quinta-feira, 9 de março de 2023

Ana de Castro Osório (Solteirão)

A inesperada morte do velho doutor Mendes fez-me volver os olhos um bom par de anos atrás — a quando criancinha gulosa lá ia ver passar as procissões e beber a minha xícara de leite com sopas de biscoitos caseiros.

Essa morte rastejou-me na alma uma pequena sombra de melancolia, não que eu amasse muito esse velho, nem que a sua falta seja desventura para alguém, mas é que os sinos, dobrando numa pardacenta tarde de fevereiro, são de uma tamanha tristeza!...

Com uma persistência dolorosa de choro, as badaladas sucediam-se atirando para o espaço os seus pesados lamentos — únicos que acompanharam o doutor Mendes na sua primeira noite do além.

Morreu, pobre velho inútil, despertando apenas a irônica piedade que inspiram aqueles cuja alma subalterna não soube criar uma família nem chegou à consciente bondade dos fortes.

Ninguém o estimava já. Outrora havia inspirado medo como mandão de aldeia; diziam-no vingativo e cruel nos tempos áureos do seu poderio... Por fim, esse poder era uma triste caricatura.

...Porque — eu ainda lhes não disse?— fazem-me tristeza as caricaturas. D. Quixote é para mim mais comovente do que Jocelin.

Em novo fora o doutor Mendes um feliz conquistador de criadas e caseiras, que olhavam agora para os filhos grosseiros e brutais, encarquilhando os olhos cúpidos, julgando-os possíveis herdeiros da bela fortuna do velho. Tudo podia ser; se ele não tinha herdeiros forçados!

E lá ia vivendo, certo em todas as festas, imaginando-se imponente à força de tesura, o bigode branco cortado em escova, a calva luzidia, a face sanguínea. Dava realce às festas — diziam rindo chalaças aqueles que lhe tinham tirado o bastão de comando, deixando-o, mono de palha, para a figura de impostor

Estou a vê-lo, o senhor doutor, com a sua casaca pré-histórica, lustrosa, de um feitio único; o lenço de Alcobaça, azul escuro, com pintinhas brancas, a sair dos bolsos; cumprimentando receoso, estendendo apenas dois dedos gordos e vermelhos; soprando contente a cada palavra...

Levava a umbela (guarda-chuva) em todas as procissões e na minha poderosa imaginação infantil aquilo engrandecia-o a tal ponto que o revia no céu acompanhando as almas purificadas ante o trono de ouro do Padre Eterno.

Se caiu de tão alto no meu conceito, não foi dele a culpa, que impassível continuou ele a sua vida quase sagrada entre o incenso dos turíbulos e o cheiro fresco do rosmaninho — eu é que mudei, infelizmente! Porque não detemos nós a vida; porque não conservamos o nosso espírito na meia alucinação doce da infância? Se vale a pena isto!... Andar a primeira parte da vida a construir altares, a ramalheta-los, a venera-los com todo o nosso entusiasmo; gastar outro tanto tempo a destruí-los; e o resto da vida passar a chorá-los! Não, não acho que vá bem assim o mundo! Ou as crianças têm que nascer com a sabedoria dos velhos ou os velhos ficarem com a ingenuidade das crianças. Quanta tristeza se pouparia a certos espíritos por demais vibráteis!...

Assim, eu escusava de sofrer vendo a pobre cabeça do velho doutor Mendes, que diziam inteligente, ser agora uma coisa estéril e oca. O seu risinho infantil, em hi, hi, hi, como dava uma prova dos frágeis juízos humanos! E tinha sido terrível em vinganças do tempo dos Cabrais, ele que hoje fazia rir as crianças!

A rodear o idoso doutor Mendes fazia-se uma atmosfera de coisas envelhecidas e desbotadas. A sala de recepção — forrada a panos de Arrhas, com ingênuas cenas da Bíblia, onde as cores já murchas se confundiam e empalideciam suavemente a dar um tom uniforme à filha dos Faraós salvando um esperto Moisés e ao seu terrível pai afogando-se nas justiceiras águas do Mar Vermelho — abria-se lá pelas festas às raras visitas. Impunha respeito com os seus tetos altos, o delgado friso dourado a dividir os panos, as suas doze cadeiras formadas aos lados do sofá incomodo como um potro inquisitorial, o indispensável tremó* e espelho a encimá-lo.

Logo ao entrar no pátio, à noite sempre iluminado esperando visitas problemáticas, uma gélida impressão de silêncio nos envolvia. Subia-se meio receoso a escadaria de pedra, a abrir-se nobremente em dois lances, como um velho amigo que nos recebe de braços abertos. Essas belíssimas escadas das casas antigas, que dão bem a nota carinhosa do nosso gosto pela hospitalidade, eram mais uma frisante ironia naquele interior fechado, esquecido, só de longe em longe visitado por indiferentes.

Entrava-se com medo na sombria casa e esperava-se, em silêncio, que os donos aparecessem. Passado um tempo, que nos parecia infindável, vinham, as quatro manas — miudinhas, desbotadas elas também, muito parecidas umas com as outras, falando baixo, repetindo todas o que dizia a mais nova, sentenciosamente, a modos de oráculo. Muito devotas, um grande respeito pelo mano doutor, elas lá iam todos os domingos, em carreirinho de formigas, à missa pacata da freguesia. Muito velhinhas, com antigos enfeites na cabeça, vestidos de seda passados de modas há tempos imemoriais, lencinhos de renda no pescoço, restos de antiga garridice, cheirando a alfazema e a cânfora.

Como isto vai longe, perdido no montão de saudades que me enchem a memória; e como eu sinto ainda toda a impressão de poeirento, de velhice, que me tomava toda quando as ia visitar cerimoniosamente! Porque o tempo já ia longe em que a minha inconsciente criancice ousava penetrar sem receio naquele túmulo. O tempo das procissões e do leite frio passara com a minha primeira infância e com as passeatas à igreja para ver as mudanças de toaletes que Nossa Senhora sofria de cada vez que a passeavam em procissão e dolorida.

E ainda hoje elas coram e baixam os olhos admirando a imoralidade que vai por esse mundo.— “Tudo perdido, tudo perdido, manas...”— dizia a mais nova, fechando os olhos a cada palavra.— “É verdade, é verdade, é verdade...”— respondiam as três a um tempo.— “Ainda bem que o mano não quis casar!... Nem nós também, que fomos bastante pretendidas!...”— “É verdade, é verdade, é verdade!”— fazia o coro.— “Que modas, santo Deus! Os homens cruzam a perna diante das senhoras e apertam as mãos!! Que gente, que imoralidade!...”— E as outras abanavam a cabeça afirmativamente, enquanto o doutor Mendes, à janela, lia a Nação, escondendo das boas irmãs um sorriso velhaco.

E foi ele, tão corado e gorducho, o primeiro a morrer.

A sua morte dera brado. Murmurava-se: “Afinal não fizera testamento? Pudera! Até na morte fazia partida. Fora sempre assim.”— E lá iam seguindo o enterro, bocejantes, sem nenhuma pena, maçantes. Enterro de indiferentes que nenhum respeito contêm no seu aborrecimento.

As pobres irmãs, mirradinhas, gemiam frouxos lamentos. Tão velhinhas, tão longe deste mundo — nem gritos já tinham para se lamentar. Era um correr de lágrimas, sem soluços nem febre, um resignado sofrer de pálidos fantasmas.

Por suprema ironia das coisas humanas, até o enterro foi causa de riso. Do antigo mandão de aldeia, que inspirara medo e profundos ódios, apenas restava esse corpo inerte deitado numa essa (sepulcro) branca, com a fita do caixão risonhamente branca. Se ele fosse vivo como a levaria imperturbável!...

Mas os sinos lá ao longe tangiam mágoas, que se iam alastrando como nódoa de azeite na pardacenta tarde de um fevereiro triste.

Como é enervante pensar na vida assim, sem interesse pelos outros, sem nenhum grande afeto que nos chore bem alto, a fazer calar todos os risos!...

Nessa paisagem, paralisada pelo inverno, só eu parecia viver— campos de vinha contorcendo os braços esqueléticos, pinhais muito graves no seu eterno verde, o riacho a correr ao fundo do vale, e como gigantesca parede as serras violeta, escarpadas e selvagens... Ao fundo, vaporizando-se no poente, as torres alvas das igrejas lançavam pelo espaço o seu lamentoso dobre: dão!... dão!... dão!...

Uma grande amargura me afogava a alma, vinda dessa paisagem desolada, desse cair da tarde sombria, da lembrança de morte que flutuava no ar— de qualquer coisa enfim que me segredava desalentos e angústias...

A chuva começou a cair miudinha, sem ruído, no fim da tarde... Que desagradável noite essa primeira que o velho doutor Mendes passou solitário no seu túmulo, guardado pelas sentinelas esguias dos ciprestes!
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* Tremó = espaço de parede interior de uma residência, compreendido entre dois vãos, com espelho entre eles. (Dicionário Houaiss)

Fonte:
Ana de Castro Osório. Infelizes. Publicado originalmente em 1894
Disponível em Domínio Público

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 9

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.

A cor encarnada é guerra,
eu não venho guerrear,
venho fazer paz contigo
se me queres aceitar.
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Adeus, querida das flores,
das flores todas querida.
Não quero dizer teu nome
pra não seres conhecida.
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A folha da malva cheira,
cheira mais do que girame;
Meu coração só me pede,
só me pede que te ame.
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Ai menina, pede a Deus;
que eu pedi a São Vicente,
que nos juntem a nós dois
numa casinha sem gente.
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Alecrim, verde cheiroso,
dá-me novas de meu bem,
se ele é morto, se ele é vivo,
se está nos braços d'alguém.
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As estrelas no céu correm,
eu também quero correr.
Por causa dos dois amantes
acabou-se o bem querer.
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Benzinho te vou contar:
No domingo em que te vi
fiquei todo embelezado
das prendas que vi em ti...
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Carta, vai onde te mando.
Carta, não erres a porta;
Carta, põe-te de joelhos
e espera pela resposta.
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Coração entristecido
chega ao pé daquela flor,
perguntai-lhe assim brincando
se ela quer ser meu amor.
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Chego a perder o juízo
de tanto plano que faço:
Do que te hei de fazer,
se eu cair no teu regaço...
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Cravo branco, quando se abre
parece a coroa de um rei:
Eu comparo cravo branco
co'uma pessoa que eu sei!
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Esta noite tive um sonho,
um sonho muito atrevido.
Sonhei que tinha em meus braços
a forma do teu vestido.
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Maria me deu um cravo,
sexta-feira da paixão:
Botei o cravo no peito,
Maria no coração.
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Menina, quando eu te vejo
fico tolo e fico mudo,
tenho febre e tremores
tenho sezões, tenho tudo.
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Menina, tome este lenço
e não conte quem lhe deu;
Adiante vai o lenço,
atrás do lenço vou eu.
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Meu amor é pequenino
do tamanho de um botão,
de dia trago-o no seio,
de noite no coração.
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Meus olhos quando te viram,
meu coração te adorou,
nas correntes dos teus braços
minh'alma presa ficou.
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Moreninha, se eu pudera
formar do mundo um altar,
nele te colocaria
para o povo te adorar.
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Na estrada em que tu moras
todo o dia passo nela,
somente para te ver
sentadinha na janela.
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0 gosto não tem princípio
às vezes, não tem de quê;
Gosto de ti, porque gosto,
sem mesmo saber porquê.
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0 limão tira o fastio,
mas eu de ver não o tenho,
se tu por mim fazes gosto,
eu por ti maior empenho.
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0 marmelo é fruta boa
se está no seu galho posto.
Ninguém me pode privar
de amor que for do meu gosto.
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Pancada dada de jeito
mata sim, sem discussão.
Que farás tu, meu benzinho,
tu que és um pancadão?
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Para amar e possuir
é preciso não ter medo:
Custei a me resolver
fiquei chuchando no dedo...
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Por te querer tanto bem
Deus me há de castigar,
por te trazer no meu peito
no mais mimoso lugar.
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Quando existe sentimento
logo a vista se revela:
Tua alma está nos teus olhos,
debruçada na janela.
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Quando te encontro na igreja
me ponho logo a pecar...
Tenho o sentido em teu rosto,
viro as costas pra o altar.
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Quero dizer-te o que sinto,
que és minha vida, meu tudo:
Quando chego ao pé de ti
perco a língua, fico mudo...
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Rei nasce para o seu trono,
os peixinhos para o mar,
eu também nasci no mundo
somente pra te adorar.
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Se correndo não te apanho,
devagar te apanharei;
Se te apanho nos meus braços
em que estado te porei!...
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Se eu soubesse, com certeza,
que tu me querias bem,
eu iria te tirar
do poder de quem te tem.
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Ter amores neste mundo
só quero, meu bem, contigo:
Quero saber a resposta
se também queres comigo.
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Tudo que nasce no mundo
tem seu fim particular;
Tudo tem o seu destino,
eu nasci para te amar.
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Tu és como a lua cheia,
és como a casa caiada,
és como a torre da igreja,
de toda a parte avistada.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.
Disponível em Domínio Público.

Irmãos Grimm (O Osso cantor)


Era uma vez um país onde houve um grande alvoroço por causa de um javali que causava grandes prejuízos aos campos dos fazendeiros, matava o gado, e com suas garras rasgava os corpos das pessoas. O rei prometeu uma grande recompensa para aquele que libertasse o reino daquela fera; mas o animal era tão grande e forte que ninguém tinha coragem de se aproximar da floresta onde vivia o temível animal. Finalmente o rei mandou espalhar a notícia dizendo que aquele que conseguisse capturar ou matar o feroz javali receberia como esposa sua única filha.

Ora, aconteceu que, viviam nesse país dois irmãos, filhos de um pobre agricultor, e que se declaravam desejosos de assumir tão perigoso desafio; o mais velho, era astuto e perspicaz, além de orgulhoso; o mais jovem, era ingênuo e inocente, e tinha um bom coração. O rei disse, “Para que vocês tenham maior chance de encontrar a fera, vocês devem entrar na floresta partindo de lados opostos.” Então, o mais velho foi para o lado onde o sol se põe, e o mais jovem foi para o lado onde o sol nasce.

Quando o mais jovem havia percorrido um pedaço do caminho, um homenzinho se aproximou dele. Ele portava em sua mão uma lança de cor preta e disse, “Eu te dou esta lança porque o seu coração é puro e bondoso; com ela você poderá atacar corajosamente o temível javali, e ele não lhe fará nenhum mal.”

Ele agradeceu ao homenzinho, colocou sobre os ombros a lança, e continuou destemidamente.

Não se passou muito tempo e ele avistou a fera, que se atirou contra ele; mas ele apontou a lança em direção ao feroz animal, e cego de tanta fúria o temível animal se atirou tão rapidamente contra ela que o seu coração se partiu em dois. Então, ele colocou a fera em suas costas e voltou para casa com ela para entregá-la ao rei.

Quando ele chegou do outro lado da floresta, deteve-se diante de uma casa onde as pessoas estavam se divertindo, bebendo vinho e dançando. Ali estava também o seu irmão mais velho, o qual, pensando que afinal de contas o javali não poderia fugir dele, decidiu também tomar um trago para criar coragem. Mas quando ele viu o seu irmão mais jovem voltando da floresta carregando a sua presa, o seu coração perverso e invejoso não lhe deu nenhum instante de sossego. Então, ele gritou, “Entre, querido irmão, descanse e te reanimes um pouco com um copo de vinho.”

O jovem, que não desconfiava de nada, entrou e lhe falou a respeito do bom e pequeno homenzinho que havia lhe oferecido a lança com a qual ele matara o javali.

O irmão mais velho lhe fez companhia até o anoitecer, e então, eles foram embora juntos, e como já estava escuro eles chegaram perto de uma ponte que passava por um rio, o irmão mais velho permitiu que o outro passasse primeiro; e quando este já havia atravessado a metade, aquele lhe deu um golpe tão forte por trás que ele caiu morto.

Ele o sepultou debaixo da ponte, pegou o javali, e o levou para o rei, mentindo que o havia matado; e com isso ele recebeu a filha do rei em casamento. E como o seu irmão mais jovem não voltou ele dizia, “O javali deve tê-lo matado,” e todos acreditaram nisso.

Mas como nada permanece oculto aos olhos de Deus, então, este ato cruel também havia de ser esclarecido.

Anos mais tarde um pastor de ovelhas que conduzia o seu rebanho pela ponte, encontrou misturado com a areia lá embaixo um osso que era branco como a neve. Ele achou que poderia fazer um bom bocal com ele, então, ele desceu, apanhou o osso, e o transformou num bocal para sua flauta. Mas quando ele soprou a flauta pela primeira vez, para seu grande assombro, o osso começou a cantar sozinho:

“Ah, meu amigo, cujo osso estais soprando!
Há muito tempo ao lado das águas enterrado estou;
Pois o meu irmão me matou por causa do javali,
E o rei, a jovem filha a ele consagrou.”

“Mas que flauta maravilhosa!” disse o pastor de ovelhas; “ela canta sozinha; Devo levá-la para o rei que é meu senhor.” E quando ele levou a flauta para o rei, ela começou novamente a cantar sua pequena canção.

O rei então, entendeu tudo, e mandou que o chão debaixo da ponte fosse cavado, e então, o esqueleto inteiro do homem assassinado veio à tona. O irmão perverso não conseguiu negar o fato, e foi amarrado dentro de um saco e afogado. Mas os ossos do homem assassinado foram levados para repousar num túmulo suntuoso dentro do cemitério.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.
Conto em Domínio Público.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 21

 



Vicente de Carvalho (Crianças)

Era o dia de S. José, daquele velho, barbudo, calvo São José, com a sua túnica vermelha caindo dos ombros, nas mãos o cajado de amendoeira milagrosamente abotoado em flores, e que, desde longínquos avós, de cuja memória já só ele restava, se mantinha como o santo predileto na devoção da família.

Era o seu dia, segundo a consagração do calendário. E, ao fundo do oratório aberto, destacado, dominando de toda a majestade da sua estatura de dois palmos uma corte de pequenas imagens secundárias, com um ramo fresco de lírios aos pés, o santo resplandecia no clarão da vela benta, piedosamente acesa em sua honra.

Ali estava ele, iluminado e glorioso, o bem-aventurado carpinteiro de Belém, escolhido por Deus, como o mais puro entre todos os homens puros, para depositário e guarda fiel da predestinada, fecunda virgindade de Nossa Senhora.

Segundo uma tradição remota e que vinha, de geração em geração, transmitida de pais a filhos, a velha e encardida imagem recebia pontualmente todos os anos, naquele dia que o calendário lhe destinava, uma singela homenagem de veneração, de confiança, e de amor, sob a forma de um ramo de lírios que se desfaziam em perfume aos seus pés, e de uma vela benta que ardia e se derretia em sua frente.

Os três pequenos, pilhando-se sozinhos, livres de qualquer intervenção adulta, tinham resolvido entre si dar uma busca ao interior do oratório, aberto. Jorge, o mais velho, concebera a ideia e dirigiu a ação. Era já um homenzinho de cinco anos, chefe natural e terrível do grupo. Fecundo em planos de travessuras, ousado na execução, distribuindo com mão forte e pródiga despojos e taponas, Jorge era acatado e seguido.

Puxou vigorosamente para junto da meia cômoda, em que assentava o oratório, uma cadeira; ergueu para esta o Joãozinho, cujos três anos eram ainda incapazes, sem apoio e sem auxílio, de altas cavalarias como essa.

— Agora você! disse com voz de comando, dirigindo-se à irmãzinha; e ajudou-a a subir. Em seguida, cumpridos os deveres de chefe, Jorge subiu por sua vez, colocando-se atrás dos outros dois.

E os três, encantados, puseram-se a examinar um por um os sagrados moradores do oratório.

Havia um São Pedro, com os olhos cheios de arrependimento de ter negado o Divino Mestre, fitando vagamente o teto. Tinha na mão a chave dourada com que abre às almas dos eleitos as portas da bem-aventurança; e, a seus pés, o galo tradicional, talhada toscamente, abria as asas desiguais, esticava o pescoço, um pescoço exagerado de cegonha, e repousava sobre a túnica azul do santo a sua crista quase quadrada. 

Fronteiro a S. Pedro, com o cordeirinho branco aos pés, a face rubicunda e moça, as pernas nuas até o joelho, S. João apoiava a mão esquerda na longa curva do seu cajado de pastor, e estendia o braço direito num gesto majestoso de bênção ou de prédica.

S. Francisco, dentro do seu comprido hábito negro, tinha um ar de suave humildade, com os olhos baixos, o rosto inclinado para o chão e emoldurado por umas enormes, incríveis barbas cor de chumbo.

Completava a coleção das pequenas imagens uma pequenina Senhora das Dores, doce figura de mãe angustiada, com o punhal simbólico cravado no coração até ao cabo, as mãos postas, os olhos aflitos e lacrimosos erguidos para o céu.

A primeira coisa que atraiu o olhar do mais pequeno foi o cordeirinho de S. João:

– Um bicho! disse ele apontando com o dedinho esticado.

– Não é bicho, corrigiu Jorge, é carneiro.

— Ele morde?

— Não, explicou o mais velho; só dá chifrada.

— Mas ele não tem chifres, interveio Vivi.

Jorge não gostou da objeção que infringia o respeito devido à sua autoridade em assuntos relativos aos animais. E retrucou:

— Tola! Ele dá chifrada com a cabeça.

— Eu tenho medo dele, disse Joãozinho.

— Não é carneiro de verdade, assegurou Jorge. Não se mexe. Quer ver?

Agarrou pelo pescoço o cordeirinho de São João, e puxou-o. A frágil massa partiu-se; e ficou solta na mão de Jorge a cabeça do animalzinho degolado.

— E agora? perguntou Vivi assustada. Eu não disse? 

Vivi, note-se, nada tinha dito, àquele respeito. Jorge, porém, era corajoso e resoluto; meteu rapidamente no bolso a parte arrancada do cordeiro, dizendo: – Não faz mal, eu escondo. Ninguém conte, hein?

Pouco preocupado com aquele incidente, tão simples e tão vulgar, o despedaçamento de um objeto, Joãozinho olhava já atentamente para o galo posto aos pés de São Pedro.

— O que é aquilo? perguntou, desconhecendo a figura mal feita.

— É uma galinha, explicou Jorge.

— Eu quero a galinha! declarou Joãozinho.

— Não, acudiu Vivi. Aquilo é do santo.

— Mas eu quero!

Jorge era generoso: arrancou e deu ao irmão o galo de S. Pedro, com as pernas partidas, e sem a crista, que ficaram pregada à túnica azul do santo. 

Vivi reparou na imagem da Senhora das Dores, por cuja face desbotada pela mágoa corriam lágrimas de sangue; e, comovida, perguntou:

— Por que será que ela está chorando?

Jorge explicou prontamente:

— Você não vê que ela está com a faca enterrada no peito?

— Coitada! murmurou Vivi. É melhor tirar a faca.

Jorge tirou a faca.

— Quem seria o mau que deu a facada? perguntou Vivi.

— Foi o barbudo! opinou Joãozinho apontando para São Francisco.

Devia ter sido mesmo: São Francisco com a sua longa túnica negra, as suas enormes, incríveis barbas cor de chumbo, era a figura mais feia da coleção.

— Com certeza foi ele! concordou Vivi.

— Foi! decidiu Jorge. Pois vai de castigo.

E agarrando S. Francisco, meteu-o, preso, no vão escuro entre o oratório e a parede.

Chegara a vez de São José, que jazia, no lugar de honra, ao fundo do oratório. Jorge, com uma erudição pitoresca, apanhada nas conversas em que a família, de quando em quando comentava o padroeiro, começou a instruir os irmãozinhos:

— Aquele é o marido de Nossa Senhora, é o pai do Menino-Deus. Mas o Menino-Deus não é filho dele, é filho do Espírito Santo, que é uma pombinha.

— É uma pombinha que anda nas folias, em cima da bandeira, interrompeu Vivi. 

— Eu já vi! disse com importância e orgulho o Joãozinho.

— Chama-se São José, continuou Jorge. Dantes era carpinteiro; agora é santo. Quando o Menino-Deus nasceu, apareceu uma estrela. Os pastores todos foram rezar. Foram também três reis. Um era preto...

— Um rei preto? estranhou Vivi.

— Preto sim. Na terra dos negros o rei é preto. Mas é rei.

— E as princesas?

— As princesas, não; que boba! As princesas são umas moças muito bonitas, com cabelos de ouro, e uma estrela na testa... O outro rei mandou matar o Menino Deus...

— Por quê? perguntou Vivi.

Jorge hesitou. Na realidade, ele estava pouco a par das razões políticas de Herodes; mas não quis dar parte de fraco, e, depois de refletir um momento, respondeu a Vivi:

— Ora, porque... Porque era um rei muito malvado.

— E mataram o Menino-Deus?

— Não puderam, capaz! S. Jorge pôs Nossa Senhora, com o Menino-Deus no colo, em cima de um burrinho finito manso, um burrinho ensinado; e todos três fugiram para outra terra...

Joãozinho, apertando na mão o galo arrancado a São Pedro, dobrara sobre a cômoda o braço, encostara a este a cabecinha loura, e cochilava, no aborrecimento daquela exposição de História Sagrada que Jorge ia cosendo de farrapos. Mas a alusão de um burrinho muito manso, um burrinho ensinado, espertou e teve um aparte:

— O santo está sujo.

Efetivamente. O tempo e a fumaça da vela benta, acendida sempre, durante anos e anos, no dia consagrado a São José, haviam encardido a imagem, desbotando-lhe as cores, envolvendo-a como numa poeira baça e gordurosa.

— É mesmo, disse Vivi reparando. Está muito sujo. Coitado, é preciso limpar ele.

Jorge decidiu-se logo a limpar o santo. Fez descer da cadeira os irmãos. Afastou as pequenas imagens, e o ramo de lírios. Agarrou com a mão esquerda a peanha* (*pequeno pedestal onde se colocam estátuas), e com a direita o pescoço de São Jorge. E, num gesto decidido e forte, tirou-o do oratório.

Daí a instante, São José estava no chão, sozinho, no meio do quarto, anulado e pequenino. Jorge trouxe uma bacia de rosto, larga e funda; e, enquanto vazava nela a água do jarro, ordenou a Vivi que trouxesse o sabão.

Sentaram-se os três. Joãozinho quis logo meter na bacia o galo. Mas Jorge suspendeu-lhe o braço, asseverando que não se põe as galinhas n’água, porque se afogam. E, segurando com todo o cuidado o barbudo, calvo, venerável São José, deu-lhe um mergulho.

– Agora, você! disse ele, dirigindo-se a Vivi; Mulher é que lava.

Vivi não se fez rogada. E, carinhosamente, pôs-se a ensaboar o santo. Daí a momentos, na confusão das tintas que se desmanchavam, São José tinha a barba azulada, o rosto coberto de manchas, a sua calva, aquela austera calva tão lisa e tão lustrosa, aparecia salpicada de rubores que lembravam uma impingem* (*dermatose)...

Jorge reparou nisso; e ordenou a Vivi que lavasse melhor, com mais forças. Vivi esfregou com energia. A massa molhada começou a esfarelar-se.

— E agora? perguntou Vivi assustada.

Jorge não respondeu. Tinha ouvido passos na escada. Era a mãe, que subia, a ver de certo que é que faziam os três traquinas, tão sossegados havia tanto tempo... Jorge, muito ligeiro, nas pontas dos pés, escapou-se. Vivi seguiu-o logo, enxugando no vestidinho branco as mãos molhadas das tintas diluídas da imagem de São José.

Joãozinho, então, sem reparar em nada de todos esses incidentes, percebendo apenas que ficara único senhor do campo, apoderou-se do santo, e pôs-se, muito entretido, a lambuzá-lo de sabão.

Encontrou-o a mãe nessa tarefa, a que se entregava conscienciosamente; e avançou para ele no momento preciso em que Joãozinho acabava de esfarelar com todo o cuidado uma orelha de São José.

— Maroto! exclamou ela.

E ia fazer cair sobre Joãozinho o castigo merecido pelo horrendo crime, cujos vestígios e destroços via no soalho e no oratório devastado, quando lhe acudiu a reflexão de que tudo aquilo não podia ser obra só do pequerrucho, de que houvera forçosamente no caso intervenção de mãos mais hábeis, de braço mais forte, de figura mais taludinha...

— Foi aquele pestinha! murmurou indignada, pensando em Jorge.

Arrancou das mãos de Joãozinho aturdido a imagem escalavrada* (*esfolada) de São José; beijou-lhe os pés com palavras compungidas em que pedia perdão pelo sacrilégio dos filhos; e repôs o santo no seu oratório forrado de azul com estrelinhas de ouro, cercou-o da sua corte de pequenas imagens, todas mais ou menos mutiladas, só faltando São Francisco, que continuava oculto, de castigo, no vão escuro...

Cumpridos esses atos de piedade, voltou-se para Joãozinho, que apanhara do soalho o galo de São Pedro, e conservava-o na mão:

— Você fez uma coisa muito feia, e vai apanhar, e vai para o quarto escuro...

Joãozinho, aterrado, só respondeu:

— Não, não mamãe!... Não mamãe!...

Ela porém, muito enérgica:

— Escolha: ou apanha, ou vai para o quarto escuro!

— Joãozinho fitou-a. Percebeu no rosto severo da mãe — que não escapava mesmo. Ora ele nunca tinha apanhado — e conhecia já o quarto escuro.

Escolheu, choramingando:

— O quarto escuro, não...

— Vá então buscar o chinelo, para apanhar.

Joãozinho foi, vagaroso, de cabeça baixa, como um criminoso que era. Quando voltou, trazia sempre, na mão esquerda, o galo de São Pedro; e empunhava na direita um pé dos chinelinhos... de Vivi.

— Com este, sim? implorou.

E ia entregar o quase inofensivo instrumento do suplício — quando se arrependeu, retraiu o braço, susteve-se... E com o rosto aflito, os olhos suplicantes, numa vozinha entrecortada, de susto e de choro:

— Eu mesmo me dou, sim, Mamãe? Eu me dou com força. Eu prometo que me dou com toda a força!

Fonte:
Vicente de Carvalho. Luizinha. Publicado em 1924. 
Disponível em Domínio Público.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LII


 JUNTINHOS

MOTE:
Na maior das concessões
Deus, que é Pai, bem poderia
parar nossos corações
juntinhos, no mesmo dia.
Almerinda Liporage
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Na maior das concessões
eu sonho, pedindo assim,
num misturar de emoções,
termos juntos, nosso fim!

Sendo amor e só bondade,
Deus, que é Pai, bem poderia
não nos deixar na saudade,
ou em triste nostalgia!

Que Deus, num mar de ilusões,
pudesse fazer parar,
parar nossos corações
sem nenhum de nós chorar!

Nosso dia de morrer
seria só de alegria,
se parassem de bater,
juntinhos, no mesmo dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

PEDRAS ESPECIAIS

MOTE:
Na calçada, sob a lua,
conheço o teu caminhar;
que as pedras da minha rua
têm alma e sabem falar!
Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 - 2014

GLOSA:
Na calçada, sob a lua,
consigo escutar teus passos,
quando minha alma tão nua
quer vestir os teus abraços!

Por eu te amar, tanto, assim,
conheço o teu caminhar,
pressinto que vens a mim
e acordo do meu sonhar!

Minha emoção acentua
o que escuto com carinho:
que as pedras da minha rua
encantam o meu caminho!

Com elas converso, então,
quando fico a te esperar,
pois elas têm coração,
têm alma e sabem falar!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

OUTONO DE SONHOS

MOTE:
Folhas mortas, no abandono,
numa tarde esmaecida,
vêm lembrar o triste outono
dos sonhos de minha vida.
Cidoca da Silva Velho
São Luís do Paratinga/SP, 1920 – 2015, Jundiaí/SP

GLOSA:
Folhas mortas, no abandono,
rolando pelas calçadas
parecem noites sem sono
chorando nas madrugadas!

Tudo se torna tão triste
numa tarde esmaecida,
parece que nada existe,
que nem existe mais vida!

As tardes – papel carbono
da minha desilusão,
vêm lembrar o triste outono
que chega ao meu coração!

Sigo só em meu caminho
com a esperança perdida,
com saudades do carinho
dos sonhos de minha vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SOLDADO DO MAR...

MOTE:
Nenhum barco... O mar, parado.
Noite... Silêncio... Abandono,
e o velho farol cansado
parece piscar de sono...
Durval Mendonça
Rio de Janeiro, 1906 – 2001

GLOSA:
Nenhum barco... O mar, parado
feito um espelho do céu,
mar de estrelas salpicado
e uma doce brisa ao léu!

As estrelas vão sumindo...
Noite... Silêncio... Abandono,
muitos medos vão surgindo
na negra noite de outono!

Mais parecendo um soldado
que vai surgindo das águas,
e o velho farol cansado
chora, então, as suas mágoas!

E esse soldado do mar
ereto, lindo em seu trono
sem ter ninguém para amar,
parece piscar de sono…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

TEUS OLHOS COR DE JADE

MOTE:
Os teus olhos cor de jade
de uma ternura sem lei
foram feitos da saudade
de um mundo que eu inventei!
Humberto Del Maestro
Serra/ES

GLOSA:
Os teus olhos cor de jade
são estranhos, diferentes,
são quase uma raridade,
são madrugadas... poentes!

Refletem toda a ternura,
de uma ternura sem lei
e é nessa doce brandura
que, então, eu me sinto, o rei!

Teus olhos - tranquilidade,
que me fitam com ardor,
foram feitos da saudade
que eu sinto do nosso amor!

São cor de jade, ofuscantes,
esses olhos que eu amei,
são dois raros diamantes
de um mundo que eu inventei!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Outubro de 2004.

George Abrão (A perfeição)

Certo dia um grande e renomado pintor foi instado se já havia pintado a perfeição. Ele pensou e respondeu:

- Não, pois por mais que a procurasse não a encontrei.

Então ele foi desafiado a realizar tal obra e o desafio foi prontamente aceito.

A partir daquele momento tal pintura tornou-se uma obcecação para ele. Começou a pintar belas paisagens, aves de rara beleza, frutos, flores, rios e cascatas, lagos, enfim, tudo o que lhe parecia belo e fascinante. Mas tudo em vão, nada lhe parecia próximo à perfeição, nada agradava a seus olhos e ao seu prazer.

Foi ficando a cada vez mais convencido de que a perfeição física não existia, era algo etéreo e impossível de ser retratado. E já estava desistindo do desafio quando lhe veio à ideia uma figura e essa sim representaria o grau máximo da virtude.

Pegou, então, a tela, a paleta, as tintas e os pinceis, e simplesmente pintou a MULHER!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

segunda-feira, 6 de março de 2023

Tertúlia da Saudade 02: Amália Max

 

Aparecido Raimundo de Souza (Uma parte de mim acabou de morrer...)

UMA PARTE DE MIM se atirou num buraco sem volta. A partir desse evento inesperado, uma lacuna pungente se abriu ferida e acabou em chaga dentro de meu peito. Tudo por causa de meus livros. Eu tinha uma biblioteca e tanto. Causava inveja às pessoas que vinham me visitar e ficavam abismadas com tantos volumes ocupando um espaço tão imenso. Nossa!  Dava gosto chegar na minha sala, à noite, e depois do banho e do jantar, sentar no meu sofazinho de um lugar só, acionar o som baixinho e, ao acaso, passar as mãos num dos mais de trezentos bambas da literatura e me deleitar... 

Os temas variavam, igualmente como os autores: José Lins do Rego, Jorge Amado, Luís F. Veríssimo, Paulo Coelho, Nélida Pinõn, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Humberto de Campos, Cassandra Rios, Rubem Braga, Adelaide Carraro, Graciliano Ramos, Gabriel Garcia Márquez, Chico Xavier, e tantos mais, lembrando, de cada escritor acima citado as obras completas. A contra gosto, precisei me desfazer do acervo. Quando não se tem a casa própria, se vive de aluguel, ou de favores, jogado por aí, em moradas alheias, algumas coisas “importantes” que fazem parte da nossa vida cotidiana, precisam ser descartadas. As pessoas que nos rodeiam, mesmo os parentes mais próximos, não se importam com os nossos cacarecos. Nos chamam de “bestas quadradas” e de “acumuladores de tranqueiras”, por mantermos um amontoado de lixo ocupando um quadrado que bem poderia ser destinado a coisas mais importantes.  

Lembro, dias antes de me desfazer das relíquias (para mim, eram relíquias), liguei para as minhas filhas Amanda e Luana. Falei que estava precisando urgentemente me divorciar de todas as coleções de escritores que sempre fizeram parte constante da minha vida. Talvez, amanhã, ou depois, meus netos se interessassem pelas “coisas do velho avô” e seguissem pelo mesmo caminho que sempre pontilhei desde que me entendo por gente. Amanda se prestou a perguntar, em retorno, pelos títulos. Eu disse alguns. Rezei um terço. São mais de “trocentos” e ela, em resposta, indagou se nessa leva iriam os livros de E. L. James e L. J. Smith, respectivamente a trilogia dos “Cinquenta Tons de Cinza” e os “Diários do Vampiro”. Esse último em quatro volumes. 

Uma semana se passou e eu, apalavrado em compromisso com a pessoa que viria resgatar os volumes (encaixotados previamente), não podia deixar furo e confirmei uma data para que buscasse toda a biblioteca. Voltei a ligar para a Amanda numa última tentativa e ela “ironicamente” me jogou na cara dizendo que “não esperei por ela, nem falei que iria disponibilizar todos os livros”. Ora, quando alguém quer doar alguma coisa em caráter urgente e nos pergunta se temos interesse, qual é a resposta mais sensata? “Não, claro, vou buscar hoje à noite, depois do serviço, ou pedirei para alguém que vá até você e cuide da remoção”.  Ainda mais em se tratando de cultura. Resumindo: minha filha não deu as caras. Luana idem.

Os livros se foram, entre outros cacarecos que estavam em linha de dispensados. Como não guardo raiva (aos setenta anos a gente aprende que o furor e o rompante só trazem dissabores e contrariedades, mágoas e angústias) separei, num canto, os tais livros que a minha filha Amanda mencionou. Não sei, se um dia, virá buscá-los, ou se ainda haverá de se lembrar que somente pelo fato de aventar os nomes, eu os deixei num canto, à espera de serem resgatados. Quando a galera da instituição chegou com a Kombi para a retirada das muitas e muitas caixas, entreguei às chaves do apartamento e sai a dar uma volta. 

Seria penoso demais, custoso, embaraçoso e torturante ver meus livros (companheiros de tantos anos) indo embora, num adeus para sempre, sem que eu nada pudesse fazer para que ficassem e permanecessem ao manejo de minhas mãos carentes por uma boa leitura. Depois dos livros, outras coisas seguiram o mesmo destino. Roupas, sapatos, móveis, louças, quadros, um aparelho de som, enfim... a limpeza se fez completa. Contudo, nada me doeu tanto na alma, quanto a agonia cruciante de saber que os meus livros iriam, a partir daquele momento, ter outro endereço, outro dono, outras mãos os pegando e os manuseando, enfim, outros olhares percorrendo as suas páginas... 

Talvez essas criaturas não tenham o mesmo objetivo que eu. A bem da verdade, nada me dói mais na alma e no coração, saber que eles (meus velhos e queridos livros) não voltarão... que seguiram por sendas diferentes e que os meus sonhos nunca mais voltarão a ser divagados junto aos autores que me fizeram, por tantos janeiros, viajar em quimeras e embevecimentos jamais imaginados. Confesso, outrossim, sem me envergonhar, morreu em mim, um pouco da alegria. Lá no fundo, enterrei uma parte da minha existência. Sepultei à terra fria, uma quota bastante significativa da minha história. 

Acredito, será difícil me recompor quando a saudade vier bater à porta procurando uma aventura nova, um romance, uma crônica, que seja, acaso não lida, para me encantar e me encorajar a voar por mundos e planetas que nunca foram por meus pés pisados. Bem sei, o que está feito, remediado está. Infelizmente, uma parte de mim, repito, se atirou num buraco sem volta. A partir desse inesperado, uma lacuna pungente abriu uma ferida e acabou em chaga dentro de meu coração. Tudo por causa de meus livros.  É como se eu olhasse para dentro de mim mesmo e não desse de cara com os gritos lamuriantes de meu próprio “corpo” se decompondo em frangalhos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.  

domingo, 5 de março de 2023

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 12

 

Alberto Braga (A volta das andorinhas)

Ficava no beiral do meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha (pedreiro) vinha remediar os estragos da invernia e então, no Minho, quando o vento sopra do Gerez, oh! Pai do céu! por mais bem construída que seja uma casa, as telhas vão todas pelo ar, como se fosse um pobre telhado de levadia (telhas soltas)!) eu tinha sempre o cuidado de lhe recomendar:

— Se ainda lá topar o ninho, mestre, deixe-o ficar.

Imagine-se quanto custaria aquilo a um trolha, a um trolha que guarda sempre contra um passarinho o mesmo ódio que um velho lobo de mar conserva implacável contra um rato! Ter de remendar um telhado inteiro — façam ideia! — sem destruir um ninho fofo, pendurado num beiral!

Como eu morava só, aquele ninho, ali, era quase como um outro andar da casa, onde vinha passar o verão uma família minha conhecida. E eu tinha tanto zelo e canseira em conservá-lo no mesmo sítio, muito arranjado e pronto, como se fosse o caseiro daqueles alegres inquilinos!

As pessoas da cidade não dão valor nenhum a estas coisas, e até se riem delas; mas nós, os que vivemos na aldeia, temos um grande afeto pelas andorinhas, pelos melros, pelas toutinegras, pelos pintassilgos, pelos rouxinóis, enfim, por toda a passarada.

Os pardais, esses então, é que não gostam nada dos figurões da cidade. E a gente do campo, que lhes conhece o fraco, assim que eles espreitam cobiçosos as searas, dentre os ramos folhudos dos carvalhos, dizem logo:

— Esperai, que já vos arranjo.

E espetam no meio do campo um pinheiro muito alto, penduram-lhe uma vestia (jaqueta de couro) e põem-lhe por cima, de um modo arrogante, um pouco para o lado, como se aquilo fosse um grande janota — um enorme chapéu alto! Oh! fica admirável!

Poucos pardais, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão. E a gente, vendo-os, à tardinha, todos a chilrear na copa frente do arvoredo, até parece que os ouve dizer:

— Ainda lá está o espantalho?

— E estará, compadre, e estará!

— Se ainda se conservar até amanhã — acode o mais atrevido — diabos me levem, se lhe não prego uma peça!

— Sempre queríamos ver isso! — desafiam os outros.

— Pois então…

No dia seguinte, quando o sol radiante inundava todo o trigal, às onze horas da manhã, estava tudo a postos, tudo silencioso, para ver a partida. O arrojado observou atentamente pelos atalhos — que não fosse vir a rapaziada da escola — e voou rápido dentre um sobreiro, como se o tivesse desferido o arco de uma seta. Foi pousar direito na copa do chapéu alto do espantalho, e voltou-se depois para os amigos, a chilrear com uma grande troça.

Por toda a devesa (arvoredo) estalou então uma gargalhada frenética dos outros, que observavam, cheios de alegria, a imobilidade do janota!

Daí por meia hora — é sabido! — estava a sementeira desvastada!

Uma bela manhã, em meado de março, quando abri a janela do meu quarto, ouvi pipilar em cima. Debrucei-me no peitoril, olhei para o beiral, e lá vi a andorinha, que tinha chegado na véspera, à boca da noite, enquanto eu andava por fora.

— Bem! — disse eu comigo — já sei que tenho de ir fazer uma visita.

Ao cabo de meia hora, peguei no meu bordão, e pus-me a caminho pelo meio de uma bouça (terreno baldio com plantas agrestes), que ia dar à estrada. Eu ia visitar a sra. viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga, que chegava sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as amendoeiras.

Ao atravessar o pátio lajeado, que precedia o velho solar da fidalga, estavam ainda os criados, vestidos com blusas de riscadinho azul, atarefados na limpeza da carruagem e dos cavalos. As janelas da casa estavam todas abertas. Sentia-se que havia lá dentro uma criatura delicada, sequiosa dos perfumes balsâmicos dos pinheirais, do ar puro, da luz, como aquelas plantas aquáticas, as ninfas, que sobem do fundo escuro dos lagos à tona d'água para receber os raios quentes do sol do meio dia!

Apenas entrei no pátio, deparou-se-me a sra. viscondessa; e era mesmo uma pintura vê-la, como eu a vi então, com a cabeça lançada para trás, os braços muito erguidos, os seios arfantes, a aprumar-se, a subir, fincada no bico dos pés, para lançar o painço (tipo de milho) na gaiola dourada de um canário, que estava pendurada, em cima, entre os cortinados da janela!

Era lindo! lindo!

Quem primeiro aparecia a cumprimentar a fidalga era o sr. abade. E, então, conhecia-se logo que havia novidade na terra, porque o viam sair da residência todo asseado, de chapéu alto, cabeção de renda, a sua antiga sobrecasaca muito comprida a bater-lhe no cano das botas, e apanhado na mão direita, de um modo solene, o enorme lenço de seda da Índia com ramalhoças (estampado com ramagens) amarelas.

Feitos os cumprimentos do estilo, o sr. abade sacava da algibeira a sua caixa de tartaruga, e oferecia-a respeitosamente à viscondessa, como sinal da máxima etiqueta. E depois, ia falando e cheirando alternadamente.

— Pois minha senhora…

E fungava pela venta esquerda uma pitada de simonte (tabaco de pó fino), continuando:

— Este ano, o inverno, minha senhora, correu mal! E Jesus! muito mal!

Depois, ao outro dia, vinha a sra. morgada do areal flanqueada das suas duas filhas. Aquilo é que era luxo! chapéus de plumas, vestidos de nobreza com três folhos, manteletes de moir antique (tipo de xale), e então o bonito era a profusão de pulseiras, de broches, de brincos, tudo ouro antigo, ouro de lei, maciço, mas muito feio!

As meninas não tiravam os olhos da viscondessa; e, como ficavam uma junto da outra, acotovelavam-se às vezes, e segredavam:

— Vê, mana?…

— O que é? — perguntava a mais velha por entre dentes.

— Agora já se não usa cuia! Ora repare.

A morgada falava do amanho (cultura) das terras, do peso da derrama, e às vezes para variar, dizia:

— Ora, não estar cá pelo Santo Amaro! Havia de gostar. É uma festa como poucas! Faça ideia, viscondessa: há arraial três dias, há fogo preso, missa cantada, sermão…

E arregalando os olhos, e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:

— Sermão! Mas que sermão!…

Quando chegava a vez da minha visita, já a sra. viscondessa sabia todas as grandes novidades da terra. Era assim castigada a minha preguiça!

— Então já sabe, — principiava eu — o comendador Antunes este ano despica-se (vinga-se)!

— Ah! já me disseram, — atalhava logo a viscondessa — é ele o juiz da festa.

— É isso, minha senhora, é isso…

Veem? Sabia sempre tudo aquilo que eu tinha para lhe dizer!

Ora sucedeu, que de uma vez, indo lá passar a noite, encontrei a viscondessa sentada em uma voltaire (poltrona), com a cabeça reclinada no espaldar, as pernas estendidas e os seus pés graciosos pousados no rebordo de um braseiro.

— V. exa. contradiz as tradições da primavera! — principiei eu, sentando-me ao seu lado.

— Não contradigo, meu caro — respondeu ela, removendo com a pá o rescaldo esmorecido — a primavera é que está agora conspirando contra os poetas, que lhe atribuem doçuras que não tem! Se o calendário não me desmentisse, estava a jurar que o janeiro deste ano aumentou, pelo menos, mais sessenta dias!

— Mas não está tanto frio, que se não prescinda do fogão!

— Não está calor que o dispense.

— Pois não é das melhores coisas para a saúde!

— Ora que ideia! — opôs ela, a rir — Não me consta que o fogão tenha sido o assassino de ninguém, tirante nos velhos dramas, em que a heroína ludibriada pelo amante, procurava no ácido carbônico a solução do problema.

Suponham como eu fiquei radiante de júbilo! Até que se me deparava ensejo de contar à sra. viscondessa uma história que ela desconhecia!

— Pois, minha senhora, — principiei eu com desvanecida firmeza — Filipe III, de Espanha, foi vítima do calor de um fogão! E, se v. exa. me permite, eu vou referir-lhe como o caso se passou.

Aproximei a minha cadeira do braseiro, expus os meus pés ao calor do rescaldo, para contradizer com a postura o que afirmava com a palavra, e prossegui:

– Estava El-Rei, assistindo a um conselho de ministros. Como fazia muito frio, diante de Sua Majestade tinham colocado um braseiro enorme. Passado pouco tempo, principiou El-Rei a transpirar, a transpirar cada vez mais e as faces a tornarem-se-lhe muito vermelhas. O conde de Pobar, que viu no rosto de Sua Majestade a aflição que ele sentia, dirigiu-se ao duque de Alba, gentil-homem, e disse-lhe baixo que mandasse retirar o braseiro.

— É contra a etiqueta — respondeu serenamente o duque de Alba. — Isso compete ao duque de Uzeda.

— Filipe III voltava para o lado os olhos suplicantes; mas não se atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um pontapé ao braseiro e aos cortesãos que o cercavam.

Mandou-se chamar à pressa o duque de Uzeda; mas, por fatalidade, o duque de Uzeda nesse dia não estava no palácio!

— E depois? — perguntou aflita a sra. viscondessa, afastando-se do braseiro.

— Depois — continuei eu pausadamente estirando mais as pernas — quando o duque de Uzeda chegou ao palácio…

— Hein? — perguntou de súbito a fidalga, pondo-se de pé.

— El-Rei estava morto! — conclui eu com voz sinistra.

Apenas proferi esta frase, abriu-se de repente a porta e entrou na sala o criado com a bandeja do chá.

A sra. viscondessa ordenou logo:

— André, amanhã não acenda o braseiro.

E eu, oferecendo-lhe uma chávena, disse-lhe então baixinho:

— Já vê que se devem apagar os fogões, quando voltam as andorinhas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Alberto Braga foi secretário do Instituto Comercial de Lisboa. Ao longo da sua carreira assinou diversas crônicas literárias em jornais portugueses e brasileiros. Como autor, escreveu peças de teatro e livros de contos sendo reconhecido pelo seu estilo direto e claro, pela sobriedade na escrita e pelo tom sentimental que imprimiu a algumas das suas obras. Desenvolveu peças teatrais com uma forte raiz romântica e com pendor naturalista. Foi diretor da revista A semana de Lisboa (1893-1895) e colaborou em várias publicações periódicas, nomeadamente nas revistas Brasil-Portugal (1899-1914), Ilustração portugueza (1903-1980), Serões (1901-1911) e A risota (1908).

São suas obras:
Contos da Aldeia (1916), Contos da Minha Lavra (1879), Os Confidentes (1887), e teatro: A Estrada de Damasco (1892), A Irmã (1894), O Estatuário (1897).
(fonte da biografia: Wikipedia)

Fonte:
Alberto Braga. Contos d' Aldeia. Publicado originalmente em 1916.
Disponível em Domínio Público.

Augusto de Lima (Poemas Escolhidos) 2


A DESCIDA


Homem, remove este rochedo e a rara
galeria interior contempla e estuda;
desce, e da terra pela ossada muda
leva tua razão de ciência avara.

Na treva expira a luz há pouco clara,
o ar em sulfúreo gás já se transmuda:
coragem! desce, e os séculos saúda,
desce mais, desce mais... agora para.

Mas não! Lá fulge um fogo subterrâneo:
– e mergulhas no cérebro do globo,
– e lhe penetras de outro lado o crânio.

Desce! não! Sobe agora; um brilho intenso
banha-te o corpo, e num heroico arroubo
eis-te boiando no oceano imenso.
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AMIGO

O rochedo é deserto. Ele avança.... recua...
e é preciso morrer, contudo. O vento geme
pavorosas canções nas árvores; a lua
pela face cio mar, triste, indecisa treme.

Ele vacila; o abismo é pérfido, quem sabe
se a morte não será pior que a própria vida,
que a vida tormentosa e estúpida que cabe
àquele, cujo peito é uma aberta ferida?

Porém, silêncio – um grito ao longe como um canto
de saudade gemeu, um lamento de dó,
e logo um cão chegava, em cujo olhar o pranto
parecia pedir que o não deixasse só.

Ansiava soturno, o olhar na imensidade,
o tronco erguido ao vento, o aspecto hirto, selvagem;
meditou: vida... morte... inferno... eternidade...
– o corpo ergueu, volteou e... tombou na voragem.

Por um momento o cão esperou anelante;
pressentindo, porém,
que ele não vinha mais, num uivo lancinante,
atirou-se também.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

CÓLERA DO MAR
(A Assis Brasil)

Disse o rochedo ao mar, que plácido dormia:
“Quantos milênios há que, tu, negro elefante,
tragas covardemente esses, cuja ousadia
se arriscou em teu dorso enorme e flutuante?”

O mar não respondeu; mas um tufão horrendo
cavou-lhe a entranha e fez estremecer de medo
o coração do abismo. Então o mar se erguendo,
atirou um navio aos dentes do rochedo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O POLVO

Polvo da eterna dor, debalde apertas
em teus fortes tentáculos sedentos
a humana essência, contra a qual despertas
em teu furor os vários elementos.

Por mais que o gosto em rudes sofrimentos,
por mais que em cardos os rosais convertas,
hão de ao Homem jorrar novos alentos
da consciência as termas sempre abertas.

Assim ao mar, que canta, estua e brama,
há séculos o sol, polvo de chama,
em cada raio suga-lhe uma gota.

Mas a seus pés, batidos, noite e dia,
os continentes bradam à porfia:
“Rios ao mar!” e o mar nunca se esgota.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

OS FERREIROS

Ó vultos varonis, resplandecentes
ao rutilar fecundo do trabalho,
que à pobreza buscastes agasalho
nas forjas inflamadas e candentes:

Sois os Messias, que ensinais às gentes
a despir do Passado o vil frangalho:
rompe um sol, cada vez que tomba o malho,
porque sois outros tantos orientes.

Fazei rolar a esplêndida cascata
do trabalho incessante pelas vazas
das rochas da Matéria, a progredir...

Que essas chispas ardentes, que desata
vossa bigorna, orvalho são de brasas
para a flor luminosa do Porvir.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

VOGANDO
(A Afonso Celso Júnior)

Desliza rio abaixo incerta proa:
ninguém a bordo: preso a duro laço,
chora um caído remo ausente braço.
Que porto busca a singular canoa?

Mas eis que além, com rápido fracasso,
um rochedo invisível a abalroa,
e momentos após, de espaço a espaço,
fragmentos soltos vão boiando à toa...

Mais infeliz do que o baixel sombrio,
vou eu singrando da existência o rio,
tendo a bordo o cadáver do Passado.

E não achar, como ele, um arrecife
que despedace as tábuas deste esquife,
na corrente sem fim arrebatado!

Fonte:
Augusto de Lima. Contemporâneas. Publicado originalmente em 1887.
Disponível em Domínio Público.