segunda-feira, 29 de maio de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 2 –

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 84

As caminhadas são verdadeiras crônicas onde um mosaico de situações, de paisagens, de pensares são arrolados no espaço de tempo de uma hora ou pouco mais. Suficientes para que os olhos clínicos, assessorados pela caneta e o papel, apreendam os matizes do trecho.

A romaria começa registrando flores do casario que se estende até a mata logo adiante. E então as pandelícias do caminho - o riacho bombeando entre os verdes, o esquilo trêfego (
esperto) saltitando na galharia, o canto veraneiro do sabiá.

Adelante. O banhadinho das saracuras, o campito dos quero-queros, as ciliares fartas de flores silvestres. Aqui as araucárias, lá céu azul. A cascata cascateando . . .

O pequeno mundo é um vasto mundo, vívido, vigoroso, verdadeiro. Onde se anda a natureza é inspiração e poesia. E a vida de viandante lembra das palavras do poeta: " Vivo matizado de matizes. O viver é colorido".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Coelho Neto (A flauta e o sabiá)

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão (
verniz negro ou vermelho), jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola, suspensa do teto, morava um sabiá.

Estando a sala em silêncio e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma volata (
sequência modulada de tons rapidamente executados).

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar (
rir com escárnio) no estojo, como a zombar do modulo cantor silvestre.

— De que te ris? – indaga o pássaro.

E a flauta, em resposta:

— Ora esta ! Pois tens coragem de lançar tais guinchos diante de mim ?

— E tu quem és? Ainda que mal pergunte.

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Marsyas*, lutou com Apolo e venceu-o, por isso o deus, despeitado, imolou-o. Lê os clássicos.

— Muito prazer em conhecer. Eu sou um mísero sabiá da mata. Pobre de mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me: que fazes tu ?

— Eu canto.

— O oficio rende pouco. Eu que o diga, que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar — e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, me não houvessem escravizado — se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta ! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

— Que eu cante...?!

— Pois não te parece justo o meu pedido?

— Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha voz acompanha os hinos sagrados nas igrejas. Ao ritmo dos meus delicados trilos bailam as damas, guiam-se as endeixas das serenatas de amor, ao luar. O meu canto é a harmoniosa Inspiração dos gênios da rapsódia sentimental do povo.

— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

— Isso agora não é possível.

— Não é possível! Por que?

— Não está cá o artista.

— Que artista?

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso lazer.

— Ah! É assim...?

— Pois como há de ser?

— Então, minha amiga — modéstia à parte — vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia.

Assim, da tua vangloria há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não  se movem se os não amparam, não cantam se lhes não dão sopro, não sobem se os não empurram.

O sabiá voa e canta — vai à altura, porque tem asas; gorjeia, porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio os que mais alegam triunfos.

Flautas, flautas . . . Cantas nos paços e nas catedrais. Pois vem daí a um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se o sabiá cantar e a flauta de prata no estojo de veludo... moita (fica calada)! Faltava-lhe o sopro.
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* Marsyas = Na mitologia grega, Marsyas é um sátiro frígio, que passa a se considerar um músico tão perfeito que desafia Apolo para uma competição, sendo que o vencedor teria o direito de punir o perdedor. Apolo vence, Marsyas é amarrado a uma árvore e esfolado vivo. Do seu sangue, nasce o rio Marsyas, na Frígia. Algumas vezes, Marsyas é substituído por Pan, no episódio da competição com Apolo. O mito simboliza a superioridade da cultura grega (representada pela lira de Apolo) em relação à cultura da Ásia Menor (representada pela flauta de Marsyas). (wikipedia)

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 14

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Quem raiva de mim tiver,
grande paixão há de ter,
há de ladrar como cão,
mas sem lograr me morder.
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0 cachorro está latindo
lá pra banda do chiqueiro;
— Cala a boca, cachorrinho,
não sejas mexeriqueiro.
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Cachorro que late grosso
é bonito, quando acua.
Um amor, quando é de gosto,
ai, meu Deus, que coisa boa!
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Todo animal traiçoeiro
onde pastou, quer pastar:
Quando eu saio dos teus braços
é já pensando em voltar.
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Menina, minha menina,
como estás tão bonitinha...
No reino do céu se vejam
tua mãe, tua madrinha.
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A batata, quando nasce,
deita a raiz pelo chão.
Menina quando se deita
bota a mão no coração.
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Não tem confiança em si
estas meninas de agora...
Entregam-se, corpo e alma,
ao primeiro que as namora.
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Menina, aproveita o tempo,
quem espera, desespera,..
Olha que o tempo perdido
nunca mais se recupera...
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Menina não tenhas pressa
tua hora de chegar
Tu tens tempo de escolher,
vai com tempo e devagar...
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Estas meninas de agora
só querem é namorar.
Botam panelas no fogo
e não sabem temperar.
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Menina, rainha menina,
minha flor de cananeia,
tu nasceste neste mundo
pra seres minha teteia.
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Menina, diz-me o teu nome
e também tua morada,
eu tenho um cavalo gordo
e um galope não é nada...
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Menina da saia branca
já não falas com ninguém;
Quando a saia se romper,
fala comigo, meu bem.
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Esta menina faceira
com todos dizem que manga,
comigo é perder seu tempo
inda que chore pitanga!
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A pimentinha mordida
rabeia, desesperada,
e assim certa menina
quando fica despeitada.
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Lá se vai o sol entrando
deixando raios atrás.
Tanta morena bonita,
que pena eu não ser rapaz!
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Laranjeira ao pé da porta,
na cama me vai o cheiro.
Tanta mocinha bonita
Para mim que sou solteiro!
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No alto daquele morro,
passa boi, passa boiada,
também passa a moreninha
da trancinha cacheada.
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Morena, minha morena,
não tenhas pena do chão...
Tomara achar quem me diga
onde viu mais perfeição.
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Cajueiro pequenino,
carregadinho de flor,
eu também sou pequenina
carregadinha de amor...
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Moreninha, doce de ovos
não se come sem canela...
Quem é gente de bom gosto
não pode passar sem ela...
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0 teu rosto de morena
levemente tem a cor,
para o poder comparar
não encontro uma só flor.
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As morenas da Bahia
todas têm um certo quê,
temperam a vida da gente
como à moqueca o dendê.
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Morena, você me mata
com essa graça que tem;
Você fica criminosa
e eu sem você, meu bem!
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Uma morena bonita
não precisa mais rezar:
Basta o encanto que tem
pra sua alma se salvar.
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Menina quando eu te vi
despedir, sem me falar,
me fugiu a cor do rosto -
e o coração do lugar.
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Em mortalha de papel
fumo verde não fumega,
onde há moça bonita
meu coração não sossega.
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Quem me dera ser a seda,
depois da seda o cetim,
para andar de mão em mão,
As moças pegando em mim.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

A. A. de Assis (Bona > Bõa > Boa )

O til – o risquinho fanhoso – nada mais é que um pequenino “n”

Recentemente falei da cedilha. Um amigo carioca, Renato Alves, poeta e professor, chamou-me a atenção para outro sinal gráfico, o til (~), que tem igualmente uma historinha bem interessante.

O til – aquele risquinho fanhoso que parece uma pequena onda – é nada mais que um pequenino “n” – um n-zinho. Em espanhol ele é colocado em cima do “n” para produzir o som “nh”: “España, mañana. Em português é usado para nasalizar vogais: botão, corações.

O til acompanhou a evolução do nosso idioma. Uma das especulações a respeito diz que seus inventores foram uns monges copistas que trabalhavam em conventos na Espanha e em Portugal. Por alguma razão, costumavam colocar o “n” em cima da vogal anterior em palavras como “chão” (planus > chano > chão); “mão” (manus > mano > mão). Uma forma de abreviatura, mais ou menos como se faz hoje no internetês: pq, vc, ñ, bjs.

Na história da língua portuguesa há incontáveis exemplos de transformação do “n” em til. Lembremos alguns: cidadanus > cidadano > cidadão;  germanus > hermano > ermano > ermão > irmão; vulcanus > vulcão; canes > cães; panes > pães; leones > leões.

Em alguns casos, a evolução chegou à desnasalização: “bona” virou “bõa, que depois virou “boa”. Deu-se o mesmo com persona > persõa > pessoa; corona > corõa > coroa; plena > chena > cheia; arena > areia; luna > lua.

Ficou claro? Então tá. Porém, como um assunto puxa outro, vem-me à lembrança uma polêmica ainda não suficientemente resolvida, embora os gramáticos, para amenizar a briga, digam que as duas formas estão corretas: /Roráima/ ou /Rorãima/? Vamos conferir.

A fonética geralmente obedece às tendências naturais do nosso aparelho fonador, que por sua vez obedece à “lei do menor esforço” (lex minoris conatus). Por uma dessas tendências naturais, as consoantes nasais “m” e “n” contagiam a vogal que venha atrás delas. Assim é que, por exemplo, na palavra “cOmo” o primeiro “o” soa nasal, enquanto o segundo soa oral. Dá-se o mesmo com “drAma”, “trEme”, “sOno”, “pOmo”, ‘mÍni”, “hÚmus”, “mÚnus”. “Muito” talvez seja o único caso em que o “m” nasaliza a vogal posterior a ele.

Nos ditongos (vogal + semivogal), a consoante nasal nasaliza a vogal (o fonema mais forte): ”paina” /pãi-na/. Nos hiatos (vogal + vogal), é nasalizada a vogal mais próxima do “n” ou do “m”: “Janaína” /Ja-na-ÍN-na/, “Coimbra” /Co-IM-bra/.

Mas voltemos a Roraima (que significa “Montanha Verde”). Os roraimenses pronunciam /Roráima/, aliás amparados até numa norma estabelecida pela Assembleia Legislativa. Parece que em todo o Norte e Nordeste há também preferência por essa forma. Nas demais regiões, todavia, a pronúncia mais frequente tem sido /Rorãima/, tal como ocorre com “Bocaina” /Bocãina/, “faina” /fãina/, “aplaina” /aplãina/, “amaina” /amãina/, “andaime”  /andãime/ e outras tantas.  

Para concluir: você diz /bá-nã-na/ ou /bã-nã-na/? E chama o Jaime de /Jáime/ ou de /Jãime/?

Lembra-se do padre Zanettini? Ele chamava Dom Jaime de /Dom Jãime/.

Fonte:
Jornal do Povo – Maringá – 09.3.2023, obtido no facebook do autor

Minha Estante de Livros (Despertar dos Deuses, de Isaac Asimov)


Despertar dos Deuses (The Gods Themselves) é uma obra de Isaac Asimov, famoso escritor de ficção científica, publicada em 1972. O livro é divido em três passagens distintas que, apesar de fazerem parte da mesma narrativa, possuem muitas diferenças em sua estrutura.

O título do livro e o título de suas três partes teriam sido inspirados na citação de Friedrich Schiller (1759–1805): "Contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão".

Enredo

O livro narra um estranho acontecimento, quando cientistas descobrem que uma amostra de Tungstênio-186 foi estranhamente trocada por outra de Plutônio-186. Acontece que o Plutônio-186 não é estável e nem mesmo possível, segundo as leis da física conhecidas, e por isso, em pouco tempo o elemento perde a sua estabilidade e começa a liberar radiação. O radioquímico Frederick Hallam cria a teoria de que este elemento teria vindo de um outro universo, onde as leis da física pudessem aceitar a existência do mesmo. O elemento ao chegar ao nosso universo seria capaz de se manter estável, por trazer parte de seu verdadeiro universo, mas com o tempo, o nosso universo conseguia fazer valer suas leis sobre ele e o Plutônio-186 se desestabilizava.

Através das experiências de trocas dos elementos, os cientistas recebem placas enviadas por seres deste "outro universo" (Universo Paralelo), onde eles descreviam como criar uma máquina que faria a troca de elementos dos dois lados, recebendo a Terra o Plutônio-186, e enviando para eles o Tungstênio-186 (assim como Plutônio-186 em nosso mundo, o Tungstênio-186 seria instável e radioativo no Para-Universo). Esta máquina (chamada de "Bomba Eletrônica") seria capaz assim de criar energia radioativa cíclica e infinita, para os dois lados.

Dr. Peter Lamont, que estava trabalhando em um artigo sobre a história da Bomba de Elétrons, chega a conclusão de que tal Bomba traria a ruína ao nosso universo. Com a troca constante de "leis" entre ambos os universos, suas regras se misturariam e tudo que faz o nosso universo funcionar como é, aos poucos se desestabilizaria. Isto foi previsto pelo Dr. Hallam, mas a prazos de bilhões de anos. De acordo com Denison, podia acontecer em menos de cem anos.

UM LIVRO, TRÊS HISTÓRIAS

1. Contra a estupidez...

A primeira parte narra a descoberta do Plutônio-186 e a criação da Bomba Eletrônica, sendo o Dr. Frederick Hallam aclamado como o pai do projeto. Mas o que parecia ser uma solução perfeita para os problemas de energia da Terra, poderia significar uma grande desgraça. Investigando os fatos e indivíduos envolvidos em torno da criação da Bomba Eletrônica, o jovem Dr. Peter Lamont chega a conclusão de que esta poderia significar a aniquilação do Universo. Ele passa a investigar a tradução das placas enviadas pelos seres do Universo Paralelo com a ajuda de um perito linguístico, Dr. Myron Bronowski. A situação complica-se quando começam a surgir placas com mensagens de que a Bomba seria perigosa, ao mesmo tempo que os esforços de Lamont em provar sua teoria da possível destruição não se veem reconhecidos.

2. ...Os próprios deuses...

A parte mais fantástica do livro, narra sobre o Universo Paralelo, um mundo habitado por seres fantásticos, de natureza completamente diferente da vida encontrada na Terra.

Estes Seres estariam divididos em 2 grupos em seu mundo, os "Suaves" e os "Duros".

Os Suaves são seres mais simples, de composição maleável, capazes de modificar suas formas (alguns até em formas gasosas). Os Suaves deviam se reunir em trindades (Tríades), sendo que cada ser da tríade possuía um tipo de personalidade que representava um dos 3 papéis existentes em seu mundo:

– Emocionais: eram a porção feminina da Tríade, os mais sutis e sensíveis, reunindo em si os sentimentos, emoções e preocupações.

– Parentais: representavam o lado instintivo da Tríade, responsáveis pela gestação, criação e educação dos filhos, a medida que nascem.

– Racionais: a parte intelectual do trio, com a capacidade de aprendizado, intelecto e raciocínio muito aguçados.

Os Duros representam a elite da sociedade destes Seres, possuindo seus corpos mais sólidos e consistentes, sendo inteligentíssimos e responsáveis pela evolução do mundo. Para os Suaves, os Duros eram dignos de todo respeito, e a origem deles dentro de sua espécie nunca foi uma coisa muito clara (este fato é explicado mais adiante nesta parte do livro).

Na História temos Dua, a Emocional, que fazia parte de uma Tríade com Odeen, um Racional e Tritt, um Parental. Dua era considerada uma Esquerda-Em, por ser uma Emocional com grande capacidade intelectual e por compreender os assuntos dos Racionais. No decorrer da história, Dua começa a tomar ciência sobre as verdadeiras intenções e implicações da Bomba Eletrônica, e se vê na tentativa de impedir o seu uso.

3. ...Disputam em vão?

O desfecho do livro é protagonizado pelo Dr. Benjamin Allan Denison (ex-colega de Frederick Hallam, e que foi ridicularizado por este, na época primeira da descoberta da amostra de Plutônio-186). Denison viaja até a Lua, procurando na colônia selenita um recomeço para sua carreira que fora destruída na Terra por Hallam. Lá conhece Selene, uma selenita que serve de guia a ele no diferente ambiente lunar. Logo, Denison vê-se novamente envolvido com os problemas da Bomba Eletrônica e se torna a peça chave para explicar as teorias que comprovam seu perigo e por elaborar uma possível solução para todo o problema.

Fonte:
Wikipedia

domingo, 28 de maio de 2023

Adega de Versos 106: Renato Alves

 

Hans Christian Andersen (O caminho espinhoso da glória)

A  velha lenda do "Caminho espinhoso da glória" fala-nos de um atirador que chegou, por fim, obter honras e dignidades, mas somente o alcançou depois de uma longa série de desgostos e combates perigosos. Ouvindo a lenda, quem não se lembrará do seu próprio caminho ignorado, mas cheio de espinhos, e dos inúmeros reveses que padeceu?

Lenda e realidade limitam uma com a outra: mas enquanto a lenda encontra aqui mesmo na terra a sua solução harmoniosa, a realidade aponta as mais das vezes para além da vida terrena - para as eras por vir, para a eternidade.

É a História Universal uma lanterna mágica que nos mostra em diapositivos, sobre o fundo sombrio do presente, de que maneira os benfeitores da humanidade , os mártires do gênio, peregrinam pelo caminho espinhoso da honra e da glória.

Vindo de todas as épocas, de todos os países, chega até nós o fulgor dessas imagens: e, ainda que rutilem por um só instante, cada uma delas representa uma vida inteira, uma vida de lutas e vitórias.

Vejamos, em um rápido volver de olhos, alguns dos mártires dessa multidão, que só se extinguirá quando o globo terrestre se desfizer em pó.

Lá está o anfiteatro completamente  cheio. Aristófanes, nas Nuvens, despeja torrentes de ironia e de escárnio sobre o povo. No palco é metido a ridículo, física e moralmente, o homem mais notável de Atenas, aquele que foi o esteio e amparo do povo contra os trinta tiranos -Sócrates, que na confusão da batalha salvara Alcebíades  e Xenofonte, e cujo espírito se elevou acima dos deuses da antiguidade. Ele está presente. Levanta-se no banco dos espectadores, para que o público, que ri ,possa confrontar o original com a caricatura do palco, e verificar por si o grau de semelhança entre um e outra. E ali está o filósofo, em frente deles - e muito superior a todos eles.

E é a verde cicuta, a cicuta viçosa e peçonhenta, quem deita a sua sombra sobre Atenas, e não a oliveira!

Sete cidades disputaram a honra de ser o berço de Homero - depois de estar ele morto! Vejamos, porém, como decorreu a sua vida. Lá vai ele, a pé, de cidade em cidade, recitando seus versos, para ganhar a vida. E a preocupação do pão de cada dia lhe encanece cedo a cabeça. É o grande vate, agora cego, tateia em busca do caminho. Agudos espinhos despedaçam o manto do rei da poesia. Seus cantos , porém, continuam vivendo, e é somente por eles que continuam também vivos os deuses os heróis da antiguidade.

E  quadro surge após quadro, já do Oriente, já do Ocidente, distantes entre si no espaço e no tempo, mas representando todos ele um trecho do caminho espinhoso da glória, onde o cardo só rebenta em flores quando chega a hora de adornar o túmulo...

À sombra das palmeiras avançam os camelos , ricamente carregados de anil e de outras preciosidades, que o soberano envia àquelas cujos cânticos despertam a alegria do povo e enchem de glória a pátria.  O homem que a inveja e a mentira tinham atirado ao exílio foi enfim encontrado. Aproxima-se a caravana da cidadezinha onde achara uma asilo. À porta da cidade um cortejo fúnebre detém a caravana: levam um pobre a enterrar. E o defunto pobre é exatamente aquele que iam buscar: Firdusi, que acaba de dar o último passo da sua peregrinação no caminho espinhoso da honra e da glória.

Nos degraus de mármore do palácio da capital portuguesa, um africano de feições rudes, lábios grossos, cabelos pretos e lanosos, estende a mão , mendigando. É o dedicado escravo de Camões. Se não fosse ele, se não fossem as moedas de cobre que lhe atiram os transeuntes, o poeta de Os Lusíadas morreria de fome.

Hoje, que suntuoso  monumento se ergue sobre o túmulo de Camões!

Mais outro quadro.

Por detrás de uma grade de ferro aparece um homem pálido como a morte, de barba longa e emaranhada. E grita:

- Fiz uma descoberta! Fiz a maior descoberta dos últimos séculos! E eles me mantém aqui prisioneiro, há mais de vinte anos!

- Quem é aquele homem?

- Um louco - responde o guarda. - Imagina só quanta coisa a loucura pode inventar! Deu-lhe uma mania: que a gente pode movimentar-se, andar para a frente, por meio do vapor!

Era Salomão de Caus, que descobrira a força do vapor; mas Richelieu não lhe compreendeu a intenção, que ele não explicara com muita clareza. Morreu no hospício.

Lá está Colombo, outrora perseguido e escarnecido pelos moleques da rua, porque pretendia descobrir um mundo novo. E ele o descobriu! No dia do seu regresso triunfante chega até os seus ouvidos o clamor de júbilo que sobe do peito dos homens, e o repique dos sinos das igrejas. não tardará, porém, que os sinos da inveja sobrepujem aqueles. O descobridor de um Mundo, aquele que tirou do mar a terra dourada da América e a deu de presente ao seu rei, recebe em recompensa as correntes de ferro que hão de  agrilhoar. E ele faz  questão de levar essas correntes ao túmulo, porque elas dão testemunho deste mundo e da maneira como os homens avaliam o mérito dos seus contemporâneos.

E um após outro, vão aparecendo os quadros. O caminho espinhoso da glória está cheio.

Lá, na treva da noite, está o homem que mediu os montes da lua, que se arrojou ao espaço infinito, para os astros, para os planetas; aquele gênio poderoso, que entendeu o espírito da natureza e sentiu que a terra se movia sob os seus pés: Galileu. Agora , velho, cego e surdo, aguilhoado pelos espinhos do sofrimento, obrigado abjurar, mal pode levantar o pé - aquele pé que bateu no chão, desesperado, quando viu que ocultavam a verdade, e ele exclamou:

- E contudo, ela se move!

Lá está agora uma mulher, uma mulher com o  espírito de uma criança, cheio de entusiasmo e de fé. É ela quem ergue o pendão à frente do exército em luta, alcançando a vitória e a salvação para a pátria. Alto, bem alto se levanta o clamor de júbilo, e mais alto ainda sobem as labaredas da fogueira: Joana d’Arc, a Bruxa, está sendo queimada. E outro século chegou a cuspir sobre o lírio imaculado. Voltaire, o espírito satírico do bom-senso, decanta a " Pucelle".

No thing, isto é, na sede do tribunal do povo, em Viborg, a nobreza dinamarquesa queima as leis promulgadas pelo rei. Sobem muito alto as chamas, iluminam a época, iluminam o legislador: elas desenham uma auréola lá dentro da escura masmorra da torre onde foi  encarcerado. Encanecido, curvado ao peso dos anos , abrindo com o dedo um sulco na pedra da mesa do popular, amigo do burguês e do camponês - Cristiano II. A história do seu reinado é escrita por inimigos. E não devemos esquecer os vinte e cinco anos que passou na  prisão, ainda que não seja possível apagar a mancha indelével do sangue que ele fez correr.

Lá vai um navio , que deixa a costa dinamarquesa. Encostado ao mastro , um homem lança um último olhar para a Ilha de Hveen. È Tycho Brache. Ele elevou até as estrelas o nome da Dinamarca, e deram-lhe em recompensa humilhações e desgostos. E é por isso que se vai para um país estrangeiro, sempre repetindo:

- Por toda a parte o céu se curva em abóboda acima de mim.  Que mais posso querer?

E o dinamarquês ilustre lá se vai naquele navio; vai viver em país estranho, livre e cercado de honras.

- Ah! Ser livre , embora apenas para padecer as dores insuportáveis do corpo!

É um gemido que ecoa, atravessando as épocas, e chega aos nossos ouvidos. Que quadro! Griffenfeld, o Prometeu dinamarquês, amarrado ao penedo da Ilha de Munkholm.

Estamos agora na América, à beira de um dos maiores rios: ali está reunida uma multidão imensa. Dizem que vai partir dali um navio, arrostando os elementos, os ventos, a intempérie: é Roberto Fulton quem se propõe assim resolver o problema. Começa a viagem, mas de repente o navio para: a multidão ri, apupa, assobia. E o próprio pai do inventor brada:

- Que arrogância! Que loucura! Aí tem ele o que merecia!

E enquanto isso a multidão grita:

- Está louco! Está louco! É preciso prendê-lo!

Mas eis que se parte um preguinho, que tinha por um momento estorvado o andamento da máquina. tornaram a girar as pás, de novo passam pela água, e o navio prossegue a viagem. E a força do vapor vem reduzir a minutos as horas que separavam os continentes.

O gênero humano! Compreenderás tu a bem-aventurança desses instantes de conhecimento partilhado, o sentimento de um espírito compenetrado da sua missão, esse instante em que todo o desespero, todas as feridas rasgadas no caminho espinhoso da glória - até as que vem da própria culpa - se convertem em salvação, em vigor e em claridade? Esse momento em que a desarmonia se muda em harmonia, em que os homens encontram a manifestação da graça divina na criatura e percebem de que maneira esta tudo lhes manifesta?

O caminho espinhoso da glória nos aparece, pois, como uma auréola que fulge ao redor da terra, Três vezes felizes os que foram escolhidos para trilhar esse caminho: aqueles que, sem merecimento próprio, mas pela força da graça, são postos entre o arquiteto da ponte, que é Deus , e a humanidade!

O espírito da História adeja, com asas poderosas, por sobre as épocas; ele anima, consola e desperta ideias suaves, mostrando o caminho espinhoso da glória - esse caminho que não vai acabar, como na lenda, em esplendor e alegria terrena, mas para além deste mundo, nas eras da eternidade.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 31 de Dezembro de 1855.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 14 –

BEIJOS DE MENINO


Te beijarei com beijos de menino
Brincando de sonhar e ser feliz,
Cumprindo minha sorte e meu destino,
De ser do teu destino, um aprendiz.

Te abraçarei com meu melhor afeto,
Com minha inocência mais criança
Que escolhe o seu brinquedo predileto
E nem se preocupa com a esperança.

E te amarei com tanta ingenuidade,
Que quando me bater uma saudade,
Dos tempos do amor mais inocente,

Eu vou cerrar os olhos e sorrir,
Pois quando esse tempo me fugir,
Eu hei de te trazer para o presente
= = = = = = = = = = = = = = = = =

DE RISO EM RISTE

Fingiste não me ver, mas tu me viste...
que triste o teu disfarce... até sorri...
o aceno que te dei, quando te vi,
perdeu-se na alegria que encobriste.

A dor inesperada que eu senti,
tornou-se tão patética... iludiste
teu próprio coração, tu conseguiste
até falar de mim... mas eu ouvi.

Inveja?... falsidade?... o que sentiste?
... ciúme?... onde está teu frenesi?
Agora que estou só, pois já partiste,

meu rosto ri de mim de riso em riste,
Confesso que até me comovi,
Mas já passou assim que tu sumiste.
= = = = = = = = = = = = = = = = =

EN-CANTO

Mesmo sem voar, o passarinho
canta... que mistério há nesse encanto?
... posso vê-lo rir, sentindo o pranto
que acaricia o seu carinho.

Neste mundo há tanto desencanto...
mas quem é feliz sendo sozinho,
sabe que é na solidão do ninho
que o cantar se torna um acalanto.

Lindo!... alguém dirá... Como ele canta!
...sua solidão, embora tanta,
é a mais sincera companhia,

pois, no canto escuro da gaiola,
o cantar mais triste que o consola,
faz o som tornar-se... poesia.
= = = = = = = = = = = = = = = = =

NUMA DOBRA DE JOELHOS

A força invisível é sentida,
A cada vez que a vida enfraquece...
É assim que a energia aparece
Da forma mais sutil... e atrevida.

Então, dentro da dor de uma ferida,
Esse impulso oculto e inexplicável
Rebrota de maneira inefável
E mostra, na esperança, nova vida.

Só Deus pode nos dar esse poder,
Que é tão capaz de nos fortalecer,
Que nem a Medicina o compreende,

Só sabe que além dos aparelhos,
É sempre numa dobra de joelhos
Que a fé do ser humano surpreende.
= = = = = = = = = = = = = = = = =

QUANDO CHEGA O TEMPO

Chega um tempo em que a tristeza só se cura
Com a ternura que ainda habita um coração,
Porque a alma não suporta a amargura
Que perfura a pele dura da razão.

Chega um tempo em que só há uma solução:
Esquecer ou conviver com a dor sentida,
Porque a vida não carece da emoção
De sentir a solidão da própria vida.

Chega o tempo em que qualquer gota de pranto,
Já cansada de traçar o mesmo rumo,
se acomoda em qualquer riso e perde o prumo,

Todavia, basta apenas um encanto,
Que o sonho se esgueira devagar
E alegra a solidão do nosso olhar.
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Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

João do Rio (O Monstro)

- Ah! Eu sou um monstro!

- Palavra?

- E um monstro, meus amigos, que pode confessar os seus apetites sem correr o risco de poder contemplar o mundo através das grades de um cárcere. Eu sou um infame.

Ditas estas palavras, Luciano de Barros estendeu-se, desalentado, no divã e soprou para o ar o fumo do charuto. Era depois de jantar e nós estávamos em casa de Lauriana de Araújo, uma das mais elegantes raparigas, de uma vaga semi-sociedade em falha, sustentada por um velho banqueiro de tavolagens e com grandes pretensões a mulher de espírito e à literatura. Os jantares eram sempre excelentes; o "maitre d'hôtel" irrepreensível, os serviços lindos, e bem se podia notar naquele ambiente, onde o velho banqueiro tinha o bom gosto de não aparecer, que Lauriana de Araújo sabia escolher com arte uma roda de homens citável. Havia nomes da Academia, nomes da alta elegância, o creme das duas casas do Parlamento, e sempre as altas figuras em trânsito propagador. Naquela casa de jantar cor de morango com frisos de faiança representando a glória de Pomonajá tinham estado um embaixador severo e um quase presidente de grande república europeia. Ao acabar os jantares, Lauriana, sempre de rendas brancas, como envolta em espumas, acendia um cigarro e palestrava. Os homens recostavam-se nos divãs e posavam. De vez em quando tocava-se piano. Quase sempre, entretanto, na varanda guarnecida de jasmins, ouvia-se um séptuor (
septeto) de instrumentos de cordas. Era perfeitamente agradável. Ninguém ignorava que a anfitriã amável realizara já uma grande fortuna e que sabia, como ninguém, liquidar em seu proveito o dinheiro alheio sem estrépitos escandalosos. Só como amante de um ministro, obtendo concessões entre beijos, no espaço de três meses arranjara quinhentos contos.

- Farsista! Tu, infame? Tu não passas de um ingênuo... Era o conselheiro Andrade, conhecido por quarenta anos de ceias consecutivas, desde o remoto Rocher de Cancale até os desvairamentos dos "circles" atuais.

- Eu, ingênuo?

- Pois então? Um infame, nunca diz que o é.

- Conforme.

- Afinal, intervinha Lauriana, o Luciano disse que era um monstro quando eu perguntava como compreendia o amor. O Luciano é sempre bizarro. Vai dizer para aí alguma barbaridade e liquida a infâmia.

- É impossível, minha amiga. Por que sou eu o dedicado servidor, e servidor sem interesse, de todas as mulheres? Nunca ninguém me perguntou. E, entretanto, é apenas por um permanente e cruciante remorso. Tenho trinta e dois anos, um físico menos mau, visto discretamente, sou mais inteligente do que o vulgar e tenho algum dinheiro. Para vocês, nada mais banal. Com esses elementos congregados, porém, e com uma alma incapaz de amar e de se dedicar senão à variedade, consigo numa sociedade moderna ser simplesmente o monstro. Como? Ora, como! Fazendo-me amar...

Um prolongado riso correu pelo salão de fumar

O deputado Almerindo quase engasga, o conselheiro Andrade ergueu as mãos ao teto e o célebre poeta acadêmico Clodomir rebolou positivamente no divã. Luciano continuou tranquilo:

- É preciso partir do princípio que toda a mulher ama. Apenas, porém, ama ingenuamente e deixa-se seduzir, deixa-se amar amando absolutamente uma vez na vida: a primeira. As outras paixões são o resultado do cálculo, do egoísmo, da satisfação dos desejos. É ela a sedutora e seja para o bem ou para o mal, para elevar o homem ou para perdê-lo, para sofrer-lhe as pancadas ou fazer-lhe da vida um rosário de beijos, o seu papel moral é sempre o ativo.

- Estás a lançar paradoxos.

- Estou a dizer coisas velhas. Mas o ambiente, o meio, conseguem também matar o primeiro sentimento. O amor é um perfume sutil... Uma pequena de sociedade elevada, mais ou menos culta, sabendo que há de casar com alguém da sua roda, talvez não ame nunca. Uma rapariga atirada desde cedo ao torvelinho dos bailes, das festas e dos flertes é uma lutadora prestes a devorar o seu marido próximo. E mesmo as moças de família modesta, desde cedo obrigadas a uma profissão e ao exercício de encontrar um esposo, entregando-se aos maiores excessos de permissão aos namorados, quase sempre fatais, não sentem o amor...

- O amor morreu.

- O amor é eterno, mas nem todos o podem ver, através da perversão do flerte ou das luxúrias perdidas. E a minha imensa monstruosidade está exatamente em procurar o amor, gozar esse perfume e perdê-lo. É, talvez, muito vago o que estou a dizer, mas é horrível. Ando por todos esses clubes e aborreço as mulheres que arrastam vestidos de contos de réis; percorro os bailes e os "rahuts" com medo das "fliteuses" (
panfletos); frequento as caixas de teatro e em cada mulher que se pende para mim, sinto a falsificação. Que fazer? Percorrer os meios humildes, e descobrir, sobreirritas e sem nada, as crianças que ainda não amaram. Imaginem vocês um homem com todos os instintos de perversão da nossa roda como facilmente pode empolgar uma alma ingênua, seduzida apenas pelo exterior.

Dizem que nas grandes cidades não há o tipo ingênuo, a inocência... A inocência é uma propriedade, uma qualidade que passa, mas existe em toda a parte. Nas classes mais pobres, nos meios mais miseráveis é que se encontra mais a flor da inocência, exposta ao vendaval e guardando o perfume, por um prodígio. Desfolhar essa flor, violentamente, como um sátiro, não é crime - é instinto. Gozá-la naturalmente sem a intenção senão de a gozar - é a natureza. Cercá-la, prendê-la, ir aos poucos aspirando-a, desfolhando pétala por pétala, com refinamento, intenção dupla, consciente e ferozmente - é que é monstruoso. E vocês não sabem, não podem imaginar a fúria de caçador que eu desenvolvo para as encontrar, vocês não concebem o gozo meu ao prelibar (
provar) a volúpia de um beijo de virgem, um beijo sugado na boca ainda não beijada...

Eu vou, eu passo, eu cumprimento. No dia seguinte torno a passar Três dias depois, mando-lhe uma recordação. Tudo é tão simples com os pobres! Dentro em pouco a criaturinha sente-se envolvida numa atmosfera de cuidados e de delicadezas. A princípio é apenas a vaidade. Um homem tão bem vestido, tão distinto, tão fino, que podia ser amado por lindas mulheres da sua ordem... Depois o orgulho, a sensação de que é melhor do que as outras por ter sido a preferida, - orgulho que se perfuma de gratidão, uma vaga, muito vaga sensibilidade. Em seguida, a alegria da intimidade de um ente que não a ralha, que lhe reflete em admirações como um espelho simpático todas as pequenas belezas da sua beleza. Mas, ainda assim, não é amor, é brincadeira agradável, o namoro - o namoro que está para o flerte como a pureza de uma água pura para a falsificação de um vinho mau. Eu persisto, então, continuo, prolongo a grande cena. E de repente a criança sente o ciúme, um doce e ingênuo ciúme que tem zelos até do inanimado, anseia, treme, e ri e chora sem saber por que, toda ela possuída do perpétuo mal da vida. Então, eu sinto no íntimo uma alegria infernal. É o meu esporte, o meu exercício, o meu prazer de homem da cidade. As regras são infalíveis como para todos os jogos, e a vitória sorri-me. Tenho satisfeito o meu desejo?

Não! Ao contrario. É o grande momento, o momento do iniciador. As carícias na mão, puxando essa mão que resiste instintivamente e treme, as carícias nos braços, os contatos fugazes que indicam tudo, um beijo nos cabelos, outro longo, guloso, mordido, na nuca... Gozar as gradações do reconhecimento do gozo, a face que enrubesce, o calor da pele, os olhos que enlanguescem e de repente se dilatam como ao reflexo de um clarão, as frases curtas de negativas... É a fascinação inebriante. Toda a minha tática, entretanto, se faz em torno do que a inocência mais custa a dar: a boca. Eu tenho a nevrose das bocas. Há algumas muito vermelhas. Há outras de um róseo pálido. O movimento da língua passando pelos lábios dá-me crises desesperadas, e certas criaturas quando riem sugerem-me auroras em que eu desejo estancar toda a sede de uma noite em claro, que é a minha vida. Às vezes, o beijo rogado vem de súbito. De outras, a princípio é um leve roçar de lábios, depois uma pressão mais longa, enfim, a absorção, a loucura num ambiente em que mesmo de olhos abertos vejo, sinto, cheiro, ouço toda uma sinfonia rósea dos sentidos...

Na roda, os cavalheiros pareciam um pouco nervosos, e Lauriana batia o leque de sândalo. O conselheiro Andrade, o menos excitado, exclamou, de olhos em alvo:

- Caramba! É uma doença cerebral...

Luciano, de olhos cerrados, parecia em êxtase. Então o poeta indagou:

- E que fazes depois?

- Que faço? Aí tens tu o meu horror. Fico com um grande dó da criança, acaricio-a ainda mais, envolvo-a na jura de um amor infinito, chorando a frieza do meu coração incapaz de amar uma só criatura mais de seis meses. E é o mês dos sofrimentos, em que a vida se me faz dilema: - ou casas com essa rapariga para abandoná-la ou, se a levas contigo sem o casamento, cometes o crime ainda maior de perder-lhe a honra. Então, no silêncio do quarto, pensando nela, vendo-a a todo o instante, soluço, choro, deploro-me, escorcho a alma com a violenta ideia de achar um pretexto para não perdê-la. O amor porem, o amor verdadeiro é um breve perfume da virgindade. É senti-lo e é partir. Eu me debato, mas para que serve? Algumas desvairadas têm vindo até ao desenlace e estão por aí. Outras eu perco de vista, aos poucos, porque mais adiante outras parecem-me ainda em botão.

- Não é muito bonito, mas nada tem de ofensivo.

- Achas?

- Há quarenta anos, sem psicologias malsãs, serias apenas um bandoleiro. Agora, com essa mania de análises das próprias sensações, é que te julgas um monstro.

Luciano de Barros deitou fora o charuto que se lhe apagara entre os dedos.

- Infelizmente, nós somos levianos, nós os homens, em tomo desse grave e doloroso sentimento. Que sou eu? Um homem que borboleteia a sua perversão pelos botões entreabertos da vida. Até é bonito! E quem uma vez sentiu a delícia deliciosa de uma boca virgem que se entrega pela primeira vez, deve ter de mim inveja. Mas, se eu me sinto infame? Ainda agora venho de um caso assim. Era uma pequena de quinze anos, alegre como um pássaro. O seu riso lembrava um chilreio e a sua boca cheirava a rosa. Três meses depois, sincera, nobre, pura, ela amava, amava sem interesse, apesar de paupérrima, sem nunca ter recebido uma dádiva que não fosse inteiramente inútil. Dera-lhe o meu nome, mas ignorava o que eu era, onde morava, qual o meu modo de vida. Amava como se ama aos quinze anos, cegamente, e eu tinha essa sensação meio triste, meio ridícula de me saber amado com um encanto de sonho. Que era ela? Um personagem de conto. Que era eu? O príncipe... A crise do amor na estufa preparada por mim floriu. Talvez eu mesmo estivesse mais apaixonado do que parecia. Propus-lhe a fuga, o rapto. Resistiu com o seu fundo honesto, tanto que lhe propus casamento. Ela sorriu entre lágrimas, erguendo os dois grandes olhos negros. - "Não sabes o que dizes! Somos de condições tão diferentes! Isso é impossível." - "Mas, então, que queres?" - "Nada, não quero nada, coisa nenhuma." Eu voltei, continuei a vê-la, mas insensivelmente, a minha lamentável alma sentia a necessidade do afastamento, querendo conservá-la. Ela continuava tal qual, iluminando o semblante quando me via. Certa vez disse-me: - "As vezes quase não tenho coragem de voltar a casa, com medo de me matar." - "Vem comigo, então." - "Não. Já hoje chorei tanto..." Eu gozava aquele martírio por minha causa, aquela inocência perturbada pela minha figura... Há quinze dias não a vi à janela. Passei no outro dia, e interroguei à vizinhança. Tinham-na levado os padrinhos por causa de umas crises de choro que a definhavam. E eu estou na agonia, a pensar nessa criatura pura e doce.

- D. João, sossega! Hás de ver a pequena casada, como as outras.

- Ou perdida, sentenciou, grave, Lauriana.

Luciano ergueu-se, consertando a gravata branca.

- Ou talvez morta, porque já tem acontecido...

Então, a linda Lauriana sorriu com infinita tristeza.

- Mas não te julgues, com esse exagero de análise e de pretensão, o único monstro, meu caro amigo. A cidade está cheia desses defloradores do amor. A vida é uma luta de sexos. Há criaturinhas que morrem ceifadas em betão (
concreto), depois de levemente aspiradas pelos intelectuais gastos como tu. Há outras, porém, que resistem e ficam como eu.

Houve um prolongado silêncio. Ninguém rira. E, só, Luciano de Barros, muito pálido, diante de um grande espelho, parecia pasmo da própria fisionomia. Fora, o séptuor tocava uma valsa lenta, entre os jasmins.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Dentro da Noite. Publicado em 1910.

Minha Estante de Livros (Doutor Benignus, de Augusto Emílio Aluar)


O Doutor Benignus é um dos livros do português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Aluar, publicado em 1875. É considerado a primeira obra de ficção científica escrita no Brasil.

O texto tem como tema central os questionamentos filosóficos e as andanças pelo interior do país do seu personagem principal, o Dr. Benignas, médico e naturalista.

Apesar de ser um obra ficcional, o texto traz referências precisas à obra de diversos cientistas contemporâneos, entre os quais estão Peter Wilhelm Lund, Camille Flammarion e José Vieira Couto de Magalhães.

Em 1875, Augusto Emílio Zaluar escreveu e publicou no Brasil o romance O Doutor Benignus, influenciado pelas obras iniciais de Júlio Verne, Cinco semanas num balão (1863) e Viagem ao redor da lua (1870), e principalmente por Camille Flammarion, astrônomo francês, que publicou, entre outros, o livro A pluralidade dos mundos habitados (1862), referido explicitamente nas páginas do romance. Publicada no jornal O Globo, em fascículos, a obra é considerada o primeiro romance brasileiro no qual se exprimem claramente as várias convenções do gênero ficção científica, que na época ainda estava em formação: o cientista como protagonista, a máquina de ver o futuro e o primitivo mundo perdido. Esta é, de fato, a primeira obra de literatura fantástica escrita no Brasil.

O livro defende o conhecimento científico como forma de alcançar o progresso, construindo assim a identidade de um país. Escrito com uma visão nacionalista, deixando clara a preocupação em caracterizar o Brasil como um território cuja natureza é rica e exuberante, Benignus, médico e cientista amador, pretende provar que o homem americano teria surgido no Brasil e daqui migrado para outros continentes. Apesar de parecer absurda nos dias atuais, a ideia era debatida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e fundamentada pelo paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801–1880), que defendia essa proposta tomando por base os esqueletos humanos encontrados em cavernas na região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais.

É de se imaginar que uma obra escrita no século XIX traga inconsistências em relação aos conceitos aceitos pela comunidade científica nos dias de hoje, entretanto, a obra faz clara referência à evolução do homem e à seleção natural de Darwin, hoje plenamente aceita, mas que nem sempre foi assim. É bem possível que, durante as semanas em que o romance foi publicado, muitos leitores tenham ouvido falar de Darwin pela primeira vez, buscando posteriormente outras leituras que envolvessem a teoria da evolução.

Esta obra expressa ao leitor o sonho de Benignus: a visita de um ser espiritual proveniente do Sol que o parabeniza por sua “impaciência de saber”, animando-o a infiltrar o bem na alma de seus semelhantes por meio do conhecimento.

sábado, 27 de maio de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 9)

 

Monselhor Orivaldo Robles (Jabuticabas)

Um senhor idoso plantava com carinho uma pequena muda de árvore. Aproximou-se um jovem:

– Que planta é essa?

– Uma jabuticabeira, respondeu o ancião.

– Quanto tempo demora para dar fruto?

– Ah, novinha como está, ainda vai levar uns 15 anos.

– E o senhor espera viver tanto tempo assim? questionou com ironia o moço.

– Não, não creio que eu viva mais tantos anos.

– Então que vantagem o senhor vai ter com esse trabalho?

Com ar de decepção, tornou o velho:

– Só a vantagem de saber que ninguém colheria jabuticabas, se todos pensassem como você.

É uma das mil historietas em circulação na Internet. Provavelmente você já a tenha recebido. Dei com ela na minha caixa postal. Normalmente aciono logo a tecla “Delete”. Desta vez parei a considerar a lição nela contida.

Ao lado de muitas razões de empolgado aplauso, a sociedade atual revela hábitos não exatamente louváveis. Por toda a parte se verificam práticas individuais e coletivas que em nada aprimoram o convívio humano. A começar por um individualismo, que, se não alcançou o ponto extremo, dele anda perto. Vá lá que todos nós, pobres filhos de Adão, feitos do mesmo barro de discutível qualidade, desde o ventre materno sejamos portadores de um egoísmo sem freios. Mas aquilo que, em outras épocas, nos incentivavam a combater como vício, hoje se enaltece como grandeza. Ora, há condutas que, em qualquer tempo, latitude ou cultura, continuarão sendo o que sempre foram. Não perderam a característica de grosseiras deturpações do ser e do agir humanos, que os rebaixam a nível inferior ao de animais. Vai-se tornando aceitável que os fortes espezinhem os fracos, que os ricos se aproveitem dos pobres. Ainda que a maioria aplauda, não há como rotular de progresso um comportamento desse feitio. Não é possível admitir como superadas noções que lançam suas raízes lá onde se assenta o melhor do nosso ser. Desprezá-las é matar a esperança de qualquer felicidade possível.

Se admito como justificável só o que me traz proveito, independentemente do malefício que possa causar a outrem, estou revalidando a lei da selva. Restauro como ética a norma do “quem pode mais chora menos”, tosca versão do “homo homini lupus” (o homem é um lobo para outro homem) dito de Plauto (230-180 a. C.), popularizado por Hobbes (1588-1679).

Ainda mais se o individualismo é posto a serviço do consumo, outra marca do nosso tempo. Pode-se com certeza afirmar que nunca se registrou consumismo tão avassalador. Enquanto em regiões pobres do planeta persistem desnutrição e fome, em outras, ditas de Primeiro Mundo, se morre por excesso de comida. Com a agravante de que ninguém mais acha estranho. Tudo é visto com a aprovação de quem tem olhos apenas para o próprio umbigo. É a moderna versão da justificativa de Caim: “Sou, por acaso, guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). Traduzindo: “Para me dar bem posso até matar; os outros que se danem”.

Hoje a lei é aproveitar-se de tudo o que é capaz de conferir lucro, satisfação ou prazer. Tudo aqui e agora. Tolice esperar para depois. Não há como consumir na hora? Então não tem valor. Por isso não faz sentido nada que não me traga imediato proveito. Tenho que desfrutar já do meu trabalho. Eu, não outro. Imagine se vou me cansar para que outro leve vantagem. Só um mané faz isso.

Depois, as pessoas reclamam da violência que voga por aí.

Fonte:
Maringá News. Blog do Rigon.
https://angelorigon.com.br/2013/02/25/jabuticabas/

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXV

A jangada flutuando,
ao longe, nos dá sinais,
de um lenço branco acenando
a lenços brancos no cais!
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À noite, que descalabro!...
O meu cansaço, era tanto,
que as velas do candelabro
choravam gotas de pranto!
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Ao ver meus netos me olhando,
bem cedo, ao romper do dia...
Percebo a aurora, acenando
para o outono da poesia!
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A saudade - é a ressonância,
daquela canção dolente,
que a mãe, cantava na infância,
curando as dores da gente!
= = = = = = = = =

A saudade me convém,
e às vezes, também conforta,
quando sinto as mãos de alguém
na maçaneta da porta!
= = = = = = = = =

Cada trova, é uma criança,
que me mostra passo a passo,
quantos versos de esperança
ponho nas trovas que faço!
= = = = = = = = =

Depois da chuva caída,
leio em seus pés pelo chão,
digitais de nova vida
dando vida ao meu sertão!
= = = = = = = = =

Esse teu jeito, menina,
com inocências divinais,
lembra-me uma flor divina
dos jardins angelicais!
= = = = = = = = =

Há tanta gente sem lume,
feito a flor bem machucada,
mas, que mantém seu perfume
do início ao fim da jornada!
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Longe de ti, que ansiedade!...
Essa dor, que sinto a esmo,
se de ti, não for saudade,
é saudade de mim mesmo!
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Meus pais, naquela pobreza
de uma vida campesina,
deram-nos, toda a riqueza
de uma paz, quase divina!
= = = = = = = = =

Na aridez dos tempos secos,
a humanidade tatua
a cor da fome nos becos
e a mendicância na rua!
= = = = = = = = =

Não tenho luzes no olhar,
mas, meu viver, compartilho,
para que a luz do meu lar,
brilhe no olhar do meu filho!
= = = = = = = = =

O outono, com seus percalços,
impõe-nos manchas e rugas;
discreto, põe passos falsos,
nos passos de nossas fugas!
= = = = = = = = =

O Sol, não faz por maldade;
mas, pinta no fim do dia,
o entardecer, de saudade,
com cores de nostalgia!
= = = = = = = = =

O Sol, se põe sem estresse,
esquece o peso da idade;
não sei por que, não se esquece
de encher o céu, de saudade!
= = = = = = = = =

O teu olhar na moldura,
mãe!... Contemplo todo dia!
É a chama acesa, mais pura,
da luz do amor que me guia!
= = = = = = = = =

Parte o jangadeiro ao canto
da voz, dos sonhos imensos;
ao longe, um lenço de pranto,
molha no cais, outros lenços!
= = = = = = = = =

Por mais que o mundo desminta,
não há um gesto mais lindo,
que o da criança faminta,
num berço pobre, sorrindo!
= = = = = = = = =

Quem ama a boa leitura,
acende a luz da razão,
e põe nas mãos da ventura,
uma luz em cada mão!
= = = = = = = = =

Quem ama com destemor,
põe mais açúcar no afeto;
qualquer migalha de amor
enche um lar, do piso ao teto!
= = = = = = = = =

Se a minha trova é singela,
a humildade, me retrata,
que a trova pode ser bela,
sem ouro, troféu nem prata!
= = = = = = = = =

Se acaso, alguém te magoa,
não te sintas pois, magoado;
em silêncio, quem perdoa,
recebe o perdão dobrado!
= = = = = = = = =

Sê fiel aos bons conselhos,
não te orgulhes da maldade;
vi muito orgulho de joelhos
aos pés do altar da humildade!
= = = = = = = = =

Sempre escuto dos mais velhos,
conselhos bons, todo dia;
são breviários e evangelhos
da sábia luz que nos guia!
= = = = = = = = =

Toda tarde, na ternura,
da voz de um sino plangente,
há sinais da partitura
da vida de muita gente!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Marques de Carvalho (Ao soprar a vela)


Ao Sr. José Feijó d’Albuquerque

  I

Às 8 horas da noite, quando chegou o marido, veio a Cândida, a saltar alegremente, recebê-lo à porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do penteador de cambraia branca.

Quanto se demorara ele!... Porque não voltou mais cedo? A sua Candinha já sentia tantas saudades!... Ele não imaginava o que era estar uma pobre mulher metida em casa, durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!...

E afagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, causando-lhe uns arrepios sensuais pelas costas, eriçando-lhe os cabelos dos braços e pernas.

Que não poderá vir mais depressa, — objetava o marido, sentando-se numa poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscência para a mulher. — Bem esforços fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por espaço de meia hora, brincando com as crianças, para entreter-se. Os pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as mãos gordurosas... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e à mulher.

— E aceitaram? — interrogou a Cândida, saltando para as pernas do marido, a rir muito, com os lábios abertos lindamente, frisando-se graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.

— Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum, máximo sabendo que nós a desejávamos para a libertar. Aquela gente está cada vez mais negreira! Enfim, escolhe-se outra qualquer, contanto que seja o dia de teus anos digna e liberalmente solenizado por mim. Continuemos, porém. Estava eu disposto a sair, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquele sujeito avermelhado, cuja cabeça está mais limpa de cabelos que os teus joelhos...

— Deixa-te de tolices...

— Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo porque levantei-me e saí à viva força!... Agora, — concluiu sorrindo, — aqui tem você o seu Roberto, cheio de amor e paixão, disposto a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!

Sempre sentada sobre as pernas dele, Cândida semicerrou os olhos numa vertigem lúbrica, e estendeu para a boca de Roberto os seus lábios frescos e perfumados desse olor esquisito e bom, peculiar às mulheres que se tratam.

Mas ergueram-se de súbito, num enleio: aparecera à porta que dava para o corredor o moleque Euzébio, com o bule de chá...

II

Depois do chá, Roberto acendeu um charuto, foi buscar um livro e, acomodando-se numa grande voltaire, pôs-se a ler. Ficou a Cândida defronte dele, a mira-lo.

Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois bicos de gás encerrados em globos de cristal finamente lavrado. Com os cotovelos sobre a mesa, o rosto de queixo saliente e narinas aflantes descansando nas palmas das mãos, Cândida continuava a olhar para o marido com uma expressão estranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.

Parecia lançada à contemplação da própria felicidade. Era justamente aquilo que, anos antes, fantasiara a sua sonhadora imaginação de burguesinha estragada pelos mimos de seus pais extremosos e pacóvios (
inocentes): viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre junto dele, para o consolar em todos os desgostos, rir com ele nas horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irrepreensível e, sobretudo, contempla-lo a todo instante, silenciosa, longamente, envolve-lo nas sentimentais suavidades do seu enlanguescido olhar de crioula amorosa! Nunca se sentira tão feliz como depois de seu casamento com o Roberto, havia quase dez meses. Nem uma só contrariedade tivera após aquela noite comovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo no silêncio de uma discreta alcova toda cheia de flores, rendas, fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha infantilidade não ficou, na manhã imediata, quando leu no Diário de Notícias as linhas seguintes, que decorou à força de as repetir baixinho?

— "Uniram-se ontem à noite em matrimônio, na igreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado comerciante da nossa praça, e a Exma. Sra. D. Cândida Anunciada Seixas, filha do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietário abastadíssimo. Foram padrinhos os srs. Silvino Cunha e Antero de Mendonça e suas exmas. consortes. Aos jovens cônjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades a que têm jus por seus dotes distintíssimos."

Ficou a nadar em júbilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornais, comovidíssima pela lembrança de que, àquela hora, a cidade inteira estava sabedora da realização de seus íntimos desejos de moça apaixonada!... Daí em diante começaram a viver como dois anjinhos, como ela queria. Roberto era sempre de uma delicadeza afetuosa e séria para com a sua Candinha, que também, valha a verdade, contribuía, segundo seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ela achava impossível que duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas por dá cá aquela palha... Entretanto, assim acontecia às vezes. Aí estava, mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más línguas, era uma jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estefânia, era outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dor de coração! Mas com ela assim não sucedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador à hora de recolher ao lar: às 5 da tarde mandava fechar o armazém, tomava o bonde e vinha logo para junto dela, de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ela conhecia de mais o gênio do marido para recear qualquer mudança futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a importante notícia que ela tinha para lhe dar.

Era verdade! fazia-se necessário contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta assim que ela abria a boca para falar..., mas hoje diria, estava resolvida! Quando? agora? — Agora não; deixá-lo com a leitura, que está tão entretido... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para ele!... para ele, que era tão lindo, tão bom, tão amado!...

Tudo isto pensava ela, continuando a fitar o esposo num enlevo apaixonado.

III

De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surpreendida, a Cândida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto dele o seu ardente olhar, como se desejasse cobri-lo com toda a veemência da paixão.

Ouvindo soarem no sino de Sant’Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.

— Vamos dormir? — propôs.

Cândida estremeceu e levantou-se.

O moleque veio fechar as portas e janelas e apagar o gás.

No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcova. Em cima do velador, uma vela cor de rosa ardia num castiçalzinho de porcelana de Sévres com pinturas alegóricas de Amores alados e Quimeras volitantes. No centro, uma causeuse (
sofá de dois lugares) de cetim azul estava cheia de laços, corpinhos de renda, brochuras esparralhadas (espalhadas), num abandono adoravelmente assimétrico. Vidros de perfumarias com rolhas de cristal reluziam em cima do toucador de jacarandá, lançavam cintilações cambiantes ao espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das paredes laterais.

Ao fundo erguia-se a cama, — pudicamente oculta entre as rugas de um cortinado de labirinto finíssimo, suspenso do teto por uma passadeira dourada.

Levantava-se daquela cama um quê de evaporação de felicidade inenarrável, que penetrava no espírito dos dois esposos pelos sentidos do olfato e da vista. Parecia-lhes acharem-se diante do tabernáculo de seu amor, do altar de sua existência feliz e encantadora. Para Cândida, sobretudo, ela tinha uma importância transcendental: evocava-lhe uma recordação agridoce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove meses de agradabilíssima coabitação conjugal...

Quando iam deitar-se, Cândida enlaçou a cabeça do marido com os braços descobertos, — mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de cambraia enfeitada de rendas do Ceará.

Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos eflúvios, — essas queridas exalações de mulher amada, — num enlanguescimento concupiscente.

— Olha. – murmurou ela conservando-se na mesma posição, beijando-o na testa. — Quero dar-te uma notícia muito boa...

— Qual é? — perguntou Roberto estreitando-a nos braços.

— Tenho tanta vergonha!...

Esta exclamação pronunciou-a Cândida desprendendo-se do amplexo do marido e dando um pulo para o leito.

— Anda, fala, menina, que tolice é essa?

— Então apaga a luz, primeiro; pode ser que às escuras eu me sinta mais animada!...

Roberto soprou a luz da vela e disse deitando-se:

— Agora...

Cândida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as pontas dos frios dedos trêmulos. Depois, de súbito:

— É que, — murmurou com umas brejeiras risadinhas reprimidas, — é que eu... estou grávida!

Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores, — o beijo com que o esposo tenta revelar a indivisível alegria de ver convertido em realidade o seu mais persistente anelo, — respondeu àquela confissão prazenteira, na propícia obscuridade da alcova matrimonial...

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

Minha Estante de Livros (Crônicas do Cretáceo: O tempo antes de nós, de André Nemésio)


É um livro brasileiro de ficção científica escrito pelo biólogo André Nemésio e publicado em 2020.

SINOPSE

A trama baseia-se na possibilidade do surgimento da inteligência e da senciência mais de uma vez na história do nosso planeta e que a linhagem dos dinossauros teve tempo suficiente para que uma ou mais espécies inteligentes pudessem ter surgido. Partindo dessa premissa, e relacionando-a com as possibilidades de vida inteligente em outros planetas, a humanidade, em fins do século XXI, descobre evidências de que uma civilização desconhecida já esteve em nosso sistema solar milhões de anos antes do surgimento da espécie humana. Acreditando inicialmente que tal civilização teria origem extraterrestre, os cientistas gradualmente se dão conta, através do estudo de um cubo de ouro encontrado em Marte e aplicando o pensamento lógico-dedutivo, que, na verdade, a Terra já foi habitada não por uma, mas por duas espécies de dinossauros terópodes inteligentes no final do período Cretáceo. Essas duas espécies, conhecidas em seus respectivos idiomas como Korubo e Arama, erigiram civilizações com desenvolvimento tecnológico equivalente àquele alcançado pela humanidade no início do século XXI, e tiveram que lidar com um grande desafio: a chegada de um enorme asteroide em rota de colisão com a Terra. Embora tivessem a tecnologia para, ao menos, mitigar os efeitos do impacto, as desconfianças mútuas e o desprezo pela ciência por parte de alguns impediram que os dois povos lograssem êxito na tarefa de evitar o desastre, resultando no impacto que deu origem à cratera na região de Chicxulub, na atual Península de Yucatán, no México, há 66 milhões de anos, pondo fim à "era dos dinossauros".

O autor apoia-se nas mais recentes descobertas nas áreas da astronomia, geologia, geofísica, biologia evolutiva, paleontologia, paleoecologia e filosofia da ciência para construir sua trama, inclusive listando toda a literatura consultada e utilizada como fonte para sua história fictícia ao final da obra, dando à mesma um caráter adicional de divulgação científica. Os dinossauros terópodes, por exemplo, são retratados da forma mais exata possível, de acordo com os mais recentes estudos paleontológicos, que lhes atribuem penas. Além disso, referências e trocadilhos com várias outras obras de ficção científica estão presentes ao longo de toda a história.

Recebeu críticas positivas na imprensa. Foi um dos três finalistas do IV Prêmio Le Blanc e também finalista do Prêmio Argos de Literatura Fantástica 2021. Ganhou uma tradução para a língua inglesa, publicada em outubro de 2021.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B4nicas_do_Cret%C3%A1ceo

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 17

 

Contos e Lendas da África (O macaco, a cobra e o leão)

Há muito, muito tempo, em uma aldeia chamada Kejee’jee, vivia uma viúva que criava seu bebê sozinha. Ela trabalhava muito para conseguir alimentar a si e ao filho. Eram muito pobres, inúmeras vezes passavam fome.

Quando o garoto, que se chamava ’Mvoo Laa’na, ficou um pouco mais velho, perguntou à mãe:

— Mamãe, estamos sempre passando fome. Que trabalho meu pai fazia para nos sustentar?

— Seu pai era caçador — respondeu a mulher. — Ele colocava armadilhas pela floresta e comíamos o que ele capturava.

— Ah! Isso não é trabalho, é diversão! — alegrou-se ’Mvoo Laa’na. — Também farei armadilhas. Vamos ver se consigo pegar algo para comermos.

No dia seguinte, foi à floresta cortar galhos das árvores e voltou à noite. No segundo dia, construiu armadilhas com os galhos. No terceiro dia, trançou fibras de coco e fez cordas. No quarto dia, espalhou o maior número de armadilhas que conseguiu. No quinto dia, colocou ainda mais armadilhas. No sexto dia, foi à floresta verificá-las. Apanhou mais animais que o necessário para comer, então foi à grande cidade de Oongoo’ja vender o excedente. Comprou milho e outras coisas. Deixou sua casa repleta de comida.

Sua sorte continuou por um bom tempo. Assim, ele e mãe passaram a viver confortavelmente. No entanto, depois de certo tempo, não encontrava mais nada em suas armadilhas.

Certa manhã, viu um macaco preso em uma das arapucas. Estava prestes a matá-lo quando o animal disse:

— Filho de Adão, eu sou Neea’nee, o macaco. Não me mate. Liberte-me e deixe-me ir embora. Salve-me da chuva, pois um dia eu poderei salvá-lo do sol.

’Mvoo Laa’na retirou-o da armadilha e o deixou partir.

Neea’nee então subiu em uma árvore e de um galho alto disse ao jovem:

— Darei um conselho em troca de sua gentileza. Todos os homens são maus, acredite em mim. Nunca ajude homem nenhum, pois ele se voltará contra você na primeira oportunidade.

No segundo dia, ’Mvoo Laa’na encontrou uma cobra presa na mesma armadilha. Estava saindo para avisar a todos na aldeia, quando a cobra lhe chamou:

— Volte, filho de Adão! Não diga aos aldeões para virem aqui me matar. Eu sou Neeo’ka, a cobra. Me liberte, eu lhe imploro. Salve-me da chuva hoje, pois talvez um dia eu consiga salvá-lo do sol.

Então o jovem libertou a cobra, que lhe disse antes de partir:

— Retribuirei sua gentileza quando a oportunidade surgir. Mas não confie em nenhum homem. Se você for gentil, eles pagarão com maldade tão logo tenham a chance.

No terceiro dia, ’Mvoo Laa’na encontrou um leão na mesma armadilha em que havia pego o macaco e a cobra. Estava receoso em se aproximar, mas o leão disse:

— Não fuja! Eu sou Sim’ba Kong’way, o velho leão. Deixe-me sair desta armadilha, não o machucarei. Salve-me da chuva, pois eu poderei salvá-lo do sol quando você precisar.

’Mvoo Laa’na confiou nas palavras do leão e o libertou. Antes de partir, Sim’ba Kong’way lhe disse:

— Filho de Adão, você me ajudou e eu te retribuirei se puder. Mas nunca ajude a um homem, pois ele retribuirá unicamente com ofensas.

No dia seguinte um homem ficou preso na mesma armadilha. Quando ’Mvoo Laa’na o libertou, o homem assegurou-o inúmeras vezes de que jamais esqueceria que o jovem havia salvado sua vida.

Parecia que ’Mvoo Laa’na já havia capturado todos os animais da floresta. Logo ele e sua mãe voltaram a passar fome e não conseguiam encontrar nada que pudessem comer. Até que um dia o rapaz disse:

— Mãe, pegue a pouca carne que nos resta e faça sete tortas. Vou caçar com meu arco e flecha.

Ela assou as tortas para ’Mvoo Laa’na, que as levou em sua incursão na floresta.

O jovem andou muito e não encontrou nenhuma caça. Percebeu que estava perdido e só lhe restava uma das tortas. Continuou vagando, sem saber se ia na direção de sua casa ou no caminho contrário. Penetrou cada vez mais no bosque até chegar a uma área selvagem e desolada onde nunca havia estado antes. Estava exausto e desesperançoso, a ponto de cair no chão e esperar pela morte, quando de repente ouviu alguém chamar seu nome. Olhou para cima e viu Neea’nee, o macaco, que disse:

— Aonde vai, filho de Adão?

— Não sei. — respondeu ’Mvoo Laa’na tristemente. — Estou perdido.

— Não se preocupe! — consolou o macaco. — Sente-se e descanse até eu voltar. Pagarei com gentileza a bondade que você um dia me fez.

Então Neea’nee foi até um pomar e roubou bananas e mamões papaia.

— Aqui tem bastante comida. Há algo mais que você queira? Está com sede?

E antes que ’Mvoo Laa’na respondesse, Neea’nee saiu novamente e voltou com uma cabaça cheia de água. O jovem comeu e bebeu até se saciar. Então despediram-se e cada um seguiu seu rumo.

Após andar um grande percurso sem encontrar o caminho de volta para casa, ’Mvoo Laa’na encontrou Sim’ba Kong’way, que lhe perguntou:

— Aonde vai, filho de Adão?

E com a mesma tristeza de antes, o rapaz respondeu:

— Não sei. Estou perdido.

— Alegre-se! — disse o velho leão. — Descanse um pouco aqui. Hoje retribuirei sua bondade.

’Mvoo Laa’na sentou-se e Simba sumiu na floresta, mas logo voltou com caça e também trouxe fogo. O rapaz cozinhou a carne e sentiu-se muito melhor após comer. Despediram-se e tomaram caminhos opostos.

Depois de percorrer mais uma longa distância, o jovem encontrou uma fazenda, onde foi recebido por uma senhora muito, muito velha, que lhe disse:

— Forasteiro, meu marido está muito doente, eu preciso de alguém que saiba fazer um remédio para ele. Você pode me ajudar?

— Minha boa senhora, eu não posso. Sou um caçador, não um médico. Nunca fiz um remédio na vida.

Então ’Mvoo Laa’na seguiu pela estrada que levava à cidade principal, quando viu um poço com um balde ao lado. Disse para si mesmo:

— É exatamente o que eu precisava: tomar um pouco de boa água de um poço. Deixe-me ver se o balde chega até o fundo.

Olhou pela borda para verificar a altura da água e encontrou uma grande cobra dentro do poço, que assim que o viu disse:

— Espere um pouco, filho de Adão! — e se esgueirou até sair do poço. — Ora, então não se lembra de mim?

— Não lembro, juro que não! — explicou o rapaz, afastando-se.

— Pois eu jamais me esqueceria de você. — tornou a cobra. — Eu sou Neeoka, você me libertou da armadilha. Eu disse a você: “Salve-me da chuva, que um dia te salvarei do sol”. Você será um estrangeiro no local para onde vai. Por isso, me dê sua bolsa e eu colocarei nela coisas que serão úteis na cidade.

’Mvoo Laa’na entregou sua pequena bolsa à Neeo’ka, que a encheu com correntes de ouro e prata, dizendo que ele poderia usá-las como julgasse melhor. Os dois se despediram amavelmente e se separaram.

Quando o rapaz chegou à cidade, a primeira pessoa que encontrou foi o homem que havia libertado da armadilha, que o convidou para ir à sua casa. ’Mvoo Laa’na aceitou o convite e jantou em companhia de seu novo amigo e sua esposa.

Assim que teve uma oportunidade, o homem foi até o sultão e disse:

— Há um forasteiro em minha casa com uma bolsa cheia de correntes de ouro e prata. Disse que ganhou de uma cobra que vive em um poço. Mesmo que esteja disfarçado, sei que na verdade é uma cobra fingindo ser homem.

Ao ouvir tal acusação, o sultão ordenou que seus soldados capturassem ’Mvoo Laa’na. O homem libertado da armadilha convenceu a todos de que, caso a bolsa fosse aberta, dela sairia algum feitiço que atingiria os filhos do sultão e do vizir.

As pessoas ficaram tão aterrorizadas que amarraram ’Mvoo Laa’na. Nesse momento, a grande cobra apareceu, ela havia saído do poço para ir à cidade. Neeo’ka deitou-se aos pés do homem que havia acusado ’Mvoo Laa’na.

Ao ver aquilo, os cidadãos disseram:

— Como isso é possível? Essa é a grande cobra que vive no poço. Ela está deitada ao seu lado. Mande-a embora.

Mas Neeo’ka não moveu um músculo. Então eles desamarraram ’Mvoo Laa’na, pois temiam que fosse um mago, e desculparam-se de todas as formas possíveis.

— Por que esse homem o convidou para jantar em sua casa e depois o acusou? — perguntou o sultão.

Nesse momento, ’Mvoo Laa’na lembrou-se de tudo o que havia acontecido, de como o macaco, a cobra e o leão o advertiram sobre o que aconteceria caso ajudasse algum homem.

O sultão então disse:

— Embora muitos homens sejam ingratos, nem todos são, somente os maus. A punição para esse homem será ser amarrado em um saco e afogado no mar. Ele foi tratado com bondade, mas pagou o bem com o mal.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.

José Fabiano (Trovas Brincantes)


Ah, mulher, tu me cativas,
mas os teus modos são tais,
que as glândulas que me ativas
são somente as lacrimais…
= = = = = = = = =

Ao lavar meu coração,
verifico, num instante,
que precisa de sabão
e muito mais de "amaciante"...
= = = = = = = = =

Casado com a Rebeca,
o músico Sebastião,
de tanto tocar "rabeca"
acabou no "rabecão"...
= = = = = = = = =

Casou-se com bom partido
de família de renome.
Hoje ela usa, do marido,
tão-somente o sobrenome…
= = = = = = = = =

Com mulher, deves dispor,
para a boa convivência,
além de gramas de amor,
alguns quilos de paciência...
= = = = = = = = =

Com nosso consentimento,
sem-terra invade o que quer.
Por que o mesmo tratamento,
não damos ao sem-mulher.?...
= = = = = = = = =

Como a tristeza me irrita,
quando olvidando que é dama
e que apenas me visita,
vai comigo para a cama!…
= = = = = = = = =

Como lamenta a desgraça!
Sua vaidade anda rota:
toma "litros" de cachaça,
mas sofre apenas de "gota"...
= = = = = = = = =

Depois da "idade do lobo",
ao ver tudo por que passo,
ocorre a "idade do bobo",
que finda "na do palhaço"...
= = = = = = = = =

Dou um boi para jamais
entrar numa briga dessa
e uma boiada dou mais
pra sair dela depressa...
= = = = = = = = =

Eu sinto aquele alvoroço
que se sente na hora H,
se a cozinheira, no almoço,
me diz: - "Habemos" papá...
= = = = = = = = =

Eu tenho me perguntado
qual, enfim, é meu formato;
uns dizem que sou "quadrado",
outros falam que sou "chato"…
= = = = = = = = =

Frequentava, quando jovem,
os bares todos os dias.
Velho - todos se comovem
só frequenta as drogarias...
= = = = = = = = =

"Hálux", que nome pomposo!
Sabes por acaso o que é?
Além de algo luminoso,
é também dedão do pé...
= = = = = = = = =

Muito fácil perceber
o caminho do pecado.
Basta só reconhecer
qual o mais congestionado.
= = = = = = = = =

Mulher fala o "feminês",
língua que utiliza assim:
"não", no lugar do "talvez",
"talvez", no lugar do "sim"...
= = = = = = = = =

Nosso amor -tenho a impressão-,
precisa de um PAC também;
Plano de Aceleração
de Casamento, meu bem...
= = = = = = = = =

O homem sente falta imensa
do ar e da mulher que ele ama.
Há só uma diferença:
o ar atende e não reclama...
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Podem bem ser comparados
num ponto o café e o amor.
Ambos, quando requentados,
perdem o antigo sabor...
= = = = = = = = =

Quando com ela dialogo,
e ela me toca e me alisa,
eu vou perguntando logo:
- De quanto você precisa.?
= = = = = = = = =

"Sê bem-vindo!" Interessante
é ler em supermercado
o que pensa um assaltante
de quem vai ser assaltado…
= = = = = = = = =

Se de "Ana" o diminutivo
é "Aninha", estranho, então,
ao pensar que o aumentativo
deva ser menor: "Anão"…
= = = = = = = = =

Se queres unir-te a alguém,
de início não te recuses
a saber se são também
compatíveis suas cruzes.
= = = = = = = = =

Todo ingrato é aquele ser,
em geral mal-educado,
que não se digna dizer
nem "muito desobrigado"…
= = = = = = = = =

Tudo passa, e eu acho graça,
quando fico a me lembrar
que a passadeira não passa,
sem o ferro de passar...
= = = = = = = = =

Vidas a dois mal vividas
são, de fato, complicadas!
Lembram, às vezes, partidas
que terminam em... patadas...
= = = = = = = = =
Fonte:
Enviado por Assis
José Fabiano & A. A. de Assis. Trovas brincantes. 2007 (livreto)