar inóspito cercado de circunstâncias por todos os lados. Até agora, tenho me alimentado de convicções que tinha ainda em semente. Porém, depois de implantadas, em vez de crescerem, algumas minguaram, minguaram, minguaram e, por fim, morreram. As que me restam estão custando muito a florescer para, quem sabe, um novo semear. E, em se tratando de convicções, quebrar o galho não adianta, pois elas não pegam de muda.

Eu sei que poderia enfrentar as circunstâncias e me libertar desse inferno sem o auxílio de mais ninguém. Quem observa o horizonte de modo bastante atento, acaba descobrindo correntes de circunstâncias favoráveis até mesmo no infindável mar de lama. Acontece que desanimo cada vez que vejo as pessoas embarcando em tábuas de salvação meio furadas, que afundam em promessas ou devolvem os cidadãos à praia com novas ondas de pessimismo.

Ainda em se tratando de viagens, talvez me falte coragem para encarar a travessia por desconfiar de que, deixando essa minha ilha, seja para onde for, novas circunstâncias estarão a me oprimir. São tantos anos convivendo com as más, que boas circunstâncias soam como ficção científica.  

Se bem que, noite passada, sonhei com infraestrutura de saúde e educação pública, modais de transporte variados, boas matrizes energéticas e investimentos seguros... Acordei de súbito com a taxa de juros disparando em meu peito. Como não sei se estarei vivo quando esta carta chegar a ser lida, peço a ti, que sacou a rolha, rumar para a minha ilha de qualquer maneira. Por favor, não se furte em me prestar socorro. Se alguma garrafa atirada por um dos meus ancestrais tivesse alcançado a sensatez, a maturidade ou a decência, quem sabe eu agora não estivesse nesta situação lastimável. Isso, claro, na hipótese (positiva) de estares em algum desses estágios de civilidade. Se terríveis circunstâncias levaram minha garrafa para um destino pior, que ela sirva, ao menos, de consolo a ti, caro leitor: sim, existem no mundo outros homens vivendo de precárias convicções.

PS.: Esqueci de mandar o endereço ou mapa, não é? Mas é fácil chegar aqui: siga o caminho do capital especulativo ou do turismo sexual. De outra forma, faça o caminho inverso da evasão de recursos naturais (essa trilha tem mais de 500 anos). Só não caia na tentação de usar a rota da esperança eterna em um futuro melhor - esse caminho parece não levar a lugar algum.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. Porto Alegre: BesouroBox, 2013.