sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Tautologia (Vícios de Linguagem)


A tautologia (do grego “dizer o mesmo”) é , na retórica, um termo ou texto que expressa a mesma ideia de formas diferentes. Como um vício de linguagem pode ser considerada um sinônimo de pleonasmo ou redundância. A origem do termo vem de do grego tautó, que significa “o mesmo”, mais logos, que significa “assunto”. Portanto, tautologia é dizer sempre a mesma coisa em termos diferentes.

Em filosofia e outras áreas das ciências humanas, diz-se que um argumento é tautológico quando se explica por ele próprio, às vezes redundante ou falaciosamente. Por exemplo, dizer que “o mar é azul porque reflete a cor do céu e o céu é azul por causa do mar” é uma afirmativa tautológica. Um exemplo de dito popular tautológico é “tudo o que é demais sobra”. Da mesma forma, um sistema é caracterizado como tautológico quando não apresenta saídas à sua própria lógica interna, conforme os exemplos: exige-se de um trabalhador que tenha curso universitário para ser empregado, mas ele precisa ter um emprego para receber salário e assim custear as despesas do curso universitário; exige-se de um trabalhador que ele tenha experiência anterior em outros empregos, mas ele precisa do primeiro emprego para adquirir experiência.

Observe a lista abaixo, e se utiliza alguma, procure fugir deste vício:

A partir de agora;
A razão é porque;
A seu critério pessoal (se é a seu critério, só pode ser pessoal);
A última versão definitiva (se a versão é definitiva, claro que é a última)
Abertura inaugural;
Abusar demais;
Acabamento final;
Almirante da Marinha (Só existem almirantes na Marinha);
Amanhecer o dia (amanhecer a noite você já viu?);
Anexo (a) junto a carta (se está anexo, é claro que está junto);
Atrás da retaguarda;
Beco sem saída;
Brigadeiro da Aeronáutica (Só existem brigadeiros na Aeronáutica);
Certeza absoluta;
Colaborar com uma ajuda / auxílio;
Colocar algo em seu respectivo lugar;
Com absoluta correção/ exatidão;
Comparecer pessoalmente (em pessoa);
Compartilhar conosco;
Completamente vazio;
Comprovadamente certo;
Continua a permanecer;
Conviver junto;
Criação nova;
Criar novos empregos;
De comum acordo;
Descer pra baixo;
De sua livre escolha;
Demasiadamente excessivo;
Despesas com gastos;
Destaque excepcional;
Detalhes minuciosos;
Discussão tensa;
Elo de ligação;
Em caráter esporádico;
Em duas metades iguais;
Empréstimo temporário (todo empréstimo é temporário);
Encarar de frente;
Entrar pra dentro;
Erário público (erário é o tesouro público, por isso, basta dizer somente erário);
Escolha opcional;
Exceder em muito;
Expectativas, planos ou perspectivas para o futuro.
Expressamente proibido;
Exultar de alegria;
Fato real;
Ganhar grátis;
General do Exército (Só existem generais no Exército);
Goteira no teto;
Gritar/ Bradar bem alto;
Há anos atrás;
Habitat natural;
Imprensa escrita;
Individualidade inigualável;
Inovação recente;
Interromper de uma vez;
Juntamente com;
Labaredas de fogo;
Manter o mesmo time;
Matriz cambiante;
Medidas extremas de último caso;
Monopólio exclusivo;
Multidão de pessoas;
Nos dias … , inclusive (ex: nos dias 8, 9 e 10, inclusive);
Obra-prima principal;
Outra alternativa;
Países do mundo;
Palavra de honra;
Passatempo passageiro;
Pessoa humana
Planejar antecipadamente;
Pode possivelmente ocorrer;
Preconceito intolerante;
Propriedade característica;
Quantia exata;
Repetir outra vez / de novo;
Retornar de novo;
Sair para fora;
Sentido significativo;
Sintomas indicativos;
Sorriso nos lábios;
Sua autobiografia;
Subir pra cima;
Sugiro, conjecturalmente;
Superávit positivo;
Surpresa inesperada;
Terminantemente proibido;
Todos foram unânimes;
Última versão definitiva;
Um mês de mensalidade;
Vandalismo criminoso;
Velha tradição;
Vereador da cidade;
Viúva do falecido;
Voltar atrás.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 47

 

Aparecido Raimundo de Souza (N... q... l... i...)


GABRIEL ENTRA sem tocar a campainha da casa de seu amigo Duda e, ao dar com ele, sentado na sala, diante da TV tela plana, vai logo indagando:
— Duda, o que você está fazendo?

Duda sorri, mostrando a perfeição dos dentes, e, sem olhar para seu interlocutor, responde austero e ríspido, destacando, uma por uma, as letras:
— Além de estar vendo meus desenhos preferidos, N... q... l... i...
— Como disse?
— N... q... l... i...
— Não entendi, Duda. Traduza.
— Traduzir? Como? Não faço à mínima!

Gabriel insiste:
— Explique essas quatro letras. N... q... l... i... repete o recém chegado se abrindo numa fisionomia carrancuda. — Está querendo me fazer de otário?
— Não, Gabriel. Longe de mim essa ideia. Juro por Deus que não sei...
— Não sabe o que quer dizer N... q... l... i...?
— Exatamente. Não faço a mínima.
— E como você vomita uma série de letras que desconhece, no seu dia a dia, se não tem a menor ideia de qual seja o significado?
— Foi o Beto, filho do seu Murilo, que saiu com essa “parada”.
— Ok! E ele não lhe explicou a “parada?”.
— Não.
— E por qual motivo o Beto, mencionou essa droga de N... q... l...  i...  pra você?
— Simples. Cheguei na casa dele justo na hora do almoço...
— E...?
— Entrei pelo corredor, ganhando os fundos. Ao ingressar na cozinha, topei com ele batendo na Dulcinha com um cabo de vassoura...
— Meu Deus! Que horror!
— Foi o que eu disse: “Meu Deus! Que horror!”.
— E você, Duda, para não se passar por um completo imbecil não perguntou o motivo dele estar surrando a irmã?
— Perguntei, lógico.
— E o que ele disse?
— Duda, seu intrometido. Caia fora. Por aqui, N... q... l...  i...!

Gabriel fica ainda mais curioso e pensativo. Diz:
— Estranho. Muito estranho!
— O que você acha estranho, Gabriel?
— O Beto, filho do seu Murilo, estar batendo na irmã dele com um cabo de vassoura...
— Quarenta minutos depois que deixei a casa do Beto, o pai do Luiz, seu Paulo, me disse a mesma coisa...
— Ele também achou estranho o Beto estar descendo o cacete na irmã?
— Não!
— Então?
— Foi assim, Gabriel. Eu passei na casa do Luiz para entregar o caderno de Português que ele havia me emprestado...
— E daí?
— Daí, que eu bati palmas no portão. Ninguém veio atender...
— E os cachorros?
— Latiram feito “cão sem dono”.
— E o que você fez?
— Como os animais me conhecem, abri o portão e segui adiante, igual você acabou de fazer aqui...
— Continue...
— Ao chegar a varanda, ouvi gritos vindos do quarto...
— Gritos?
— Sim. Eram do Luiz.
— E o que você fez?
— Segui firme e forte. Pé ante pé, a respiração presa. Enquanto ganhava terreno, ia chamando pelo Luiz.
— Termine...
— Ao chegar na porta do quarto do Luiz, vi seu Paulo dando uns belos e fortes tapas no rosto do nosso amigo, que chorava e soluçava feito um louco.
— Que barbaridade!!!
— Foi o que também achei, e, por essa razão, me escapou um “Que barbaridade!”.
— Qual foi a reação de seu Paulo?
— Nem te conto. Os dois — pai e filho — se voltaram e deram comigo espantado, assistindo a cena. Perguntei ao Luiz por que ele apanhava, como uma forma de disfarçar a minha intromissão...
— E o que o pobre respondeu?
— Ele nada, mas seu Paulo urrou feito um leão vindo em minha direção, os olhos vermelhos de raiva:
— Desinfeta daqui seu verme. N... q... l... i...!!! – Enfatizou colérico.
— E você, que atitude tomou? Enfrentou o filho da mãe?
— Tá louco, Gabriel? Fiz o que o meu medo receoso mandou. Aliás, a única coisa sensata que pintou na minha cachola. Botei “quatro na perna do veado”, como dizia meu avô...
Gabriel coça a cabeça. Solta um risinho meio que sem graça:
— “Quatro na perna do veado?”.
— Isso. Saí correndo.  Dei o fora. Ou melhor, me debandei, voando. Na rua, me veio à cabeça uma ideia genial. Perguntar ao Joe. O Joe é metido a saber tudo...
— Boa ideia. O Joe é inteligente. Estudioso, lê muito, sabe das coisas. Concluindo, você foi até ele, perguntou, se inteirou do assunto, e, agora, dando uma de João sem braço pretende me fazer de trouxa...
— Pare com isso, Gabriel. De onde tirou essa ideia absurda?
— Se não pretende tirar sarro da minha cara, me convença do contrário. Canta a pedra de uma vez.
— Depois de procurar pelo Joe, por todos os cantos da cidade, dei com ele tomando sorvete com a namorada sentado num dos bancos da praça da matriz.  Sem mais delongas, mandei brasa:
— “Joe, tira seu amigo aqui de uma enrascada das brabas?”.  
— O infeliz me fuzilou: — “Caraca, mano. Será que não tenho direito nem de tomar um sorvete sossegado com a “minha pequena?  — No que se encrencou agora?”.
— “Não é bem uma encrenca, argumentei. — Estou com uma dúvida. — Uma dúvida muito grande e cruel”.  

Ele, fazendo ares de zangado:
— “Desembucha logo, moleque”.
— Mandei a pergunta:
— O que significam as letras, N... Q... L... I...?”
— “Então é isso?”
— “Fiz que sim com a cabeça”. — “Você sabe o que elas querem dizer?”.

Joe, intrépido, quase me agrediu:
— “Claro. Qualquer burro sabe. — Seu jumento!”
 — “Eu não sei...” — respondi, com humildade”.

Desafiador, porém, o miserável me rebaixou como se eu fosse um boçal:
— “Você pra burro, Dudu, só falta a prefeitura lhe dar uma placa com a identificação”.
— Tentei ser educado:
— “Manera, véi... burro não usa placa de identificação””.
— Que filho da mãe... Desgraçado!
— Joe, então cheio de marra e arrogância, menosprezo e pouco caso, veio pra cima de mim.  Tripudiou comigo, até dizer chega:
— “Então, pra você ser um completo burro, não está faltando nada”.
— “Deixa de palhaçada e me esclarece de uma vez o significado dessas quatro letras. Fale Joe. Explica aí. Por favor”.

Joe repetiu as letras, uma a uma:
— “N... q... l... i...?  É isso que quer saber?”,
— “Sim, meu amigo!... juro por Deus que vou embora e lhe deixo em paz”.

Gabriel, irrequieto morde as unhas:
— Vai, Duda, continue... e depois, vamos para “o depois...”. Ele esclareceu a sua dúvida?
— Mano, nem lhe conto! Joe sorriu alto e, finalmente, cheio de rancor nos olhos (naquele momento dono da situação) se fez cabeçudo e indelicado diante da minha ignorância completa. Querendo, logicamente, aparecer para a mulherzinha dele, risonho e feliz, vociferou, pondo fim ao nosso papo:
— “Imbecil essas quatro letras do nosso alfabeto querem dizer e, aliás, dizem: — “N... Q... L... I...!”.

Gabriel a ponto de ter um piripaque, treme as mãos, completamente fora de si:
— Que droga, cara. Pelo visto, você não insistiu. Meteu o rabinho entre as pernas e caiu fora?
— Pinoteei, meu caro... cai na estrada. Que mais poderia ter feito? O que você faria no meu lugar, depois de ser rebaixado, pisoteado e humilhado?
— Se fosse comigo, meu caro Dudu, juro por tudo quanto é sagrado. Ia até o armazém do seu Chico Jenipapo, comprava uma garrafa de coquetel molotov, acendia a bomba e jogava nos cornos dele e da namorada, ou mulher, sei lá... e faria isso sem nenhum remorso...
- Não que lhe interesse.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 2


A gatona amalucada
tem amantes de montão...
Pode ser meio "pancada",
mas é mesmo um "pancadão!"
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A Raimunda chega ao baile,
e logo se esquenta o clima,
pois alguns "cegos" em braile,
querem só tocar na rima!
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"Colesterol sempre sobe
se bebo e como torresmo"
— Diz a mulher: "Não se afobe!
Só isso é que sobe mesmo..."
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Com tristeza e desencanto,
vejo um mundo injusto e louco;
Há tão poucos tendo tanto,
e há tantos tendo tão pouco!
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Em devaneio profundo,
esqueço os dias tristonhos
e, assim, transformo meu mundo
em universo de sonhos...
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Em teu amor não confio...
Já se acabou a ilusão,
pois ele é vento vadio:
sopra em qualquer direção.
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Esta angústia indefinida,
que à tarde sempre me invade,
são sombras próprias da vida
ou disfarce da saudade?
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Eu te espero noite afora...
Plange o som de um carrilhão,
fatalmente, de hora em hora,
compassando a solidão...
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Fujo em estrada penosa,
temendo um amor adverso,
mas a saudade, teimosa,
percorre o caminho inverso.
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Mesmo em flagrante apanhado,
o malandro finca o pé:
— Trambique? Foi, delegado...
mas com toda a boa fé...
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Minha alma se enleva ao vê-las
em seu fulgor que seduz;
piscapiscando as estrelas
parecem ilhas de luz!…
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Minha mulher é nanica,
mas na cama é colossal:
ronca mais do que cuíca
em bloco de carnaval!
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Na igreja, em rito divino,
nossa união faz supor
que as badaladas do sino
são de aplauso ao nosso amor.
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Não me importam a censura
e o louvor da sociedade:
procuro viver à altura
da minha própria verdade.
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Não receio o que vier,
pois já vislumbro a partida...
mas luto, enquanto eu tiver
uma fagulha de vida!
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Na vitória, é teu dever
respeitar o opositor;
mais difícil que vencer
é saber ser vencedor!
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— O que te disse o Doutor?
Te deu muita informação?
— Informação? Não, amor,
é bebê... "em formação!"
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Pode a vingança depressa
ter consequências fatais.
Sabe-se como começa,
como termina, jamais!
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Quando a mulher do mascate,
parte pro tapa e, na luta,
chama a outra de "biscate",
esta revida e... disputa!
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Se a solidão é um açoite,
mágoas... não quero retê-las,
pois, entre as sombras da noite,
sempre posso ver estrelas.
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Se é apanhado numa treta,
mineiro não se retrai:
quando vê a coisa preta,
vai logo dizendo "uai!"...
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Sem teu amor, meu fanal,
naufraguei entre os escolhos
na profundeza abissal
do mar azul dos teus olhos!
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Sozinha, na caminhada,
fugindo ao mundo enfadonho,
troco os atalhos do nada
pelas veredas do sonho…
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Vendo o noivo em dura lida,
num constante vem e vai,
a mineira, embevecida,
somente suspira... "uai"...
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— Vendo pipoca, que é o fraco
da criançada, no recreio,
e de tanto que encho saco,
já estou de saco cheio!

Fonte:
Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013.
Enviado pela trovadora.

H. G. Wells (O Fantasma inexperiente)


Meu pensamento volta-se, constantemente, para a derradeira história que Clayton contou, relembrando-a em todos os seus pormenores. Ele passara a maior parte do tempo no sofá, junto à lareira, estando a seu lado Sanderson, fumando um daqueles cachimbos especiais, que trazem seu nome gravado. Evans e Wish, este o famoso e tão modesto ator, faziam parte do reduzido grupo.

Era um sábado de manhã, e havíamos chegado ao clube todos juntos, exceto Clayton, que ali pernoitara, o que motivou esta história. jogáramos golfe até ao escurecer e, depois de cear, caíramos naquele estado de bem aventurança, quando se fica em condições de ouvir qualquer fantasia que nos contem. E assim que Clayton iniciou sua extraordinária narrativa, quisemos tachá-lo de mentiroso. A princípio, julgamos que se tratasse, apenas, de uma de suas anedotas reais, no que ele era mestre.

— Já sabem que passei a noite sozinho, aqui? interrogou ele, depois de ter ficado muito tempo fitando as fagulhas que saiam das brasas, reanimadas por Sanderson.

— Com os criados... - emendou Wish.

— Sim, mas que dormem na outra ala - retrucou Clayton, que, antes de prosseguir, soltou mais algumas baforadas do charuto. E, sem perder sua habitual fleuma, declarou, calmamente:

— Apanhei um fantasma.

— Um fantasma! - exclamou Sanderson. - E onde está ele?

Evans, que passara quatro semanas na América e era grande admirador de Clayton, gritou com sua voz anasalada:

— Você agarrou mesmo um fantasma, Clayton? Extraordinário! Vamos, conte, logo, como tal aconteceu!

Clayton pediu que fechássemos a porta e, olhando para mim, à guisa de desculpa, disse:

— Não quero chamar ninguém de bisbilhoteiro, mas não desejo divulgar a história e assustar nossos excelentes servidores. Os cantos escuros e os estranhos adornos da arquitetura do prédio dão margem à imaginação... E o fantasma a que me refiro, quero que saibam, era um fantasma incomum. E talvez nunca mais volte...

— Mas... você não o prendeu? - perguntou Sanderson.

— Faltou-me ânimo para tanto - respondeu Clayton.

Enquanto nós desatamos a rir, Sanderson dava mostras de surpresa e Clayton parecia perturbado.

— Parece mesmo singular, - disse, sorrindo contrafeito - mas a verdade é que lidei realmente com um fantasma, tão certo quanto estar aqui conversando com vocês. Nada de gracejos, sei bem o que falo.

Sanderson mamava seu cachimbo, com mais vigor, concentrando seus olhos congestionados em Clayton e, após expelir uma espessa coluna de fumaça, resmungou algo a que Clayton não prestou atenção.

— Nunca me ocorrera uma aventura tão singular. Os amigos já conhecem minha descrença a esse respeito, mas, quando menos pensava nisso, apanho um fantasma, num dos cantos do prédio.

Mergulhou de novo em reflexões e puxou do bolso outro charuto.

— Conversou com ele? - perguntou Wish, curioso.

— Uma hora, mais ou menos.

— E que lhe contou? - indaguei, chegando mais perto dos incrédulos.

— O coitado pareceu-me encabulado...

— Ele chorou? - perguntou outro.

Clayton suspirou, ao pensar nessa circunstância.

— Sim, coitadinho, chorava que dava dó.

— E onde o apanhou? - quis saber Evans, com seu sotaque americano.

— Jamais poderia ter imaginado que um fantasma fosse uma coisa tão lamentável, prosseguiu Clayton, ignorando a pergunta.

E, após essas palavras, deixou-nos de novo em suspenso, fingindo que declarava em encontrar os fósforos e acendia, depois, o charuto.

— Apenas, consegui aproveitar uma oportunidade disse, afinal, como que respondendo à pergunta anterior.

E, como ninguém o interrompesse, prosseguiu:

— Posso afirmar que, mesmo sem o seu corpo, o caráter de uma pessoa permanece invariável, embora constantemente nos olvidemos disso. Indivíduos de vontade firme e forte dão espectros de firme e forte vontade. A maioria desses fantasmas obsecados que andam por aí deve ter uma ideia fixa qualquer, como qualquer maníaco, e se demonstram mais obstinados que um burrico. O meu pobre fantasma, porém, era diferente. Levantou subitamente os olhos, de maneira estranha, e seu olhar pesquisou todos os cantos do recinto.

— Afirmo-o com a minha melhor boa-fé, pois é a pura verdade. Logo de início, percebi que se tratava de um débil mental. - Soltou umas baforadas e continuou. - Agarrei-o no fim do longo corredor. Ele me dava as costas e, por isso, eu o vi antes que me percebesse. Certifiquei-me imediatamente de que era um espectro, tanto era transparente e esbranquiçado. Através de seu tórax, eu distinguia o reflexo dos vidros da janelinha. Pelo seu físico e atitudes, deduzi-lhe a fraqueza. Ele não sabia, absolutamente, o que iria fazer. Segurava um dos adornos da janela, com uma das mãos, e a outra passava-a constantemente pela boca. Desta maneira...

— Qual seu aspecto?

— Muito magro. Seu pescoço parecia formar duas calhas, nas costas, aqui e aqui. Cabeça pequena, cabelos despenteados, orelhas disformes. Ombros imperfeitos e mais estreitos que os quadris. Usava um colarinho caído, casaco curto, calças remendadas, à altura dos joelhos, e mais alguns rasgões, logo abaixo. Tal seu aspecto. Eu ia subindo sossegadamente as escadas, sem levar luz, já que as velas costumam ficar cá embaixo, e ali existe uma lâmpada. Ao subir, vi-lhe os chinelos. Estaquei de súbito, ao notá-lo. . . e examinei-o. Não me incutiu medo algum. Creio que, na maior parte de casos assim, o indivíduo não se assusta tanto como se poderia supor. Somente fiquei intrigado e surpreso. "Meu Deus!" exclamei, para mim mesmo. "Finalmente, vejo um fantasma! E justamente eu, que nunca acreditei nisso!"

— Hum! - rosnou Wish.

— Ao chegar ao patamar, o fantasma deu pela minha presença. Virou de novo a cabeça e dei com a cara de um jovem, nariz fino, bigode ralo e um esboço de barbicha. Ficamos alguns instantes a olhar um para outro. Olhava-me por cima do ombro. Afinal, pareceu recordar-se de suas altas funções. Esticou-se, virou-se de completo, espichou o rosto, estendeu a mão, no clássico estilo dos espectros, e veio para meu lado. Deixou cair seu pequeno queixo e emitiu um prolongado, mas fraco "Bu! No..." Como veem, nada de apavorante. Eu havia ceado muito bem e esvaziado uma garrafa de champanhe, e, depois de ter ficado sozinho, tomara mais alguns copinhos de uísque, por isso me encontrava mais firme que uma rocha e não mais amedrontado do que se tivesse visto uma rã.

— Bu! - retribuí-lhe eu. - Deixe de ser bobo. Você não tem nada que fazer aqui. Notei que ele estremecia.

— Buuu! - repetiu.

— Bu! Vá para o diabo! Você é sócio cá do clube? Mexeu-se algo, como que querendo sair do caminho, mas seu aspecto parecia abatido.

— Não... não sou sócio do clube, - respondeu o espectro, ante a insistente interrogação de meus olhos. - Sou um fantasma.

— Muito bem, mas isso não o autoriza a frequentar o Clube Mermaid. Está procurando alguém por aqui?

Dito isto, acendi logo minha vela, para que ele não julgasse que meu tremor era de medo e não por causa do uísque que eu ingerira. Perguntei-lhe:

— Que está fazendo aqui?

O espectro deixou pender os braços, parando de rosnar, e ali se ficou, meio sem jeito, acabrunhado, nítida imagem de um fantasma frouxo, inocente, sem vontade de ação.

— Estou dando uma voltinha... - respondeu, afinal.

— Seu lugar não é aqui, procure outras paragens.

— Eu sou um fantasma... - murmurou, como desculpa.

— Pode ser, mas aqui não é seu lugar. Este é um clube particular, bastante respeitável. Aqui, vêm, com frequência, pessoas com crianças, pajens, e, se alguma delas o encontrar por aí, pode ficar louca de susto. Não pensou ainda nisso?

— Não me havia ocorrido ainda essa hipótese, senhor.

— Pois devia ter pensado. Creio que não possui nenhum motivo ponderável para vir aqui, pois não? Suponho que não morreu assassinado nem sofreu morte violenta.

— Oh, não, meu senhor... mas, como esta casa é velha, possui seus enfeites de madeira, julguei...

— O pretexto é demasiado pueril - interrompi-o, fitando-o firme. - Foi um erro, sua vinda aqui - ajuntei, com amistosa superioridade.

Disfarcei, procurando fósforos nos bolsos, e olhei francamente para ele.

— Sabe que faria eu, em seu lugar? Procuraria evaporar-me, sumir daqui, antes do galo cantar.

Tais palavras deixaram-no perturbado.

— Na verdade, meu senhor...

— Eu me evaporaria - repeti, com insistência.

— Mas, então... eu não posso...

— Não pode, não?

— Não, porque me esqueci de algo. Tenho andado vagando por aqui, desde a última meia-noite, escondendo-me nos armários dos quartos desocupados... e já meio desorientado, tonto. Fiquei desconcertado, pois nunca rondara, antes.

— Ficou desconcertado?

— Sim, senhor, não me saio nunca bem. Parece que olvidei alguma coisa... e não consigo lembrar-me de quê...

— Essa circunstância impressionou-me bastante - afirmou Clayton. - Ele olhava para mim, tão desanimado, que me deixou incapaz de continuar mantendo aquele tom altivo e fanfarrão que adotara.

— Isso é muito singular - disse-lhe.

Nesse instante, julguei ouvir rumor, no andar inferior.

— Vamos para meu quarto e conte-me tudo, porque, até agora, nada compreendi .- convidei-o.

Procurei puxá-lo por um braço, mas, está claro, foi como se tentasse segurar uma nuvem de fumaça. Penso que até me esquecera o número do quarto. Assim, entrei em vários aposentos, antes de descobrir o meu, e foi sorte estar ali sozinho, naquela parte do prédio.

— Bem, agora, sente-se e conte-me sua história - disse-lhe, sentando-me também. - Pelo que vejo, meu amigo, meteu-se numa enrascada. O fantasma declarou não desejar sentar-se e que preferia ficar andando pelo quarto. Não me opus e, dali a instantes, estávamos numa prosa animada. Assim que me libertei dos vapores do uísque, comecei a ter noção do caso absurdo, fantástico, em que me enredara. À minha frente, se encontrava, meio transparente, o tradicional fantasma, sem outro ruído a não ser o de sua voz sideral, e seu nervoso vaivém pelo quarto, recoberto de tapetes. Através do seu corpo, eu podia vislumbrar o reluzir dos candelabros de cobre, o resplendor dos abajures e os quadros nas paredes, ao passo que ele me ia narrando sua desditosa e breve odisséia. Sua feição não era lá muito honrada, mas podem crer que falava a verdade, tanto era transparente.

— Como? - interrogou Wish, levantando-se de pronto.

— Que quer saber? - perguntou, por sua vez, Clayton.

— Porque era transparente... não podia deixar de dizer a verdade?... Não estou entendendo nada - explicou Wish.

— Muito menos eu - ajuntou Clayton, com incrível seriedade. - Contudo, era essa minhá impressão. Juro até que não se afastou por nada da pura verdade. Contou-me como morrera - descera a um porão londrino, para verificar um escapamento de gás, com uma vela na mão. E, quando isso ocorreu, exercia as funções de professor, numa escola particular de Londres.

— Pobre homem... - lamentei eu.

— Também fiquei com pena dele, e mais ele falava mais me comovia. Não tinha objetivo algum na vida e ficara fora dela. Falou-me, com desprezo, sobre seu pai, sua mãe, a respeito de seu professor, na escola, e de todos quantos conhecera no mundo. Tinha sido exageradamente impressionável e nervoso. Ninguém o havia apreciado verdadeiramente e muito menos o compreenderam, conforme contou. Penso que não chegou a ter nenhum amigo sincero nem jamais obtivera êxito algum. Mantivera-se alheio das diversões e fracassara em vários exames. Alegou que esquecia tudo, quando entrava na sala de exames. Estava noivo, naquela época, prestes a casar-se com outra pessoa igualmente impressionável, quando o escapamento de gás pôs termo aos seus amores.

— E onde foi você parar, depois da morte? - perguntei-lhe. - Não será em... A respeito disto, foi algo confuso. Parecia encontrar-se numa espécie de estado impreciso, intermediário, num lugar reservado às almas demasiado inexistentes para coisas tão positivas como o pecado e a virtude. Não soube explicar direito. Era bastante egoísta e indiferente para fornecer-me uma idéia clara quanto ao lugar ou região em que se encontrava. Muito além das coisas, estivesse onde estivesse, ele caíra, suponho, no meio de uma série de espíritos da mesma natureza; fantasmas de jovens londrinos, fracos, com os mesmos prenomes, entre os quais se devia falar muito em rondar. Sim, sair e rondar. Parece que, para esses fantasmas, o "rondar" fosse uma grande aventura e a maior parte deles não parava de falar nisso. Instigado, curioso, meu fantasma resolvera sair e... rondar.

— Ora, será isso possível? - perguntou, descrente, Wish.

— São as conclusões que tirei - respondeu Clayton, modestamente. - É bem possível que eu também me encontrasse num estado d'alma pouco favorável para discernir, mas essa impressão foi ele que ma deu. Não cessava de andar de um lado para outro, falando com voz fininha do seu mísero ego, porém sem nunca emitir uma declaração nítida e firme, do princípio até ao fim. Era bem mais minucioso, ingênuo e monótono do que se estivesse vivo e real. Se estivesse vivo, aliás, não o teria deixado em meu quarto. Teria saído dali a pontapés!

— Sim, - concordou Evans - há tipos dessa espécie.

— Mas que possuem tantas propriedades de ser fantasmas como os demais.

O que lhe dava algum interesse era sua convicção de lhe ser impossível desaparecer. A confusão que resultara de sua aventura deprimira-o de maneira incrível. Disseram-lhe que aquilo seria um mero passeio, e viera para cá esperando que assim fosse, mas encontrou apenas mais um fracasso a ajuntar aos de seu longo rol. Confessou-me, e acreditei, que jamais tentara coisa alguma, na vida, que não houvesse resultado num desastre e que isso continuaria acontecendo, pela eternidade afora. Caso tivesse encontrado simpatias, talvez... Não terminou e ficou a olhar para mim. Disse-me, ainda, que, por mais incrível que pareça, ninguém lhe havia dispensado nunca a dose de simpatia que eu lhe demonstrava. Adivinhei logo aonde queria chegar e decidi libertar-me dele, no mesmo instante. Pode ser que isso seja brutalidade de minha parte, mas, ser o único amigo sincero, o confidente de um desses débeis egoístas, seja ele homem ou fantasma, era algo
superior à minha resistência física. Levantei-me de supetão.

— Não se iluda - disse-lhe. - O melhor que lhe resta a fazer é ir-se embora, sair imediatamente. Reúna suas forças e experimente.

— Não consigo... - murmurou.

— Experimente! - intimei-o.

E ele experimentou.

— Experimentou?! - exclamou Sanderson. - E de que modo?

— Com passes - respondeu Clayton.

— Com passes?

— Sim, uma série de complicados movimentos, executados com as mãos. Fora assim que viera, e, assim, devia ir-se embora. Meu Deus! Que trabalho lhe custou!

— Mas, com uma série de passes. .. - comecei.

— Meu amigo, - interrompeu Clayton, voltando-se para mim e dando uma entonação especial às palavras - você quer que tudo seja bem explicado. Sei, apenas que ele executou esses passes. Após muitos esforços, conseguiu realizá-los perfeitamente, sumiu.

— Você prestou atenção nos passes? indagou Sanderson, lentamente.

— Sim, - respondeu Clayton, que parecia refletir.

Foi uma coisa extraordinariamente inédita. Estávamos ali, ambos, o vago e transparente fantasma e eu, naquele silencioso quarto, naquela casa silente e vazia, numa silenciosa noite de sexta-feira, na pequena cidade. Não se ouvia o menor ruído, exceto nossas próprias vozes e um ligeiro arfar, que produzia o espectro ao executar seus gestos. Estávamos iluminados pela vela do quarto e por outra, que havia no aparador. Nada mais. Uma ou outra vez, as velas produziam, durante alguns segundos, uma chama alta e esquia. E, então, se passaram coisas estranhas.

— Não, não posso... - gemia o fantasma. - Nunca mais.

Sentou-se subitamente numa cadeira e começou a soluçar. Deus meu! Que modo horrível de chorar!

— Reúna suas forças! - disse-lhe.

Tentei dar-lhe umas palmadinhas nas costas, porém minha maldita mão atravessou por ele. Nesse instante, devem compreender, já não me sentia tão... firme como quando chegara à escada. Notava perfeitamente tudo quanto ocorria de incomum. Recordo-me de que retirei a mão dele, com um leve estremecimento, e que fui até à mesa do aparador.

— Reúna suas forças, - repeti - e experimente.

E, no intuito de animá-lo e auxiliá-lo, procurei experimentar, também.

— Como! - exclamou Sanderson. - Os passes?

— Exatamente, os passes.

— Mas - disse eu, levado por uma idéia que não sabia traduzir.

— Muito interessante - comentou Sanderson, batendo a cinza do cachimbo. - Quer dizer
que esse fantasma lhe revelou...

— Sim, fez tudo quanto pode para revelar o segredo da maldita barreira.

— Mas não o conseguiu, - interveio Wish, - nem poderia fazê-lo, pois, do contrário, você também teria sumido.

— Essa é precisamente a questão - concordou Clayton, olhando, pensativamente, para as chamas.

Houve um breve silêncio.

— E, afinal, conseguiu? - perguntou Sanderson.

— Finalmente, conseguiu-o. Envidei enormes esforços para que não desanimasse, mas, enfim, conseguiu-o. .. e bastante bruscamente. Estava já desesperado, tivemos uma cena, todavia, de súbito se levantou e pediu-me que fizesse todos os movimentos lentamente, para que os pudesse ver. Creio, confiou-me, que, se pudesse ver bem, descobriria o que não estava certo. E tal ocorreu.

— Agora já sei! - exclamou enquanto me observava os movimentos.

— Sabe o quê? - perguntei-lhe.

— Sim, já sei - repetiu, ajuntando, a seguir, mal-humorado. - Se fica assim a olhar para mim, nada posso fazer. Na verdade, não posso. E é por isso que até agora nada fiz. Sou de tal modo nervoso que o senhor me desconcerta.

Entabulamos uma discussão. Certamente, eu queria ver como fazia, mas ele era mais teimoso que um burro, e eu me senti, de súbito, exausto, sem forças. Virei-me para o espelho do armário próximo da cama. Iniciou uma série de movimentos, muito rápidos. Procurei acompanhá-lo pelo espelho, para ver qual deles tinha esquecido. Seus braços e mãos rodopiavam, assim e assim, e depois veio, precipitadamente, o gesto final, - o corpo erguido e os braços abertos - e nesta atitude ficou. E, de repente, não mais o vi! já ali não se encontrava! Rodei sobre meus calcanhares e olhei. Nada! Eu estava só, diante da chama das velas, e com o espírito vacilante. Que teria acontecido? Tudo teria sido um sonho?. . . E aí, num tom absurdo de remate final, o relógio do patamar julgou chegado o momento de dar UMA hora. Assim: Ping! E eu me encontrava tão sério e tão atento quanto um juiz, sem vestígios de minha champanha nem de meu uísque. Mas, presa de estranha sensação, compreendem? Horrivelmente estranha! Singular! Santo Deus!

Olhou um momento para a fumaça do charuto e acrescentou:

— E foi tudo quanto aconteceu.

— E, depois, foi deitar-se? - indagou Evans.

— Que mais poderia fazer?

Olhei Wish, bem dentro dos olhos. Queríamos gracejar, mas havia algo na voz e nos gestos de Clayton que se opunha ao nosso desejo.

— E os passes? - perguntou Sanderson.

— Creio que seria capaz de executá-los, neste momento.

— Oh! - exclamou Sanderson, puxando um canivete e raspando a cinza do cachimbo. - Por que não os faz, agora?

— Vou fazê-los já! - disse Clayton.

— Nada conseguirá - profetizou Evans.

— Mas, se conseguir. . . - observei.

— Ouça, eu preferiria que o não fizesse - disse Wish.

— Por quê? - interveio Evans.

— Eu preferiria que o não fizesse, repetiu Wish.


— Mas, se já aprendemos bem ... volveu Sanderson, enchendo de fumo o cachimbo.

— De qualquer modo, eu preferiria que não o fizesse! insistiu Wish.

Discutimos com Wish, o qual afirmava que, permitir a Clayton executar tais gestos, era como que brincar com algo de sério, de misterioso.

— Mas você não vai acreditar nisso, vai? - disse eu.

Wish lançou um olhar de esguelha a Clayton que, com os olhos presos ao fogo, refletia sobre qualquer determinação de seu espírito.

— Eu creio... pelo menos, mais da metade, sim, acredito... - respondeu Wish, em tom sério.

— Clayton, - falei - você é um inventor de histórias bom demais, para nós todos. Quase tudo quanto você contou estava certo. Mas... essa coisa de desaparecer... não me convenceu muito. Vamos, fale, trata- e de um conto terrorífico?

Clayton ficou de pé, sem prestar atenção às minhas palavras, pondo-se ao centro do tapete, bem na frente de mim. Por alguns minutos, olhou pensativamente para os próprios pés e passou, depois, a fitar intensamente a parede oposta, com expressão decidida. Ergueu lentamente ambas as mãos à altura dos olhos e, assim, começou... Agora, muito bem, Sanderson era maçon e pertencia à loja dos Quatro Reis, que, com tanta pericia, se dedica ao estudo e esclarecimento de todos os mistérios da maçonaria passada e presente. E, entre os pesquisadores dessa loja, Sanderson não era de maneira alguma dos mais insignificantes. Acompanhava os movimentos de Clayton, com invulgar interesse, refletido em seus olhos avermelhados.

— Não vai indo mal - observou, quando Clayton terminou. - Na verdade, você consegue fazer isso de maneira assombrosa. Falta, todavia, um pequeno detalhe.

— Já sei! - respondeu Clayton. - E penso que lhe poderei dizer qual.

— Sim?

— Veja, este - disse Clayton, fazendo um movimento, que consistia em retorcer as mãos e atirá-las para a frente.

— Exatamente.

— Quero que saibam que este era o que ele não conseguia executar bem, mas, como VOCÊ ...

— Eu não entendo quase nada desse negócio e, principalmente, como pode você inventá-lo - retrucou Sanderson - esse gesto, porém, eu o conheço, está claro. - Refletiu um instante e continuou: - Em resumo, trata-se de uma série de sinais relativos a certo ramo de maçonaria esotérica ... Com certeza, você os conhece... pois, do contrário ... como?

Tornou a refletir mais ainda, e prosseguiu:

— Não penso que haja mal algum em revelar-me o sinal exato. Além disso, se você já o conhece, melhor para si, mas, se o não conhece, fica tudo na mesma.

— Eu nada sei, além do que me ensinou o pobre, naquela noite - declarou Clayton.

— Então, tanto faz - murmurou Sanderson, pousando o cachimbo, cuidadosamente, no modilhão. Em seguida, passou a executar rápidos movimentos, com as mãos.

— É assim? - perguntou Clayton, imitando-o.

— Isso mesmo! - certificou Sanderson. voltando a pegar o cachimbo.

— AGORA, - disse Clayton - sou capaz de executar a série toda... bem. Encontrava-se de pé, diante do fogo, que ia morrendo, e sorria para nós. Contudo, pareceu-me haver certa hesitação naquele sorriso.

— Vou começar... - preveniu-nos.

— Em seu lugar, eu não começaria, - observou Wish.

— Nada poderá acontecer - afirmou Evans. - A matéria é indestrutível. Você não irá pensar que uma invenção dessas seja capaz de lançar Clayton para o mundo das sombras. Teria graça! Quanto a mim, Clayton, pode bracejar à vontade, até que seus braços se separem dos punhos.

— Não concordo com isso - atalhou Wish, que se levantou e pôs a mão no ombro de Clayton. - Saiba que quase me fez acreditar em sua história, por isso, não quero que faça tal coisa.

— Valha-me Deus! - exclamei - Parece que Wish está assustado!

— Sim, estou - confessou Wish, com veemência real, ou notavelmente fingida. - Penso que, se fizer tais gestos esotéricos, acabará desaparecendo.

— Nada disso acontecerá! - exclamei. - Os homens somente podem sair deste mundo por um caminho, e Clayton ainda tem mais de trinta anos à sua frente. Você não julga que...

Wish interrompeu-me, todo agitado. Saiu de entre nossas poltronas e, parando junto à mesa, gritou:

— Clayton, você está maluco!

Clayton voltou-se sorrindo, com um brilho humorístico no olhar.

— Wish tem razão - disse - e vocês; todos estão equivocados. Desaparecerei. Levarei até ao fim estes passes, e, quando o derradeiro movimento rasgar o ar ... pronto! Este tapete ficará vazio, a sala ficará inundada de mudo assombro, e um cavalheiro de noventa e cinco quilos, decentemente trajado, mergulhará em cheio no mundo das sombras! Tenho certeza disso, e vocês também não tardarão em tê-la. Desisto de continuar a discussão por mais tempo. Que se faça a prova!

— NÃO! - intimou Wish, dando mais um passo à frente. Mas estacou, e Clayton ergueu as mãos, mais uma vez, para repetir os passes do fantasma.

Naquele instante, nos encontrávamos numa deplorável tensão de espírito, principalmente por causa da atitude de Wish. Permanecíamos imóveis, olhares fixos em Clayton, e eu, pelo menos, experimentava uma estranha sensação de tensão e rigidez, como se, desde a nuca aos músculos, meu corpo fosse de aço. Nesse ínterim, com uma gravidade imperturbável e serena, Clayton se inclinava, movimentava-se e agitava as mãos e braços, à nossa frente. Ao aproximar-se o fim, nossa tensão nervosa se tornou insustentável e percebi que rangiam os dentes. O derradeiro movimento, como já disse, consistia em abrir completa- mente os braços, com o rosto voltado para cima. Quando, finalmente, iniciou esse gesto, cheguei a conter a respiração. Podia ser uma coisa ridícula, evidentemente, mas vocês já irão conhecer a impressão que causam essas histórias de fantasmas. E notem, ainda, que isso acontecia numa casa fora de comum, escura e antiga. Chegaria, depois de tudo, a ... ?

Durante um estarrecedor momento, Clayton permaneceu naquela posição, de braços abertos e cara virada para o alto, firme e resplandecente, sob o fulgor da lâmpada. Todos nós nos quedamos em suspenso durante aquele lapso de tempo, que nos pareceu um século, e, depois, brotou de nossas gargantas um som que era, ao mesmo tempo, um suspiro de infinito alivio e um NÃO! tranquilizador, pois, que, visivelmente... Clayton... não desaparecia. Tudo aquilo não passara de uma mentira. Clayton nos contara uma história banal, infantil, e quase nos fizera acreditar nela. Nada mais que isso! ... Mas, exatamente naquele momento a fisionomia de Clayton se transformava. Mudou-se completamente. Tal como se transforma uma casa iluminada, quando se lhe apagam subitamente as luzes, assim se transformou seu semblante. Seus olhos se vidraram bruscamente, o sorriso se lhe gelou nos lábios, subitamente exangues, e ele continuou de pé, imóvel. E assim se conservou, balançando-se suavemente.

Mas, aquele momento valeu, também, por um século. E, pouco depois, as cadeiras bailavam, objetos caíam ao chão, e todos nós nos sentíamos em movimento. Os joelhos de Clayton deram a impressão de que iam dobrar-se e ele tombou para a frente, ao passo que Evans dava um pulo e o amparava nos braços...

Isso nos deixou atônitos. Durante o espaço de um minuto, creio que nenhum de nós disse nada coerente. Estávamos vendo; no entanto, custávamos a acreditar... Sai de minha estupefata admiração para me encontrar ajoelhado junto ao corpo estendido. Seu casaco e sua camisa estavam rasgados, e Sanderson lhe auscultava o coração. Esse gesto, tão simples, podia ter sido deixado para mais tarde, para quando estivéssemos menos emocionados, pois não tínhamos pressa alguma em compreender. O cadáver permaneceu ali cerca de uma hora, mas ainda se conserva em minha memória, negro e desconcertante como então. Clayton passara, efetivamente, para aquele mundo que se encontra tão perto, e, ao mesmo tempo, tão distante de nós. Clayton fora para lá, realmente, pelo único caminho que pode seguir um mortal. Mas, que para lá seguiu unicamente graças aos conjuros daquele inexperiente fantasma ou repentinamente atacado de apoplexia, no decorrer de uma história banal, - como o médico-legista nos deu a entender - é o que não posso precisar. De qualquer maneira, trata-se de um dos muitos enigmas que hão de permanecer sem explicação até que estejamos em condições de compreender todas as coisas misteriosas que nos cercam. Tudo quanto posso garantir, porém, é que, no próprio momento, no instante exato em que Clayton acabava de executar aqueles passes esotéricos, transfigurou-se, cambaleou e tombou no chão, bem diante de nós... morto!

Fonte:
POE, Edgar Allan e outros escritores. Mestres do terror. dezembro de 1999. http://www.virtualbooks.com.br/ (in CR-ROM Biblioteca Eletronica vol. III. Magister) Conto em Domínio Público.

Estante de Livros (Notas para a definição de cultura, de T. S. Eliot)


Sinopse:


Tenho observado com crescente ansiedade a trajetória da palavra cultura nos últimos anos. Pode nos parecer natural e significativo que, durante um período de destruição sem paralelo, essa palavra viesse a ter uma importante função no vocabulário jornalístico. Seu papel é dividido com a palavra civilização. Neste ensaio, não busquei de modo algum determinar a fronteira entre os significados dessas duas palavras, pois cheguei à conclusão de que qualquer tentativa nesse sentido somente poderia resultar em uma distinção artificial, peculiar à obra, distinção essa que o leitor teria dificuldade em reter e que, após fechar o livro, provavelmente o abandonaria com uma sensação de alívio. Com efeito, usamos assaz frequentemente uma palavra em um contexto no qual a outra quadraria igualmente bem; há outros contextos em que uma palavra obviamente é adequada e a outra não; e não creio que isso deva causar embaraço. Existem obstáculos inevitáveis o suficiente nessa discussão sem que se ergam outros desnecessários.” T. S. Eliot.

Conteúdo do livro:

O próprio T. S. Eliot nos dá os detalhes do que trata o livro. Tanto melhor, pois assim não corremos o risco de escrever alguma impropriedade.

Diz Eliot:

No começo de meu primeiro capítulo, busquei distinguir e relacionar os três principais usos da palavra e chamar a atenção para o fato de que, quando usamos o termo em um desses três modos, devemos estar atentos para os demais.

A seguir, tentei expor a relação essencial entre cultura e religião, e deixar claras as limitações da palavra relação como uma expressão dessa ‘relação’. A primeira asserção importante é que nenhuma cultura surgiu ou se desenvolveu a não ser acompanhada por uma religião: de acordo com o ponto de vista do observador, a cultura aparecerá como o produto da religião, ou a religião como o produto da cultura.

Nos três capítulos seguintes, discuto o que me parecem ser três importantes condições para a cultura.

A primeira dessas é a estrutura (não apenas planejada, mas em desenvolvimento) orgânica, de tal modo que promova a transmissão hereditária de cultura dentro da própria cultura: e isso requer continuidade de classes sociais.

A segunda é a necessidade de a cultura ser analisável, do ponto de vista geográfico, em culturas locais: isso levanta o problema do ‘regionalismo’.

A terceira é o equilíbrio entre unidade e diversidade na religião – ou seja, universalidade da doutrina e particularidade do culto e da devoção. O leitor deve ter em mente que não pretendo explicar todas as condições necessárias para que uma cultura floresça; discuto três que chamaram minha atenção em particular.

Deve lembrar-se igualmente de que não ofereço um conjunto de indicações para a produção de uma cultura. Não estou afirmando que, ao começar a produzir essas ou outras condições adicionais, podemos confiantemente esperar que melhoremos nossa civilização. Afirmo apenas que, até onde se pode alcançar minha observação, é improvável que haja grande civilização onde que que essas três condições estejam ausentes.

Os dois últimos capítulos fazem uma modesta tentativa de desembaraçar a cultura da política e da educação.

Assim, uma nova civilização está sempre em construção: o estado de coisas que desfrutamos hoje ilustra o que acontece com as aspirações de cada época por um futuro melhor. A questão mais importante que podemos perguntar é se existe uma modelo permanente pelo qual podemos comparar uma civilização com outra, e através do qual podemos prever o progresso ou o declínio de nossa própria.

Caso sejamos bem-sucedidos, ainda que em parte, em responder tal questão, devemos ficar alertas contra a ilusão de tentar produzir tais condições com vistas a melhorar nossa própria cultura. Pois quaisquer que sejam as conclusões definitivas a emergirem deste estudo, uma delas certamente é a seguinte: a cultura é algo ao qual não podemos ambicionar deliberadamente. Ela é o produto de uma pletora de atividades.

De resto, devemos buscar a melhoria da sociedade, do mesmo modo como buscamos melhorar como indivíduos em questões particulares relativamente menores. Não podemos dizer: ‘Devo transformar-me em uma pessoa completamente diferente’; podemos dizer apenas: ‘Vou abandonar este mau hábito e tentar adquirir aquele bom’. Do mesmo modo, a respeito da sociedade somente podemos dizer: ‘Devemos tentar aperfeiçoá-la quanto a este ou àquele aspecto em particular, em que o excesso ou a ausência é evidente; devemos tentar incluir simultaneamente em nossa visão tantas coisas, de maneira a podermos evitar, ao consertar algo que estava errado, estragar alguma outra coisa’. Até mesmo isso é a expressão de uma aspiração maior do que podemos efetivamente alcançar: pois é tanto – ou mais – em virtude do que alcançamos aos poucos, sem compreender ou prever as consequências, que a cultura de uma época difere daquela de sua antecessora
.”
 
Sobre o autor:
 
Thomas Stearns Eliot (St. Louis, 26 de setembro de 1888 — Londres, 4 de janeiro de 1965) foi um poeta modernista, dramaturgo e crítico literário britânico-norte-americano. Em 1948, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. T. S. Eliot nasceu nos Estados Unidos, mudou-se para a Inglaterra em 1914 (então com 25 anos) e tornou-se cidadão britânico em 1927, com 39 anos de idade. Sobre sua nacionalidade e sua influência na sua obra, T.S. Eliot disse:

Minha poesia não seria o que é se eu tivesse nascido na Inglaterra, e não seria o que é se eu tivesse permanecido nos Estados Unidos. É uma combinação de coisas. Mas, nas suas fontes, na sua força emocional, ela vem dos Estados Unidos.”

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

José Fabiano (Muros de Trovas) 05

 

Amadeu de Carvalho Júnior (Estudar, brincar ou comer?)


A escola Felicidade, como o próprio nome diz, era muito feliz. Os alunos amavam aquela escola, por isso a respeitavam (seu ambiente, seus professores) e se dedicavam aos estudos. Era muito bonita e cheia de flores. Tinha um jardim que era o lugar predileto dos alunos, onde eles ficavam no recreio: havia um balanço, borboletas, uma grande árvore no centro, e uma passarinha muito bonitinha chamada pelos alunos de Rosaninha, nome da professora predileta deles.

Essa escola distribuía uma cesta com comida por semana que continha: um pão com mortadela, um com presunto e mussarela, um com carne moída, um com margarina e manteiga, um com requeijão e um pão puro (sem nada, sem recheio), um pacote de salgadinho, 2 latas de refrigerante, 3 copos de suco, de sobremesa = 1 pedaço de bolo, 2 pedaços de pudim, 1 pedaço de torta, 1 pedaço de gelatina e 3 frutas. Dá para entender (também) porque os alunos gostavam tanto dessa escola.

Certo dia, uma sexta-feira, naquela escola tão calma e pacífica, houve um episódio entre os seus alunos de 4ª série...

No fim da aula da professora Iracema, bate o sinal para o recreio, ela os segura por mais um tempo e diz:

- Estudem o dia todo e todo dia! Não fiquem brincando, é perda de tempo! Aproveitem o recreio para estudar, durmam pouco, não sejam preguiçosos, comam pouco não demorem no almoço ou no jantar, estudem em vez de ficar assistindo televisão ou em vez de conversar com alguém, não visitem ninguém, nem saiam de casa, não fiquem na rua, não vão a nenhuma loja nem nada, estudem, estudem e estudem!

Os alunos vão para o recreio. Alberto, Amélia Cyz e Laura vão para o jardim e outros alunos para o pátio. Lá Alberto passa o recreio todo concentrado estudando com cadernos e lendo livros, não desgrudava seus olhos dos livros. Amélia Cyz passou o recreio inteiro brincando, ficou um tempinho brincando com Rosaninha e depois ficou correndo ou brincando no balanço, não parou, estava muito elétrica e agitada.

Alberto e Amélia Cyz até esqueceram-se de comer, na verdade, pouco ligavam para isso (comida). Já Laura tinha acabado com sua cesta na segunda-feira mesmo (comeu tudo no dia que recebeu!), na terça-feira ela pediu para Alberto a sua cesta e ele deu, ela comeu na terça-feira e na quarta-feira  na quinta-feira pegou sem pedir a maior parte da cesta da distraída Amélia Cyz, só deixou duas ou três coisinhas que ela comeu no dia seguinte, na sexta-feira, o dia atual, sem Amélia Cyz ver novamente, pois Amélia só queria saber de brincar e deixou a cesta largada.

Como Laura era muito faminta e comilona e só havia sobrado pouco na cesta de Amélia Cyz, ela comeu na hora e ainda permaneceu com fome. Foi pedir mais uma cesta parava merendeira Catarina que a repreendeu severamente:

– Laura, a cesta já tem o suficiente para uma semana. Você come demais, vai fazer mal para a sua saúde, e para você mesma, vai ficar gorda e obesa! Não vou dar mais não, é injusto com os outros, pode faltar para eles!

Laura sai tristonha e pensa: Imagine se ela soubesse que eu comi ainda da cesta dos meus colegas!

Laura volta ao jardim.

Logo depois, chegam: o professor Bernardo, de educação física, a inspetora e merendeira gordona (Neli), e a professora de Ciências, Iracema, a mais rígida e severa de todo o colégio (aquela, com que os alunos da 4ª série incluindo Alberto, Cyz e Laura, tiveram aula anteriormente, antes do recreio). Bernardo diz:

– Parabéns, Amélia! Brincar, além de ser uma atividade de lazer e entretenimento muito boa para a infância e para crianças como você, é muito saudável, pois exercita bem o corpo, fortalece, desenvolve suas partes, e queima calorias, emagrece.

 Já Iracema diz:

 - Que nada! Quem merece os parabéns é Alberto! Estudar desenvolve a lógica, o raciocínio e a mente. É só estudando que se pode ser alguém na vida! Olha como ele é dedicado e esforçado!

 Neli discorda:

 – Vocês estão doidos?! Laura que está certa, no recreio tem é que comer, só comer e mais nada, é proibido fazer outra coisa! Além de que comer é bom, é gostoso, e deixa a pessoa bem forte!

Bernardo exclama:

- Você fala isso porque é gorda! É um erro achar que comida é sinônimo de saúde como muitos pensam. Eu fiz faculdade na área nessa área, sei do que falo!

Iracema retruca:

– Estudar exercita o cérebro, que também faz parte do corpo!

E começa uma discussão sem fim. Graças a Deus, bate o sinal e cada um vai para sua classe.

Mas Alberto, Amélia Cyz e Laura ficaram pensando nisso tudo e se fizeram a pergunta: "O que é mais importante: estudar, brincar ou comer?" E fizeram uma aposta: na segunda-feira como iriam ter a 1ª aula com sua professora mais simpática, mais doce e inteligente, a predileta da escola, a Professora Rosana, eles iriam trazer R$ 5,00 cada um e perguntar para ela qual das três coisas era a mais importante. Alberto apostou em estudar, Amélia Cyz em brincar, e Laura em comer, quem ganhasse ficaria com os seus próprios 5 reais e com 10 reais dos outros dois colegas, ao todo 15 reais.

Tiveram as duas aulas posteriores ao recreio e depois foram embora para casa.

Em casa cada um segue sua rotina normal, no final de semana...

... Alberto estuda sem parar, mal chega da escola já vai lendo livros, jornais e revistas como Veja e Galileu, sua mãe fica irritada por ele chegar e ficar lendo, o manda almoçar, ele mal come, já se enfia no caderno, no meio dos livros, fazendo lições e tarefas de casa, trabalhos e estudando para a prova, etc. De noite, passa em claro fazendo trabalho de geografia até a madrugada, amanhece, dorme muito pouco...

... Amélia Cyz brinca o dia inteiro, joga videogame, fica no computador, e joga vários jogos. Pratica esportes como vôlei, vai à casa de colegas, sai na rua brincar com os amigos e não para em casa, muito falante...

... Laura almoça pra valer mesmo depois dos lanches da escola, come muita sobremesa, sorvete, doces, chupa balas, fica mascando chicletes, e outras guloseimas e porcarias, toma café da tarde, depois come um pouquinho disso mais um tanto daquilo, belisca de lá e belisca de cá, não tem jeito, ficou beliscando o dia todo, depois janta, e ceia, e em seguida, já na cama, leva um prato e fica comendo, depois que dorme, acorda de noite com fome e come muito sanduíche...

Finalmente chega a tão esperada e aguardada segunda-feira, ansiosos vão fazer a pergunta para sua professora:

- Professora, o que é mais importante: estudar, brincar ou comer?

– Tudo é importante igualmente. Todas essas coisas são boas e necessárias. O que acontece é que cada coisa tem a sua hora: tem a hora de estudar, o momento de brincar e o tempo de comer. Se todos gostassem de uma coisa só iria ser muito chato, e coitada da outra opção! Assim também temos que estudar, brincar e comer, fazer as três coisas, mas cada uma em seu momento devido e na hora certa.

Assim, nessa segunda-feira, os alunos da Felicidade aprenderam uma grande lição com a sabedoria inspirada e inspiradora da professora Rosana: "Todas as coisas são importantes em seu tempo correto e preciso".

Fonte:
Espaço Literário Sorocult. www.sorocult.com

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) L

Olha-me rindo uma criança

 
Olha-me rindo uma criança
E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca bastou.

Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que e nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.

Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O Louco
 
Ele fala aos constelados céus  
Detrás das mágoas e das grades  
Talvez com sonhos como os meus ...  
Talvez, meu Deus!, com que verdades!  

As grades de uma cela estreita  
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita  
E com voz não humana berra...
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O mau aroma álacre
       
O mau aroma álacre
Da maresia
Sobe no esplendor acre
Do dia.

Falsa, a ribeira é lodo
Ainda a aguar.
Olho, e o que sou está todo
A não olhar.

E um mal de mim a deixa.
Tenho lodo em mim -
Ribeira que se queixa
De o rio ser assim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Onde, em jardins exaustos
                                                     
Onde, em jardins exaustos
Nada já tenha fim,
Forma teus fúteis faustos
De tédio e de cetim.
Meus sonhos são exaustos,
Dorme comigo e em mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Onde quer que o arado o seu traço consiga

Onde quer que o arado o seu traço consiga
E onde a fonte, correndo, com a sua água siga
O caminho que, justo, as calhas lhe darão,
Aí, porque há a paz, está meu coração.
Bem sei que o som do mar vem de além dos outeiros
E que do seu bom som os ímpetos primeiros
Turvam de ser diverso o natural da hora,
Quando o campo a não ouve e a solidão a ignora.
Mas qualquer coisa falsa desce e se insinua
Nos anos que são vestígios sob a Lua.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O peso de haver o mundo
       
Passa no sopro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.

Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?

Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O ponteiro dos segundos
 
O ponteiro dos segundos
É o exterior de um coração.
Conta a minutos os mundos,
Que os mundos são sensação.

Vejo, como quem não vê
Seu curso em círculo dar
Um sentido aqui ao pé
Do universo todo no ar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O que é vida e o que é morte
 
O que é vida e o que é morte
Ninguém sabe ou saberá
Aqui onde a vida e a sorte
Movem as coisas que há.

Mas, seja o que for o enigma
De haver qualquer coisa aqui,
Terá de mim próprio o estigma
Da sombra em que eu o vivi.
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O que eu fui o que é?
 
O que eu fui o que é?
Relembro vagamente
O vago não sei quê
Que passei e se sente.

Se o tempo é longe ou perto
Em que isso se passou,
Não sei dizer ao certo.
Que nem sei o que sou.

Sei só que me hoje agrada
Rever essa visão
Sei que não vejo nada
Senão o coração.
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O que o seu jeito revela
 
O que o seu jeito revela
Sabe à vista como um gomo,
E a vida tem fome dela
Nos dentes do seu assomo.

E nele mesmo, vibrante
A esse corpo de amor,
Espreita, próximo e distante,
O seu tigre interior.
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O ruído vário da rua
 
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua.
Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935). Disponível em Domínio Público.

O Conto de Fadas

Pintura de Salvador Dali

Considerado no seu sentido literal, o termo refere-se somente a histórias fantásticas sobre fadas, seres de tamanho muito reduzido que habitavam o reino da fantasia e que fizeram parte integrante das crenças populares da Antiguidade greco-latina e da cultura medieval europeia. São seres imaginários, míticos, representados geralmente por mulheres dotadas de poderes sobrenaturais usados para o Bem (Fadas Madrinhas) ou para o Mal (Bruxas ).

Atualmente, o termo engloba uma variedade de narrativas, sobretudo histórias que por regra possuem elementos "atemporais" e que normalmente recorrem a heróis (ou heroínas) quase sempre jovens, corajosos e habilidosos que passam por aventuras estranhas, por vezes mágicas, que lhes servem de teste para um eventual destino feliz, e madrastas malévolas (ou padrastos) cuja função é dificultar-lhes a vida ao longo da narrativa. Toda a história se desenrola no sentido de demonstrar um princípio moral que ou aparece em apêndice (como no caso dos contos de Perrault) ou é construído ao longo do texto (como no caso dos contos de Grimm). Exemplos de histórias como estas encontram-se em muitos países. Apesar das suas características ditas "universais", o conto de fadas tem sofrido alterações ao longo do tempo, de acordo com os gostos conscientes ou inconscientes de cada geração. Tal como o mito, também o conto de fadas apresenta seres e acontecimentos extraordinários, mas, em contrapartida e tal como a fábula, tende a desenrolar-se num cenário temporal e geograficamente vago, iniciando-se e terminando quase sempre da mesma forma: "Era uma vez..." e "Viveram felizes para sempre." Entre os muitos exemplos destacam-se; "A Cinderela"; "A Branca de Neve e os Sete Anões"; "A Bela Adormecida"; "O Capuchinho Vermelho"; "João e o Feijoeiro Gigante", etc.

Tal como acontece com as poesias infantis, também o conto de fadas sobreviveu à custa da tradição oral até ser compilado e fixado num texto por escritores e não foi, na sua origem, concebido para crianças pois tratava-se de narrativas complexas que descreviam o reino das fadas e duendes e que culminavam em finais infelizes. Gradualmente, este tipo de narrativas simplificou-se introduzindo-se nos domínios da leitura infantil. O conto Anão (Dwarf) da Condessa d' Aulnoy é disso um bom exemplo: o fim trágico que apresentava no século XVIII foi substituído por um happy end no século XIX.

Os contos mais modernos devem a sua origem a Charles Perrault e aos seus Contos do Passado ou Contos da Mamãe Ganso (1697) e à Condessa d' Aulnoy com os Contos de Fadas (4 vols. publicados entre 1710 e 1715). Entre os contos de Perrault, encontram-se "A Bela Adormecida", "A Cinderela " e "O Gato das Botas", por exemplo. O autor recupera contos populares esquecidos e apresenta versões modernas, usando um estilo simples e natural, cujo objetivo único é o de entreter as crianças. Apesar da pedagogia do Iluminismo condenar o mundo imaginário apresentado às crianças, os contos de Perrault ganham enorme projeção internacional.

Tal como aconteceu em França, também na Alemanha os pedagogos do Iluminismo denegriram a imagem do conto de fadas, defendendo que se tratava de histórias contadas por mulheres ignorantes, desprovidas de intelecto e que afastavam a criança da realidade. No entanto, encorajados por um espírito de nacionalismo romântico, que influenciou a Europa no século XIX afetando fortemente a literatura infantil, os irmãos Grimm [Jakob Ludwig Karl (1785- 1863) e Wilhelm (1786-1859)] compilaram contos de fadas alemães a partir de histórias contadas por amigos, parentes e aldeões. A sua obra intitulada Crianças e Contos de Fadas Caseiros (
Kinder und Hausmärsmarchen) foi publicada sob a forma de volumes sequenciais em 1812, 1815 e 1822 e tornou-se famosa por toda a Europa, sendo traduzida para inglês em 1823 como Histórias Populares Alemãs (German Popular Stories).

Na Inglaterra, o Puritanismo condenava os ideais religiosos e cristãos divulgados por alguns contos de fadas, mas o gosto popular sobrepôs-se e quando  foi publicado Mille et Une Nuits (12 vols. 1704-1717) de Gallant foi traduzido para inglês, os "camaradas" ("chapmen") rapidamente compraram as obras e colocaram-nas no mercado. Em 1729, Robert Samber traduz os contos de Perrault como Histórias ou contos do passado (Histoires or Tales of Past Times), mais conhecidos por Contos da Mãe Ganso (Tales of Mother Goose), não se limitando apenas a traduzir os contos franceses mas adaptando-os, atribuindo por exemplo às personagens nomes de personalidades inglesas.

Em meados do século XVIII, a literatura infantil renova-se e o conto de fadas passa a ser encarado como um veículo essencial de transmissão de lições morais, elaboradas especificamente para crianças, assistindo-se à sua introdução nos programas escolares como exercício de leitura. Contudo, a controvérsia que se gerou em torno do conto de fadas vai marcar a literatura infantil do século XIX. Por um lado, surgem os defensores do seu valor educacional que, devido ao caráter fantasioso induz nas crianças o gosto pela leitura, por outro, aqueles que defendem que a leitura destes mesmos contos reduz a capacidade criativa das crianças e ilude-as porque as afasta da realidade. No entanto, estas divergências não impediram que, por volta de 1846, os contos de Hans Christian Andersen (1805-1875), Contos de Fadas (no dinamarquês "Eventyr"), fossem traduzidos para inglês e se popularizassem por toda a Europa. Andersen foi considerado por muitos o mestre na arte dos contos de fadas. O seu engenho, sensibilidade e forte sentido do maravilhoso atribuíram às suas histórias um apelo perpétuo e universal. Entre os seus contos destacam-se "O Patinho Feio", "A Pequena Sereia" e "As Roupas Novas do Imperador".

A popularidade de Andersen foi tal que deu origem ao aparecimento de outro tipo de contos na literatura infantil inglesa, tais como Mopsa, a Fada(1869) de Jean Ingelow; A Princesa e o Duende (1872) de George MacDonald; O Príncipe Feliz (1888) de Oscar Wilde, merecendo real destaque Alice no País das Maravilhas (1865) e Alice através do espelho (1872) de Lewis Carroll. As duas últimas obras são extremamente complexas, repletas de jogos lógico-matemáticos e linguísticos. Muitos autores encontraram nelas códigos secretos que sugerem uma sátira política e social. Independentemente da intenção de Carroll, o fato é que são obras que ganharam o estatuto de clássicos, que têm como ponto de partida uma Alice que se desloca no mundo dos adultos (descrito como um mundo de "malucos"), tornando-se o exemplo de uma criança que se afirma no mundo Vitoriano repressivo. Os livros de Carroll popularizaram-se sendo traduzidos para a maior parte das línguas.

Em Portugal, devido ao rígido sistema religioso e de imprensa, a publicação de contos de fadas foi proibida entre o século XVII e o início do século XIX. Só após essa data, se assiste à tradução destes contos para Português e, à semelhança do que aconteceu nos outros países, também eles foram adaptados à realidade nacional, sofrendo alterações com o passar dos anos.

No século XX, surgiu uma tentativa por parte de alguns psicólogos, tais como Sigmund Freud, Carl Jung e Bruno Bettelheim de interpretar determinados elementos dos contos de fadas como manifestações de desejos e medos. Bettelheim, no seu livro Psicanálise dos Contos de Fadas (1975) defende que a leitura de contos de fadas não só oferece à imaginação da criança novas dimensões que seria impossível ela descobrir por si só, como também contribui para o seu crescimento interior. Para este psicólogo, os contos de fadas são verdadeiras obras de arte plenamente compreensíveis para as crianças, como nenhuma outra forma de arte o consegue ser.

Fonte:
Sónia Jacinto e Carlos Ceia. Conto de Fadas.
In http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/conto_fadas.htm

III Concurso de Trovas Batista Soares – Fortaleza/CE (Prazo: 30 de abril)


A trova deve ser inédita e o tema constar na trova.

Âmbitos e temas:

NACIONAL/INTERNACIONAL:

Uma trova por tema

Emoção (L/F) – Novo Trovador
(Registrar Novo Trovador abaixo da trova);

Regresso (L/F) – Veteranos;

Trovador (L/F) – Veteranos
[Em alusão ao centenário de nascimento do Trovador da UBT-Fortaleza Fernando Câncio, in memoriam.]

ESTADUAL:

Duas trovas por tema

Liberdade (L/F)

Trovador (L/F)
[Em alusão ao centenário de nascimento do Trovador da UBT-Fortaleza Fernando Câncio, in memoriam.]

Todos os âmbitos e categorias, enviar por e-mail: ubt.mpe@gmail.com, para a fiel depositária: Larissa Lopes Filgueiras

PRAZO: Até 30 de abril de 2023 às 23h59.

OBSERVAÇÕES:

Nacional/Internacional – Trovadores residentes nas Unidades da Federação e em outros países. Exclusive para os trovadores do Ceará.

Estadual – residentes no Ceará, inclusive Juventrova das UBTs do Ceará e de Fortaleza.

Novo Trovador. Considera-se novo trovador aquele que ainda não obteve classificação em 03 concursos de Trovas em âmbito nacional entre os cinco (5) primeiros colocados, de acordo com nova decisão da UBT Nacional.

As trovas devem ser enviados no corpo do e-mail. Não enviar anexos.

Serão classificados 20 trabalhos por tema.
5 Vencedores [1º ao 5º] / 5 menções honrosas [6º ao 10º], 5 menções especiais [11º ao 15º], 5 Destaques [16º ao 20º].

Diploma para cada um dos vinte classificados no tema. Os resultados devem ser anunciados em maio, em data a ser confirmada. Todos os diplomas serão enviados por e-mail.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 22

 

Júlia Lopes de Almeida (A Pobre Cega)


Na cidade de Vitória, no Espírito Santo, havia uma ceguinha que, por ser muito amiga de crianças, ia todos os dias sentar-se perto de uma escola, num caminho ensombrado por bambus. Entretinha-se ela ouvindo as conversas da pequenada que subia para as aulas.

As auras do mar vinham de longe queimar-lhe o rosto trigueiro. Imóvel, com o cajado nas mãos pequenas, ela imaginava quanto os rapazinhos deveriam estar pimpões dentro das suas roupinhas bem lavadas, e ria-se quando, a qualquer ameaça ou repelão de um dos mais velhos, os pequenos gritavam:

—Eu vou dizer à mamãe!

E havia sempre um coro de gargalhadas, a que se juntava uma voz lamurienta.

Um dia, dois dos estudantes mais velhos, já homenzinhos, desciam para o colégio, quando verificaram ser ainda muito cedo, e sentaram-se também numas pedras, a pequena distância da mendiga. O dever da pontualidade, que não deve ser esquecido em nenhum caso da vida, aconselhou-os a ficarem ali até a hora fixada pelo mestre para a entrada na escola. Entretanto, para não perderem tempo, repassaram os olhos pela lição, lendo alto, cada um por sua vez, o extrato que tinham feito em casa, de uma página de História do Brasil.

A cega, satisfeita por aquela inesperada diversão, abriu os ouvidos à voz clara de um dos meninos, que dizia assim:

"A civilização adoça os costumes e tem por objetivo tornar os homens melhores, disse-me ontem o meu professor, obrigando-me a refletir sobre o que somos agora e o que eram os selvagens antes do descobrimento do Brasil. Eu estudei história como um papagaio, sem penetrar nas suas ideias, levado só por palavras. Vou meditar sobre muita coisa do que li. Que eram os selvagens, ou os índios, como impropriamente os chamamos? Homens impetuosos, guerreiros com instintos de animal feroz. Entregues absolutamente à natureza, de que tudo sugavam e a que por modo algum procuravam nutrir e auxiliar, estavam sujeitos às maiores privações; bastando que houvesse uma seca, ou que o animais emigrassem para longe das suas tabas, para sofrerem os horrores da fome. Sem cuidar da terra e sem amor ao lar, abandonavam as suas aldeias, poucos anos habitadas, e que ficavam pobres “taperas” sem único indício de saudade daqueles a quem agasalharam! Elas ficavam mudas, com os seus telhados de palma apodrecidos, sem ninhos, sem aves, que as flechas assassinas tinham espantado, sem flores, sem o mínimo vestígio do carinho que temos por tudo que nos rodeia. Abandonando as tabas, que por um par de anos os tinham abrigado, os donos iam plantar mais longe novos arraiais. Os homens marchavam na frente, com o arco pronto para matar, e as mulheres iam atrás, vergadas ao peso das redes, dos filhos pequenos e dos utensílios de barro de uso doméstico. O índio vivia para a morte; era antropófago, não por gula, mas por vingança.

Desafiava o perigo, embriagava-se com sangue e desconhecia a caridade. As mulheres eram como escravas, submissas, mas igualmente sanguinárias. Não seriam muito feios se não achatassem os narizes e não deformassem a boca, furando beiços. Além da guerra e da caça, entretinham-se tecendo as suas redes, bolsas, cordas de algodão e de embira, e polindo machados de pedra com que cortavam lenha. Quero crer que as melhores horas da sua vida seriam passadas nessas últimas ocupações.

Que alegria invade o meu espírito quando penso na felicidade de ter nascido quatrocentos anos depois desse tempo, em que o homem era uma fera, indigno da terra que devastava, e como estremeço de gratidão pelas multidões que vieram redimir essa terra, cavando-a com a sua ambição, regando-a com seu sangue, salvando-a com a sua cruz!

Graças a elas, agora, em vez de devastar, cultivamos, e socorremo-nos e amamo-nos uns aos outros!

Pedro Álvares Cabral, Pêro Vaz de Caminha, Frei Henrique de Coimbra, vivei eternamente no bronze agradecido, com que no Rio de Janeiro vos personificou o mestre dos escultores brasileiros!”

Vinham já os outros rapazes muito apressados a caminho da escola. A cega calculou pelas vozes o tipo e a estatura de cada um, e, quando já se perdia ao longe o rumor dos passos da maior parte deles, sentiu, como nos outros dias, cair-lhe devagarinho no colo uma laranja e um pedaço de pão.

Nenhuma palavra costumava acompanhar aquela dádiva, mas uma corridinha leve denunciou, como das outras vezes, o fugitivo, o Chico, que não tendo nunca dinheiro para dar à pobrezinha, dava-lhe a sua merenda!

Nesse dia as crianças voltaram imediatamente do colégio: o professor adoecera e não havia aula. Sentindo-os, a cega levantou o bastão para que parassem e perguntou:

— Como se chama o menino que todos os dias me mata a fome, dando-me a sua merenda?

Ninguém respondeu. Como a pobre renovasse a pergunta, Chico fugiu envergonhado. Reconhecendo-o pela bulha dos passarinhos rápidos, a mendiga exclamou:

— É aquele que fugiu! Tragam-no cá; quero beijar-lhe as mãos!

Alcançado pelos colegas, Chico retrocedeu, vermelho como uma pitanga, e deixou-se abraçar pela mendiga, que lhe passava os dedos pelo rosto, procurando adivinhar-lhe as feições.

Familiarizados com ela, os meninos perguntaram-lhe:

— Vocemecê não vê nada, nada?

— Nada.

— Já nasceu assim?

— Não...

— Como foi?

— Coitadinha...

As perguntas das crianças não a humilhavam, porque ela já as tinha por amigas.

— Querem saber como fiquei cega? Escutem: quando eu era moça, morava e frente à casa de uma viúva carregada de filhos. Uma noite acordei ouvindo gritos. — Socorro, socorro! Pediam em brados. Levantei-me à pressa, vesti-me não sei como, e fui à janela. Da casa fronteira saíam chamas e grandes novelos de fumo; na rua, a dona da casa, gritando sempre, aconchegava os filhos ao peito. De repente deu um grito agudíssimo: faltava um dos filhos mais moços – o Manoel!

A desgraçada quis atirar-se às chamas, mas as crianças agrupavam-se todas agarradas à sua saia: então eu atravessei correndo a rua, e de um pulo trouxe para fora o menino, já meio tonto e pálido como um morto. Não me lembro senão do calor do fogo que me cercava por todos os lados, da fumaça que oprimia e da dor horrível que senti nos olhos, quando, à rajada fria da noite, entreguei na rua o filho à mãe.

Ela gritou radiante: — Está salvo! e eu pensei com amargura: — Estou cega...

— E essa família? Inquiriu um dos meninos.

— Era pobre também. Nem sei onde para...

— Sei eu! Respondeu um dos pequenos; essa família é a minha! A criança que a senhora salvou é hoje um homem trabalhador e que há de protegê-la. É meu pai.

Uma hora depois a velha cega entrava para sempre em casa de Chico, onde lhe deram o melhor leito e a trataram sempre com o mais doce carinho, provando assim que muita razão tinha o mestre fazendo ver ao discípulo quanto a civilização adoça os caracteres e torna os homens bons!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Histórias da nossa terra. (Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves, 1925), 99. 25-34. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil