terça-feira, 29 de agosto de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “03”

 

Francisco José Pessoa (Estaleiro versus Titanzinho)

Fim de tarde melancólico no pontal do Mucuripe... lá em cima, o céu aos poucos se enluta; cá embaixo, maré seca, pequenas ondas tênues pouco encrespadas teimam em beijar a praia do Titanzinho, como se fora o derradeiro afago.

Uma folha de jornal quase desfeita se abraça a um coral vigilante que veio tomar fôlego na superfície. Eis a chave do mistério para tanta tristeza.

A cada momento seguinte, numa suave nuança, a abóbada celeste também lacrimeja piscando estrelas, ao ouvir atentamente os soluços do mar que, desesperado, roga aos deuses do Olimpo pela sobrevivência daquela praia, criatório de talentosos equilibristas de pranchas que hoje surfam na crista da onda em competições internacionais. E não é só disso de que se alimenta a Titanzinho, pois, viveiro de variadas espécimes de peixe, faz-se cardápio para os praianos que vivem em seu derredor.

Nem tudo são flores, no dizer do poeta, na praia do Titanzinho. A nossa sociedade míope enxerga-a como uma zona franca da prostituição, paraíso para os marinheiros sedentos e famintos que arriam âncora em nossos mares. Relegada ao esquecimento, ela tornou-se lembrada por jovens que se aventuram no trágico mundo do tráfico. Existem titãs, paradoxalmente, sem forças, que procuram maiusculizar a Titanzinho. São nativos de pele crestada que cheiram a maresia, cujos vagidos se confundem com o roçar do peito das ondas no dorso da praia, ou que nasceram no meio do mar e foram atraídos pelo canto das sereias, com a missão de diminuir a dor daquele povo sofrido.

Quão bom é ver e sentir o lado bom da comunidade Serviluz, que busca servir a luz para nossos irmãos que portam óculos escuros em noites trevosas.

Sob o teto de um azul já escurecido e o gotejar de lágrimas vindo de estrelas chorosas e refulgentes, pois que a lua ausente se fazia, pus-me a meditar naquela noite fria, fitando quase às cegas o lúgubre horizonte. Eis que me envolve os pés, já desbotada, aquela folha de jornal liberta dos corais, indecisa no seu ir e vir por tantas vezes no alcançar da praia, sem saber que trazia a chave do mistério, do porquê de tanta tristeza naquela praia condenada a desaparecer.

- MORTE ÀS PRANCHAS! VIVA O ESTALEIRO!... Lia-se com dificuldade as letras garrafais embaralhadas na página molhada.

360, Tubo, Cabuloso, Casca grossa, Kaó, Maroleiro, são gritos de guerra que tendem a perder eco naquela praia pequena que se fez grande aos olhos da Transpetro, empresa gerenciada por um cearense que na sua juventude, desfrutou dos distintos sabores que aquele pedaço de chão O mar lhe ofertou.

"é doce morrer no mar"... Que esta ideia de estaleiro na Titanzinho pereça sob as ondas que carregam no dorso nossos surfistas campeões. E os paquetes domados por homens de pele crestada e braços fortes sorrirão onda após onda, num duelo saudável entre o jangadeiro e aquele mundão d'água que lhe garante a sobrevivência.

Por um momento, submergiu a folha de jornal. Cá, na superfície, flutua a decisão dos nossos governantes; um sim, um não, conforme a maré...

Titanzinho, se morreres, morro contigo!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Enviado pelo autor.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 9


DOCE MAGENTA & TEXTURA


Entre as páginas do livro -
A poesia entreaberta
Recebe o bailar da Luz e sombra -
Diáfana por do sol...

Cores, recantos, da Holanda,
Das telas de Monet,
Saudades dos moinhos -
Ninhos de ventos
Pétalas dobradas...
Doce Magenta
Em silêncio, abraçando
As palavras, os versos,
E as anotações ao pé da página -
Inclinadas pétalas
De origem tão distante
Atemporais tintas -
Esmaecidas tulipas...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

FAÇO-ME LÁGRIMA

Quando àquelas distantes
nuvens
Nublam teu olhar
(Abraço teus tons
de gris)
Abro e
fecho
parênteses
E inebriada, silencio-me

Faço-me lágrima
Para deslizar dos teus cílios,
Alongando desejos
De te beijar
E desaguo no cantinho
Dos teus lábios
E, assim desperto uma pontinha
Do teu sorriso...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

MONJOLO

A madeira antiga
Dilui-se com a passagem
Do tempo, tempo
Que afaga teus contornos...
A madeira antiga
Resiste e ainda
Insiste, em sobreviver,
Mesmo com a ausência das águas,
Mantém vivo
O som distante
E repetitivo.
Da teu cadenciado toque...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

OUTONO EM TÊMPERA

O vento menino
Que guardei na tela
Com as quatro folhas
plátano -
Hoje, de manhãzinha
Deixou a têmpera e,
Despedindo - se do Canson
Visitou - me...
Ah, esse ventinho
Que acaricia meu rosto
E envolve cada pérola
Do colar, com teu perfume...
Esse aroma de Amor é encantado -
Paleta com outonais cores
A fluir em meu corpo e alma

Teu vento menino
Refaz em nosso céu
Àquele... coração de nuvem
E nessa manhã fria
Teu carinho em fios.
Douradas filigranas
Cintilam em nosso
Ninho de orvalho -
Teu carinho
É o meu solzinho...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

POÉTICO ABANDONO

As folhas de hera cobrem tuas paredes,
Portas, janelas e varandas,
Lembrando verdes demãos
de tintas,
Afagos a protegê-la das
intempéries...
A escada com nove degraus, ainda,
Preserva parte do mármore,
A porta principal, já sem a dourada
Maçaneta é aberta com facilidade,

E a cada passo, sinto a solidão -
Um silêncio especial espreita-me
Nos gastos tapetes, no piano
Deixado à própria sorte,
Sonhando com Debussy...
A alma da casa abandonada
Refugia-se em imagens e sons
Do passado -
Continuo minha aventura -
Caminhada, sem pressa, com o olhar
E, curiosa, abro mais uma porta,
Encontrando, janelas sem vidros
Que deixam o canto dos pássaros
Mais próximos, fazenda parte
Da linda, mas esquecida, adega
As garrafas de vinho,
Sem rótulos e rolhas
(Nuas - vazias)
Ocupam prateleiras
Como se livros fossem -
Lunetas encantadas
Intocáveis,
Umas sobre as outras
Cobertas por camadas de poeira
Lembram uma segunda pele
Imagino diálogos entre
As garrafas e as partículas de pó,
E a sonolenta cadeira, sem palhas,
A observá-las...
Ah. esse aconchego da passagem
Do tempo, tatuando objetos e sonhos -
Tempo, que tudo desgasta, esmaece,
(Enferruja)
Leva os sorrisos e, aos poucos
Ávida desaparece...
Choro com ela, sinto
Na casa adormecida
Um poético abandono,
Quem sabe,
Ela despertará
Em uma futura aquarela,
Quem sabe?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

PRENÚNCIOS

Sensível, o olhar
Pousa na fonte
Repleta,
De falhas do plátano,
Sinto a poesia
E solidão do cântaro...

Distancia-se o pensamento,
O venta sussurra teu nome...
E, nas esmaecidas e diáfanas cores
De mais um por do sol -
Prenúncios de Saudade...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TRÊS SÍLABAS

Noite outonal -
Estava a três passos
De reencontra-lo,
Antigo piano -
Debussy...
Durante as aulas
Ficava com meu caderno
Próximo de ti
Tínhamos
Conversas
(Segredos) -
E, em silêncio
Nos olhávamos...
Não tivemos
Tempo de despedidas,
Estava a três passos
De ti, mas há
Um mundo de distância
Entre nós -
Solidão,
Apenas, três sílabas
Contidas em um universo
De saudade...

Fonte:
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.
Enviado pela poetisa.

Sonia Regina Rocha Rodrigues (Homenagem à Sophia Leite Cruz)

Pura luz

Qual uma esteira de prata,
O luar cai sobre a areia,
e o mar, numa serenata,
faz trovas à lua cheia!
Sophia Leite Cruz


A poetisa santista Sophia Leite Cruz, que, ao final do século vinte, residia em Santos, sofrendo de mal de Parkinson há mais de dez anos, infartou. Sophia foi uma das pessoas mais alegres que conheci. Se alguma de nós entrasse esbaforida, a lutar com o guarda-chuva, em dia de vento, ouvia-se Sophia a rir:

O vento passa, curioso,
Por entre frondas e faias,
e levanta, malicioso,
a barra de tuas saias.


Posso imaginar Sophia, que sobreviveu ao ataque, acordando na UTI, ao lado de uma dessas desprestigiadas profissionais da saúde, de olhar desiludido e semblante amargurado, mecanicamente a trocar um frasco de soro, e murmurar um ‘obrigada, querida’ seguido de uma rima:

E que caminhes sempre firmemente
A cada passo, uma conquista a mais,
Tendo no peito muita paz somente,
Anjo de Amor, orgulho de teus pais.


E acrescentando:

- De teus pais e de nós, teus pacientes.

Pronto; lançado o encanto, a face da moça se transformaria, surpresa.

E quando o médico se aproximasse a perguntar pelo coração de poeta, ela responderia:

Em busca de beleza e pelo amor,
Corre o poeta a soltar-se no espaço.
Leva no verso a força e o resplendor,
Não mede esforço, despreza o cansaço.


E o médico, a provocá-la:

- Não cansa mesmo, avozinha? Depois de horas a escrever, não cansa, não?

E Sophia afirmaria:

E a pena corre firme no papel
e exprime com fervorosa emoção,
artista a debuxar com seu cinzel,
as fímbrias fundas de seu coração.


Ora, há muito que a pena de Sophia não corria firme em lugar algum, motivo pelo qual o banco lhe cancelara os cheques e ela se ajeitara ao teclado de um computador, digitando pacientemente, dedo a dedo, uma letra por vez, persistente.

Quando o médico hesitasse em revelar-lhe a verdade sobre sua saúde, ela, esperta, o interromperia:

Não dirijas tua vida
Buscando luz na mentira.
Vê que a verdade sofrida
Seja mesmo tua mira.


Coração forte, o de Sophia! Após longos anos de doença, ela erguia o rosto risonho e enfrentava o que fosse.

A enfermeira, mais animada, conversaria com ela sobre a cidade, tão bonita, berço de renomados poetas, e Sophia concordaria:

Os jardins de nossas praias,
Possuem lindos recantos.
Entre alfambras, flores, faias,
Fazem a graça de Santos!


Depois de tomar seus remédios e despedir-se das visitas, Sophia se prepararia para dormir, despedindo-se assim:

É tão gostoso adormecer assim,
pela madrugada misteriosa,
sorver no espaço o aroma do jasmim,
Apaixonado pela rubra rosa!


As amigas, para animá-la, riam e atiçavam:

- Sei não, não era bem assim que um certo ‘alguém’ ouviu estes versos, não! Como eram mesmo?

Sophia, alegre, relembrava os versos feitos ao antigo namorado:

É tão gostoso adormecer assim,
no limiar do sonho, um beijo teu,
em revoada como um querubim,
buscando rápido um carinho meu.


A enfermeira, admirada, lhe perguntaria, curiosa:

- Avozinha, como consegue declamar tão facilmente, assim tão à vontade com as palavras e as rimas?

A mesma pergunta eu já lhe fizera e obtivera como resposta:

- Eu penso em decassílabos...

Cartões de Natal, vindos de Sophia, só rimados:

Natal! E toda a celeste legião
Festeja o nascimento de Jesus.
Anjos e arcanjos sorridentes vão
em cada estrela colocar mais luz.


Assim era Sophia, imersa em poesia, sem deter-se nas contrariedades presentes na paisagem da vida, buscando a beleza, focando no Bem.

Anos mais tarde, ela se foi, e deixou-nos seu exemplo de vida. Seu enterro, ao que sei, foi concorrido, e seus amigos poetas foram cantando acompanhar o caixão.

Sophia, como os gregos do Parnaso, buscava a Excelência.

Tendo seus talentos reconhecidos pelos prêmios que recebeu, pelas entidades das quais participou, pelos leitores do seu jornal poético O Espaço, Sophia realizou seu desejo de publicar seu livro Um Grande Sonho.

Para muitos que a conheceram, ela personificou o sonho.

Bibliografia:
Um grande sonho – Sophia Leite Cruz - 1992
Em Verso e Prosa – AFCLAS – 1998
Antologia A lua e a Pena – APEBS - 1995
Antologia A lua e a Pena – APEBS - 1996


Fonte:
Enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Almas carentes)

“A solidão era tanta, tanta e tamanha, que entrelaçava seus corações até antes mesmo de terem nascido”.
Tompson de Panasco
    

TINHA MAIS QUE MORRER O SUJEITO.  Vagabundo, desocupado, vivia pelas ruas andejando com visível dificuldade, batendo de porta em porta, vomitando a sua impotência desenfreada a quem cruzasse com ele. Tomado pelo instinto de um esmoleiro dos tempos medievais, parecia preso numa piedade calada. Aqui e acolá, implorava restos de comida, pães velhos, roupas fora de uso. E quem doasse alguma coisa - se esperasse um muito obrigado ou um Deus lhe pague - fosse tirando o cavalinho da chuva.  Aquele homem não abria a boca de jeito nenhum, para agradecer um nadinha que lhe fizessem.

Além de todos esses defeitos, terrivelmente mal-agradecido. Sem vergonha e descarado, atrevido e impávido, quando cruzava com mulheres bonitas, abria-se em gracejos e mesuras. Fazia piadinhas sem graça e pesadas. Deixava as boquiabertas raparigas com seus rebolados perdidos, inclusive as senhoras que não tinham mais rebolado, fisgadas pelo avanço da idade. O certo é que tais velhotas coravam boquiabertas e desgostosas com o infeliz.  

Um dia, um bando de desocupados e desordeiros deu-lhe algo forte para beber, e o colocaram a pique. Deu "tilte" no cabeção. Quando as irmãs do convento de São Francisco de Assis, por acaso, atinaram com o pobre, jazia o coitado, caído de bruços, numa vala aberta recentemente pela prefeitura nos arredores da cidade, as roupas quase a despencar do corpo mal nutrido e debilitado de saúde. Penalizadas, avisaram o Padre Gregório, que imediatamente providenciou uma equipe da pastoral. Resgatado, levaram-no para o banheiro público (cidadezinhas do interior tem muito desses WCs coletivos) e deram-lhe aos costados, um chuveiro em regra.

Trocaram as roupas farropoídas por novas. Fizeram-lhe a barba, apararam os cabelos e ainda descolaram um par de sapatos e até um paletó fora de moda, mas bom. Como para ele não havia isso de moda, a nova vestimenta veio a ser útil demais, até porque não se tinha notícia de algum dia os habitantes lhe terem visto vestido num paletó.

Dessa maneira, aquele andarilho, de repente, tornou-se até bem-apessoado, de personalidade firme e maneiras delicadas. Seu rosto sem a barba de semanas apresentava um aspecto jovial. Quem o visse agora, não daria para ele vinte e poucos anos, embora pela certidão, ou melhor, pelo que havia sobrado do documento, contasse trinta e cinco. Vendo-se assim, tão remoçado, o próprio não se reconheceu no espelho que lhe botaram na frente dos olhos espantados.

De fato, aquela tez refletida, deveria ser outra, menos a dele, o desgraçado, o traste, que vivia de deu em deu. “Que homem bonito – pensou com ares narcisistas – parece até artista de cinema”. Ao diabo, fosse quem fosse. Se o espelho estava ali, plantado diante de seu nariz, só poderia ser ele mesmo. Danasse o resto e tudo mais!

Bonito, simpático, atraente, passou a fazer as refeições junto com o padre, na casa paroquial que ficava colada a igreja. Poderia, agora, quem sabe, se desse a sorte, arranjar uma namorada. Mas naquele lugarejo... nenhuma rameira, ou dama que prezasse a honra, iria querer flertar com um borestia (folgado) daqueles... mesmo as encalhadas se candidatariam a viver ao lado de um homem que ninguém sabia de onde tinha pintado, se fugitivo da justiça, ou procurado por dever qualquer coisa à sociedade.

Somente ele sabia de onde provinha. Somente ele tinha as respostas e poderia falar abertamente do passado. Contudo, pobre mendigo, desprezível alma que ninguém dava importância. A ninguém interessava saber ou entender que, outrora, ele fora um rico e abastado fazendeiro, que tinha mansão, carro do ano, lojas de comércio, muitas terras, uma centena de empregados, mulher bonita e uma filha maravilhosa. Nos dizeres de Ovidio, “Donec eris felix, multos numerabis amicos; tempora si fuerint nubila, solus eris”*. Verdade, por sinal, incontestável.

O que se apurou depois, a companheira, sem mais nem menos, o abandonou e foi embora para outra localidade, a tiracolo com um sujeito esquisito, levando a filha de quinze anos (na época) e nunca mais dando sinais de vida. Ele, apavorado, sem saber o que fazer, ficou desatinado, alienado. Andou, procurou, fez mil loucuras, porém não soube, jamais topou com o paradeiro de sua consorte. Abestado e mentecapto, abandonou o sítio, as terras onde plantava café e virou andarilho. Na sua pequena e pacata Andirá, interior do Paraná, morador por mais antigo que fosse saberia dar notícias precisas. Nem da mulher ou da filha, ou do elemento que, com elas, se debandara.

Por isso, ele se tornara um nômade cigano, sem porto seguro, a vagar errante de cidade em cidade, sem paradeiro certo, alma vazia, comendo, vivendo, e se mantendo a custas da ajuda alheia. Quem, naquela localidade, iria se interessar por ele? Ninguém. Viva alma se atreveria a descer tanto... de novo com suas dores e misérias, lembranças e medos, abandonou o aconchego do padre Gregório e voltou à malfadada e incerta vida de João Ninguém.

Nem mesmo outra ambulante que há quinze ou vinte dias chegara e rodopiava por ali, igual a ele, vinda de algum eito com as suas típicas imundices, ou talvez, pior em flagelo, pudesse ser comparada. Moça bonita lembrava Oriana, amada de Amadis de Gaula**, apesar de seus olhos tristes e sofridos, as roupas frangalhadas, porcamente cobrindo um corpo escultural, os cabelos compridos em desalinho, figura que em pouco tempo tornou-se conhecida da galera pela ternura e meiguice que transmitia. Só tinha o defeito de ser pobre e a falha de ninguém saber de onde havia aparecido.

Coisa de dois sábados, o imprevisível criou vida e forma. Ambos se encontraram na praça, se viram em relance ligeiro. A beldade, num ímpeto fugiu alígera, porque ele quis maliciosamente, levantar a sua saia (ou o que restava dela) visando apreciar melhores perspectivas. A gargalhada dos transeuntes se generalizou. Uns queriam se divertir, outros acharam afrontoso. Teve meia dúzia de apressadas bocas que cuspiu no desgraçado rejeitos. Pura maldade. Padre Gregório apareceu de repente e lascou um sermão nos insensatos e a coisa caiu no esquecimento.

Todo esse incidente não passou de um fato a mais na pacata localidade, que logo em seguida mergulhou no marasmo rotineiro de sempre. Porém, uma semana após esse quase desentendimento entre o casal de indigentes, aconteceu uma coisa que espantou a todos, desde os cidadãos mais honrados, as damas da alta sociedade com suas riquezas à ponta do nariz, até os menos abastados pela sorte.

Tudo aconteceu numa chuvosa manhã de domingo. Ninguém avistou o mendigo pelas ruas e calçadas. Criaturas mais afoitas, perguntaram daqui e dali, mais por questão de desencargo de consciência, que por solidariedade. O fato é que durante todo o domingo ninguém avistou o rapaz. De roldão, tampouco a moça. Entretanto, na quarta-feira à tarde, um bando de garotos que brincava pelas redondezas da linha do trem, achou, num terreno baldio, dois corpos. O primeiro pertencia ao sem rumo que vivia de porta em porta pedindo comida e um copo de café.  

O segundo, da infeliz menina que chegara fazia pouco. Estavam de mãos dadas, rostos muito unidos, como se pretendessem eternizar um longo e derradeiro beijo de despedida. Os habitantes deduziram que o mendigo encontrara a garota numa ruela qualquer e a tivesse arrastado para o mato, a fim de violentá-la. Porém, dias mais tarde, em face da estação de rádio noticiar os fatos, o jornaleco publicar fotografias da dupla, a polícia civil entrar em ação, o ministério público se fazer presente, etc., e tal, investigadores e repórteres de uma dezena de emissoras de televisão se deslocaram da capital e até autoridades da longínqua Andirá para desvendarem o mistério.

E desvendaram. O pobre homem, abastado fazendeiro do norte do Paraná, que saíra pelo mundo feito louco, em busca de sua família, ou a procura da paz para si mesmo, finalmente fora abençoado com o evento benfazejo do objetivo que incansavelmente procurava. A moça, nada mais, nada menos, Érica, sua filha. O rebento que ele tanto especulou encontrar na sua triste e melancólica vida de solitário. Ambos (não se sabe como) se reencontraram naquele fim de mundo, e não se teve explicação plausível, de como se reconheceram, e pior, ninguém soube aclarar pormenorizadamente como bateram de frente com as garras frias da morte.

Um pequeno grupo de comerciantes a pedido do padre Gregório, em sintonia com as irmãs do convento de São Francisco de Assis, providenciou os enterros de pai e filha, com direito a velório, flores, gente chorando, cantoria, missas de sétimo dia... e até quermesse. Na verdade, o mínimo que poderia ser feito (e, diga-se de passagem, puseram em prática), para que dois seres humanos não fossem enterrados em covas rasas no pequeno cemitério local, como simples indigentes.

Atualmente, uma estátua enorme (“Almas Carentes”) se vê à entrada de quem chega ou sai dos arredores para a rodovia que interliga a São Paulo. As honras e os galardões recaíram claro, no atual prefeito, que trouxe para as redondezas, uma multidão sem conta de turistas e curiosos que deixam uma soma considerável em dinheiro nos restaurantes, bares e quiosques da (até então, antes e pacata) cidadela incrustrada entre montanhas e rios entre outros atrativos da natureza a se perderem de vistas.                       
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =
*"Enquanto fores feliz, contarás muitos amigos; se os tempos estiverem nublados, estarás só"

**Amadis de Gaula é uma obra marcante do ciclo de novelas de cavalaria da Península Ibérica do século XVI. Apesar de se saber que a obra existe desde, pelo menos, o século XIV, a versão definitiva mais antiga, atualmente conhecida, é a de Garci Rodríguez de Montalvo, impressa em língua castelhana em 1496, provavelmente (a edição mais antiga conservada é de 1508), e denominada Los quatro libros de Amadís de Gaula. Tudo indica, contudo, que a versão original era portuguesa e muito anterior. O próprio Montalvo reconhece ter emendado os três primeiros livros e ser apenas autor do quarto. (wikipedia)


Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões n. 13)

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 90

As noites de invernia geladas nos carrascais exigem melhores cuidados dos dormidores que amanhecem com a geada nos costados de suas camas.

Noites em que fogões varam madrugadas crepitando achas e os braseiros alumiam e inspiram pensamentos.

Nos momentos tiranos em que a estação do frio congela os passarinhos na galharia, eu construo meu cockpit - cobertores, dois travesseiros, acolchoado - para fazer a travessia da noite, chegando ao amanhecer com os primeiros raios quentinhos do sol.

São contingências que nos envolvem de maneira diferente enquanto viajamos nas asas do Tempo de estação em estação.

Calores janeiros, folhas secas de maio, friagens de julho, os matizes da primavera - delícias a seu tempo pondo a vida em constante frenesi. Somos viajeiros auscultando vozes, inalando ares puros e aromas dulçurosos, vivendo a vida alumbrados pelos caminhos do sem fim.

 Fonte:
Texto enviado pelo autor

Carolina Ramos (Bleu)

Uma questão puxa a outra, e nem a narrativa segue a ideal ordem cronológica. Exemplo: - Este Bleu, que se inicia, pertence a uma fase anterior ao que foi acima vivenciado. A inversão pecaria contra a espontaneidade e assim, que tudo fique como está. A esclarecer que, no caso anterior, se dezesseis era a Idade da protagonista no presente relato, a protagonista teria apenas nove ou dez anos, embora os sentimentos por aquele gatinho especial, perdurem até hoje.

- Bleu... Era o meu querido gatinho azul! Sim, azul… ou, cinza azulado, para ser mais fiel. Lindo demais! E por demais querido, também! - Paixão à primeira vista!

Numa das férias passadas em Campos do Jordão, durante um passeio, encontrei-o à porta de uma casa. E simplesmente encantei-me por ele! Foi vê-lo e compra-lo! – Ou melhor, comprou-o minha mãe, para felicidade da filha, mas, tenho certeza de que também ela se apaixonara pelo tal gatinho azul, realmente fora de série!

O gato dos meus sonhos! E dos sonhos de qualquer criança que o tivesse visto, ainda que por só uma vez! Escrevi, posteriormente, um conto infantil, "O Gato Azul", do qual é personagem principal.

Bleu encantou minha vida por algum tempo, companheiro inseparável, até mesmo nas horas de estudo. Dói-me pensar nele. Porquê?

Encurto a história por ser triste:

- Certa noite... dolorosa noite! Não sei como aquilo pode acontecer... Contudo, infelizmente, aconteceu.

Naquela noite escura e fatídica... de tão triste memória, meu gatinho azul foi dolorosamente atropelado pelo carro de meu pai, à entrada da garagem.

Pude ver o desgosto estampado no rosto daquele pai acentuar-se ante o desespero da filha! - Nem é bom lembrar! - Que este relato, embora indispensável, seja breve e o silêncio sepulte a dor que, tanto tempo depois, ainda dói!

Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVII


Ao aroma que a flor exala
não tem outro similar,
perfuma o jardim e a sala,
como o filho enfeita o lar.
= = = = = = = = =

As lembranças de algo ausente
com tons de felicidade,
fazem jorrar no presente
fortes chuvas de saudade.
= = = = = = = = =

As vozes, que às vezes, ouço
ecoar com vibrações,
são murmúrios no arcabouço
das tenras divagações.
= = = = = = = = =

Cada luzeiro disperso
brilhando na noite escura,
torna o festivo universo
com luz, magia e ternura.
= = = = = = = = =

Do que plantas nos caminhos,
lembra, se com fé, cuidares,
não recolherás espinhos
das sementes que plantares.
= = = = = = = = =

Evita que a dor se estenda
muito além do ferimento,
o bom senso recomenda
prudência no tratamento.
= = = = = = = = =

Fiz da vida uma oficina
aonde o meu ser lapidei,
para torná-lo obra prima,
forma de joia eu lhe dei.
= = = = = = = = =

Há quem diga; "não sei nada",
também não quer aprender...
É mais uma alma frustrada
nas escolas do saber.
= = = = = = = = =

Inexiste alguém no mundo
que não queira a perfeição,
nem mudança, num segundo
chamada "revolução".
= = = = = = = = =

Não tem luz, brilhante e intensa,
na ausência de um emissor,
quanto maior, mais propensa,
a estender seu resplendor.
= = = = = = = = =

Não tenha acesso impossível
na estrada da educação.
E o saber, seja acessível,
a quem busca a evolução.
= = = = = = = = =

Nem tudo é tão resistente
que ao forte nada estremeça.
Cresça a força no carente
e unidos ninguém pereça!
= = = = = = = = =

No quadro, por trás da imagem,
há algo que por si nos fala,
faz parte de uma mensagem
que alguém tenta interpretá-la.
= = = = = = = = =

O homem aprende a lutar
contra a morte, tão temida,
mas se esquece de enfrentar
a luta em favor da vida.
= = = = = = = = =

O melhor rumo a seguires,
para ao fim, feliz chegares,
é tua alma, em paz, ouvires
e os teus passos planejares.
= = = = = = = = =

O suor que o corpo expele
consequência de um excesso,
talvez, lubrifique a pele
mas seu peso fica expresso.
= = = = = = = = =

O vento sopra e não tem
um rumo certo e se esvai,
ninguém sabe donde vem
tampouco, para onde vai.
= = = = = = = = =

Por um mistério envolvida
segue temida, a criança.
E a esperança move a vida
na lida rumo a bonança.
= = = = = = = = =

Que as rosas se multipliquem
na roseira e grande as façam,
embora os espinhos fiquem,
as rosas murcham e passam.
= = = = = = = = =

Quem firmar sobre a verdade
seus passos na caminhada,
dissipa o temor que invade
a alma no curso da estrada.
= = = = = = = = =

Sem poder ser combatido
o mal avança e se espalha
e o mortal, sem ter morrido,
chega a prover a mortalha.
= = = = = = = = =

Se não sabes qual a estrada
mais fácil para avançares,
escolhe a menos errada
para o teu sonho alcançares,
= = = = = = = = =

Se o luar, a alma fascina,
com seus dotes naturais,
a luz do sol te ilumina
na estrada, por onde vais.
= = = = = = = = =

Se ontem semeaste em pranto,
hoje, rindo estás colhendo,
mesmo sob a luz do encanto
tudo acaba envelhecendo.
= = = = = = = = =

Toda a névoa matutina
traz calor, ou chuva intensa,
se à baixada ou na colina
mostra a grande diferença.
= = = = = = = = =

Todo homem quando mergulha,
no orgulho, tal prisioneiro,
faz do respeito uma agulha
e do mundo um vil palheiro.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 10: Negócios?

Mesmo debilitada, dona Ana recebeu alta e retornou ao lar sob os cuidados da filha.    

Por quatro dias seguidos, o senhor Antônio permaneceu em casa, dando ordens aos peões e estranhamente pensativo.

Tentando quebrar o gelo, Isadora tentava puxar um assunto e outro, mas o velho apenas balbuciava uns resmungos inaudíveis. Agitado, andando de um lado a outro, como quem procura alguma forma de solucionar um grave problema.

Mesmo em casa, ele entrava no quarto apenas para dormir, nunca para saber da mulher.

Atitude essa, muito incômoda a sua filha. Pois ela sabia o quanto poderia ser significativo o carinho do marido na  recuperação de dona Ana.

No entanto, os dias passavam e ele parecia cada vez mais alheio a tudo.

Depois de tanto tempo calado, o velho quebrou o silêncio:

-   “Fia”, faz uma ambrosia para a sobremesa. Hoje tem churrasco.

- Qual é o motivo da festa meu pai?

- Negócio. Tô fechando um bom negócio com uns xirus da cidade.

- Faço sim. - disse Isadora.

À porta de casa, o velho deu ordem para o Juca "carnear" algumas ovelhas e depois preparar os gravetos para acender o fogo de chão. Pediu também que chamasse os amigos do armazém do seu Feliciano.

- Não é apenas um jantar de negócios, meu pai? Qual o porquê de tanta gente que aparentemente não tem nada a ver com tais negócios?

- Não se mete “fia”, não se mete nisso.

- Com a mãe adoentada na cama, não fica bem fazer festa. Não é o momento.

- “Despois” que de tudo “resorvido” tu vai saber.

- Não tô entendendo. - disse Isadora, muito aflita.

- Explico “despois”. Chega de prosa.

Os peões organizaram uma mesa com bancos compridos para os convidados e, logo após o entardecer, acenderam o fogo. Os convidados foram chegando aos poucos. Todos muito contentes ao se reunirem para celebrar momentos de boa prosa. Em seguida, aos poucos, o sol se recolheu, seus raios dissolveram-se num tom rubro, banhando as nuvens de um vermelho sangue. Os pássaros retornaram aos ninhos, agitados, temerosos. E Isadora, ao olhar para o horizonte pela janela da cozinha, sentiu um calafrio enquanto aquele pedaço de céu, penetrava em seu olhar um raio de vermelhidão intenso, tornando seu olhar de lua em fase de penumbra, em dupla lua de sangue.                                   

Os visitantes da cidade chegaram um pouco atrasados.

- Este é o Pafúncio, um grande arrozeiro, que mora no centro de Cachoeira. E esse é seu “fio”, Fábio. Um guri "bueno", uma barbaridade! - disse Antônio, apresentando os amigos ao povo da fazenda.

Logo após a apresentação, o senhor, Antônio cochichou alguma coisa no ouvido de Fábio, um rapaz de cabelo aloirado, olhos azuis, rosto comprido, na casa dos trinta anos de idade.

Segundos após o cochicho, o jovem direcionou o olhar à Isadora, que por sua vez estava preparando a mesa.

Estavam presentes os peões da casa, os vizinhos da fazenda Boitatá, seu Feliciano e mais de dez homens frequentadores do seu armazém. Enquanto todos comiam, bebiam e conversavam sobre coisas do cotidiano ou contavam causos, Fábio buscava por uma oportunidade para falar com Isadora, que se encontrava muito ocupada, dividida entre as tarefas de servir e de observar a cada vinte minutos o estado de saúde de sua mãe.

No fim da noite, quando quase todos já tinham ido embora, o pai da Isadora parecia ainda muito aceso e numa crescente prosa com o amigo Pafúncio.

Cansado de esperar por uma boa oportunidade, Fábio aproximou-se da prenda, enquanto ela retirava os últimos pratos da mesa.

- Tu és linda, guria. - disse ele.

- Obrigada! - respondeu a moça sucintamente.

Ele tentou puxar assunto, mas ela foi logo se afastando, dizendo que precisava cuidar da mãe que estava acamada.

O rapaz secou o copo num último gole de trago e sorriu à toa, mirando a luz da lua.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =  
Nota de rodapé:
Xirus - plural de chiru. O mesmo que chiru.
Chiru - índio, caboclo, moreno carregado, que tem traços de indígena. Acaboclado, indiático. Expressão que também define, amigo, companheiro.
Trago -  denominação para bebida alcoolica.

 
Fontes das Notas
- Dicionário de Regionalismos. De Zeno e Rui Cardoso Nunes p. 116.
- Dicionário informal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =


continua…
 
Fonte:
Texto enviado pela autora

domingo, 27 de agosto de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 001

 

Humberto de Campos (A caçada)

A noticia de que S. M. o rei Alberto ia realizar uma caçada em terras da família Prado, em São Paulo, trouxe à minha lembrança, tão confusa nestes últimos tempos, o fantasma de uma velha saudade.

Estudante, ainda, na Paulicéia, fui eu convidado, um dia, pelo meu colega de turma, o atual conselheiro Antônio Prado, para um recreio venatório em propriedade de sua família, na serra do Cubatão, onde abundavam, ainda, naqueles tempos, o veado, a paca, o porco do mato, e, em especial, as onças, os famosos tigres americanos, que faziam enorme estrago na criação.

Organizada a comitiva, composta de numerosos cavalheiros da melhor sociedade paulista daquela época, partimos para São Bernardo, indo pousar, ao fim de dois dias de viagem, na fazenda do Encantado, pertencente a Exma. D. Veridiana, no ponto mais alto da serrania. No terceiro dia, enfim, partíamos todos para a mata, montando vinte e oito cavalos e conduzindo quarenta e sete cães, distribuídos pelos diversos membros do séquito.

Separados uns dos outros, ia eu beirando um córrego marulhoso que rolava da penedia, quando ouvi, ao longe, entre a reza religiosa da selva, o barulho da matilha, anunciando a caça. Esporeei o cavalo, venci um bosque de ipês, atravessei uma clareira, e cheguei ao local. Em uma furna da montanha, evitando, feroz, a pontaria dos caçadores, estava uma onça, acuada, mostrando os dentes enormes, agudos, afiados, para uma dezena de cães!

- Atire, doutor! - pedi, apeando-me, ao Dr. Antônio Prado.

- É impossível! - observou-me o futuro estadista.

A posição era, realmente, péssima. Defendido por umas raízes entrelaçadas à boca da furna, o felino não só impedia o avanço dos cães, como impossibilitava, em absoluto a pontaria dos caçadores. Vários tiros já haviam sido disparados pelos atiradores mais adestrados, conseguindo eles, apenas, enfurecer o animal, que empregava toda a sua agilidade na defesa.

De repente, ouviu-se um galope no rumo da furna; e, um minuto mais, apeava-se ao nosso lado, risonha, jovem, arrebatadora, a formosíssima Sra. Corrêa Aires, cuja beleza constituía, então, com o seu moreno rosado, seus olhos azuis e os seus finíssimos cabelos castanhos, o maior dos orgulhos de São Paulo.

- Que é? - perguntou, mostrando, num sorriso, os seus lindos dentes de neve, a furiosa amazona batendo com o chicotinho de ouro na sua pequenina bota de montaria.

- Uma onça! - explicamos, todos, a uma voz.

Nesse momento, a onça. que olhava, fixa, para fora. deteve os olhos na moça, como deslumbrada. A linda caçadora tirou do cinto de veludo uma pistola de caça, de cabo de marfim, levou-a à altura dos olhos, e. fazendo pontaria no felino, que a fitava, esquecido de si esmo, disparou. A fera deu um salto de dor, estorcendo-se. A matilha investiu, latindo, penetrando a furna. Um instante depois era a onça arrastada para fora, morta.

Sorridente. Fresca, maravilhosa, a divina caçadora colocou o pezinho sobre o corpo da fera, buscando-lhe a ferida. De repente, descobriu-a:

- Foi no coração! - disse.

E. encarando Antônio Prado, desafiadora:

- Morreu como certos homens...

Nós, em torno, baixamos os olhos.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público 

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para Refletir) – 2 -


A dúvida e a suspeita
vão juntas na caminhada...
Uma à outra se sujeita,
e vivem de quase nada!
= = = = = = = = = 

Às vezes o riso aflora
para esconder um desgosto.
Há muita gente que chora
sob a máscara do rosto.
= = = = = = = = = 

Às vezes, um pensamento
quando vai, torna a voltar:
a indecisão é um tormento
- pássaro preso a voar!
= = = = = = = = = 

Atrás de um riso insuspeito,
que, no entanto, esconde o luto,
há quem soluce e no peito
amargue o seu pranto enxuto.
= = = = = = = = = 

A tristeza que amofina
o coração de repente
é a saudade peregrina,
batendo dentro da gente.
= = = = = = = = = 

Bem pior do que a certeza
é a dúvida que nos mata:
uma só traz a tristeza,
outra os fantasmas desata!
= = = = = = = = = 

Dizem que é sempre o dinheiro
que tudo compra; no entanto,
quem quer amor verdadeiro
o paga, às vezes, com pranto.
= = = = = = = = = 

É palavra alegre ou triste,
carregada de incerteza,
porque na saudade existe
ainda uma brasa acesa!
= = = = = = = = = 

Esconde o pranto depressa
e finge que estás contente,
que aos outros não interessa
saber as mágoas da gente!
= = = = = = = = = 

Existe muita tristeza
que ao rosto jamais aflora.
guardada na profundeza
dos olhos de quem não chora.
= = = = = = = = = 

Há quem procure o tesouro
do amor num simples clarão,
e acabe como o besouro:
de asas batidas no chão.
= = = = = = = = = 

Há sempre o remanescente
do amor que foge. em surdina...
É a voz amarga e plangente
da saudade em cada esquina.
= = = = = = = = = 

Não turves a água do poço
- que permaneça intocado!
O velho não se faz moço,
larga de vez o passado!
= = = = = = = = = 

O bem e o mal, em verdade,
deixam profundas raízes,
pois até se tem saudade
dos amores infelizes!
= = = = = = = = = 

O ciúme que azucrina
a vida inteira de alguém
é uma lâmina assassina
que duas pontas contém.
= = = = = = = = = 

Quando a dúvida se instala
dentro de um peito infeliz,
não importa o que ela fala,
já se sabe o que ela diz!
= = = = = = = = = 

Quando a saudade campeia
e os olhos se fazem mar,
há milhões de grãos de areia
nas dunas do recordar.
= = = = = = = = = 

Quando deixamos o cais,
é na distância que a gente
aprende a compreender mais
os menos do amor ausente...
= = = = = = = = = 

Quando o passado se abre
numa flor incandescente,
profundo corte de sabre
volta a sangrar novamente!
= = = = = = = = = 

Quem busca um outro lugar
para fugir ao sofrer,
não deixará de lembrar
que é necessário esquecer...
= = = = = = = = = 

Quem gosta de fazer graça,
engana às vezes a sorte;
muita gente que fracassa
apenas se faz de forte.
= = = = = = = = = 

Quem perde a oportunidade
por medo de ser feliz,
não colhe nem a saudade,
que arrancou pela raiz!
= = = = = = = = = 

Se anoitece no teu dia,
pega um facho de luar,
laça uma estrela vadia,
vai outro amor procurar!
= = = = = = = = = 

Se o destino um sonho esmaga,
não chores inutilmente,
pois, se à tarde o sol se apaga,
volta a brilhar refulgente!
= = = = = = = = = 

Ser forte é fugir à chama
do bem que a gente mais quis
quando alguém que muito se ama
consegue assim ser feliz.

Fonte:
Enviado pela Trovadora.
Maria Thereza Cavalheiro. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009.

George Abrão (Dona Florzinha)

Dona Florzinha era uma senhora franzina de olhos vívidos, extremamente simpática. Usava sempre o cabelo em coque e vestia-se com apuro e elegância.

Morava em um casarão numa das esquinas da Praça dona Izabel, ao lado da igreja.

Todas as tardes dona Florzinha postava-se à janela, pois assim dava um dedo de prosa com cada passante e todos, invariavelmente, paravam para conversar, pois sua conversa era inteligente e sagaz, sempre em tom alegre e carinhoso.

Certa feita, já na boca da noite, uma solteirona que morava um pouco abaixo parou para conversar e dona Florzinha perguntou em tom jocoso:

- Menina, você não tem medo de andar na rua a estas horas? E se um tarado te pega?

A moça, então, no mesmo tom respondeu:

- Dona Florzinha, por favor, me avise se souber onde está o tarado. Eu é que quero correr atrás dele.

E riram-se a bandeiras despregadas.

Assim era dona Florzinha, pessoa inesquecível.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiane Braga Lima (O vento outonal)

Eu senti o vento do outono, a minha pele pálida e o meu corpo trêmulo ficou intacto. Plantei sementes férteis e as reguei para que, os frutos ficassem mais doces e as raízes, ficassem mais fortes. Deixei o passado para trás e todo caos enterrei. E pela primeira vez me fiz dona de mim, criando um vínculo com a mãe natureza.

As folhas velhas caíram, pois o vento do outono estava forte e no chão lá estava o passado. Olhei o meu rosto no espelho, brilhava, era um presente, o hoje, as sementes férteis, nas quais eu plantei.

Como mulher, me enxerguei. Eu sei, sempre estarei me emoldurando. Mas quanto ao passado, o vento do outono levou. Enterrei meus eus junto aos cacos. E, o grito que me atormentava se silenciou, dando espaço a uma nova mulher…! Liberta!

Fonte:
Texto enviado pela autora

sábado, 26 de agosto de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 22

 

Maria Amália Vaz de Carvalho (Duas faces de uma medalha)

Ela tinha já feito vinte e cinco anos, ele contava apenas vinte e dois. Era uma criança triste e ambiciosa. Sonhava com o impossível, e nesse sonho criava forças heroicas para todas as lutas da realidade.

Margarida distinguira-o no meio de todos os homens ricos, elegantes, nobres ou poderosos, que a rodeavam e aclamavam rainha.

Na fronte dele, já cavada por duas linhas profundas, lia o que não lera ainda nos outros — o pensamento e a energia.

Sabia, porém, que seu pai, o banqueiro milionário, só a daria com prazer a quem trouxesse mais lustre ou mais dinheiro à sua casa, e tímida, melancólica, sem disposições para as lutas da vida, repugnava-lhe tudo que fosse combate ou resistência.

Tinha ficado doente desde pequenina, era um organismo nervoso e delicado, cheio de caprichos inconscientes, mais artístico do que reflexivo.

Gostava de música, de flores, de versos, das coisas belas e harmoniosas, tinha um vago desdém silencioso por tudo quanto via ser o enlevo e a preocupação exclusiva dos seus.

O dinheiro! Sempre o dinheiro!

Ninguém falava em torno dela senão em dinheiro, e no entanto ela, que vivia num voluptuoso ninho de princesa de conto de fadas, tinha pelo dinheiro em si o mais soberano desdém.

Salvava-a isto da vulgaridade que mais ou menos contamina as mulheres ricas.

Margarida no inverno vivia em Lisboa. Tinha então a vida fútil e ociosa de todas as rainhas da alta vida.

Ia muito a S. Carlos, recebia numa certa noite da semana, presidia aos jantares dados por seu pai, ia passar muitas noites fora, fazia compras, corria as modistas acompanhada sempre por miss Brown, uma inglesa correta cor de açafrão, que seu pai descobrira felizmente numa das suas viagens a Londres.

No meio desta vida artificial tão vazia e tão fatigante ao mesmo tempo, que lugar havia para que ela pensasse, sentisse, desejasse alguma coisa para fora do círculo estreito que a encerrava?

Margarida deixava-se viver.

Um dia, porém, num baile, apresentaram-lhe Eduardo de C., e depois de meia hora de conversação sentiu por ele o que não sentira ainda por nenhum outro. Ficaram conhecidos.

Ele na sombra, de longe, já se vê; ela lá em cima na plena irradiação da sua graça, da sua formosura, da sua opulência, de todo o seu esplendor.

Cumprimentavam-se com uns toques de familiaridade, e num ou noutro baile destes em que vai toda a gente, a boa e a má, tinham-se apertado a mão mutuamente, e tinham trocado algumas frases afetuosas.

No verão, o pai de Margarida, que tinha propriedades em vários pontos de Portugal, consultava a filha para que lhe indicasse a quinta em que mais gostaria de passar as calmas do estio.

Pouco tempo depois do encontro com Eduardo, Margarida, disse a seu pai, que a consultava como de costume:

— Este ano vamos para o Minho, sim? Sinto-me tão fraca, tão doente! O ar do Minho há de por força fazer-me bem.

É verdade que nas vésperas, num baile, Eduardo dissera-lhe, aproximando-se dela:

— Peço licença para apresentar a v. ex.a. as minhas despedidas. Alcancei uma colocação em Viana do Castelo, e parto para ali um dia destes.

— Viana! – pensou Margarida enquanto dois raios de alegria se acendiam nas suas pupilas de um azul sombrio.

— É em Viana a nossa quinta.

Partiram.

Na província a intimidade estabelece-se forçadamente entre pessoas que não pertencem às mesmas camadas sociais. Para se admitir um sujeito em qualquer sala de província exige-se simplesmente que tenha uma educação limpa, e que possua alguma prenda de sociedade.

Em Viana, na sala do grande banqueiro tão altivo e tão inacessível, reuniam-se não só os fidalgos mais primorosos das cercanias, como também os humildes funcionários do Estado, que por aquelas regiões se achavam acomodados.

Margarida, com o seu porte de soberana, o seu sorriso altivo e distraído, a graça ondeante da sua gentil figura, recebia a todos com a mesma benévola indiferença. Todos a contemplavam fascinados e quase medrosos. Ninguém se atrevia a dirigir-lhe finezas banais: de tal modo o olhar dela sabia tornar-se glacial, logo que adivinhava a pretensão de um namorado na amabilidade um tanto desastrada de algum dos seus convivas provincianos.

— Não há aqui um empregado chamado Eduardo de C.? – perguntava um dia na sala, a elegante filha do banqueiro.

— Há. Um rapaz muito estudioso, muito concentrado, que desenha muito bem. - acudiu espevitadamente dali uma menina que fazia as delícias das soirées de Viana, pela sua voz de falsete sempre pronta a torturar os ouvidos do próximo. – Conhece-o?

— Foi-me apresentado este inverno em Lisboa. - respondeu Margarida.

E acrescentou mentalmente: — Quem me dera que ele aqui aparecesse! Como me distrairia de tudo isto que me cerca.

Isto era uma dúzia de cavalheiros da província acompanhados das suas respectivas esposas ou irmãs, tudo gente preocupada dos interesses mais mesquinhos, das pequenas intrigas mais pueris, falando, gesticulando, dançando, tocando, cantando, murmurando e constituindo a única diversão das noites de Margarida.

Não sabemos de que planejava a gentil lisboeta, sabemos que algumas noites depois desta, Eduardo de C. era apresentado por um fidalgote, aspirante e literato, na sala do banqueiro.

Desde esse dia ele e Margarida formaram em comum uma espécie de refúgio contra a frívola banalidade daquelas noites.

Eduardo desenhava com muito chiste caricaturas e graciosos croquis, que Margarida guardava contentíssima; ela cantava com a sua voz meiga e flexível algumas simples melodias alemãs, ou tocava as músicas dos velhos mestres clássicos, tão queridos de Eduardo.

Falavam a respeito de tudo com a liberdade de pessoas que se entendem e apreciam. Discutiam literatura, música e versos. Às vezes, ambos falavam do futuro.

— Que tem intenção de fazer? – perguntava Margarida.

— Ora! Não sei bem. Com certeza hei de fazer alguma coisa. Ando a criar forças para a luta. Há de ser tenaz, há de ser terrível, bem sei, mas eu hei de vencer!

— Quer que lhe dê um talismã para entrar no fogo?

Ele envolveu-a em um olhar ardente; depois, baixando a vista, respondeu quase com violência:

— Não brinque comigo. Olhe, que me faz muito mal.

Margarida sabia que era amada. Também ela sentia por ele o que nunca sentira, mas não tinha coragem para resistir às ordens de seu pai.

Por esse tempo andava ele a arranjar o casamento da filha com o conde de V., um moço que tinha nas veias o sangue dos reis godos, e na cabeça a mais crassa estupidez de que há memória desde o tempo dos ditos.

Margarida sabia ou suspeitava do caso, mas deixava-se ir numa indolência, á mercê dos acontecimentos da sua vida.

Ao pé de Eduardo sentia-se bem, e quando ele a fixava com o seu belo olhar de ambicioso e de pensador, Margarida esquecia-se de tudo que não fosse a delícia de ser preferida por aquele homem.

Numa noite em que os hóspedes habituais estavam na sala, e em que junto da mesa redonda do serão Eduardo e Margarida liam esquecidos de tudo que os cercava, felizes, despreocupados como os dois amantes do florentino, ouviu-se o rodar de uma carruagem que parava à porta do palácio.

O banqueiro levantou-se rapidamente da banca do voltarete e saiu da sala relanceando para a filha um olhar enviesado.

Margarida, sem saber porque, fez-se pálida como uma morta.

— Ó, meu amigo, — exclamou num ímpeto ardente, irresistível, que não soube conter — chegou o fim da nossa felicidade!

Eduardo olhou para ela desvairado.

— Que diz? Que é isso? A que se refere?

Neste momento entrava na sala o pai de Margarida dando a direita ao último herdeiro de nobres avoengos.

— O sr. conde de V... – pronunciou com o orgulho humilde dos burgueses ambiciosos de honrarias sociais, apresentando o recém-chegado a toda a companhia.

Margarida acolheu-o com um sorriso gelado. Conhecia-o, sabia que o pai queria pôr-lhe sobre a cabeça loura e altiva uma coroa de condessa, e sentiu que dentro da alma lhe estalava uma corda que nunca mais tornaria a vibrar!

Dali a seis meses todos os jornais anunciavam na seção do high-life o casamento da filha do banqueiro opulento com o neto dos heróis medievais.

Os noticiaristas fundavam as mais ardentes esperanças neste consórcio que aliava o sangue nobilíssimo e a fortuna colossal, e contavam com grandes minudências as pompas daquela festa principesca, os presentes riquíssimos que a noiva recebera, a toalete desta, a alegria dos numerosos convidados, etc., etc.

O que ninguém sabia é que esse casamento despedaçara duas vidas!

No fim de dez anos o conde de V... dera cabo do dote da mulher, e da vida do sogro, que morreu amaldiçoando-o.

Continuava, porém, a vida à grandes festas, que tinha começado no dia seguinte ao seu noivado, e já havia quem calculasse muito pela rama por quanto tempo podia durar ainda a desenfreada orgia daquela existência de Marialva estúpido.

Na casa da condessa o luxo não se modificara com as aproximações da pobreza. No olhar dela divisava-se uma profunda e desdenhosa indiferença da vida. Nem o amor maternal conseguira salva-la do desespero.

Ligada a um homem que desprezava do íntimo da alma, entristecida para sempre por uma destas recordações que lavram dia a dia, e que por fim se apossam de uma existência inteira, Margarida procurava esquecer-se de si, aturdir-se no turbilhão das festas mundanas.

Os filhinhos estavam entregues ao cuidado daquela pobre miss Brown que ao ver o abandono dos pobres anjos, inocentes das culpas de seus pais, se dedicara por eles com a abnegação profunda de que só é capaz uma inglesa feia!

Margarida passeava de carruagem, ia ao teatro, ao paço, aos bailes, às festas de beneficência, vendia nos bazares de caridade elegante, fazia e recebia visitas, e de vez em quando, se no meio deste turbilhão avistava o marido, media-o de alto a baixo com um olhar de profundo e inconcebível tédio!

Eduardo durante estes dez anos também sofrera grandes modificações na sua vida. Lutara como um homem, e soubera vencer a mediocridade do seu nascimento e da sua posição.

No instante em que aquela que ele um dia amara como a noiva estremecida da sua alma, sentia vagamente afundar-se no sorvedouro negro da miséria, ele recusara altivamente uma pasta de ministro e uma noiva brasileira, possuidora de duzentos contos fortes, isto depois de uma sessão legislativa, em que a sua palavra viva, nervosa, eloquente, colorida e artística havia deslumbrado o país.

— Não me vendo por dinheiro, nem pelas honras mentirosas com que os tolos lançam poeira à cara uns dos outros - respondera a quem o interrogava, espantado acerca destas duas recusas.

Alguém, que me contou este vulgar episódio da vida moderna, mostrou-me o fragmento de uma carta que Margarida escreveu doze anos depois de casada a uma sócia das suas antigas alegrias.

«É a ti que prefiro escrever. Conheceste-me solteira, feliz, ídolo de um pai, que, ai de mim! se perdeu e me perdeu pela vaidade. Hás de ter dó de mim. Tenho dois filhos e preciso ganhar honestamente o pão que eles hão de comer! Pressinto o teu espanto, as tuas interrogações, os brados aflitivos da tua surpresa! Não me perguntes nada.

«Pergunta-o se quiseres, a essa Lisboa, que assistiu ao louco esfacelar de uma fortuna enorme, com o sorriso banal e adulador que ela tem para todos os perdulários.

«Sabes a educação que recebi. Creio que seria uma mestra capaz de cumprir com a minha árdua missão.

«Em nome dos teus louros pequeninos, tão fartos de gulodices e de beijos, arranja-me algum meio de ganhar um pedaço de pão para os meus filhos.»

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Dava lições!

A brilhante Condessa de V..., a filha adorada de um dos homens mais ricos de Lisboa, a rainha dos salões luxuosos, a estrela mais fulgurante do alto mundo, dava lições para sustentar os dois filhos que lhe restavam, únicos vestígios de um passado de pomposas mentiras.

O infortúnio nobremente suportado transfigurara aquele rosto desdenhoso e soberbo de garrida mundana. Deixara de ser rainha e levantara-se mártir!

Levantava-se de manhã muito cedo, bebia às pressas uma xícara de café, que a sua fiel Miss Brown, companheira dos triunfo e das desventuras lhe preparava por suas próprias mãos, e saia, modestamente vestida de preto, a cumprir a sua improba tarefa. Só voltava para casa de noite.

Divulgara-se rapidamente a notícia daquela excepcional desventura, e muita gente, que vira com desprazer a prodigalidade da caprichosa condessa, compadecia-se agora, sem pensamento reservado, daquela digna e santa expiação.

Margarida tinha muitas discípulas.

Fazia pena vê-la, muito delgada, quase diáfana, com os olhos pisados, as faces coradas pelo cansaço e pela febre, e um sorriso triste resignado, humilde, naqueles lábios que tinham sabido trejeitar com tão altivo desdém.

Era sempre a mesma alma sem energia.

Não esperava coisa nenhuma da terra senão a morte, levando a consciência de ter expiado os erros do seu orgulho. Cumpria uma penitência, não encetava uma luta heroica de que esperasse sair vencedora.

Numa tarde do mês de janeiro, chuvosa, úmida e fria, Margarida subia a muito custo a calçada de S. Bento, em Lisboa, onde morava uma das suas discípulas. A rua, viscosa e lamacenta, inspirava-lhe aquela repugnância patrícia, que a infeliz ainda não soubera vencer. A atmosfera plúmbea e carregada dava-lhe ao coração uma dose de invencível tristeza. Sentia-se predisposta para as recordações cruciantes para as inúteis flutuações de um sonho que se extinguira. Compreendia com angústia que lhe faltava coragem para levar a cabo o doloroso dever que a si própria impusera.

Oh! Ela bem sabia que a sua alma não era da têmpera das que lutam e se sacrificam!...

Nisto uma carruagem elegante descia a calçada ao passo de dois formosos cavalos ingleses. Margarida, vendo a alguns passos o correio agaloado, percebeu que era um ministro e, sem querer, movida por um impulso súbito, levantou os olhos e fitou-os no homem que ia dentro.

O que ela sentiu não se explica. O ministro era Eduardo de C. Os olhos dos dois encontraram-se. Margarida quis saborear a voluptuosa tortura de ver nesses olhos o brilho de um satânico orgulho, de um triunfo sinistro e mau. Não viu!

Eduardo teve tempo de inunda-la em um destes olhares doces, untuosos, cheios de misericórdia, de doçura, de perdão; em um destes olhares que só podem comparar-se ao olhar do Cristo redimindo a Madalena!

Só de longe a tinha visto de vez em quando nas salas do alto mundo: nunca lhe falara então; não quis humilha-la falando-lhe agora!

Ela sentiu que se lhe despedaçara no peito alguma coisa indispensável à vida.
Apertou em torno do corpo friorento e emagrecido as pregas do seu pobre xale preto, abaixou a cabeça instintivamente, como se fizesse pender para a terra um peso estranho, e continuou a subir devagarinho, arrimando-se à parede, aquela eterna calçada, cheia de água e de lama.

Caia uma chuva fria e miúda que lhe encharcava o fato.

Um mês depois, da casa pequenina de Margarida saia um enterro asseado e modesto. Era o enterro dela.

Miss Brown explicava que a pobre senhora voltara uma noite muito constipada das lições, que teimara em sair ainda no dia seguinte, mas que tivera de recolher-se à cama, onde penou pouco menos de um mês.

O enterro de Margarida levava por acompanhamento único uma carruagem sem brasão. Nessa carruagem ia Eduardo de C.

Margarida, antes de morrer, escrevera-lhe uma carta cujas súplicas dolorosas iam apagadas pelas lágrimas.

Os dois órfãos de Margarida estão agora a educar-se em um dos melhores colégios de Lisboa, e todas as despesas da sua educação são pagas por um protetor invisível e misterioso.

Há quem dê a essa Providencia ignota o nome simpático e hoje glorioso e querido de Eduardo de C.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman

Baú de Trovas LXVIII


Minha sogra é mesmo o fim,
eu digo e sinto vergonha:
duvida tanto de mim,
que acredita na cegonha.
ANTÔNIO TEIXEIRA PINTO
= = = = = = = = =

As fontes vão para os rios,
os rios vão para o mar;
os meus desejos sombrios,
para o céu do teu olhar.
BRANT HORTA
= = = = = = = = =

Conheço um barco, veleiro,
parado no cais, sozinho.
Assim sou eu, prisioneiro
no porto do teu carinho.
CARLOS CUNHA
= = = = = = = = =

Eu amo os meus dissabores,
idolatro o meu tormento,
pois quem causa minhas dores
vale bem meu sofrimento.
CARLOS ESTEVAM DE OLIVEIRA
= = = = = = = = =

Dentro do meu desespero
não me reputo infeliz,
porque sinto que te quero
muito mais do que te quis...
CAVALCANTE E SILVA
= = = = = = = = =

Saudade — palavra triste
que se tem no coração.
— A coisa pior que existe
nas noites de solidão!
CELESTE MARIA MASERA
= = = = = = = = =

Sofres. Eu sofro também
esse orgulho desmedido
de não dizer a ninguém
o quanto temos sofrido!
CELITA PEREIRA GONDIM
= = = = = = = = =

Não insistas em saber
porque sou triste e onde vou!
Já basta no meu viver
amar a quem não me amou!
CERES ANTAS
= = = = = = = = =

São sentidos, são tristonhos
os versos do trovador.
— Quem se alimenta de sonhos,
nunca se faria de amor.
CÉSAR COELHO
= = = = = = = = =

Que me importa o seu olhar
sempre triste, quase mudo,
se no momento de amar
seu coração me diz tudo?
CEZAR DE ALMEIDA
= = = = = = = = =

Amei-te tanto, querida,
que trago, em meus padeceres,
a sombra de tua vida
na vida de outras mulheres.
CLEMENTE SOARES
= = = = = = = = =

Saudade — única moldura
em que o retrato de alguém
ainda tem mais formosura
que a formosura que tem.
CLEÔMENES CAMPOS
= = = = = = = = =

Será que existe tortura
maior que a de te esperar?
E haverá maior ternura
que a minha, ao te ver chegar?
CONSUELO BELLONI
= = = = = = = = =

O teu andar se parece
com o voo de um querubim...
Se uma rosa andar pudesse,
decerto andaria assim!
CORRÊA DE ARAÚJO
= = = = = = = = =

Saudade! És a ressonância
de uma cantiga sentida
que, embalando a nossa infância,
nos segue por toda a vida!
DA COSTA E SILVA
= = = = = = = = =

Por um futuro sonhado,
sem deslize e sem tropeço,
torno ausente o meu passado
e presente um recomeço!
ELISA FLORES
= = = = = = = = =

Oh, tu que este livro vês,
abre-o de leve, com tato,
que ainda vive, em "Urupês",
o coração de Lobato!
ELIZABETH MARTHA NOTZ PASCHOAL
= = = = = = = = =

Surda e muda a criatura,
falando com seus irmãos,
tece frases de ternura
que ela diz na voz das mãos...
ELMO GOMES
= = = = = = = = =

O seu hino ao céu ecoa;
mulher que sabe encantar,
mesmo sem trono e coroa,
sempre é rainha do lar!
ELOY MARIA OLIVEIRA FARDO
= = = = = = = = =

Com toda esta minha idade
aventurei-me no amor
e a desgraça da saudade
não me fez nenhum favor!,,.
FÁBIO SIQUEIRA DO AMARAL
= = = = = = = = =

Paixão não é uma boa,
por ser muito passageira,
o amor é a canção que entoa
no sarau da vida inteira!
FRANCISCA ISABEL BASTOS
= = = = = = = = =

Tu partiste... angústia e mágoa
sofri calado e arredio...
Só damos valor à água
quando o poço está vazio...
FRANCISCO ASSIS MENEZES
= = = = = = = = =

O teu sorriso, que encanto,
só me traz felicidade.
Vai-se embora todo pranto
e leva junto... a saudade!
FRANCYELLE VOLPATO
= = = = = = = = =

Se crês, uma prece apenas
é possível transformar
um mar de dores e penas
num doce e tranquilo mar,..
GILVAN CARNEIRO DA SILVA
= = = = = = = = =

Os anos marcam no rosto
a decadência sofrida.
Velhice é o mais duro imposto
que o tempo cobra da vida.
HILDEMAR DE ARAÚJO
= = = = = = = = =

A mentira, na verdade,
é um fato contumaz.
Rouba-nos felicidade,
e dissabores nos traz.
HORTÊNCIA SALES PESSOA
= = = = = = = = =

Eu sempre tive esperanças
de um mundo ainda melhor
mas, precisa haver mudanças
para o bem, não para o pior!
JEFFERSON PORTUGAL
= = = = = = = = =

Pela sombra do destino
o qual traça a diretriz,
viajo desde menino
na ilusão de ser feliz...
JEREMIAS RIBEIRO FILHO
= = = = = = = = =

Na rua existe mendigo,
maltrapilho, muito pobre,
por vezes melhor amigo
do que muita gente nobre.
JOÃO BATISTA SGUASSABI
= = = = = = = = =

Quando as almas são unidas
pelo amor, completamente,
deixam de ser duas vidas
para ser uma somente.
JOÃO COSTA
= = = = = = = = =

Enganam-se os ditadores
que, no seu furor medonho,
mandam matar sonhadores,
pensando matar o sonho!
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA
= = = = = = = = =

Se agosto é mês de desgosto,
então me dê seus "porquês",
pois neste mês fica exposto
todo o florir dos ipês!
MANOEL FERNANDES MENENDEZ
= = = = = = = = =

Eu, agora - que desfecho! -
já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
de lembrar que te esqueci?
MÁRIO QUINTANA
= = = = = = = = =

Para todo mal há cura,
pode demorar, mas vem…
Só não há para a amargura
de ter saudades de alguém.
PAULO GUSTAVO
= = = = = = = = =

Ocultando as cicatrizes
da tarde que vai morrer...
Deus pinta lindos matizes
nas rugas do entardecer!
PROFESSOR GARCIA
= = = = = = = = =

Já sou folha quase morta
por tantos anos de idade,
mas ainda eu abro a porta,
para abraçar a saudade!
RAIMUNDO ANDRADE PAIVA
= = = = = = = = =

Quando piso descuidado...
as trilhas da solidão,
sinto, a cada passo dado,
minha mãe me dando a mão !
ROBERTO RESENDE VILELA
= = = = = = = = =

Na tua mão estendida,
para este aperto de adeus,
vejo que a linha da vida
tem rumos que não são meus.
SANTIAGO VASQUES FILHO
= = = = = = = = =

Eu não vejo por escapes
a esta lei clara e sucinta:
Deus traça o destino a lápis
e és tu que cobres de tinta.
SÁVIO SOARES DE SOUSA
= = = = = = = = =

Ah, se eu pudesse voltar
aos tempos de antigamente...
Não teria em meu olhar
esta angústia tão presente!
SOPHIA IRENE CANALLES
= = = = = = = = =

A saudade anos depois
canta nos canaviais
a tanger carros de bois
em notas de nunca mais !...
SÔNIA MARIA DITZEL MARTELO
= = = = = = = = =

Esta vida é mesmo um drama
entre o homem e a mulher:
a que eu não quero, me chama,
a que eu amo, não me quer...
SYDNEY G. WISS BARRETO
= = = = = = = = =

São testemunhas caladas
do nosso amor e carinho
as duas letras bordadas
no velho lençol de linho.
THERESA COSTA VAL
= = = = = = = = =

Tem que ter muita coragem,
para dançar com o coitado...
Já começa a sacanagem;
no sorriso desdentado...
VERLAINE TERRES
= = = = = = = = =

Infância, em mim. é saudade
de um tempo ingênuo inocente…
Lá em casa a Felicidade
sentava-se à mesa com a gente!
WALDIR NEVES