quinta-feira, 31 de agosto de 2023

I Concurso de Trovas de São Luís do Maranhão (Trovas Pemiadas)


NACIONAL / INTERNACIONAL

NOVOS TROVADORES

Tema: GONÇALVES DIAS
 
VENCEDORES:

1º Lugar
João Rodrigues Ferreirra
Reriutaba - CE
Saudades, noites sombrias...
Foram tantos meus degredos!
Mas lendo Gonçalves Dias,
afugentava meus medos.
 
2º Lugar
Rosinéa Siqueira
Campos dos Goytacazes - RJ
Antônio Gonçalves Dias
é eterno em nossa memória:
merecidas honrarias
compuseram sua história!
 
3º Lugar
Maria Stella
Taubaté – SP
Com elegância em seus versos,
o grande Gonçalves Dias
descreveu feitos diversos,
em formatos de poesias.
 
4º Lugar
Carlos Alberto Campos
Juiz de Fora - MG
Além de escrever a história,
inspirando o destemor,
Gonçalves Dias é glória
em lindos versos de amor.
 
5º Lugar
Pedro Neto
São José de Ribamar - MA
Nasceu na velha Caxias,
do mundo foi cidadão...
Teus versos, Gonçalves Dias,
nosso maior galardão!

MENÇÕES HONROSAS

6º Lugar
Maria Stella
Taubaté - SP
Gonçalves Dias além
do seu tempo, nos permite,
ver o valor que o índio tem...
E a cultura que transmite!
 
7º Lugar
Maria Teresinha Cirilo dos Santos
Taubaté - SP
Com muito amor escreveu
as mais lindas poesias!
O Brasil enalteceu,
e eu louvo Gonçalves Dias!
 
8º Lugar
José Carlos Castro Sanches
São Luís - MA
Antônio Gonçalves Dias
fez do Exílio uma Canção.
Filho ilustre de Caxias,
orgulho do Maranhão.
 
9º Lugar
Heloyna de Oliveira
Taubaté - SP
Gonçalves Dias, o culto
poeta da natureza,
fez da poesia um culto
ao Brasil, com singeleza!
 
10º Lugar
Déa Lúcia Araújo de Castro
Juiz de Fora - MG
Um salve a Gonçalves Dias!
Maior poeta não há!
Exaltou as alegrias
da terra do sabiá.

MENÇÕES ESPECIAIS

11º Lugar
Marcelo Marques
São Paulo - SP
És ícone cultural,
talentoso em poesias;
és nobre e fenomenal,
poeta Gonçalves Dias.
 
12º Lugar
Mírian Menezes de Oliveira
Taubaté - SP
Com seu sentimentalismo,
o grande Gonçalves Dias,
poeta do romantismo,
plantou: rimas, melodias...
 
13º Lugar
Jonathan Leandro Martins Reis
Congonhas - MG
Antônio Gonçalves Dias,
um poeta do indianismo,
valorizou tais etnias,
por meio de seu lirismo.
 
14º Lugar
Rosinéa Siqueira
Campos dos Goytacazes - RJ
Antônio Gonçalves Dias
foi poeta brasileiro,
que recebeu honrarias
justas, no país inteiro.
 
15º Lugar
Jonathan Leandro Martins Reis
Congonhas - MG
A saudade das palmeiras
inspirou Gonçalves Dias,
canto das aves matreiras,
Juca... Timbiras... baías..
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NACIONAL / INTERNACIONAL

VETERANOS

Tema: TIMBIRAS

VENCEDORES

1º Lugar:
José Ouverney
Pindamonhangaba - SP
Gonçalves Dias, a história
se retrata em tuas liras:
todos nós, na somatória,
somos um pouco Timbiras!
 
2º Lugar
Roberto Tchepelentyky
São Paulo - SP
Louvo "Os Timbiras" na história,
por ser um poema fecundo:
São quatro cantos de glória
nos quatro cantos do mundo!...
 
3º Lugar
Professor Garcia
Caicó - RN
“Os Timbiras”, rica ideia
do indianismo mais profundo,
compõe a linda epopeia
que Gonçalves deu ao mundo!
 
4º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba - SP
 São meus heróis de verdade
esses Timbiras valentes:
lutar pela liberdade
enaltece os combatentes!
 
5º Lugar
Cléber Leandro Nardeli
Iturama - MG
Luta, ó tribo de “Os Timbiras”,
contra as flechas de Akari!
Não há nas terras safiras -
mas há a luz de Arapari!
 
MENÇÕES HONROSAS

6º Lugar
Marina Caraline de Almeida Carvalhal

Itaperuna - RJ
Timbiras remanescentes
fazem parte de “gigantes”
que hoje são os combatentes,
por direitos tão distantes.
 
7º Lugar
A. A. de Assis
Maringá - PR
Todo o povo maranhense
tem dos Timbiras um traço:
acredita que o que vence,
mais que a flecha, é um forte abraço.
 
8º Lugar
Lucrécia Welter Ribeiro
Toledo - PR
Ilíada Brasileira
é assim chamada “Os Timbiras”.
É em versos de além fronteira,
que tu, poeta, te inspiras.
 
9º Lugar
Elizabeth A. C. Fontes
Joinville - SC
“Os Timbiras” – obra prima –
“Ilíada” brasileira;
história indígena em rima:
a epopeia pioneira.
 
10º Lugar
Sérgio Bernardo

Nova Friburgo - RJ
 Seus versos geniais são tantos,
que, apesar de obra incompleta,
Os Timbiras, nos seus Cantos,
guarda a alma de um poeta.
 
MENÇÕES ESPECIAIS

11º Lugar
Célia M. G. Mendonça de Melo
Juiz de Fora - MG
 Timbiras, povo valente
que preserva a tradição.
Seu legado está presente
na história do Maranhão.
 
12º Lugar
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo - SP
 Ah, Poeta, em quatro cantos,
tu cantaste o que sentiras
de um mundo cheio de prantos
desaguando...  n'Os Timbiras!
 
13º Lugar
Edson de Paiva
Rafael Godeiro - RN
 Gonçalves Dias fez glória,
embalando, em belas liras,
toda a vida e trajetória
dos intrépidos Timbiras.
 
14º Lugar
 Professor Garcia
Caicó - RN
 Gonçalves, seu romantismo,
em “Os Timbiras”, o expõe...
Mostrando que o indianismo
tem a força que o compõe!
 
15º Lugar
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte - MG
 São povos originários,
que habitam esta Nação,
os Timbiras, relicários
da cultura e tradição.
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NACIONAL / INTERNACIONAL

HUMORÍSTICA

Tema: SABIÁ

VENCEDORES

1º Lugar
José Maria Luz e Silva
Maceió - AL

 O pardal desconfiou
do sabiá, seu vizinho;
só depois que ele notou
um ovo estranho no ninho.
 
2º Lugar
Massilon Ferreira da Silva
Poço Redondo - SE

O gato muito enxerido
pensou que tinha abafado,
pegou na loja, escondido,
um sabiá empalhado.
 
3º Lugar
Francisco Gabriel
Natal - RN

O meu sabiá gongá,
teve uns cinco faniquitos,
ao ver sua sabiá,
chocando dois periquitos.
 
4º Lugar
A. A. de Assis
Maringá - PR

Tem cara que fica rico,
mas disso não passará.
Vira um gordo tico-tico,
porém nunca um sabiá...
 
5º Lugar
José Maria Luz e Silva
Maceió - AL

Disse o gato:  "venha cá,
vamos sambar lá no morro?"
Respondeu a sabiá:
"que tal chamar o cachorro?"

MENÇÕES HONROSAS
 
6º Lugar
Roberto Tchepelentyky
São Paulo - SP

Sabiá malandro insiste,
já de rotina, à noitinha,
em bicar o "seu" alpiste
na arapuca da vizinha...
 
7º Lugar
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo - RJ

Que o sabiá, entre as penas,
abrigava a cotovia
todos sabiam, apenas
a sabiá não sabia...
 
8º Lugar
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora - MG

Para a tristeza ir embora
e evitando a solteirice,
o meu sabiá namora
a periquita da Alice.
 
9º Lugar
A. A.  de Assis  
Maringá - PR

Meu quintal não tem palmeira
nem tampouco sabiá.
E se acaso eu der bobeira,
logo nem quintal terá.
 
10º Lugar
Márcia Jaber
Juiz de Fora - MG

O Sabiá não sabia
se sabia assobiar,
mas quando viu a Maria,
fez fiu-fiu sem nem notar.

MENÇÕES ESPECIAIS

11º Lugar
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Niterói - RJ

Viu o filhote crescer
falante e verde encardido,
e foi o último a saber
o sabiá, pai sabido...

12º Lugar
Elizabeth A. C. M. Fontes
Joinville - SC

Qual sabiá que fascina
com o peito todo aprumado,
foi cantar para a menina...
mas... gritou, desafinado!
 
13º Lugar
Edweine Loureiro da Silva
Saitama - Japão

Ó sabiá-laranjeira,
por que você não se toca?
Troca o disco que a palmeira
prefere um funk carioca!
 
14º Lugar
Rosinéa Siqueira
Campos dos Goytacazes - RJ

Sabiá, sempre fiel,
cantava ao entardecer,
avisando ao nhô Miguel:
o seu galho vai crescer!
 
15º Lugar
Albano Bracht
Toledo - PR

Sabiá longe do bando.
Eu me aproximo e arrisco:
que lindo, você cantando!
- Não, estou ouvindo um disco.

16º Lugar
Renata Paccola
São Paulo - SP

Eu me divirto sozinha
numa cena que me assanha:
o sabiá e a rolinha
disputando a mesma aranha!
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ESTADUAL- ESTUDANTIL

Tema: CANÇÃO DO EXÍLIO

VENCEDORES


1º Lugar
Sérgio Murillo Rodrigues Costa
8º ano (Unidade Escolar Maria da Conceiçao Soares)
Santa Luzia - MA

Canção do Exílio é o tema
que me traz tanta saudade!...
E eu fico nesse dilema:
entre a cruz e a liberdade.
 
2º Lugar
Paulo Roberto Moraes Alves Neto
7º ano (Escola Adventista da Cohab - SL - MA)
São José de Ribamar - MA

Eu irei cantarolando
a linda Canção do Exílio;       
os seus versos recitando;     
à poesia peço auxílio.
 
3º Lugar
Paulo Roberto Moraes Alves Neto
7º ano (Escola Adventista da Cohab - SL - MA)
São José de Ribamar - MA

A Canção do Exílio é bela.
Uso-a com inspiração;
igual à tinta aquarela,              
ela pinta o coração.

Nilto Maciel (Da noite para o dia)

Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a ideia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa,  grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.

César sonhava com a glória literária. Ser membro da Academia, escritor de fama, ganhador do Nobel. Já meu sonho se contentava com as migalhas da simples publicação. Eu não tinha vocação literária, embora rabiscasse versos vez por outra. Aprazia-me mesmo era desenhar. Daí a capa do futuro livro de César e algumas ilustrações ao texto.

Iríamos trabalhar juntos sempre: ele como escritor de novelas, eu como ilustrador de seus livros. E nunca ele aceitaria outro ilustrador, nem eu ilustraria livro de outro escritor. Pacto de sangue, de morte, de amizade eterna.

Planejamos publicar a primeira novela. Cinquenta mil exemplares na primeira edição. Ele havia sonhado com cem mil, até que o convenci a ser mais modesto. Iríamos ficar famosos da noite para o dia: ele como escritor, eu como ilustrador. Lidos e vistos em todo o Brasil. E depois em todo o mundo. Inclusive na China. Falaríamos com Mao Tse-tung. A juventude chinesa precisava de ler textos mais do coração e não só o livrinho vermelho.

Enviamos cópias para algumas editoras. As respostas vieram desalentadoras: “livro pouco comercial”, dizia uma; “muitas obras no prelo nos impedem de dar publicação à sua novela”, esclarecia outra; “não estamos no momento publicando novelas”, explicava uma terceira; “livro não aprovado pelo nosso Conselho de Leitores”, resumia uma quarta. E outras do mesmo teor.

Algumas editoras nem sequer deram resposta. Fizemos então novos planos maravilhosos. Não iríamos precisar das editoras. Pouparíamos. Deixaríamos de fumar, beber, merendar, ir ao cinema, etc. César iria trabalhar e depositaria a maior parte do ordenado na caderneta. Meu pai não me deixava trabalhar, mas, em compensação, eu exigiria mesada mais gorda. Dela tiraria apenas o suficiente para os gastos mais necessários e depositaria o restante na poupança. Quando já tivéssemos alguns milhões, mandaríamos publicar a novela numa gráfica qualquer. Venderíamos os livros nas escolas, nos cinemas, nas ruas, lojas, repartições públicas, nos bares. Viajaríamos pelo interior. Com o dinheiro da venda mandaríamos publicar o segundo livro. Mas quando teríamos os milhões suficientes para pagar a primeira impressão? A esta pergunta perdemos o entusiasmo.

Concluídos os estudos secundários, César deixou de estudar e arranjou emprego. Não para juntar dinheiro, mas para sobreviver. Seu pai mergulhava cada vez mais na pobreza. E não falamos mais na novela. Nossas relações pouco a pouco iam perdendo o calor, nossos encontros se distanciando no tempo. E, quando nos víamos por acaso, apenas nos cumprimentávamos.

Esqueci logo os desenhos, as ilustrações, os sonhos. E fui estudar Direito.

Um ano depois meu pai morreu. Estranhamente assassinado. Crime horrível – latrocínio. Morto e roubado. Encontraram seu corpo numa valeta a poucos quilômetros do centro da cidade. Um tiro no crânio. E o carro estacionado à margem da estrada. Nenhum vestígio do assassino.

Meu pai nunca teve inimigos, dava-se bem com todo mundo e quase toda a cidade o conhecia. Nós, os filhos, estudávamos nos melhores colégios. Minha mãe o adorava. A polícia ficou tonta. Não sabia a quem atribuir o crime. Nenhum indício, nenhum suspeito.

No dia de sua morte havia sacado uma grande soma em dinheiro ao banco, como sempre fazia. E seus negócios ele mesmo os resolvia. Deixava o carro estacionado nas proximidades do banco, levava uma pasta, um revólver e só. Não queria guarda-costas.

A polícia concluiu finalmente que o assassino só podia ser um assaltante comum. Foram então presos todos os ladrões e suspeitos de terem cometido crimes contra o patrimônio. A nenhum deles, porém, foi possível imputar o latrocínio.

Folheei a novela e por um bom tempo me deixei a cismar. Pensei no meu passado, em César, e quase não consegui dormir. E decidi que hoje procuraria saber onde vivia César. Queria recordar com ele todos os nossos sonhos, todos os nossos sofrimentos, ele por ter tido suas ilusões tão duramente mortas, eu por ter perdido meu pai de maneira tão bárbara e misteriosa. Como pudemos nos esquecer tão depressa, apesar daquela amizade quase apaixonada que nutríamos um pelo outro? Como somos fracos, débeis, inconstantes!

Onde, porém, eu poderia encontrá-lo? Detrás de um balcão de loja? Na cozinha de um restaurante? Ou teria conseguido realizar seus sonhos literários, pelo menos os mais modestos? Ou teria ido embora para bem longe? Talvez até estivesse morto.

Não, não adiantava fazer suposições. Mais fácil procurar seu nome na lista telefônica. Se não estivesse tão mal, certamente teria um telefone. Tentei lembrar-me de seu nome completo. Lamentei mais uma vez a fragilidade do coração humano. Como pude esquecer tão facilmente o nome de meu melhor amigo? Ainda bem que a novela se encontrava comigo, e, com toda certeza, nela estaria o nome inteiro, um sobrenome pelo menos. Corri os olhos e li: César Augusto dos Reis, no alto da capa.

Hoje disquei o número e atendeu uma voz grossa e autoritária. “Quero falar com o novelista César Augusto dos Reis”. A voz do outro lado se mostrou aborrecida: “Não existe nenhum novelista aqui. Quer deixar de brincadeiras, meu senhor.” Apresentei-me. Ele se fez de esquecido ou de fato não se lembrava mais de mim. Depois se disse surpreso: “Não sabia que você ainda era gente”. Conversamos mais. Quis saber de minha vida. “Sou advogado. E você?” Falou em barzinho, dificuldades, “aturando esses bêbados dia e noite”. Pedi o endereço.

O barzinho chama-se “Restaurant Carnivorous”, serve pratos da cozinha internacional, recebe a fina flor da sociedade e é irmão de outros dois e de um prédio de doze andares.

César mandou dizer por um moleque de recados que não podia receber ninguém. Em um minuto deveria sair para compromisso inadiável. Não dei ouvidos ao recado e entrei no escritório. E só saí de lá uma hora depois.

Falamos da morte de meu pai, de comércio, de literatura e artes plásticas, do passado, de nossos sonhos, mil coisas, tudo de forma desordenada, como se quiséssemos falar todas as palavras ao mesmo tempo. Contou-me sua história: antes de adquirir o primeiro barzinho, trabalhou como garçom, copeiro e cozinheiro. O barzinho rendia alguma coisa, até se transformar num bar de verdade. O bar virou restaurante. “Tudo porque sou muito controlado e trabalhador. Não ando esbanjando dinheiro”.

Surpreendi-me diante de tanta riqueza e fui para casa desconfiado não sei de quê. E todo o passado voltou à tona, aos borbotões, feito vômito. Relembrei todas as nossas conversas, todos os sonhos, todos os projetos, a novela, tudo. E me interroguei com mil perguntas: por que César não publicou o livro, não virou o escritor que desejava ser, se tem tanto dinheiro? E se havia dito numa de nossas últimas conversas que nada o impediria de se transformar num grande homem, famoso, reconhecido por todos! Como um barzinho podia ter se transformado num restaurante daqueles em tão pouco tempo?

Não durou muito aquele vômito e voltei ao restaurante. Da porta gritei: “César, você matou o meu pai”. Ele quis explodir, gritar, correr, agredir. Apontei-lhe o revólver e ele se rendeu.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
Enviado pelo autor.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “03”

 

Francisco José Pessoa (Estaleiro versus Titanzinho)

Fim de tarde melancólico no pontal do Mucuripe... lá em cima, o céu aos poucos se enluta; cá embaixo, maré seca, pequenas ondas tênues pouco encrespadas teimam em beijar a praia do Titanzinho, como se fora o derradeiro afago.

Uma folha de jornal quase desfeita se abraça a um coral vigilante que veio tomar fôlego na superfície. Eis a chave do mistério para tanta tristeza.

A cada momento seguinte, numa suave nuança, a abóbada celeste também lacrimeja piscando estrelas, ao ouvir atentamente os soluços do mar que, desesperado, roga aos deuses do Olimpo pela sobrevivência daquela praia, criatório de talentosos equilibristas de pranchas que hoje surfam na crista da onda em competições internacionais. E não é só disso de que se alimenta a Titanzinho, pois, viveiro de variadas espécimes de peixe, faz-se cardápio para os praianos que vivem em seu derredor.

Nem tudo são flores, no dizer do poeta, na praia do Titanzinho. A nossa sociedade míope enxerga-a como uma zona franca da prostituição, paraíso para os marinheiros sedentos e famintos que arriam âncora em nossos mares. Relegada ao esquecimento, ela tornou-se lembrada por jovens que se aventuram no trágico mundo do tráfico. Existem titãs, paradoxalmente, sem forças, que procuram maiusculizar a Titanzinho. São nativos de pele crestada que cheiram a maresia, cujos vagidos se confundem com o roçar do peito das ondas no dorso da praia, ou que nasceram no meio do mar e foram atraídos pelo canto das sereias, com a missão de diminuir a dor daquele povo sofrido.

Quão bom é ver e sentir o lado bom da comunidade Serviluz, que busca servir a luz para nossos irmãos que portam óculos escuros em noites trevosas.

Sob o teto de um azul já escurecido e o gotejar de lágrimas vindo de estrelas chorosas e refulgentes, pois que a lua ausente se fazia, pus-me a meditar naquela noite fria, fitando quase às cegas o lúgubre horizonte. Eis que me envolve os pés, já desbotada, aquela folha de jornal liberta dos corais, indecisa no seu ir e vir por tantas vezes no alcançar da praia, sem saber que trazia a chave do mistério, do porquê de tanta tristeza naquela praia condenada a desaparecer.

- MORTE ÀS PRANCHAS! VIVA O ESTALEIRO!... Lia-se com dificuldade as letras garrafais embaralhadas na página molhada.

360, Tubo, Cabuloso, Casca grossa, Kaó, Maroleiro, são gritos de guerra que tendem a perder eco naquela praia pequena que se fez grande aos olhos da Transpetro, empresa gerenciada por um cearense que na sua juventude, desfrutou dos distintos sabores que aquele pedaço de chão O mar lhe ofertou.

"é doce morrer no mar"... Que esta ideia de estaleiro na Titanzinho pereça sob as ondas que carregam no dorso nossos surfistas campeões. E os paquetes domados por homens de pele crestada e braços fortes sorrirão onda após onda, num duelo saudável entre o jangadeiro e aquele mundão d'água que lhe garante a sobrevivência.

Por um momento, submergiu a folha de jornal. Cá, na superfície, flutua a decisão dos nossos governantes; um sim, um não, conforme a maré...

Titanzinho, se morreres, morro contigo!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Enviado pelo autor.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 9


DOCE MAGENTA & TEXTURA


Entre as páginas do livro -
A poesia entreaberta
Recebe o bailar da Luz e sombra -
Diáfana por do sol...

Cores, recantos, da Holanda,
Das telas de Monet,
Saudades dos moinhos -
Ninhos de ventos
Pétalas dobradas...
Doce Magenta
Em silêncio, abraçando
As palavras, os versos,
E as anotações ao pé da página -
Inclinadas pétalas
De origem tão distante
Atemporais tintas -
Esmaecidas tulipas...
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FAÇO-ME LÁGRIMA

Quando àquelas distantes
nuvens
Nublam teu olhar
(Abraço teus tons
de gris)
Abro e
fecho
parênteses
E inebriada, silencio-me

Faço-me lágrima
Para deslizar dos teus cílios,
Alongando desejos
De te beijar
E desaguo no cantinho
Dos teus lábios
E, assim desperto uma pontinha
Do teu sorriso...
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MONJOLO

A madeira antiga
Dilui-se com a passagem
Do tempo, tempo
Que afaga teus contornos...
A madeira antiga
Resiste e ainda
Insiste, em sobreviver,
Mesmo com a ausência das águas,
Mantém vivo
O som distante
E repetitivo.
Da teu cadenciado toque...
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OUTONO EM TÊMPERA

O vento menino
Que guardei na tela
Com as quatro folhas
plátano -
Hoje, de manhãzinha
Deixou a têmpera e,
Despedindo - se do Canson
Visitou - me...
Ah, esse ventinho
Que acaricia meu rosto
E envolve cada pérola
Do colar, com teu perfume...
Esse aroma de Amor é encantado -
Paleta com outonais cores
A fluir em meu corpo e alma

Teu vento menino
Refaz em nosso céu
Àquele... coração de nuvem
E nessa manhã fria
Teu carinho em fios.
Douradas filigranas
Cintilam em nosso
Ninho de orvalho -
Teu carinho
É o meu solzinho...
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POÉTICO ABANDONO

As folhas de hera cobrem tuas paredes,
Portas, janelas e varandas,
Lembrando verdes demãos
de tintas,
Afagos a protegê-la das
intempéries...
A escada com nove degraus, ainda,
Preserva parte do mármore,
A porta principal, já sem a dourada
Maçaneta é aberta com facilidade,

E a cada passo, sinto a solidão -
Um silêncio especial espreita-me
Nos gastos tapetes, no piano
Deixado à própria sorte,
Sonhando com Debussy...
A alma da casa abandonada
Refugia-se em imagens e sons
Do passado -
Continuo minha aventura -
Caminhada, sem pressa, com o olhar
E, curiosa, abro mais uma porta,
Encontrando, janelas sem vidros
Que deixam o canto dos pássaros
Mais próximos, fazenda parte
Da linda, mas esquecida, adega
As garrafas de vinho,
Sem rótulos e rolhas
(Nuas - vazias)
Ocupam prateleiras
Como se livros fossem -
Lunetas encantadas
Intocáveis,
Umas sobre as outras
Cobertas por camadas de poeira
Lembram uma segunda pele
Imagino diálogos entre
As garrafas e as partículas de pó,
E a sonolenta cadeira, sem palhas,
A observá-las...
Ah. esse aconchego da passagem
Do tempo, tatuando objetos e sonhos -
Tempo, que tudo desgasta, esmaece,
(Enferruja)
Leva os sorrisos e, aos poucos
Ávida desaparece...
Choro com ela, sinto
Na casa adormecida
Um poético abandono,
Quem sabe,
Ela despertará
Em uma futura aquarela,
Quem sabe?
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PRENÚNCIOS

Sensível, o olhar
Pousa na fonte
Repleta,
De falhas do plátano,
Sinto a poesia
E solidão do cântaro...

Distancia-se o pensamento,
O venta sussurra teu nome...
E, nas esmaecidas e diáfanas cores
De mais um por do sol -
Prenúncios de Saudade...
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TRÊS SÍLABAS

Noite outonal -
Estava a três passos
De reencontra-lo,
Antigo piano -
Debussy...
Durante as aulas
Ficava com meu caderno
Próximo de ti
Tínhamos
Conversas
(Segredos) -
E, em silêncio
Nos olhávamos...
Não tivemos
Tempo de despedidas,
Estava a três passos
De ti, mas há
Um mundo de distância
Entre nós -
Solidão,
Apenas, três sílabas
Contidas em um universo
De saudade...

Fonte:
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.
Enviado pela poetisa.

Sonia Regina Rocha Rodrigues (Homenagem à Sophia Leite Cruz)

Pura luz

Qual uma esteira de prata,
O luar cai sobre a areia,
e o mar, numa serenata,
faz trovas à lua cheia!
Sophia Leite Cruz


A poetisa santista Sophia Leite Cruz, que, ao final do século vinte, residia em Santos, sofrendo de mal de Parkinson há mais de dez anos, infartou. Sophia foi uma das pessoas mais alegres que conheci. Se alguma de nós entrasse esbaforida, a lutar com o guarda-chuva, em dia de vento, ouvia-se Sophia a rir:

O vento passa, curioso,
Por entre frondas e faias,
e levanta, malicioso,
a barra de tuas saias.


Posso imaginar Sophia, que sobreviveu ao ataque, acordando na UTI, ao lado de uma dessas desprestigiadas profissionais da saúde, de olhar desiludido e semblante amargurado, mecanicamente a trocar um frasco de soro, e murmurar um ‘obrigada, querida’ seguido de uma rima:

E que caminhes sempre firmemente
A cada passo, uma conquista a mais,
Tendo no peito muita paz somente,
Anjo de Amor, orgulho de teus pais.


E acrescentando:

- De teus pais e de nós, teus pacientes.

Pronto; lançado o encanto, a face da moça se transformaria, surpresa.

E quando o médico se aproximasse a perguntar pelo coração de poeta, ela responderia:

Em busca de beleza e pelo amor,
Corre o poeta a soltar-se no espaço.
Leva no verso a força e o resplendor,
Não mede esforço, despreza o cansaço.


E o médico, a provocá-la:

- Não cansa mesmo, avozinha? Depois de horas a escrever, não cansa, não?

E Sophia afirmaria:

E a pena corre firme no papel
e exprime com fervorosa emoção,
artista a debuxar com seu cinzel,
as fímbrias fundas de seu coração.


Ora, há muito que a pena de Sophia não corria firme em lugar algum, motivo pelo qual o banco lhe cancelara os cheques e ela se ajeitara ao teclado de um computador, digitando pacientemente, dedo a dedo, uma letra por vez, persistente.

Quando o médico hesitasse em revelar-lhe a verdade sobre sua saúde, ela, esperta, o interromperia:

Não dirijas tua vida
Buscando luz na mentira.
Vê que a verdade sofrida
Seja mesmo tua mira.


Coração forte, o de Sophia! Após longos anos de doença, ela erguia o rosto risonho e enfrentava o que fosse.

A enfermeira, mais animada, conversaria com ela sobre a cidade, tão bonita, berço de renomados poetas, e Sophia concordaria:

Os jardins de nossas praias,
Possuem lindos recantos.
Entre alfambras, flores, faias,
Fazem a graça de Santos!


Depois de tomar seus remédios e despedir-se das visitas, Sophia se prepararia para dormir, despedindo-se assim:

É tão gostoso adormecer assim,
pela madrugada misteriosa,
sorver no espaço o aroma do jasmim,
Apaixonado pela rubra rosa!


As amigas, para animá-la, riam e atiçavam:

- Sei não, não era bem assim que um certo ‘alguém’ ouviu estes versos, não! Como eram mesmo?

Sophia, alegre, relembrava os versos feitos ao antigo namorado:

É tão gostoso adormecer assim,
no limiar do sonho, um beijo teu,
em revoada como um querubim,
buscando rápido um carinho meu.


A enfermeira, admirada, lhe perguntaria, curiosa:

- Avozinha, como consegue declamar tão facilmente, assim tão à vontade com as palavras e as rimas?

A mesma pergunta eu já lhe fizera e obtivera como resposta:

- Eu penso em decassílabos...

Cartões de Natal, vindos de Sophia, só rimados:

Natal! E toda a celeste legião
Festeja o nascimento de Jesus.
Anjos e arcanjos sorridentes vão
em cada estrela colocar mais luz.


Assim era Sophia, imersa em poesia, sem deter-se nas contrariedades presentes na paisagem da vida, buscando a beleza, focando no Bem.

Anos mais tarde, ela se foi, e deixou-nos seu exemplo de vida. Seu enterro, ao que sei, foi concorrido, e seus amigos poetas foram cantando acompanhar o caixão.

Sophia, como os gregos do Parnaso, buscava a Excelência.

Tendo seus talentos reconhecidos pelos prêmios que recebeu, pelas entidades das quais participou, pelos leitores do seu jornal poético O Espaço, Sophia realizou seu desejo de publicar seu livro Um Grande Sonho.

Para muitos que a conheceram, ela personificou o sonho.

Bibliografia:
Um grande sonho – Sophia Leite Cruz - 1992
Em Verso e Prosa – AFCLAS – 1998
Antologia A lua e a Pena – APEBS - 1995
Antologia A lua e a Pena – APEBS - 1996


Fonte:
Enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Almas carentes)

“A solidão era tanta, tanta e tamanha, que entrelaçava seus corações até antes mesmo de terem nascido”.
Tompson de Panasco
    

TINHA MAIS QUE MORRER O SUJEITO.  Vagabundo, desocupado, vivia pelas ruas andejando com visível dificuldade, batendo de porta em porta, vomitando a sua impotência desenfreada a quem cruzasse com ele. Tomado pelo instinto de um esmoleiro dos tempos medievais, parecia preso numa piedade calada. Aqui e acolá, implorava restos de comida, pães velhos, roupas fora de uso. E quem doasse alguma coisa - se esperasse um muito obrigado ou um Deus lhe pague - fosse tirando o cavalinho da chuva.  Aquele homem não abria a boca de jeito nenhum, para agradecer um nadinha que lhe fizessem.

Além de todos esses defeitos, terrivelmente mal-agradecido. Sem vergonha e descarado, atrevido e impávido, quando cruzava com mulheres bonitas, abria-se em gracejos e mesuras. Fazia piadinhas sem graça e pesadas. Deixava as boquiabertas raparigas com seus rebolados perdidos, inclusive as senhoras que não tinham mais rebolado, fisgadas pelo avanço da idade. O certo é que tais velhotas coravam boquiabertas e desgostosas com o infeliz.  

Um dia, um bando de desocupados e desordeiros deu-lhe algo forte para beber, e o colocaram a pique. Deu "tilte" no cabeção. Quando as irmãs do convento de São Francisco de Assis, por acaso, atinaram com o pobre, jazia o coitado, caído de bruços, numa vala aberta recentemente pela prefeitura nos arredores da cidade, as roupas quase a despencar do corpo mal nutrido e debilitado de saúde. Penalizadas, avisaram o Padre Gregório, que imediatamente providenciou uma equipe da pastoral. Resgatado, levaram-no para o banheiro público (cidadezinhas do interior tem muito desses WCs coletivos) e deram-lhe aos costados, um chuveiro em regra.

Trocaram as roupas farropoídas por novas. Fizeram-lhe a barba, apararam os cabelos e ainda descolaram um par de sapatos e até um paletó fora de moda, mas bom. Como para ele não havia isso de moda, a nova vestimenta veio a ser útil demais, até porque não se tinha notícia de algum dia os habitantes lhe terem visto vestido num paletó.

Dessa maneira, aquele andarilho, de repente, tornou-se até bem-apessoado, de personalidade firme e maneiras delicadas. Seu rosto sem a barba de semanas apresentava um aspecto jovial. Quem o visse agora, não daria para ele vinte e poucos anos, embora pela certidão, ou melhor, pelo que havia sobrado do documento, contasse trinta e cinco. Vendo-se assim, tão remoçado, o próprio não se reconheceu no espelho que lhe botaram na frente dos olhos espantados.

De fato, aquela tez refletida, deveria ser outra, menos a dele, o desgraçado, o traste, que vivia de deu em deu. “Que homem bonito – pensou com ares narcisistas – parece até artista de cinema”. Ao diabo, fosse quem fosse. Se o espelho estava ali, plantado diante de seu nariz, só poderia ser ele mesmo. Danasse o resto e tudo mais!

Bonito, simpático, atraente, passou a fazer as refeições junto com o padre, na casa paroquial que ficava colada a igreja. Poderia, agora, quem sabe, se desse a sorte, arranjar uma namorada. Mas naquele lugarejo... nenhuma rameira, ou dama que prezasse a honra, iria querer flertar com um borestia (folgado) daqueles... mesmo as encalhadas se candidatariam a viver ao lado de um homem que ninguém sabia de onde tinha pintado, se fugitivo da justiça, ou procurado por dever qualquer coisa à sociedade.

Somente ele sabia de onde provinha. Somente ele tinha as respostas e poderia falar abertamente do passado. Contudo, pobre mendigo, desprezível alma que ninguém dava importância. A ninguém interessava saber ou entender que, outrora, ele fora um rico e abastado fazendeiro, que tinha mansão, carro do ano, lojas de comércio, muitas terras, uma centena de empregados, mulher bonita e uma filha maravilhosa. Nos dizeres de Ovidio, “Donec eris felix, multos numerabis amicos; tempora si fuerint nubila, solus eris”*. Verdade, por sinal, incontestável.

O que se apurou depois, a companheira, sem mais nem menos, o abandonou e foi embora para outra localidade, a tiracolo com um sujeito esquisito, levando a filha de quinze anos (na época) e nunca mais dando sinais de vida. Ele, apavorado, sem saber o que fazer, ficou desatinado, alienado. Andou, procurou, fez mil loucuras, porém não soube, jamais topou com o paradeiro de sua consorte. Abestado e mentecapto, abandonou o sítio, as terras onde plantava café e virou andarilho. Na sua pequena e pacata Andirá, interior do Paraná, morador por mais antigo que fosse saberia dar notícias precisas. Nem da mulher ou da filha, ou do elemento que, com elas, se debandara.

Por isso, ele se tornara um nômade cigano, sem porto seguro, a vagar errante de cidade em cidade, sem paradeiro certo, alma vazia, comendo, vivendo, e se mantendo a custas da ajuda alheia. Quem, naquela localidade, iria se interessar por ele? Ninguém. Viva alma se atreveria a descer tanto... de novo com suas dores e misérias, lembranças e medos, abandonou o aconchego do padre Gregório e voltou à malfadada e incerta vida de João Ninguém.

Nem mesmo outra ambulante que há quinze ou vinte dias chegara e rodopiava por ali, igual a ele, vinda de algum eito com as suas típicas imundices, ou talvez, pior em flagelo, pudesse ser comparada. Moça bonita lembrava Oriana, amada de Amadis de Gaula**, apesar de seus olhos tristes e sofridos, as roupas frangalhadas, porcamente cobrindo um corpo escultural, os cabelos compridos em desalinho, figura que em pouco tempo tornou-se conhecida da galera pela ternura e meiguice que transmitia. Só tinha o defeito de ser pobre e a falha de ninguém saber de onde havia aparecido.

Coisa de dois sábados, o imprevisível criou vida e forma. Ambos se encontraram na praça, se viram em relance ligeiro. A beldade, num ímpeto fugiu alígera, porque ele quis maliciosamente, levantar a sua saia (ou o que restava dela) visando apreciar melhores perspectivas. A gargalhada dos transeuntes se generalizou. Uns queriam se divertir, outros acharam afrontoso. Teve meia dúzia de apressadas bocas que cuspiu no desgraçado rejeitos. Pura maldade. Padre Gregório apareceu de repente e lascou um sermão nos insensatos e a coisa caiu no esquecimento.

Todo esse incidente não passou de um fato a mais na pacata localidade, que logo em seguida mergulhou no marasmo rotineiro de sempre. Porém, uma semana após esse quase desentendimento entre o casal de indigentes, aconteceu uma coisa que espantou a todos, desde os cidadãos mais honrados, as damas da alta sociedade com suas riquezas à ponta do nariz, até os menos abastados pela sorte.

Tudo aconteceu numa chuvosa manhã de domingo. Ninguém avistou o mendigo pelas ruas e calçadas. Criaturas mais afoitas, perguntaram daqui e dali, mais por questão de desencargo de consciência, que por solidariedade. O fato é que durante todo o domingo ninguém avistou o rapaz. De roldão, tampouco a moça. Entretanto, na quarta-feira à tarde, um bando de garotos que brincava pelas redondezas da linha do trem, achou, num terreno baldio, dois corpos. O primeiro pertencia ao sem rumo que vivia de porta em porta pedindo comida e um copo de café.  

O segundo, da infeliz menina que chegara fazia pouco. Estavam de mãos dadas, rostos muito unidos, como se pretendessem eternizar um longo e derradeiro beijo de despedida. Os habitantes deduziram que o mendigo encontrara a garota numa ruela qualquer e a tivesse arrastado para o mato, a fim de violentá-la. Porém, dias mais tarde, em face da estação de rádio noticiar os fatos, o jornaleco publicar fotografias da dupla, a polícia civil entrar em ação, o ministério público se fazer presente, etc., e tal, investigadores e repórteres de uma dezena de emissoras de televisão se deslocaram da capital e até autoridades da longínqua Andirá para desvendarem o mistério.

E desvendaram. O pobre homem, abastado fazendeiro do norte do Paraná, que saíra pelo mundo feito louco, em busca de sua família, ou a procura da paz para si mesmo, finalmente fora abençoado com o evento benfazejo do objetivo que incansavelmente procurava. A moça, nada mais, nada menos, Érica, sua filha. O rebento que ele tanto especulou encontrar na sua triste e melancólica vida de solitário. Ambos (não se sabe como) se reencontraram naquele fim de mundo, e não se teve explicação plausível, de como se reconheceram, e pior, ninguém soube aclarar pormenorizadamente como bateram de frente com as garras frias da morte.

Um pequeno grupo de comerciantes a pedido do padre Gregório, em sintonia com as irmãs do convento de São Francisco de Assis, providenciou os enterros de pai e filha, com direito a velório, flores, gente chorando, cantoria, missas de sétimo dia... e até quermesse. Na verdade, o mínimo que poderia ser feito (e, diga-se de passagem, puseram em prática), para que dois seres humanos não fossem enterrados em covas rasas no pequeno cemitério local, como simples indigentes.

Atualmente, uma estátua enorme (“Almas Carentes”) se vê à entrada de quem chega ou sai dos arredores para a rodovia que interliga a São Paulo. As honras e os galardões recaíram claro, no atual prefeito, que trouxe para as redondezas, uma multidão sem conta de turistas e curiosos que deixam uma soma considerável em dinheiro nos restaurantes, bares e quiosques da (até então, antes e pacata) cidadela incrustrada entre montanhas e rios entre outros atrativos da natureza a se perderem de vistas.                       
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*"Enquanto fores feliz, contarás muitos amigos; se os tempos estiverem nublados, estarás só"

**Amadis de Gaula é uma obra marcante do ciclo de novelas de cavalaria da Península Ibérica do século XVI. Apesar de se saber que a obra existe desde, pelo menos, o século XIV, a versão definitiva mais antiga, atualmente conhecida, é a de Garci Rodríguez de Montalvo, impressa em língua castelhana em 1496, provavelmente (a edição mais antiga conservada é de 1508), e denominada Los quatro libros de Amadís de Gaula. Tudo indica, contudo, que a versão original era portuguesa e muito anterior. O próprio Montalvo reconhece ter emendado os três primeiros livros e ser apenas autor do quarto. (wikipedia)


Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões n. 13)

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 90

As noites de invernia geladas nos carrascais exigem melhores cuidados dos dormidores que amanhecem com a geada nos costados de suas camas.

Noites em que fogões varam madrugadas crepitando achas e os braseiros alumiam e inspiram pensamentos.

Nos momentos tiranos em que a estação do frio congela os passarinhos na galharia, eu construo meu cockpit - cobertores, dois travesseiros, acolchoado - para fazer a travessia da noite, chegando ao amanhecer com os primeiros raios quentinhos do sol.

São contingências que nos envolvem de maneira diferente enquanto viajamos nas asas do Tempo de estação em estação.

Calores janeiros, folhas secas de maio, friagens de julho, os matizes da primavera - delícias a seu tempo pondo a vida em constante frenesi. Somos viajeiros auscultando vozes, inalando ares puros e aromas dulçurosos, vivendo a vida alumbrados pelos caminhos do sem fim.

 Fonte:
Texto enviado pelo autor

Carolina Ramos (Bleu)

Uma questão puxa a outra, e nem a narrativa segue a ideal ordem cronológica. Exemplo: - Este Bleu, que se inicia, pertence a uma fase anterior ao que foi acima vivenciado. A inversão pecaria contra a espontaneidade e assim, que tudo fique como está. A esclarecer que, no caso anterior, se dezesseis era a Idade da protagonista no presente relato, a protagonista teria apenas nove ou dez anos, embora os sentimentos por aquele gatinho especial, perdurem até hoje.

- Bleu... Era o meu querido gatinho azul! Sim, azul… ou, cinza azulado, para ser mais fiel. Lindo demais! E por demais querido, também! - Paixão à primeira vista!

Numa das férias passadas em Campos do Jordão, durante um passeio, encontrei-o à porta de uma casa. E simplesmente encantei-me por ele! Foi vê-lo e compra-lo! – Ou melhor, comprou-o minha mãe, para felicidade da filha, mas, tenho certeza de que também ela se apaixonara pelo tal gatinho azul, realmente fora de série!

O gato dos meus sonhos! E dos sonhos de qualquer criança que o tivesse visto, ainda que por só uma vez! Escrevi, posteriormente, um conto infantil, "O Gato Azul", do qual é personagem principal.

Bleu encantou minha vida por algum tempo, companheiro inseparável, até mesmo nas horas de estudo. Dói-me pensar nele. Porquê?

Encurto a história por ser triste:

- Certa noite... dolorosa noite! Não sei como aquilo pode acontecer... Contudo, infelizmente, aconteceu.

Naquela noite escura e fatídica... de tão triste memória, meu gatinho azul foi dolorosamente atropelado pelo carro de meu pai, à entrada da garagem.

Pude ver o desgosto estampado no rosto daquele pai acentuar-se ante o desespero da filha! - Nem é bom lembrar! - Que este relato, embora indispensável, seja breve e o silêncio sepulte a dor que, tanto tempo depois, ainda dói!

Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVII


Ao aroma que a flor exala
não tem outro similar,
perfuma o jardim e a sala,
como o filho enfeita o lar.
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As lembranças de algo ausente
com tons de felicidade,
fazem jorrar no presente
fortes chuvas de saudade.
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As vozes, que às vezes, ouço
ecoar com vibrações,
são murmúrios no arcabouço
das tenras divagações.
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Cada luzeiro disperso
brilhando na noite escura,
torna o festivo universo
com luz, magia e ternura.
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Do que plantas nos caminhos,
lembra, se com fé, cuidares,
não recolherás espinhos
das sementes que plantares.
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Evita que a dor se estenda
muito além do ferimento,
o bom senso recomenda
prudência no tratamento.
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Fiz da vida uma oficina
aonde o meu ser lapidei,
para torná-lo obra prima,
forma de joia eu lhe dei.
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Há quem diga; "não sei nada",
também não quer aprender...
É mais uma alma frustrada
nas escolas do saber.
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Inexiste alguém no mundo
que não queira a perfeição,
nem mudança, num segundo
chamada "revolução".
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Não tem luz, brilhante e intensa,
na ausência de um emissor,
quanto maior, mais propensa,
a estender seu resplendor.
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Não tenha acesso impossível
na estrada da educação.
E o saber, seja acessível,
a quem busca a evolução.
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Nem tudo é tão resistente
que ao forte nada estremeça.
Cresça a força no carente
e unidos ninguém pereça!
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No quadro, por trás da imagem,
há algo que por si nos fala,
faz parte de uma mensagem
que alguém tenta interpretá-la.
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O homem aprende a lutar
contra a morte, tão temida,
mas se esquece de enfrentar
a luta em favor da vida.
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O melhor rumo a seguires,
para ao fim, feliz chegares,
é tua alma, em paz, ouvires
e os teus passos planejares.
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O suor que o corpo expele
consequência de um excesso,
talvez, lubrifique a pele
mas seu peso fica expresso.
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O vento sopra e não tem
um rumo certo e se esvai,
ninguém sabe donde vem
tampouco, para onde vai.
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Por um mistério envolvida
segue temida, a criança.
E a esperança move a vida
na lida rumo a bonança.
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Que as rosas se multipliquem
na roseira e grande as façam,
embora os espinhos fiquem,
as rosas murcham e passam.
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Quem firmar sobre a verdade
seus passos na caminhada,
dissipa o temor que invade
a alma no curso da estrada.
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Sem poder ser combatido
o mal avança e se espalha
e o mortal, sem ter morrido,
chega a prover a mortalha.
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Se não sabes qual a estrada
mais fácil para avançares,
escolhe a menos errada
para o teu sonho alcançares,
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Se o luar, a alma fascina,
com seus dotes naturais,
a luz do sol te ilumina
na estrada, por onde vais.
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Se ontem semeaste em pranto,
hoje, rindo estás colhendo,
mesmo sob a luz do encanto
tudo acaba envelhecendo.
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Toda a névoa matutina
traz calor, ou chuva intensa,
se à baixada ou na colina
mostra a grande diferença.
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Todo homem quando mergulha,
no orgulho, tal prisioneiro,
faz do respeito uma agulha
e do mundo um vil palheiro.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 10: Negócios?

Mesmo debilitada, dona Ana recebeu alta e retornou ao lar sob os cuidados da filha.    

Por quatro dias seguidos, o senhor Antônio permaneceu em casa, dando ordens aos peões e estranhamente pensativo.

Tentando quebrar o gelo, Isadora tentava puxar um assunto e outro, mas o velho apenas balbuciava uns resmungos inaudíveis. Agitado, andando de um lado a outro, como quem procura alguma forma de solucionar um grave problema.

Mesmo em casa, ele entrava no quarto apenas para dormir, nunca para saber da mulher.

Atitude essa, muito incômoda a sua filha. Pois ela sabia o quanto poderia ser significativo o carinho do marido na  recuperação de dona Ana.

No entanto, os dias passavam e ele parecia cada vez mais alheio a tudo.

Depois de tanto tempo calado, o velho quebrou o silêncio:

-   “Fia”, faz uma ambrosia para a sobremesa. Hoje tem churrasco.

- Qual é o motivo da festa meu pai?

- Negócio. Tô fechando um bom negócio com uns xirus da cidade.

- Faço sim. - disse Isadora.

À porta de casa, o velho deu ordem para o Juca "carnear" algumas ovelhas e depois preparar os gravetos para acender o fogo de chão. Pediu também que chamasse os amigos do armazém do seu Feliciano.

- Não é apenas um jantar de negócios, meu pai? Qual o porquê de tanta gente que aparentemente não tem nada a ver com tais negócios?

- Não se mete “fia”, não se mete nisso.

- Com a mãe adoentada na cama, não fica bem fazer festa. Não é o momento.

- “Despois” que de tudo “resorvido” tu vai saber.

- Não tô entendendo. - disse Isadora, muito aflita.

- Explico “despois”. Chega de prosa.

Os peões organizaram uma mesa com bancos compridos para os convidados e, logo após o entardecer, acenderam o fogo. Os convidados foram chegando aos poucos. Todos muito contentes ao se reunirem para celebrar momentos de boa prosa. Em seguida, aos poucos, o sol se recolheu, seus raios dissolveram-se num tom rubro, banhando as nuvens de um vermelho sangue. Os pássaros retornaram aos ninhos, agitados, temerosos. E Isadora, ao olhar para o horizonte pela janela da cozinha, sentiu um calafrio enquanto aquele pedaço de céu, penetrava em seu olhar um raio de vermelhidão intenso, tornando seu olhar de lua em fase de penumbra, em dupla lua de sangue.                                   

Os visitantes da cidade chegaram um pouco atrasados.

- Este é o Pafúncio, um grande arrozeiro, que mora no centro de Cachoeira. E esse é seu “fio”, Fábio. Um guri "bueno", uma barbaridade! - disse Antônio, apresentando os amigos ao povo da fazenda.

Logo após a apresentação, o senhor, Antônio cochichou alguma coisa no ouvido de Fábio, um rapaz de cabelo aloirado, olhos azuis, rosto comprido, na casa dos trinta anos de idade.

Segundos após o cochicho, o jovem direcionou o olhar à Isadora, que por sua vez estava preparando a mesa.

Estavam presentes os peões da casa, os vizinhos da fazenda Boitatá, seu Feliciano e mais de dez homens frequentadores do seu armazém. Enquanto todos comiam, bebiam e conversavam sobre coisas do cotidiano ou contavam causos, Fábio buscava por uma oportunidade para falar com Isadora, que se encontrava muito ocupada, dividida entre as tarefas de servir e de observar a cada vinte minutos o estado de saúde de sua mãe.

No fim da noite, quando quase todos já tinham ido embora, o pai da Isadora parecia ainda muito aceso e numa crescente prosa com o amigo Pafúncio.

Cansado de esperar por uma boa oportunidade, Fábio aproximou-se da prenda, enquanto ela retirava os últimos pratos da mesa.

- Tu és linda, guria. - disse ele.

- Obrigada! - respondeu a moça sucintamente.

Ele tentou puxar assunto, mas ela foi logo se afastando, dizendo que precisava cuidar da mãe que estava acamada.

O rapaz secou o copo num último gole de trago e sorriu à toa, mirando a luz da lua.
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Nota de rodapé:
Xirus - plural de chiru. O mesmo que chiru.
Chiru - índio, caboclo, moreno carregado, que tem traços de indígena. Acaboclado, indiático. Expressão que também define, amigo, companheiro.
Trago -  denominação para bebida alcoolica.

 
Fontes das Notas
- Dicionário de Regionalismos. De Zeno e Rui Cardoso Nunes p. 116.
- Dicionário informal.
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continua…
 
Fonte:
Texto enviado pela autora

domingo, 27 de agosto de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 001

 

Humberto de Campos (A caçada)

A noticia de que S. M. o rei Alberto ia realizar uma caçada em terras da família Prado, em São Paulo, trouxe à minha lembrança, tão confusa nestes últimos tempos, o fantasma de uma velha saudade.

Estudante, ainda, na Paulicéia, fui eu convidado, um dia, pelo meu colega de turma, o atual conselheiro Antônio Prado, para um recreio venatório em propriedade de sua família, na serra do Cubatão, onde abundavam, ainda, naqueles tempos, o veado, a paca, o porco do mato, e, em especial, as onças, os famosos tigres americanos, que faziam enorme estrago na criação.

Organizada a comitiva, composta de numerosos cavalheiros da melhor sociedade paulista daquela época, partimos para São Bernardo, indo pousar, ao fim de dois dias de viagem, na fazenda do Encantado, pertencente a Exma. D. Veridiana, no ponto mais alto da serrania. No terceiro dia, enfim, partíamos todos para a mata, montando vinte e oito cavalos e conduzindo quarenta e sete cães, distribuídos pelos diversos membros do séquito.

Separados uns dos outros, ia eu beirando um córrego marulhoso que rolava da penedia, quando ouvi, ao longe, entre a reza religiosa da selva, o barulho da matilha, anunciando a caça. Esporeei o cavalo, venci um bosque de ipês, atravessei uma clareira, e cheguei ao local. Em uma furna da montanha, evitando, feroz, a pontaria dos caçadores, estava uma onça, acuada, mostrando os dentes enormes, agudos, afiados, para uma dezena de cães!

- Atire, doutor! - pedi, apeando-me, ao Dr. Antônio Prado.

- É impossível! - observou-me o futuro estadista.

A posição era, realmente, péssima. Defendido por umas raízes entrelaçadas à boca da furna, o felino não só impedia o avanço dos cães, como impossibilitava, em absoluto a pontaria dos caçadores. Vários tiros já haviam sido disparados pelos atiradores mais adestrados, conseguindo eles, apenas, enfurecer o animal, que empregava toda a sua agilidade na defesa.

De repente, ouviu-se um galope no rumo da furna; e, um minuto mais, apeava-se ao nosso lado, risonha, jovem, arrebatadora, a formosíssima Sra. Corrêa Aires, cuja beleza constituía, então, com o seu moreno rosado, seus olhos azuis e os seus finíssimos cabelos castanhos, o maior dos orgulhos de São Paulo.

- Que é? - perguntou, mostrando, num sorriso, os seus lindos dentes de neve, a furiosa amazona batendo com o chicotinho de ouro na sua pequenina bota de montaria.

- Uma onça! - explicamos, todos, a uma voz.

Nesse momento, a onça. que olhava, fixa, para fora. deteve os olhos na moça, como deslumbrada. A linda caçadora tirou do cinto de veludo uma pistola de caça, de cabo de marfim, levou-a à altura dos olhos, e. fazendo pontaria no felino, que a fitava, esquecido de si esmo, disparou. A fera deu um salto de dor, estorcendo-se. A matilha investiu, latindo, penetrando a furna. Um instante depois era a onça arrastada para fora, morta.

Sorridente. Fresca, maravilhosa, a divina caçadora colocou o pezinho sobre o corpo da fera, buscando-lhe a ferida. De repente, descobriu-a:

- Foi no coração! - disse.

E. encarando Antônio Prado, desafiadora:

- Morreu como certos homens...

Nós, em torno, baixamos os olhos.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público 

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para Refletir) – 2 -


A dúvida e a suspeita
vão juntas na caminhada...
Uma à outra se sujeita,
e vivem de quase nada!
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Às vezes o riso aflora
para esconder um desgosto.
Há muita gente que chora
sob a máscara do rosto.
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Às vezes, um pensamento
quando vai, torna a voltar:
a indecisão é um tormento
- pássaro preso a voar!
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Atrás de um riso insuspeito,
que, no entanto, esconde o luto,
há quem soluce e no peito
amargue o seu pranto enxuto.
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A tristeza que amofina
o coração de repente
é a saudade peregrina,
batendo dentro da gente.
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Bem pior do que a certeza
é a dúvida que nos mata:
uma só traz a tristeza,
outra os fantasmas desata!
= = = = = = = = = 

Dizem que é sempre o dinheiro
que tudo compra; no entanto,
quem quer amor verdadeiro
o paga, às vezes, com pranto.
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É palavra alegre ou triste,
carregada de incerteza,
porque na saudade existe
ainda uma brasa acesa!
= = = = = = = = = 

Esconde o pranto depressa
e finge que estás contente,
que aos outros não interessa
saber as mágoas da gente!
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Existe muita tristeza
que ao rosto jamais aflora.
guardada na profundeza
dos olhos de quem não chora.
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Há quem procure o tesouro
do amor num simples clarão,
e acabe como o besouro:
de asas batidas no chão.
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Há sempre o remanescente
do amor que foge. em surdina...
É a voz amarga e plangente
da saudade em cada esquina.
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Não turves a água do poço
- que permaneça intocado!
O velho não se faz moço,
larga de vez o passado!
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O bem e o mal, em verdade,
deixam profundas raízes,
pois até se tem saudade
dos amores infelizes!
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O ciúme que azucrina
a vida inteira de alguém
é uma lâmina assassina
que duas pontas contém.
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Quando a dúvida se instala
dentro de um peito infeliz,
não importa o que ela fala,
já se sabe o que ela diz!
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Quando a saudade campeia
e os olhos se fazem mar,
há milhões de grãos de areia
nas dunas do recordar.
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Quando deixamos o cais,
é na distância que a gente
aprende a compreender mais
os menos do amor ausente...
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Quando o passado se abre
numa flor incandescente,
profundo corte de sabre
volta a sangrar novamente!
= = = = = = = = = 

Quem busca um outro lugar
para fugir ao sofrer,
não deixará de lembrar
que é necessário esquecer...
= = = = = = = = = 

Quem gosta de fazer graça,
engana às vezes a sorte;
muita gente que fracassa
apenas se faz de forte.
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Quem perde a oportunidade
por medo de ser feliz,
não colhe nem a saudade,
que arrancou pela raiz!
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Se anoitece no teu dia,
pega um facho de luar,
laça uma estrela vadia,
vai outro amor procurar!
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Se o destino um sonho esmaga,
não chores inutilmente,
pois, se à tarde o sol se apaga,
volta a brilhar refulgente!
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Ser forte é fugir à chama
do bem que a gente mais quis
quando alguém que muito se ama
consegue assim ser feliz.

Fonte:
Enviado pela Trovadora.
Maria Thereza Cavalheiro. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009.

George Abrão (Dona Florzinha)

Dona Florzinha era uma senhora franzina de olhos vívidos, extremamente simpática. Usava sempre o cabelo em coque e vestia-se com apuro e elegância.

Morava em um casarão numa das esquinas da Praça dona Izabel, ao lado da igreja.

Todas as tardes dona Florzinha postava-se à janela, pois assim dava um dedo de prosa com cada passante e todos, invariavelmente, paravam para conversar, pois sua conversa era inteligente e sagaz, sempre em tom alegre e carinhoso.

Certa feita, já na boca da noite, uma solteirona que morava um pouco abaixo parou para conversar e dona Florzinha perguntou em tom jocoso:

- Menina, você não tem medo de andar na rua a estas horas? E se um tarado te pega?

A moça, então, no mesmo tom respondeu:

- Dona Florzinha, por favor, me avise se souber onde está o tarado. Eu é que quero correr atrás dele.

E riram-se a bandeiras despregadas.

Assim era dona Florzinha, pessoa inesquecível.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiane Braga Lima (O vento outonal)

Eu senti o vento do outono, a minha pele pálida e o meu corpo trêmulo ficou intacto. Plantei sementes férteis e as reguei para que, os frutos ficassem mais doces e as raízes, ficassem mais fortes. Deixei o passado para trás e todo caos enterrei. E pela primeira vez me fiz dona de mim, criando um vínculo com a mãe natureza.

As folhas velhas caíram, pois o vento do outono estava forte e no chão lá estava o passado. Olhei o meu rosto no espelho, brilhava, era um presente, o hoje, as sementes férteis, nas quais eu plantei.

Como mulher, me enxerguei. Eu sei, sempre estarei me emoldurando. Mas quanto ao passado, o vento do outono levou. Enterrei meus eus junto aos cacos. E, o grito que me atormentava se silenciou, dando espaço a uma nova mulher…! Liberta!

Fonte:
Texto enviado pela autora