quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Irmãos Grimm (O alfaiatezinho valente)

Um dia de verão, estava um pequeno alfaiate sentado sobre sua mesa, junto à janela. Satisfeito da vida, cosia e cosia com grande entusiasmo. Nisso uma camponesa desceu a rua, apregoando:

- Marmelada! Quem quer marmelada?

Aquilo soou bonito aos ouvidos do alfaiatezinho, que meteu a delicada cabecinha fora da janela e chamou:

- Ei, boa mulher! Venha, que aqui ficará livre da mercadoria!

A camponesa com seu cesto pesado, subiu as três escadas e o homenzinho a fez abrir todos os potes. Examinou-os, cheirou-os um por um, e afinal acabou dizendo:

- Parece-me boa essa marmelada. Sirva umas quatro colheradas, boa mulher, e, se forem cinco, também não fará diferença para mim.

A mulher, que esperava realizar um bom negócio, deu-lhe o que havia pedido, mas retirou-se aborrecida e resmungando.

- Bem! - disse o pequeno alfaiate- que Deus abençoe este doce, para que me dê forças e ânimo.

Foi ao armário, tirou de dentro um pão e, cortando um bom pedaço, passou nele a marmelada.

- Não há de ter mau gosto, - disse consigo- mas antes de provar, quero ver se termino este gibão.

Pôs o pão a seu lado e continuou costurando, sentia-se tão feliz que ia fazendo pontos cada vez maiores.

Nesse meio tempo, o doce aroma da marmelada subiu até o teto, onde havia moscas em quantidade. Estas, sentindo-se atraídas pelo bom cheiro, foram pousar no pão, aos montes.

- Ei! Quem convidou vocês? - disse o alfaiatezinho, espantando as hóspedes indesejadas.

As moscas não entendiam sua linguagem, nem fizeram caso. Ao contrário, apresentaram-se em  número cada vez maior. Aí, então, o homenzinho ficou por aqui, como se costuma dizer e, passando a mão num retalho de fazenda, gritou:

- Esperem, que terão o que merecem!

E bateu com toda força nelas. Quando levantou o pano, viu que nada menos de sete estavam ali mortas, de perna esticada.

- Como és valente! – disse a si mesmo, admirando sua bravura - a cidade toda deverá ficar sabendo!

Mais que depressa, cortou e costurou um cinto, bordando nele os seguintes dizeres em letras bem grandes: "Sete de um golpe só!"

- Qual cidade, qual nada ! – prosseguiu monologando - o mundo inteiro precisa ficar sabendo!

E, de tanta alegria, seu coração se agitava como o rabinho de cordeiro. Colocou o cinto, resolvido a correr mundo, pois achava que a alfaiataria se tornara pequena demais para sua coragem. Antes, porém, deu uma busca na casa para ver se havia qualquer coisa que pudesse levar consigo, mas só encontrou um queijo velho que enfiou no bolso. Em frente ao portão, viu um pássaro que se enredara nos arbustos; apanhou-o e também o guardou no bolso, para que fizesse companhia ao queijo.

Iniciou, então, corajosamente, sua jornada, como era leve e ágil, não sentiu cansaço. O caminho o levou a uma montanha e, ao chegar no ponto mais elevado, viu, de repente, um gigante, enorme, sentado no chão a olhar, tranquilamente, a seu redor. Cheio de valentia, o pequeno alfaiate aproximou-se dele e falou:

- Bom dia, companheiro! Contemplando a imensidão do mundo, não? É para lá, exatamente, que me dirijo, a fim de tentar a sorte. Queres acompanhar-me?

O gigante olhou-o com desprezo e respondeu:

- Ora só quem está falando! Que sujeitinho mais miserável!

- Alto lá! -disse o nosso homenzinho e, desabotoando o casaco, exibiu o seu cinto.- Aí podes ler que espécie de homem sou eu!

O gigante leu: "Sete de um golpe só!" E como pensasse tratar-se de pessoas, mostrou um pouco mais desrespeito ao alfaiate. Em todo caso, quis experimenta-lo antes; apanhou uma pedra e tanto a espremeu com uma das mãos que fez correr dela algumas gotas de água.

   - Imita-me,- disse o gigante- se tiveres força.

    - Se é só isso, - retrucou o pequeno - não passa de um brinquedo de criança para gente como eu.

Enfiou a mão no bolso, tirou o queijo, que era mole, e o apertou até sair o sumo.

Que tal? – disse ele. - Um pouquinho melhor, não é?

O gigante ficou sem o que dizer, pois a força de homenzinho o desconcertara. Apanhou outra pedra e atirou-a tão alto que mal se podia distingui-la a olho nu.

- E daí, seu valentão? Imita-me!

- Boa jogada! - concordou o alfaiate.- Mas a pedra caiu de volta ao chão e eu vou atirar uma que não voltará.

E, tirando o pássaro do bolso, jogou-o no espaço. A Ave, satisfeita com a liberdade, ergueu-se em voo rápido e desapareceu no ar.

- Que me dizes dessa jogada, companheiro? - perguntou o alfaiate.

- Sabes atirar, - retrucou o gigante - mas agora vejamos se és capaz de carregar um peso razoável.

E conduzindo o alfaiatezinho até um carvalho muito grande que estava, cortado, no chão, disse-lhe:

- Se tiveres força suficiente, ajuda-me a carregar esta árvore para fora do mato.

- Com muito prazer. - respondeu o homenzinho.- Vai pondo o tronco nos ombros que eu me encarrego dos galhos e ramos, que são a parte mais pesada.

O gigante colocou o tronco nos ombros, enquanto o alfaiatezinho se acomodou num dos galhos. E, como o primeiro não podia voltar-se para vê-lo, carregou a árvore inteira e, ainda por cima, o alfaiate. Este, muito alegre, assobiava a canção: " Três alfaiates saíram a trote..." - como se carregar uma árvore fosse brinquedo de criança. O gigante, depois de ter arrastado por algum tempo o pesado fardo, não aguentou mais e gritou:

- Atenção! Vou deixar cair a árvore!

O  alfaiatezinho saltou logo para baixo, agarrou o carvalho com ambos os braços, como se estivesse a carregá-lo e disse ao gigante:

– És grandalhão, mas incapaz de carregar essa árvore!

Continuaram juntos o caminho e chegaram ao pé de uma cerejeira. O gigante meteu a mão na copa onde estavam as frutas mais doces, curvou os galhos e, pondo-os nas mãos do alfaiate, o convidou a comer cerejas. Mas o homenzinho era fraco demais para segurar a árvore e, quando o gigante soltou os galhos, a cerejeira voltou à sua posição primitiva, levando aos ares o nosso herói. Este, sem sofrer dano algum, caiu no chão e o gigante logo perguntou:

- Como? Não tens força para segurar essa árvore tão pequena?

- Não se trata de força.- respondeu o outro. – Acreditas que isso significa algo para quem matou sete de um golpe só? Saltei de propósito sobre a árvore porque os caçadores andam atirando lá em baixo, no matagal. Imita-me se és capaz!

O gigante tentou, mas não conseguiu pular a árvore, ficando preso nos galhos. E, com isso, também desta vez o pequeno alfaiate ficou com a vitória. Disse, então, o gigante:

- Se és tão valente mesmo, acompanha-me à nossa caverna e passa a noite conosco.

O nosso homenzinho aceitou a proposta e o seguiu. Chegaram à caverna, onde havia vários outros gigantes, cada um deles comendo uma ovelha assada que tinha nas mãos. O alfaiatezinho olhou em redor e pensou: "Isso aqui é  bem maior do que minha alfaiataria.”

O gigante mostrou-lhe uma cama e o convidou a deitar-se e dormir. Ele, porém, achou grande demais o leito e, em vez de se deitar nele, foi acomodar-se num canto. Pela meia-noite, o gigante, imaginando o alfaiatezinho em sono ferrado, levantou-se, apanhou uma barra de ferro e desfechou tamanho golpe na cama que julgou ter acabado, de uma vez por todas, com a vida daquele gafanhoto. 

De madrugada, bem cedo, os gigantes foram ao mato e já nem se lembravam mais do alfaiate, quando de repente, este lhes veio ao encontro, bem alegre e satisfeito. Levaram um susto danado e, receando que ele fosse matá-los, fugiram espavoridos.

Continuou o nosso herói a viagem, seguindo sempre o seu nariz arrebitado. Depois de uma longa jornada, chegou ao jardim de um palácio real e, sentindo-se cansado, espichou-se na relva e adormeceu. enquanto estava ali deitado, chegou gente. Aproximaram-se dele e puseram-se a examiná-lo por todos os lados. Nisso, leram o seu cinto: " Sete de um golpe só!"

- Céus! - exclamaram o grupo todo - que estará fazendo aqui este grande herói, agora, em tempos de paz? Deve ser cavaleiro famoso!

E saíram para avisar o rei, dizendo-lhe que, se houvesse guerra, seria um homem importante e útil que não se deveria deixar escapar. O rei gostou de conselho enviou um dos seus cortesões ao alfaiate, para contratar os seus serviços logo que ele despertasse. O mensageiro assim fez e, quando o homenzinho se espreguiçou e abriu os olhos, transmitiu-lhe o recado.

- Vim aqui, justamente, para isso. - disse o pequeno alfaiate. - Estou disposto a entrar a serviço do rei.

Receberam-no, então, com todas as honras e deram-lhe uma moradia especial.

Os soldados do rei, no entanto, o olhavam com maus olhos e desejavam que ele estivesse a mil léguas de distância.

- Que será de nós quando tivermos uma briga e ele, com cada golpe, derrubar sete de nossa gente? - diziam entre si.- Desse jeito não viveremos muito,

E resolveram ir ao rei para pedir que os despedisse.

- Não estamos preparados - disseram - para viver perto de um homem que matou sete de um só golpe.

O rei entristeceu-se por ter de renunciar a todos os seus soldados por causa de um só; já estava arrependido de tê-lo contratado e desejou que seus olhos nunca o tivessem visto. Entretanto, não se animou a despedi-lo, porque receava que ele o matasse junto com todo o seu povo e fosse depois apoderar-se do trono. Pensou durante muito tempo e, afinal, descobriu um meio. Mandou dizer ao alfaiate tão famoso, queria fazer-lhe uma proposta. 

Na floresta do país havia dois gigantes que provocavam grandes prejuízos, com roubos, assassinatos, incêndios e outro crimes mais. Ninguém podia aproximar-se deles sem arriscar a vida. Se ele vencesse e matasse os dois gigantes, dar-lhe-ia sua filha única para esposa e ainda a metade de seu reino como dote; teria, também, o auxílio de cem cavaleiros. "Seria algo para um homem como tu" – pensou o alfaiatezinho - " e não é todos os dias que oferecem uma bela princesa para esposa e meio reino como dote".

  - Aceito! - foi a sua resposta.- Vencerei os dois gigantes e não preciso dos cem homens para essa tarefa; quem matou sete de um golpe só, não se amedronta com dois.

Pôs-se a caminho e os cem cavaleiros o seguiram. Quando chegou à beira do bosque, dirigiu-se a seus acompanhantes, dizendo:

- Fiquem por aqui; eu, sozinho, sou suficiente para acabar com os gigantes.

E embrenhou-se no mato, olhando para direita e para esquerda. Passado algum tempo, avistou os gigantes. Deitados embaixo de uma árvore, estavam dormindo e roncando tão alto que faziam balançar os galhos. Sem perda de tempo, o pequeno alfaiate encheu os bolsos de pedra e foi trepando na árvore. Assim que chegou na metade, escorregou para a ponta de um galho, de modo a ficar bem em cima dos dois adormecidos e começou a jogar as pedras, uma a uma, no peito de um dos gigante. Durante muito tempo o homenzarrão não notou coisa alguma, mas, por fim, acordou, deu um empurrão no companheiro e disse:

- Por que estás me batendo?

- Batendo coisa nenhuma! Tu é que estás sonhando. - disse o outro.

Recomeçaram a dormir, e o alfaiate jogou uma pedra no segundo.

- Que significa isso?! - gritou o outro gigante. - Por que estás me atirando pedras?

- Não estou atirando nenhuma pedra. - resmungou o primeiro.

Discutiram ainda por algum tempo, mas, como estavam cansados, cessaram a discussão e voltaram a dormir. O nosso alfaiatezinho então recomeçou o jogo; escolheu a pedra mais pesada e arremessou-a com toda força, no peito do primeiro gigante.

- Isso agora é demais! - gritou este e, erguendo-se de um salto, como um louco, jogou seu companheiro com tal força contra a árvore que a fez estremecer. O outro pagou-lhe na mesma moeda e tão furiosos ficaram que se puseram a arrancar as árvores ao redor, e com elas tanto se bateram que caíram mortos, ao mesmo tempo, no chão. Só aí é que o alfaiatezinho desceu de seu posto.

- Uma sorte, - disse ele - não terem arrancado a árvore onde eu estava, senão teria sido obrigado a saltar para outra, que nem esquilo. Ainda bem que sou ligeiro!

Tirou a espada da bainha e deu diversos golpes no peito do gigantes. Em seguida foi ao encontro dos cavaleiros e lhes disse:

- O trabalho foi feito; dei cabo dos dois. Custou-me algum esforço porque se defenderam com troncos de árvores que iam arrancando, mas nada disso adianta quando surge alguém como eu que mata sete de um golpe só.

- E não está ferido? - perguntaram os homens.

- Era só o que faltava! - respondeu o alfaiate.- Não perdi um único fio de cabelo!

Os cavaleiros não lhe quiseram dar crédito e foram ao bosque; lá encontraram os gigantes banhando em sangue e, ao redor, as árvores arrancadas.

O pequeno alfaiate apresentou-se ao rei para exigir a recompensa prometida. Mas este já se arrependera da promessa e começou a imaginar como livrar-se do herói.

- Antes de receberes minha filha e metade do reino - disse-lhe- terás de realizar outra façanha. Anda por aí um unicórnio a causar prejuízos graves. Deves, primeiro capturá-lo.

Um unicórnio me assusta menos ainda que dois gigantes. Minha divisa é : "Sete de um golpe só."

Pegou uma corda e um machado e saiu para a floresta. Novamente ordenou a seus acompanhantes que o emperrasse fora do bosque. Não teve de procurar muito. O animal veio saltando em sua direção, como se quisesse espetá-lo sem maiores rodeiros,

- Calma! Calma! - exclamou o alfaiatezinho.- Não corramos tanto!

Ficou parado e esperou que o bicho chegasse bem perto; depois, num gesto rápido, colocou-se atrás de uma árvore. O unicórnio, que vinha direto a ele, disparando com toda fúria, cravou o corno com tanta força no tronco que não conseguiu mais retirá-lo e ali ficou aprisionado.

- Apanhei o animal! - disse o homenzinho, saindo de trás da árvore. Colocou, primeiro, a corda no pescoço do bicho e depois retirou, a golpes de machado, o corno do tronco. A seguir, levou o animal para o rei.

Ainda assim o soberano não quis conceder-lhe o prêmio e deu-lhe uma terceira incumbência. Antes do casamento, o alfaiate deveria capturar um javali que causava grandes danos na floresta. Os caçadores lhe prestariam auxílio.

- Com muito prazer- disse o alfaiate- isso é brincadeira de criança.

Deixou os caçadores à beira do mato e eles ficaram bem satisfeitos com isso, pois o javali, muitas vezes, os recebera de um modo que lhes tirara toda a vontade de o enfrentar novamente.

Logo que o javali avistou o alfaiate, correu-lhe ao encontro com a boca espumando, cheia de dentes aguçados, e pronto para derrubá-lo. O ágil herói, porém, correu  a refugiar-se numa capelinha que havia ali e, em seguida, saiu pela janela que ficava ao alto. O javali, que o seguia de perto, entrou também na capela e, então, o homenzinho, dando volta por fora, correu a fechar o pórtico, prendendo assim a fera, pesada e desajeitada demais para sair pela janela. Feito isso, chamou os caçadores para eles vissem o prisioneiro com seus próprios olhos. O valente foi, então, apresentar-se ao rei, o qual, quisesse ou não, foi obrigado a cumprir sua promessa, dando-lhe a filha e metade de seu reino. Mas teria ficado ainda mais aborrecido se imaginasse tratar-se de um simples alfaiate e não de um guerreiro famoso. O casamento foi, pois, celebrado com grande pompa, mas pouca alegria, e de um alfaiate se fez rei.

Passado algum tempo, numa noite, a jovem rainha ouviu quando seu marido falava em sonhos:

- Rapaz, apronta esse gibão e me remenda as calças ou te medirei as costas com esta vara!

Compreendeu aí a rainha qual era a origem de seu jovem esposo. Na manhã seguinte, queixou-se ao pai, pedindo-lhe que a libertasse do homem que não passava de um alfaiate. O rei consolou-a, dizendo:

– Deixa a porta de teu quarto aberta esta noite. Meus criados ficarão do lado de fora e, quando ele estiver dormindo, será atado e levado para um navio que o conduzirá para bem longe.

A filha deu-se por satisfeita, mas o escudeiro ouvira tudo e, como gostasse de seu amo, revelou-lhe toda a trama.

- Vou por um pequeno empecilho a esse plano.- disse o alfaiatezinho.

À noite deitou-se como de costume, na cama, com sua mulher. Quando o viu adormecido, ela levantou-se, abriu a porta e tornou-se a deitar. O alfaiate, que só estava fingindo, começou a gritar com voz bem forte:

- Rapaz, apronta o gibão e remenda minhas calças ou te medirei as costas com esta vara! Atingi sete com um golpe só, matei dois gigantes, apanhei um unicórnio, capturei um javali e haveria de temer a esses que estão do lado de fora da porta?

Os homens, quando o ouviram falar daquele jeito, assustaram-se e deitaram a correr como se um  exército inteiro estivesse em seu encalço e nenhum deles se atreveu a enfrentá-lo. E foi assim que o alfaiatezinho ficou sendo rei por toda vida.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Varal de Trovas n. 586

 

Dirceu Marés de Souza (A viuvinha do Crespim)


Nos tempos em que ainda se plantava erva doce no reino dos canteiros de couve — em 1841 - existia na então vila de Campo Largo uma chácara caprichosamente cuidada. Era de propriedade de um jovem casal, Crespim e Djanira, que mantinha em sua herdade vários escravos, entre eles duas pretas muito afeiçoadas a seus amos. Tudo naquele sítio funcionava no mais rigoroso estilo patriarcal. Um ambiente de respeito e dignidade que impressionava seus vizinhos e especialmente seus escravos. O simpático casal deixava transparecer uma vida em eterna lua de mel. Mas um dia, o Urutago piou mais forte e arrastou suas asas agourentas no telheiro... Crespim ficou muito doente. Uma grave moléstia o levou ao túmulo em poucos dias. Uma tristeza...Os vizinhos foram consolar a Viúva. Moça rica e bonita, não deveria desanimar... Esqueceria um dia. Talvez um dia...

Para suportar as angústias da ausência do marido morto, a jovem Viuvinha chamou um abalizado mestre de marceneiro e pediu a ele que esculpisse a figura de Crespim em madeira. O artista trabalhou para obter a melhor semelhança possível. Depois de tudo memorizado nos seus mínimos detalhes, entregou a obra concluída.

Vestiram o Crespim de pau com as roupas do defunto. A Viúva e as mucamas transformaram aquele momento num respeitoso cerimonial... As pretas disseram boa noite para o sinhô... E o Crespim foi levado para o quarto de dormir, porque já era noite. Durante o dia vinha o Crespim para os lugares onde o pessoal se reunia e se movimentava.

Quando as mucamas varriam a casa pediam licença:

- Com licença, Sinhô, queremos varrer... e arredavam o boneco.

Vez por outra, vinha a Viúva:

- Crespim, os cobres estão curtos, vamos vender umas vaquinhas?

O Crespim, como sempre, continuava impassível, mudo como um todo.

- Já sei! Você sempre foi assim... quando não fala está concordando.

Lá se ia mais uma vaca, ou duas, para o açougueiro. Aconteceu que o açougueiro, viúvo e desimpedido também, arrastou as asas para o lado da Viuvinha e esta resolveu abanar-lhe um lenço verde. Passaram-se poucos dias e a Viúva noticiou às mucamas que iria contratar casamento com o açougueiro. Foi um susto nas duas:

- Credo-em-cruz!... E o sinhô Crespim?...

A Viúva ria:

- Suas bobas...

No dia do contrato de núpcias, a Viúva, eufórica, feliz com a ideia do novo casamento, recomendava às escravas que tivessem muito respeito com o noivo que viria visitá-la. Elas resmungavam se persignando.

Em um dia, em meio à ansiedade da Viúva e à oposição das mucamas, o açougueiro chegou todo bornido... A Viúva o recebeu com exageradas mesuras, fazendo-o sentar-se em uma cadeira da sala, enquanto no interior da casa ouvia-se a corrimaça das mucamas a arrastarem os chinelos de um lado para o outro, entre resmungos imperceptíveis... A ama chamou-as:

- Vocês duas! Façam um café bem quente, bem forte, bem bom e tragam aqui na sala... para nós...

As mucamas responderam em tom de deboche:

- Não dá para fazer café, Sinhá, não tem lenha!...

A Viúva com raiva responde:

– Então queimem o Crespiml...deve estar bem seco...

As mucamas foram ao quarto de dormir e agarraram o boneco Crespim, e o arrastaram para fora. Meteram-lhe o machado e dentro em pouco tempo serviram o café - bem quente e bem forte.

(Até hoje ainda se fala em Campo Largo quando morre o marido e deixa viúva nova: - “...Essa logo manda queimar o Crespim!...”

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Lairton Trovão de Andrade (Brados ao Infinito) – 1


A PAZ

Viver com humanidade,
sem angústia nem paixão,
com toda serenidade,
é ter paz no coração.

Olhar pra sua consciência,
sem ter que chorar atrás,
é sentir doçura e ciência
do que seja estar em paz.

Quem habita bem a Terra
e age com tranquilidade,
quem condena sempre a guerra
promove a paz e a amizade.

Ainda que haja injustiça
com a traição perspicaz,
a minha grande cobiça
é sempre viver em paz.

Que a tristeza se dissipe,
que, pra todos, haja trigo,
que do amor se participe,
criando-se um mundo amigo.

Seja, pois, Ano de paz,
porém, que não se desfaça,
riqueza que o sonho traz
com vida plena de graça.
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APELO DA POESIA

Meus versos são ecos que soam,
que tangem quais vozes de um sino;
vêm d'alma desejos que entoam
compassos sagrados de um hino.

É a voz que o deserto sacode,
o orvalho que rega a aridez,
a mão carinhosa que acode,
o braço que dá altivez.

Poema que canta a esperança
e clama com fé pelo amor,
suplica que reine pujança
ao fraco, infeliz sofredor.

Meus versos agora são gritos
que amainam humildes plebeus;
quer paz, quer bonança aos aflitos,
— poesia é apelo de Deus.
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A TROVA DO CORAÇÃO

Minha trova tem poesia
colorida de paixão.
Tenho no rosto alegria
e trova no coração.

Todas as trovas que escrevo,
como se fossem missão,
dizer com gala me atrevo:
São trovas do coração.

A trova do coração
tem sempre sinceridade;
até mesmo sem razão,
no sentimento há verdade.

A essas trovas me apego,
pois são de fina emoção;
nelas, amor é que prego
por serem do coração.
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CARNAVAL 

São ricas as fantasias
dos meses de fevereiro.
Carnavais - que ironias!
- motivam o ano inteiro.

Arlequim faz palhaçadas
aos olhos das colombinas.
Dançam drogas nas calçadas
— oh, vis armas assassinas!

Tantos pierrôs delinquentes
nestes tempos tão carnais!
Assanham impertinentes
as colombinas sensuais.

Consequência indesejada
por imprudente cegueira,
a aids vem por um nada
e condena a vida inteira.

São lindas alegorias
que se vê passar ali.
Ficam, porém, agonias
no chão da Sapucaí.

Carnaval! Quanta ilusão
de um bloco de tanta asneira!
Eis o vazio coração
numa vida feiticeira!
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DESEJO MAIOR

Ao meu fim, quando eu chegar,
"Glória" infinda quero ter.
Por uma luta exemplar,
desejo o céu receber,

Sei que, de Deus, não mereço
o gozo da eternidade;
mas tenho o santo endereço
do seu perdão e piedade.

Frágil sopro é minha vida
nos vales, vezes sombrios.
Com fé, em luta renhida,
vencerei monstros bravios.

Quando partir deste mundo,
tenham todos a certeza:
Eu quis que o amor mais fecundo
constituísse-me a riqueza.

A velha Sabedoria
diz que a vida é passageira.
E vaidade e ninharia
a ganância rotineira.

Ao mundo cheguei desnudo,
que bens levarei comigo?!
Dê-me a chance, ó Deus, contudo,
de ter o Céu por abrigo.

Quero, com o Pregador,
dizer entre tanto embate;
Dê-me a coroa, Senhor,
"Combati o bom combate"!

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Brados ao infinito: poemas. Pinhalão/PR: Artgraf, 2014.
Enviado pelo poeta.

Machado de Assis (Questões de maridos)

— O subjetivo... o subjetivo... Tudo através do subjetivo. — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.

Era um sestro. Outro sestro era sacar de uma gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço pertencia a uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era a tia delas, mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e asmática. Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico.

Luísa e Marcelina eram os nomes das sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres.

— Coisa extraordinária! disse o professor à mulher um dia.

— Que é?

— Recebi duas cartas, uma do Candinho, outra do Soares, pedindo... pedindo o quê?

— Diga.

— Pedindo a Luísa...

— Os dois?

— E a Marcelina.

— Ah!

Este ah! traduzido literalmente, queria dizer: — já desconfiava isso mesmo. O extraordinário para o velho professor era que o pedido de ambos fosse feito na mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher, que as leu, e aprovou a escolha. Candinho pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar muito delas.

As sobrinhas, quando o tio lhes comunicou o pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que ambas declararam aceitar os noivos; nem que o professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos dois candidatos.

Outra coisa que não digo, — mas é por não saber absolutamente — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles e, às vezes não diziam nada, deixando-se estar com as mãos presas e os olhos no chão. É que realmente gostavam dos noivos, e eles delas, e o casamento vinha coroar as suas ambições.

Casaram-se. O professor visitou-as no fim de oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os primeiros meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as sobrinhas ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas semanas de estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor recebeu de Luísa:

Titia,

Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los.

Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la também.

Até breve, escreva-me, lembranças a titio, minhas e do Candinho.

Luísa.

 Marcelina não escreveu logo, mas dez ou doze dias depois. A carta dizia assim:

 Titia,

Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve.

 Marcelina.

— Vejam, comentava o professor; vejam a diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma palavra do Soares. Minha mulher não reparou na diferença, mas eu notei-a, e disse-lhe, ela entendeu aludir a isso na resposta, e perguntou-lhe como é que uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos. A resposta foi esta:

Titia,

Recebi a sua carta, e estimo que não tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.

Pergunta-me por que é que uma moça, casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos? Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de estar alegre?

É verdade que esses momentos meus são compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim, ficaria admirada. Mas, enfim, Deus é grande...

Marcelina.

— Naturalmente, a minha velha ficou desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada pela promessa, escreveu o seguinte:

Titia,

Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.

É verdade, titia, padeço muito, muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo aborrecimento.

Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça...

É isto que queria ouvir? Pois aí tem. Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do coração.

Marcelina.

— Ao mesmo tempo que esta carta chegava às mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra de Luísa:

Titia,

Há muitos dias que ando com vontade de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser sem falta, embora a carta saia pequena.

Já lhe disse que continuo a ter uma vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah! titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los. Escreva-me.

Luísa.

E o professor, empunhando as cartas lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia tão desgraçada.

— Consultou-me se devia indagar mais alguma coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela; respondi-lhe que não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta. Passaram-se três semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra de Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.

Titia,

Ouvi dizer que tinham passado mal estes últimos dias. Será verdade? Se for verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos bem, ou como Deus é servido. Não repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.

Marcelina.

A outra carta era longa; mas eis aqui o trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia assim:

... Em suma, titia, foi uma noite cheia, principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez mais angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também quando era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até breve, para irmos ao teatro juntas.

Luísa.

— As cartas continuaram a subir, sem alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós afinal já estávamos acostumados com a situação. De certo tempo em diante, houve mesmo de parte de Marcelina uma ou outra diminuição de queixas; não que ela se desse por feliz ou satisfeita com a sorte; mas resignava-se, às vezes, e não insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.

O professor leu ainda muitas cartas das duas irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram, principalmente, características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las; mas vai o trecho principal. O de Luísa era este:

... O meu Candinho continua a fazer-me feliz, muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não houve, nem haverá; digo isto porque é a verdade pura.

O de Marcelina era este:

... Paciência; o que me consola é que meu filho ou filha, se viver, será a minha consolação: nada mais...

 — E então? perguntaram as pessoas que escutavam o professor.

 — Então, quê?... O subjetivo... O subjetivo...

 — Explique-se.

— Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...

Fonte:
Publicado originalmente em A Estação, em 15/07/1883.
Disponível em Domínio Público 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 32

 

Humberto de Campos (A lição)

- Toma cuidado contigo, Enedina! – recomendava a bondosa D. Matilde, repreendendo a filha. - Essa mania de bailes, de festas, e passeios e esses vestidos muito curtos e muito decotados, podem prejudicar-te. É preciso um pouco mais de decoro, de zelo, de discrição. Isso, assim, não vai bem!

- Ora, mamãe! - respondia a linda moça, num muxoxo. - Mamãe não quer, então, que eu me case?

- Quero, sim! Mas não é assim, indo a toda parte, e mostrando as pernas até os joelhos, e o colo até o estômago, que encontrarás um bom casamento.

A resposta era, porém, a mesma, com o mesmo estouvamento gracioso:

- Ora, mamãe!...

Sábado último, desejando oferecer à filha uma joia custosa para as futuras festas ao Rei, veio D. Matilde à cidade, e parou, com ela, diante das vitrines da casa Adamo, na Avenida:

- Aquele não te agrada? - indagou, mostrando à moça um dos mais lindos colares da exposição.

- Não! Não quero aquele.

- E aquele?

- Também não quero.

E convidando D. Matilde:

- Vamos ver lá dentro?

Entraram.

- Colares de pérolas ou de brilhantes. - pediu a conhecida senhora.

O dono da casa abriu o cofre forte, pondo-lhes sob os olhos um chuveiro de pedrarias.

- Quero este! - pediu a moça, batendo as mãozinhas, contente.

No automóvel, de caminho para casa, D. Matilde indagou da filha:

- Achaste mesmo esse colar muito bonito?

- Achei-o, sim!

- Mas havia outros mais bonitos, na vitrine.

- Havia.

- Por que não escolheste um deles?

E a moça:

- Mesmo. Porque estavam tão expostos, tão à mostra... Toda gente já os viu! Este, não e, com certeza, há de despertar mais interesse, mais curiosidade! Não é?

A estas palavras, D. Matilde sorriu, carinhosa, e, tomando nas suas mãos enluvadas, as mãozinhas de neve da sua Enedina, observou-lhe, maternal:

- Minha filha, sirva-te isto, pela última vez, de lição. Os homens são pelas mulheres o que as mulheres são pelas joias: preferem as que se acham guardadas, recolhidas, às que vivem permanentemente no mostruário, expostas a todas as vistas! Aproveita, tu própria, minha filha, a tua experiência!

E beijando-lhe a testa, bondosa:

- Sê discreta e modesta para seres desejada. Ouviste?

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVI


A paz intensa e sensata
constelando à gratidão,
é luz que adentra na mata
em noites de escuridão.
= = = = = = = = = 

As pedras erguem barreiras
represam águas e lama,
traçam limites, fronteiras,
base firme pra quem ama.
= = = = = = = = = 

Distante, sobre o horizonte,
numa linha imaginária,
o sol atravessa a ponte,
surge a noite hereditária.
= = = = = = = = = 

É melhor fazer e errar
na busca da solução,
que acomodado e gerar
grave erro por omissão.
= = = = = = = = = 

Em qualquer lugar que vá
promova a literatura,
relendo os passos, está,
reconstruindo a cultura.
= = = = = = = = = 

Flor do campo, nobre enfeite,
feito pela mão divina,
mastro em cor onde o deleite
ao lado da "flor" germina.
= = = = = = = = = 

Grécia antiga, antiga Atenas,
berço da Filosofia,
não só da cultura apenas,
também da sabedoria...
= = = = = = = = = 

Homens fortes, protetores,
vanguardeiros nos caminhos!
Sede mais que plantadores
plantai flores, nunca espinhos!
= = = = = = = = = 

Liberdade não se exprime
com gestos de rebeldia,
nenhum conceito a define
sem bom-senso e isonomia.
= = = = = = = = = 

Luz, um sinal companheiro,
que com seu brilho nos guia,
se à noite tem o “Cruzeiro”
tem-se o Sol durante o dia.
= = = = = = = = = 

Nada tem com mais valor
que uma vida em plenitude,
até quem planta uma flor
colhe frutos de virtude.
= = = = = = = = = 

O mundo parece grande
porque nós somos pequenos,
quando nosso ser se expande
maiores nos parecemos.
= = = = = = = = = 

O planeta está doente
e precisa ser tratado,
requer tratamento urgente
além de ser respeitado,
= = = = = = = = = 

Os que só vivem matando,
num mundo de travessuras,
poderão estar cavando
suas próprias sepulturas.
= = = = = = = = = 

São Marcos celebra a vida
numa festa sobre as pistas,
da Senhora Aparecida
e dos bravos motoristas.
= = = = = = = = = 

São Marcos, povo feliz...
Tem no alto a cruz do Calvário,
no centro a Igreja Matriz
sendo a fé o vivo sacrário.
= = = = = = = = = 

Se a lei disser pra você
que algo deve ser cumprido,
nunca pergunte, por quê?
Somente cumpra o pedido.
= = = = = = = = = 

Se alguém te pedir um pão
dá-lhe mais, tira-o da rua,
porque a fome desse irmão
amanhã pode ser tua.
= = = = = = = = = 

Sempre que numa oração
o sujeito lhe faltar,
não será por omissão
mas oculto pode estar.
= = = = = = = = = 

Se um lacre for violado
nos faz levantar suspeitos,
de um produto adulterado
ou repleto de defeitos.
= = = = = = = = = 

Toda a humanidade fica
vulnerável na maldade,
porém nada a identifica,
mais que a solidariedade.
= = = = = = = = = 

Todo encontro inaugural
se reveste de harmonia,
enche de luz fraternal
sem a qual paz não teria.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.