quinta-feira, 27 de abril de 2023

Varal de Trovas n. 580

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 81

Numa instituição fui solicitado a preencher um cadastro.  Achei estranho pois minha demanda não ensejava nenhum informe adicional.  Às perguntas costumeiras, nome, data de nascimento, vieram também indagações de cor dos olhos, número do calçado, grau da lente dos óculos, fundura do nariz, largura da boca.  E mais.  Profissão? Romeiro da cultura.  Função?  Disseminador. Outras atividades?  Escrevinhador. 

Pensei nas respostas às perguntas.

Disseminador de cultura é  um prazer arraigado. Escrevinhador é necessidade constante. Ambos habitam meus dias.  Habitamo-nos.

No meu posto de buscador, pesquisador, observador, vou aprendendo a fazer e estimular a cultura - atendendo ao sentido literal da palavra "cultivare ", ali do latim.  E cultivo é planta, é busca, entendimento, incentivo e disseminação.  

Envolto nesta teia de vez em quando lembro Bob Marley: "Um povo sem conhecimento, origem e cultura é uma árvore sem raízes".

Fonte: 
Texto enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Coroa na escola)

Ele pensou, repensou, resolveu fazer o vestibular para o curso de Direito. Não pôde estudar quando jovem, porque desde cedo precisou trabalhar para ajudar no sustento dos pais idosos e de dois irmãos menores, que graças ao seu sacrifício puderam frequentar regularmente a escola e conquistar seus diplomas universitários.

Aos 52 anos, com dois filhos e uma filha bem encaminhados, decidiu enfim levar avante o que não pudera realizar quando moço: de escala em escala, trabalhando de dia e estudando de noite, terminou o primeiro e o segundo graus. Em seguida, sem cursinho, inscreveu-se para o vestibular.

Contava mais com a tarimba acumulada ao longo da vida do que propriamente com a base escolar. Antigo contador prático (atividade iniciada como aprendiz de escritório quando contador era ainda chamado de “guarda-livros”), inteligência acima da média, grande experiência profissional, ampla cultura geral resultante do acentuado gosto pela leitura, o coroa de 52 anos peitou os jovens concorrentes e acabou classificando-se em primeiro lugar. Chegou a ser notícia em alguns jornais.

Estudou Direito na mesma universidade onde a filha caçula fazia o curso de História. Iam juntos para as aulas todas as noites, trocando ideias sobre provas, trabalhos etc. Pai e filha como se fossem irmãos, anulando pela alegria do estudo a diferença de idades. Ele todo serelepe com a sua pasta de livros. 

Essa é uma história que acompanhei de perto, embora o protagonista vivesse em outra cidade, bem distante daqui. Mas sei de muitos outros casos de pessoas que começaram a vida estudantil depois dos filhos. No início ficavam meio sem jeito, contudo logo se misturavam com a moçada e era como se houvessem renascido. Você talvez tenha alguém assim na sua família.

E o curioso é que os coroas quase sempre se saem muito bem nos cursos. Se lhes faltou escolaridade na infância e na juventude, em compensação ganharam rica experiência em uma longa e árdua vida de trabalho. 

Em nossa região histórias como essa foram sempre bastante comuns. Pessoas que vieram para aqui na época do pioneirismo e que se entregaram totalmente à luta pela construção de um patrimônio para a família. Só depois de vencerem a dura etapa da formação de um pé de meia e do encaminhamento dos filhos é que finalmente puderam entrar numa escola, quase todos se destacando entre os melhores alunos de suas turmas – certamente pela maturidade, pelo conhecimento de vida prática e pela maior consciência do valor do estudo.

Aquele homem de 52 anos, que tirou o primeiro lugar no vestibular de Direito, foi assim.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-4-2023)

Fonte:
Obtido no facebook do autor.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LIII

Pela rua já serena 
Vai a noite 
Não sei de que tenho pena, 
Nem se é pena isto que tenho... 

Pobres dos que vão sentindo 
Sem saber do coração! 
Ao longe, cantando e rindo, 
Um grupo vai sem razão... 

E a noite e aquela alegria 
E o que medito a sonhar 
Formam uma alma vazia 
Que paira na orla do ar...  
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Pois cai um grande e calmo efeito
De nada ter razão de ser
Do céu, nulo como um direito,
Na terra vil como um dever.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele esta feito
É que tens para me dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram 
Quando estás a olhar-me assim?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Pudesse eu como o luar
Sem consciência encher
A noite e as almas e inundar
A vida de não pertencer!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Qual é a tarde por achar  
Em que teremos todos razão  
E respiraremos o bom ar  
Da alameda sendo verão,  

Ou, sendo inverno, baste 'star  
Ao pé do sossego ou do fogão?  
Qual é a tarde por voltar?  
Essa tarde houve, e agora não.  
  
Qual é a mão cariciosa  
Que há de ser enfermeira minha — 
Sem doenças minha vida ousa —  

Oh, essa mão é morta e osso...  
Só a lembrança me acarinha  
O coração com que não posso. 
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Quando era jovem, eu a mim dizia:
Como passam os dias, dia a dia,
E nada conseguido ou intentado!
Mais velho, digo, com igual enfado:
Como, dia após dia, os dias vão,
Sem nada feito e nada na intenção!
Assim, naturalmente, envelhecido,
Direi, e com igual voz e sentido:
Um dia virá o dia em que já não
Direi mais nada.
Quem nada foi nem é não dirá nada.

Fonte:
Poesias em Domínio Público

Jaqueline Machado (O Gato malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado)

"O mundo só vai prestar para nele se viver, no dia em que a gente ver um gato maltês casar com uma alegre andorinha, saindo os dois a voar: O noivo e sua noivinha, Dom Gato e Dona Andorinha“

Este é um trecho da fábula escrita por Jorge Amado, e publicada em 1976.

Eis que o tempo inventou de fazer uma promessa para a donzela manhã. Prometeu dar-lhe uma rosa azul, se ela lhe contasse uma história bonita.

Ela escolheu contar uma bela história de amor entre o Gato Malhado e a Andorinha Sinhá.

Gato Malhado era um gato já ancião, ranzinza e sem piedade. Certa vez, todos os animais que estavam a refestelar-se alegremente no parque, fugiram do gato a fim de escaparem de suas vilanias, quer dizer, nem todos: uma jovem andorinha permaneceu num galho de uma árvore. Os dois começaram a discutir.

Desde então, se apaixonaram. Um passou a viver nos pensamentos do outro.

O Gato voltou ao parque, os dois se aproximaram, e daí em diante passaram a conversar civilizadamente, e passearem juntos.  No período do término do verão, o Gato declarou o desejo de casar com a bela Andorinha. Ela respondeu que as andorinhas não se casam com gatos. E, em seguida, desapareceu.

A bicharada descobriu o amor que existia entre o Gato e a Andorinha, e logo começaram a criticar.

Algum tempo se passou. Era Outono, e o Gato soube da notícia de que a sua amada estava de casamento marcado com o Rouxinol,  que era amigo dela. O Gato Malhado entristeceu-se profundamente. Era tanta a tristeza do Gato Malhado, que ele decidiu caminhar até ao Fim do Mundo. Este viu a Andorinha, pela última vez no casamento. Ela também o viu. Na cara dela via-se também tristeza, pois gostava do Gato, mas fora obrigada a casar com o Rouxinol.

A Andorinha Sinhá deixou cair uma pétala de rosa do seu buquê sobre o  Gato, a qual ele colocou  no peito, parecendo uma gota de sangue.

Quando o gato saiu de lá, a pétala brilhou e o encaminhou até ao Fim do Mundo.

Assim, a Manhã recebeu a rosa azul do Tempo.

 A fábula retrata muito uma realidade humana ainda vigente no mundo atual, onde regras sem sentido se opõem aos sonhos, às vontades e aos amores. Na verdade, a realidade deveria ser o oposto disso. Os amores e os ideais sadios é que deveriam estarem à frente de tudo.

Pensando nisso, disse o autor: “Temos olhos de ver e olhos de não ver, depende do estado de coração de cada um”.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Tadinha!)

BASTAVA A LARISSA fazer qualquer coisa errada, lá vinha alguém passando a mão na cabeça:

— Tadinha!

A coisa começava cedo, na hora do matinal:

— Pão?

— Só com manteiga.

— Torradas?

— Me dá aflição nos dentes.

— Café?

— Sem leite e com muito açúcar.

— Ovos?

— Cozidos e bem salgados. Não gosto desses mexidos que a empregada faz. Me dá nojo!


A avó Lola se mostrava totalmente contra a realização de todas essas vontades e caprichos. E sempre que podia deixava bem clara e patente a sua impertinência quanto a isso:

— Não está exigindo muito para uma pessoinha da sua idade, Larissa?  – Berrava, insatisfeita com as descomedidas da neta. – Nunca vi uma menina cheia de manias e não me toques.

Ao contrário dela, o avô Genésio, relutante e gentil, comungava com os pensamentos da menina e a defendia ferrenhamente de unhas e dentes:

— Tadinha, Lola!!!

— Tadinha coisa nenhuma. No meu tempo, meus pais não me davam escolhas. Eu que não aprontasse algo, pra ver se a fivela do cinto não comia nos costados. Mandava pra dentro o que tivesse na mesa, ou ficava de castigo, com os joelhos no milho...

— No seu tempo não existia eletricidade nem água encanada, Lola. Tampouco forno de micro-ondas. Estamos, minha velha, na era da tecnologia. Luz de velas, só em filmes de terror dos idos de Hitchcock.

— Pode até ser. Não discordo de você, meu esposo. Mas concorde comigo, pelo menos nesse ponto. Certas frescuras afloram desde os primórdios tempos em que a sua bisa andava de bicicleta de uma roda só e se pegava moscas com mel. 

No almoço, a mesma cena se repetia. Chegava a dar asco em quem estivesse por perto:

— Arroz?

— Tira esses “trocinhos” vermelhos.

— São tomates. Faz bem pra saúde.

— Não pra minha!

— Carne?

— Sem pelancas...

— Farinha?

— Gruda nos dentes.

— Pegue a colher...

— Só como com garfo e faca.

— Água, Melissa?

— Quero refrigerante. Não gosto de água. Estufa a barriga e me faz parecer gorda e balofa.

A avó Lola, gente antiga e de ideias antiquadas e retrógradas, não desistia de sua empreitada. Ralhava com vontade. Marcava em cima do lance. Sem dó nem piedade. Brigava mesmo. Genésio, porém, embora passasse dos oitenta –, seguia por caminhos extremamente complacentes e apaziguadores. Lutava contra todos para ficar ao lado de Larissa, a única netinha e realizar seus desejos mais corriqueiros e absurdos:

— Tadinha, Lola!!! Deixa de implicar com essa criança. Que coisa! Nem parece que já passou por essa idade!...

— Sei que passei, como todos passamos. Todavia, no meu tempo de mocinha, ai de mim se...

Assim acontecia o tempo inteiro. No lanche das três, na mesa de jantar, no banho, e, à noite, na hora de sentar na sala para ver a novela na televisão em preto e branco. Igualmente, ao se recolher ao quarto para dormir, ou logo noutro dia cedinho ao acordar e se aprontar para o grupo escolar. Não diferenciava em nada as idas ao que hoje chamam de “shopping” para comprar roupas, sapatos e objetos de maquiagem. 

Se a mocinha desse o contra, pronto –, aparecia a avó falando pelos cotovelos. Passos atrás, pintava o avô (com seus vagarosos de gente que estava com a vida ganha), brabo, trepado nos cascos, fazendo valer os direitos e deveres da guria, rezando a sua cartilha, pelejando para que os pais verdadeiros Anahí e Gaudêncio deixassem por menos e se curvassem aos impulsos da pequena. O tempo seguiu sem maiores contratempos. Larissa cresceu. A avó Lola e o avô Genésio morreram. O pai (tal como a falecida mãe, dona Lola), seguia a sua linha de pensamentos em oposição aos demais. Enérgico, não dava tréguas.  

Um dia, pintou o primeiro namoradinho:

— Onde já se viu, Anahí, deixar a nossa filha namorar um moleque esquisito igual a esse? Reparou nos cabelos? Nos brincos nas orelhas? Como se não bastasse, piercings na língua, nos olhos, sem falar nas tatuagens, aqui e ali!? Nem escrever esse filho de uma égua sabe direito...

— Tadinha, Gaudêncio!!! Nossa donzela fez treze anos ainda ontem!... não é mais aquela garotinha que se escondia pelos cantos da casa, fazia xixi... e eu, ou você, ou seus pais. carecíamos trocar as fraldas...

O tempo inexorável continuou sem mudanças. A menina, debutou. Quinze anos. Fizeram uma festança inesquecível para comemorar a data. Então, um belo dia, apareceu, não se sabe como, grávida. Escondeu a besteira da prenhez o quanto deu das vistas de todos. Entretanto, no dia em que a barriga imensa decidiu saltar para fora, mostrando o imprevisto da fatalidade e empurrando o nascimento de um novo ser para a vida plena, tudo ao redor dela se fez tarde, muito tarde demais. Gaudêncio, foi à loucura. Explodiu, furioso e transtornado:

— Nossa filha barriguda, Anahí?

— Aconteceu, Gaudêncio, aconteceu! Tadinha!!!

— Vagabunda. Culpa sua e, antes, de meus pais. Viu no que deu os paninhos quentes? Não quero essa infeliz aqui em casa. Rua, rua com ela. Que vergonha, que vexame para a família! Sabe, ao menos, quem é o desgraçado do salafrário que embuchou essa desmiolada? Quero matar esse amaldiçoado como se mata um porco. Diga, quem é o pai? Quem é o miserando?

Dona Anahí desesperada, inventou uma mentira de última hora. O verdadeiro pai da criança, o moleque esquisito, escafedera. “Graças aos céus”. Jogaria com a sorte. Se desse errado... 

— O pai da criança, Gaudêncio é o tio dela, seu irmão Felipe, de dezessete anos, o caçula que veio morar aqui em casa, logo após o falecimento de seu Genésio e dona Lola. E agora? Você sairá à cata e matará seu próprio sangue? Tem realmente coragem de tirar a vida do seu irmão e botar nosso bebê (agora com seu neto recém-nascido, quer você queira, ou não), junto com a nossa filhinha que você ama incondicionalmente do fundo da alma, sem mais nem menos para fora de casa e vê-la jogada como um bicho pelas sarjetas da vida desumana e cruel? Tadinha!!!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 5)

 

Alba Christina Campos Netto (História de suspense)

Já era tarde quando Antônio telefonou.

- Recebi seu conto para a revista. Está bom, mas...

- Mas... o que?

- Para dizer a verdade não gostei. Está chato, sabe? Não é que não esteja bom, mas aquilo não é Você ... Entende, não?

- Sim, entendo.

- Você pode substituí-lo?

No momento estava difícil imaginar histórias. Mil e uma ocupações tomavam-me o tempo.

- Você tem muita pressa?

- Ora, se tenho... gosto de ler suas histórias.

- É que me sobra pouco tempo, agora que tenho o bebê... Mas conte comigo.

- Está bem. Dou dez dias de prazo.

- Bom. Se eu não puder levar, você pode vir buscar?

- Ah, que pergunta...

No dia seguinte fiquei pensando no assunto. A empregada havia faltado e o serviço acumulou. Minha máquina estava emprestada. As ideias fugiam-me da cabeça. e eu queria me livrar logo daquele encargo. Além de tudo, precisava aproveitar enquanto Cláudia dormia, para escrever o bendito conto.

Foi então que me lembrei: havia deixado meus óculos em casa de Betty, quando fui ver televisão. E agora? Tinha de ir buscar.

Nem bem saí de casa, reparei que um velho me seguia. De onde surgiu, não reparei. Fui andando, e ele atrás de mim. No ponto do ônibus olhava-me, com olhar insistente. Em dado momento começou a sorrir.

Era um tipo de homem do povo, vestido com simplicidade. Baixinho, magro, feio, mas tinha olhos brilhantes, que chamavam a atenção. Resolvi entrar numa loja. Andei, olhando os balcões, fugindo das vendedoras que vinham procurar servir. Passei nisto uns vinte minutos - o tempo que julguei necessário para o velho ter sumido - quando vi que a loja dava saída para a outra rua, onde também passava um ônibus para a casa de Betty.

- Ótimo, pensei.

Havia uma fila grande. Esperei uns minutos, e quando o ônibus chegou, vi com surpresa, que lá estava o velho outra vez, atrás de mim. Comecei a ficar com medo.

O ônibus parou, foram todos entrando, e quando o velho acabou de entrar, o fiscal mandou fechar a porta.

Apressei-me a passar a borboleta, mas assim que me sentei, o velho sentou-se ao meu lado.

Pensei que iria me dirigir a palavra, mas ele continuava mudo, os olhos brilhando, fixos em mim.

Quis voltar. A rua onde Betty morava era meio deserta, e eu não poderia me aventurar, com um desconhecido louco me perseguindo. Mas para meu sossego, ele desceu do ônibus bem antes de mim.

Contei a Betty o sucedido.

- Preciso de um copo d'água. Estou cansada, até...

- Mas também esses tarados... Outro dia um veio da cidade até aqui, me seguindo.

- Pois, é. Ainda bem que desistiu, viu que não sou de nada.

Na saída Betty acompanhou-me até o portão.

- Cuidado, hein, por essa rua deserta.

Segui, muito confiante, ao ponto do ônibus. Não havia ninguém na rua, felizmente. O ônibus chegou, parou, e quando eu ia subindo, vejo que alguém subia também. E quem poderia ser senão o velho personagem do dia?

O mais depressa que pude, procurei lugar perto de alguém, para evitar que ele se sentasse de novo ao meu lado. Tive vontade de pedir a alguém no ônibus que me acompanhasse até em casa. Mas alguns minutos depois, sem que eu percebesse, ele já havia desaparecido. Daí por diante, eu olhava de todo lado. Pelo caminho para casa ia vendo se tinha gente em volta, a quem pudesse pedir socorro. Mas o velho desistira, mesmo. Nem sinal.

Continuei meu caminho sossegada, e quando ia abrindo o portão de casa, ouvi uma voz suave, me chamando;

– Por favor, moça, preciso só dizer uma palavrinha.

Fiquei dura ao ver novamente o velho.

– Não tenha medo, minha filha. Só queria pedir um favor, importante. Conhece o Mendonça, seu vizinho, aquele daquela casa? - e apontou a casa da esquerda.

- Conheço, disse trêmula.

- Pois vá à casa dele hoje mesmo. Ele vai para a Europa a semana que vem. É preciso impedir essa viagem a todo custo. Diga à esposa dele que de modo algum o deixe viajar. Entendeu bem? Ele não deve embarcar de modo algum.

- Só isso, perguntei, morrendo de medo, louca para entrar em casa e vê-lo sumir.

- E se algo acontecer, continuou ele, avise a esposa que procure dentro do baú velho, embrulhado num papel verde, embaixo das fotografias da família...

Aquela conversa misteriosa foi me fazendo ficar gelada, e devo ter virado sorvete quando vi que o velho sumira, como por encanto. Tamanho pavor se apoderou de mim, que nem entrei em casa, pois não havia ninguém. Corri para a casa do dr. Mendonça, onde entrei esbaforida. Fui contando toda a história a dona Adélia, que não se mostrou assustada.

- Que brincadeira de mau gosto. 

– Mas quem seria? Para saber que o dr. Mendonça vai a semana que vem para a Europa, para falar no baú com as fotografias da família?

- Ora, alguém que deve conhecer o Mendonça, ou saber da vida dele. Quanto ao baú velho com fotografias de família, quase todo mundo tem. não é? Beba um copo d'água e não pense mais nisso.

Mesmo assim, pedi que me acompanhasse de volta.

Passaram-se, os dias e o dr. Mendonça embarcou. Eu ainda pensava no velho, com medo que ele aparecesse para ajustar contas. Estava com aquela ideia fixa, quando, uma tarde, vi que a casa ao lado estava cheia de gente. Uma irmã de dona Adélia veio me chamar, dizendo que dona Adélia recebera um cabograma, avisando que o dr. Mendonça havia falecido a bordo, de um colapso cardíaco.

Entrei com as pernas bambas. Dona Adélia olhava-me alucinada. Nenhuma de nós sabia o que dizer. Nem murmurar "meus sentimentos", ou coisa parecida, eu pude.

- E o que mais disse ele? perguntou-me. Que procurasse no baú velho, não foi?

- Sim, disse eu, arrepiada.

- Venham comigo, disse dona Adélia levantando-se da cadeira, e puxando as irmãs e amigas pela mão.

Eu as segui, por solidariedade, ou por curiosidade, não sei. Entramos num quarto, lá no fundo do quintal, onde havia montes de coisas velhas guardadas: livros, vestidos, móveis antigos, uma porção de quinquilharias, e o velho baú.

Abriu-o, depois de tirar de cima um montão de revistas empoeiradas.

- Cartões de Natal, participações de noivado, convites de casamento, para que guardar tudo isso, Adélia?

- Aqui estão as fotografias. E aqui o embrulho verde.

Fui ficando tonta, enquanto dona Adélia desembrulhava.

– Ora, nada demais, o retrato de meu avô, falecido há vinte anos. Já está meio apagado. 

Todas devem ter ficado horrorizadas ao olhar para mim - ao reconhecer no retrato o velho que me havia seguido, dei um grito, e teria caído se uma senhora não me segurasse.

Mas Cláudia já está acordando, eu preciso ir vê-la. Felizmente terminei o conto. Há uma hora estou escrevendo, e eis tudo que pude imaginar. Só resta esperar a revista sair, e ver se Antônio realmente preferiu esta história à outra.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIII

 VERSOS À CARA
 
MOTE:
Sem ter chicote nem vara,
manda-me a minha razão
atirar versos à cara
dos que me roubam o pão!
Antonio Aleixo
Vila Real de Santo Antonio/Portugal, 1899 – 1949, Loulé/França

GLOSA:
Sem ter chicote nem vara,
eu tento fazer justiça,
de uma forma simples, clara,
menosprezando a cobiça!
 
Pensando, assim, concentrado,
manda-me a minha razão
(por ser eu apaixonado)
responder com o coração.
 
É uma maneira bem rara,
revidando os malfeitores
atirar versos à cara,
transformando-os em leitores!
 
É com minha poesia
que os trarei de volta ao chão,
pondo fim a glutonia
dos que me roubam o pão!
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   NOSSOS VINHOS
 
MOTE:
 Andando pelos caminhos
da vida ao alvorecer,
lembrei-me de nossos vinhos,
bebidos ao bel prazer!
Carmen Pio
Porto Alegre/RS

GLOSA:
Andando pelos caminhos
do meu hoje, tão contente,
eu visto os sonhos de arminhos
e enfeito a vida da gente!
 
Eu sinto em mim, a fragrância
da vida ao alvorecer
que explode, então, nessa ânsia
de vontade de viver!
 
Recordações são carinhos
realizando desejos...
lembrei-me de nossos vinhos,
lembrei-me de nossos beijos!
 
Fiquei ébria de paixão,
ao recordar o beber
dos vinhos do coração,
bebidos ao bel prazer!
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   SEMEANDO ROSAS
 
MOTE:
Nas horas mais dolorosas,
teimosos, no seu lirismo,
há poetas semeando rosas
entre as rochas de um abismo!
Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:
Nas horas mais dolorosas,
cheias de melancolia
surgem poesias preciosas
falando de nostalgia!
 
Os poetas, são assim,
teimosos, no seu lirismo,
à tristeza dão um fim,
num eterno sincronismo!
 
As aragens tão cheirosas
provam de um modo profundo:
há poetas semeando rosas
nos quatro cantos do mundo!
 
As rosas crescem faceiras
nascidas do romantismo,
entre campos e ladeiras,
entre as rochas de um abismo!
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   NOSSAS MANHÃS
 
MOTE:
De manhã, sugando amores,
nesses teus lábios de paz,
provo todos os sabores,
nos sabores que me dás.
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

GLOSA:
De  manhã, sugando amores,
teus carinhos divinais
têm o perfume das flores
e o gosto de quero mais!
 
Eu sacio os meus  desejos
nesses teus lábios de paz,
pois o néctar dos teus beijos,
meus anseios, satisfaz!
 
Eu vejo todas as cores
nesse meu mundo encantado;
provo todos os sabores,
nele, eu amo e sou amado!
 
Esse momento tão lindo
só felicidade traz
e me embriago, sorrindo,
nos sabores que me dás.
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   MEUS  VERSOS
 
MOTE:
Versos soltos ou fragmentos
são as trovas que componho
que amenizam meus tormentos
e dão mais vida ao meu sonho!
Joamir Medeiros
Natal/RN

GLOSA:
Versos soltos ou fragmentos
eu escrevo nos meus versos,
são cânticos ou lamentos
que ecoam nos universos!
 
Com muita imaginação,
são as trovas que componho
pois brotam do coração
e nelas, minha alma, ponho!
 
São bonitos pensamentos
que a trova me faz criar,
que  amenizam meus tormentos
e até me ensinam a amar!
 
Sendo eu, um trovador
nunca , me quedo, tristonho;
as trovas levam a dor
e dão mais vida ao meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

Contos e Lendas do Mundo (África) O filho do médico e o rei das cobras

Muito tempo atrás, um médico sábio, ao morrer, deixou uma esposa e um bebê. Na idade apropriada, o menino foi batizado com o nome escolhido por seu pai: Hassee’boo Kareem’ Ed Deen’.

Quando o garoto terminou seus estudos e já sabia ler, sua mãe o enviou a um alfaiate para aprender a profissão. Não conseguiu. Depois, o mandou até um ourives e ele tampouco foi capaz de dominar esse ofício. O menino tentou diversos trabalhos, sem sucesso em nenhum deles. Enfim, sua mãe disse: 

— É melhor você ficar em casa por um tempo — e essa proposta lhe agradou.

Um dia, Hassee’boo perguntou à sua mãe qual era a profissão de seu falecido pai. Ela contou que ele havia sido um grande médico.

— E onde estão os livros dele? — indagou o menino.

— Faz muito tempo que não os vejo, — respondeu a mãe — mas devem estar no quarto dos fundos. Vá procurá-los.

Hassee’boo vasculhou a casa até encontrá-los, mas estavam praticamente destruídos por insetos. Não foi possível aproveitá-los.

Tempos depois, quatro vizinhos foram à sua casa e pediram à mulher:

— Seu filho pode vir conosco cortar lenha na floresta?

O trabalho consistia em cortar madeira, carregá-la em burros e vendê-la na cidade, onde era usada em fogueiras.

— Claro. — respondeu ela. — Amanhã comprarei um burro para que ele comece a trabalhar com vocês.

No dia seguinte Hassee’boo, montado em seu burro, saiu com seus quatro novos companheiros. Trabalharam muito e ganharam bastante dinheiro durante seis dias. No sétimo, uma chuva muito forte levou todos a se abrigarem em uma caverna.

Hassee’boo sentou-se sozinho. Como não havia nada para fazer, ele começou a bater uma pequena pedra no chão. Surpreendeu-se com o ruído surdo que o solo fazia, como se estivesse oco. Chamou os outros e disse:

— Parece que há um buraco aqui embaixo.

Bateu a pedra no chão novamente para que ouvissem. Decidiram investigar a causa. Bastou cavarem um pouco para descobrirem um buraco fundo como um poço, repleto de mel até a borda. Desistiram de cortar lenha e decidiram coletar e vender o mel.

Como queriam retirar tudo o mais rápido possível, pediram para Hassee’boo entrar no poço e ir recolhendo o mel, que seria colocado em vasos e levado para ser vendido na cidade. Trabalharam por três dias seguidos e ganharam muito dinheiro.

Quando sobrou apenas um pouco de mel no fundo, pediram que o menino retirasse tudo o que restava e foram buscar uma corda para içá-lo de volta. Mas a verdade é que os quatro decidiram deixar o menino no buraco e dividir o dinheiro. Quando Hassee’boo acabou de juntar o mel, gritou para que lançassem a corda, mas não obteve resposta. Após três dias sozinho no poço, finalmente entendeu que fora abandonado por seus companheiros.

Os quatro lenhadores foram até a casa da mãe de Hassee’boo e disseram que o menino tinha se separado deles na floresta. Chegaram a afirmar que ouviram o rugido de um leão. Garantiram ter procurado o menino, porém não encontraram nenhum rastro dele nem do burro.

A mãe de Hassee’boo chorou muito, como era de se esperar, e os quatro vizinhos ficaram com todo o dinheiro. Enquanto isso, o menino andava pelo fundo do buraco em busca de uma saída, comendo restos de mel, dormindo e pensando no que fazer.

No quarto dia, enquanto pensava, viu um grande escorpião no chão e o matou.

Imediatamente algo lhe ocorreu:

— De onde veio esse escorpião? Deve haver uma abertura em algum lugar. Vou tentar encontrá-la.

Olhou em volta até perceber um pequeno facho de luz que surgia de uma fresta minúscula. Apanhou sua faca e escavou até abrir um buraco largo o suficiente para que pudesse passar. Atravessou a abertura e saiu em um local que nunca havia visto antes.

Notou uma trilha à sua frente. Seguiu por ela até encontrar uma casa muito grande, cuja porta estava entreaberta. Lá dentro, viu que as portas eram douradas e tinham chaves de pérola nas fechaduras, também douradas. A casa estava cheia de lindas cadeiras incrustadas de joias e pedras preciosas. Na antessala, encontrou um sofá coberto por uma colcha deslumbrante e se deitou para descansar.

Assim que adormeceu, alguém o colocou em uma cadeira. Acordou com uma voz dizendo:

— Não o machuque, vamos acordá-lo suavemente.

Abriu os olhos e se viu cercado por várias cobras. Uma delas tinha cores muito vivas.

— Olá! Quem é você?

— Sou Sulta’nee Waa’ Neeo’ka, rei das cobras. Esta é minha casa. E você, como se chama?

— Eu sou Hassee’boo Kareem’ Ed Deen’.

— De onde veio?

— Não sei de onde eu vim, nem para onde vou.

— Bem, não se preocupe com isso agora. Vamos comer. Imagino que esteja com fome. Eu estou, pelo menos.

O rei ordenou que seus criados trouxessem comida. Foram servidas lindas frutas. Todos comeram e beberam enquanto conversavam.

Ao final da refeição, o rei quis saber mais sobre Hassee’boo. O menino contou tudo o que havia acontecido até então. Depois pediu ao anfitrião que falasse um pouco de si.

— Minha história é um tanto longa, mas posso lhe contar. — disse o rei das cobras. — Há muito tempo, saí desta casa e fui morar nas montanhas de Al Kaaf. Queria mudar de ares. Um dia encontrei um estranho que passava por ali e perguntei a ele:

“De onde você é?”

“Estou vagando pelo deserto”, ele respondeu.

“E quem é seu pai?”

“Meu nome é Bolookee’a e meu pai era um sultão. Quando ele morreu, encontrei um pequeno baú, dentro do qual havia uma bolsa com uma caixinha de latão. Nessa caixinha encontrei um pergaminho guardado dentro de um pano de lã. O texto falava sobre um profeta. Dizia tantas coisas boas e maravilhosas a seu respeito que tive vontade de conhecê-lo. No entanto, quando comecei a perguntar às pessoas sobre ele, me disseram que ainda não havia nascido. Então jurei que andaria pelo mundo até encontrá-lo. Deixei minha cidade e minhas propriedades. Desde então estou vagando, mas ainda não o encontrei.”

“E onde você espera achar esse homem, se ele ainda não nasceu?”, perguntei ao andarilho. “Se você tivesse um pouco de água de serpente, conseguiria se manter vivo até encontrá-lo. Mas talvez seja um conselho inútil, pois não há água de serpente nessas redondezas.”

“Bem, devo continuar minha jornada. Adeus.”

E assim nos despedimos e ele seguiu seu caminho. Andou até o Egito, onde encontrou um homem que também lhe perguntou:

“Quem é você?”

“Me chamo Bolookee’a. E quem é você?”

“Meu nome é Al Faan’. Aonde você está indo?”

“Deixei minha casa e minhas propriedades para procurar o profeta.”

“Ah! Há coisas melhores a se fazer do que procurar um homem que ainda não nasceu. Vamos até o rei das cobras pedir uma poção mágica. Depois, iremos até o Rei Salomão e pegaremos seu anel. Com ele, dominaremos os gênios e os ordenaremos a atender todos os nossos pedidos.”

Nesse momento Bolookee’a disse:

“Eu conheci o rei das cobras na montanha de Al Kaaf.”

“Vamos até lá então”, disse Al Faan’.

Al Faan’ queria o anel de Salomão porque sabia que com ele teria grandes poderes mágicos: controlaria os gênios e os pássaros. Bolookee’a queria apenas conhecer o grande profeta.

“Tudo bem”, concordou Bolookee’a.

Os dois levaram uma armadilha até Al Kaaf, dentro da qual colocaram um copo de leite e outro de vinho. Eu caí na armadilha como um tolo. Entrei na gaiola, bebi todo o vinho e fiquei bêbado. Os dois então fecharam a porta e me levaram.

Quando recuperei os sentidos, vi que estava preso e era carregado por Bolookee’a. “Não se pode confiar nos filhos de Adão. O que querem de mim?”, perguntei.

“Queremos uma poção para usarmos em nossos pés e caminharmos sobre a água sempre que isso for necessário em nossa jornada”, responderam.

Concordei e disse para seguirmos em frente.

Chegamos a um bosque com muitas árvores. Quando me viram, elas foram dizendo, uma a uma, “Eu sou remédio para isso’”, “Eu sou remédio para aquilo’”, “Eu sou remédio para a cabeça”, “Eu sou remédio para os pés”, até que uma das árvores disse: “Se alguém passar minha seiva nos pés, poderá andar sobre as águas”.

Revelei aos homens o que a última árvore havia me dito. Era o que procuravam. Retiraram uma grande quantidade de líquido de suas folhas e me levaram de volta à montanha. Lá, eles me libertaram e seguiram seu caminho.

Quando enfim alcançaram o mar, usaram a seiva e caminharam sobre a superfície da água. Andaram muitos dias até chegarem nas proximidades do palácio do rei Salomão. Então fizeram uma parada para que Al Faan’ preparasse suas poções.

Ao entrarem no palácio, encontraram o rei Salomão dormindo e a mão com o anel estava apoiada em seu peito. Os gênios do rei vigiavam seu sono.

Bolookee’a se aproximou e um dos gênios disse:

“Aonde você vai?”

“Vim aqui com Al Faan’, e ele vai pegar o anel do rei.”

“Vá embora”, respondeu o gênio. “Saiam daqui, ou seu amigo morrerá.”

Al Faan’, já com suas poções prontas, pediu para Bolookee’a apenas esperar. Aproximou-se do rei para pegar o anel, mas deu um grito ensurdecedor e foi lançado por uma força invisível a uma distância impressionante.

Levantou-se acreditando que as poções ainda faziam efeito e correu novamente em direção ao rei. Uma forte rajada de ar soprou sobre ele, reduzindo-o a cinzas instantaneamente.

Uma voz falou a Bolookee’a, que permanecia no mesmo lugar:

“Vá embora. Esta criatura miserável está morta.”

O andarilho fugiu do palácio e, quando chegou novamente à praia, colocou a poção em seus pés para atravessar as águas. Continuou vagando pelo mundo por muitos anos.

Em uma de suas andanças, certa manhã, encontrou um homem sentado no chão. Após trocarem cumprimentos, Bolookee’a perguntou:

“Quem é você?”

“Me chamo Jan Shah. E você?”

Bolookee’a se apresentou e quis saber a história de seu novo amigo. O homem, que ora chorava, ora sorria, fez questão de que o andarilho contasse a sua primeiro. Após ouvi-la, começou:

“Sente-se comigo e contarei minha história do começo ao fim. Meu nome é Jan Shah. Meu pai é Tooeegha’mus, um grande sultão. Ele costumava caçar na floresta todos os dias. Certa vez, pedi para que me levasse junto. Ele disse não, que seria melhor eu ficar em casa. Chorei bastante e como meu pai me amava muito, por eu ser filho único, não suportou me ver naquele estado e consentiu que fosse caçar com ele.

“Entramos na floresta acompanhados de vários criados. Chegamos ao acampamento, comemos e nos dividimos em grupos.

“Seguimos, eu e mais sete escravos, até encontrarmos uma gazela. Fomos atrás dela, sem conseguir capturá-la, até chegarmos ao mar. O animal entrou na água e, junto com mais quatro escravos, continuei perseguindo-o de barco. Os outros três voltaram e se reuniram ao grupo de meu pai. Conseguimos apanhar a gazela, mas tivemos de nos afastar bastante da costa. Então fomos pegos por um forte vento, que nos desviou do caminho, e nos perdemos.

“Um dos três escravos que voltaram contou a meu pai sobre a gazela e o barco. O sultão começou a gritar que seu filho havia se perdido e, ao retornar à cidade, decretou luto por considerar que eu estava morto.

“Enfim conseguimos chegar a uma ilha com muitos pássaros. Encontramos frutas e água doce. Após comermos, subimos em uma árvore e dormimos até a manhã seguinte.

“Remamos até outra ilha deserta. Como na anterior, colhemos frutas e dormimos em uma árvore. Durante a noite, ouvimos vários animais selvagens uivando e rugindo perto de nós.

“Quando amanheceu, saímos de lá o mais rápido possível. Chegamos a uma terceira ilha. Ao procurar comida, encontramos uma árvore cheia de frutos parecidos com maçãs. Ao nos aproximarmos, ouvimos uma voz que dizia para não tocarmos na árvore, pois ela pertencia ao rei. Então avistamos vários macacos vindo em nossa direção. Pareciam muito contentes em nos ver. Deram-nos muitas frutas, as quais comemos até nos saciar.

“Um dos macacos propôs ao seu grupo que eu fosse nomeado sultão. Outro respondeu que de nada adiantaria, pois já na manhã seguinte iríamos embora. Um terceiro argumentou que não conseguiríamos fugir se eles destruíssem nosso barco. E de fato, ao nos preparamos para ir embora no dia seguinte, nossa embarcação estava em pedaços. Só nos restava continuar na ilha com os primatas, que pareciam gostar muito de nós. 

“Certo dia, enquanto eu caminhava, encontrei uma grande casa com uma inscrição na porta: Qualquer um que vier a esta ilha terá dificuldades em deixá-la, pois os macacos estão em busca de um homem que seja seu rei. Tal homem pensará que não há como fugir daqui, mas há uma saída ao norte. Ao seguir nessa direção, encontrará uma grande planície repleta de leões, leopardos e cobras. O homem deverá lutar com todos eles e, se vencê-los, poderá continuar. Então chegará a outra grande planície, habitada por formigas ferozes, com dentes afiados e do tamanho de cães. Também deverá vencê-las, somente então o caminho estará livre.

“Conversei com meus criados sobre o que fazer, e decidimos que, se fôssemos morrer de qualquer jeito, melhor seria fazê-lo na luta por nossa liberdade.

“Estávamos todos armados e nos pusemos a caminhar. Chegamos à primeira planície e enfrentamos os animais. Dois escravos foram mortos. Na segunda planície, lutamos com as formigas e mais dois criados morreram. Consegui escapar sozinho.

“Perambulei por muitos dias, comendo o que encontrava, até enfim chegar a uma cidade. Lá fiquei por algum tempo em busca de trabalho, mas sem sucesso.

“Um dia um homem veio até mim e perguntou se eu procurava uma ocupação. Ao responder que sim, ele me chamou para sua casa.

“Ao chegarmos lá, ele me mostrou uma pele de camelo e pediu que eu a vestisse. Segundo ele, se eu fizesse aquilo, um grande pássaro me carregaria até uma montanha distante. Uma vez no topo, o tal pássaro arrancaria minha pele de camelo e eu teria de afundar no chão as pedras preciosas que encontrasse. Quando todas as pedras estivessem enfiadas na terra, o homem viria me buscar.

“Tal como ele disse, vestiu-me com a pele e um pássaro veio e me levou até a montanha. Estava prestes a me devorar, mas eu me desvencilhei e o afugentei. Afundei muitas pedras preciosas e então chamei o homem para me tirar dali, mas ele nunca veio.

“Julguei que logo estaria morto e andei por muitos dias por uma enorme floresta, até encontrar uma casa. Era habitada por um velho, que me alimentou até que eu recuperasse minhas forças.

“Fiquei lá por muito tempo. O velho se afeiçoou a mim como se eu fosse seu filho.

“Um dia ele teve de sair e me deixou com um molho de chaves. Disse que eu poderia abrir qualquer porta da casa, exceto uma, que me mostrou apontando o dedo.

“É claro que foi a primeira porta que abri assim que ele saiu. Do outro lado vi um grande jardim onde corria um riacho. Três pássaros pousaram em uma de suas margens e imediatamente se transformaram nas mulheres mais lindas que eu já vi. Observei-as enquanto se banhavam. Depois elas se vestiram novamente, voltaram a se transformar em pássaros e saíram voando.

“Tranquei a porta e saí da casa. Não tinha fome e perambulei sem destino. Quando o velho voltou, percebeu algo estranho e me perguntou o que havia de errado. Contei a ele sobre as lindas moças e disse que estava apaixonado por uma delas. Se não pudesse me casar com ela, certamente morreria.

“‘Impossível’, disse-me o velho. As três donzelas eram filhas do sultão dos gênios e a viagem até a casa delas era uma jornada de três anos.

“Respondi que não me importava. Eu tinha de tornar minha esposa a moça pela qual havia me apaixonado, disso dependia minha vida. Ele então me disse para esperar até que elas voltassem. Eu deveria me esconder enquanto estivessem na água e roubar as roupas da minha amada.

“Assim fiz. Quando voltaram para outro banho, roubei os trajes da irmã mais nova, que se chamava Sayadaa’tee Shems.

“Como esperado, ela saiu do riacho e procurou por suas roupas, sem saber o que estava acontecendo.

“Então eu me apresentei e disse que estavam comigo. Implorou-me para que as devolvesse, pois precisava ir embora. Declarei meu amor e disse que queria me casar com ela. Insistiu dizendo que queria voltar para o seu pai. Respondi que não a deixaria partir.

“Após suas irmãs partirem voando, eu a levei para a casa. O ancião celebrou nosso casamento e me aconselhou a esconder suas roupas, pois se ela as encontrasse, voaria novamente para longe. Cavei um buraco fora da casa e as enterrei.

“Um dia, precisei sair de casa e Sayadaa’tee aproveitou-se de minha ausência, desenterrou as roupas e as vestiu. Mandou seu escravo me avisar que ela havia partido. Também mandou dizer que se eu realmente a amasse deveria ir atrás dela.

“Ao voltar para casa, soube de sua fuga e saí à sua procura. Perambulei por muitos anos até chegar a uma cidade. Um dos moradores quis saber meu nome e quem era meu pai. Respondi que era Jan Sha, filho de Taaeeghamus. Perguntou-me então se eu era o marido de sua senhora. A ouvir o nome dela, Sayadaa’tee Shems, gritei extasiado que sim, era eu mesmo. 

“Levaram-me até ela. Fui apresentado ao seu pai e ela revelou que havíamos nos casado. Todos ficaram felizes.

“Decidimos então visitar nossa velha casa. Um dos gênios de seu pai nos carregou até lá, em uma viagem de três dias. Ficamos na casa por três anos, depois retornamos, e pouco tempo depois de nossa volta minha esposa morreu. Meu sogro me ofereceu outra de suas filhas em casamento como consolo, mas eu estava desolado. Desde então, estou de luto. Essa é minha história.”

E Bolookee’a então seguiu seu caminho, andando sem destino, até morrer.

Sultaanee Waa Neeoka concluiu seu relato dizendo a Hassee’boo:

— Agora, quando você regressar à sua casa, você me matará. 

Hassee’boo ficou indignado ao ouvir aquilo:

— Eu jamais o machucaria, sob nenhuma circunstância. Por favor, me ajude a voltar para casa.

— Mandarei você de volta à sua cidade, — prometeu o rei — mas é certo que você voltará para me matar.

— Eu não seria tão ingrato! — exclamou Hassee’boo. — Juro que jamais farei mal a você.

— Então lembre-se de uma coisa. — pediu o rei das cobras — Quando estiver em sua cidade, não tome banho em lugares com muitas pessoas.

— Me lembrarei, pode deixar. — assegurou Hassee’boo.

O rei então o levou de volta para casa de sua mãe, que ficou radiante ao ver Hassee’boo vivo. 

O sultão da cidade onde vivia Hassee’boo estava muito doente. Seus conselheiros decidiram que a única cura para o soberano seria uma sopa feita com o rei das cobras.

O vizir do sultão, por razões que só ele conhecia, colocou soldados a postos em todos os banhos públicos da cidade, com instruções para capturar qualquer um que aparecesse para se banhar e tivesse uma marca na barriga.

Apenas três dias após ter voltado à sua cidade, Hassee’boo, completamente esquecido do aviso de Sultaanee Waa Neeoka, foi ao banho com outras pessoas. Acabou capturado pelos soldados e levado ao palácio, onde o vizir lhe disse:

— Leve-nos à casa do rei das cobras.

— Não sei onde fica. — respondeu Hassee’boo.

— Amarrem-no! — ordenou o vizir.

Hassee’boo foi amarrado e açoitado até suas costas ficarem em carne viva. Incapaz de suportar a dor, finalmente cedeu:

— Já chega! Eu os levarei aonde quiserem.

Então guiou os soldados até a casa do rei das cobras. Sultaanee Waa Neeoka recebeu-o com a frase:

— Não disse que você voltaria para me matar?

— E o que eu poderia fazer? — justificou-se Hassee’boo. — Veja o que fizeram com minhas costas!

— Quem lhe infligiu esse horror? — perguntou o rei.

— O vizir.

— Então não há esperanças para mim. Mas você mesmo deverá me carregar.

Durante o trajeto, o rei disse a Hassee’boo:

— Serei morto e cozido quando chegarmos à sua cidade. O vizir lhe oferecerá a primeira tigela da minha sopa, mas não a beba. Guarde-a em uma garrafa. Você deverá beber a segunda tigela, que o transformará em um grande médico. A terceira tigela será a cura para a doença do sultão. Se o vizir perguntar se você tomou da primeira tigela, confirme. Mostre a ele a garrafa com a sopa e diga: “Esta é da segunda tigela. É para você”. O vizir morrerá ao bebê-la, e assim ambos teremos nossa vingança.

Tudo ocorreu conforme o rei disse. O vizir morreu, o sultão se recuperou e Hassee’boo se tornou um grande médico, muito querido por todos.

(conto por George W. Bateman)

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.