terça-feira, 12 de setembro de 2023

Monsenhor Orivaldo Robles (A bolsa ou a vida)

Era um senhor idoso podre de rico, mas muquirana de não pagar cafezinho para a própria mãe. Trabalhara duro na roça até comprar uma propriedade. Daí para frente, a coisa deslanchou. Conseguiu acumular fortuna considerável. Filhas casadas há tempo, vivia agora com sua velha num confortável casarão de fazenda, cercado de todos os confortos da vida urbana.

Depois dos tantos anos de luta, começou a acusar os sintomas da idade. Com receio de ver reduzido o vultoso patrimônio, recusava-se a consultar um médico. Pouco valia a insistência da mulher e das filhas. Ele se esforçava para disfarçar qualquer sinal de dor. Se aparecia algum desconforto maior, recorria a remédios caseiros. Até que, não suportando mais os reclamos do velho corpo, foi obrigado, um dia, a pedir arrego. Acabou no consultório.

O médico lê a ficha preenchida pela secretária e pergunta: – “Então, seu Giácomo, o que é que o senhor tem”? – “Doutor, eu tenho”…, fez uma pausa; temia uma conta salgada, mas tinha também seu orgulho, tenho uma fazendinha de gado (mil e duzentos bois), de soja (dois mil hectares), tratores, colheitadeiras, uns apartamentos na cidade”… – “Acho que eu não me expliquei direito. Quero saber o que o senhor sente”. – “Ah, doutor, o que eu sinto é deixar tudo para os meus genros, três vagabundos, que não veem a hora de eu fechar os olhos para por a mão no que eu construí com uma vida inteira de sacrifício”.

Claro que é só uma anedota, mas poderia ter acontecido. Não é tão raro que genros lancem olhares gulosos para a fortuna dos sogros. Muita gente deve ter ouvido contar sobre o diálogo entre amigos: – E o velho seu sogro como vai”? “Ih, rapaz, aquilo é uma aroeira: está com uma saúde irritante”. Muitos adoram seus sogros, é verdade. Talvez em até maior número, porém, há os que não os suportam. Na maioria dos casos, a desavença passa longe do fator financeiro. Mas existem situações em que o peso do dinheiro figura no centro da questão.

Não se pode negar que a riqueza material define, às vezes de forma decisiva, a constituição de uma família. Quem já não ouviu afirmação do tipo: “Você viu que sujeito mais burro? Namorava a filha de um milionário e, sem mais nem menos, terminou com ela”. A mensagem é evidente: se a outra parte era rica, só um grande idiota deixaria escapar a chance de se ajeitar na vida. Apesar de tantos casais, por aí, infelizes por causa do dinheiro, ainda existe quem coloque a riqueza como exigência primeira de um casamento. Muitos parecem seguir à risca o jocoso ensinamento de que “ter pai pobre é destino; ter sogro pobre é burrice”.

Ninguém está defendendo o ingênuo romantismo de um amor e uma cabana. União nenhuma resiste à falta de uma razoável garantia material. Mas seria loucura dar como suficiente a segurança financeira. Muitos lares se esfarelam por carência de alicerces mais sólidos, que muita gente não entende necessários. Revela despreparo quem se satisfaz somente com beleza de corpo e bom cadastro bancário.

Que futuro haverá para jovens portadores de defeitos graves – falta de fé, de estudo, de trabalho, irresponsáveis, mentirosos, aproveitadores – ainda que belos e ricos? Será que, desde a infância dos pupilos, os pais estão atentos a isso? Se não corrigem os filhos pequenos, mais tarde poderá ser tarde demais.

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2012/03/17/a-bolsa-ou-a-vida/

Daniel Maurício (Leve-me) 1


A esperança
Costumava se vestir de verde.
Era reconhecida
Até no tremular
Das folhas ao vento.
Mas hoje,
Depois de muito lamento
Ela vem em doses pequenas
Disfarçada
Com vestido branquicento.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Clandestino
Embarco neste teu sorriso,
Mesmo sabendo
Que não era pra mim.
Nele viajo
Ainda que por instantes
Embalado
Por um resto de paixão
Que ainda brinca
Tão solitária
Aqui dentro de mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Com o apito do trem
Os corações
Despertavam.
Era gente que chegava
Era gente que partia
Com o apito do trem.
Com o apito do trem
Nos abraços
Desfaziam-se as saudades de uns,
Enquanto as lágrimas
Prenunciavam as saudades de outros.
Com o apito do trem
A vida pulsava
Até mesmo nas cidadezinhas mais remotas
E que hoje quase mortas
Sentem a falta
Do velho apito do trem.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Não se mata a saudade
Impunemente.
Preso fiquei
No teu olhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Nas tardes de domingo
Olho nos teus olhos
E deixo que
As minhas meninas
Brinquem
Com as meninas
Dos teus olhos
Sem me importar
De que já seja
Quase inverno.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

No desfilar dos dias
Aprendi a desbastar ideias,
A por ponto final
Em muitas frases inacabadas,
A lógica das crianças é simples
E a felicidade delas é tão plena.
Abandonei a pressa
Pois a vida passa até por uma fresta.
Melhor valorizar a pausa,
Mesmo que seja
Pra contrariar a Gramática
Ao se colocar vírgulas
Onde elas não caibam.
O amor é a definição de Deus,
O resto é coleção de "eus"
Sujeitos a ficarem perdidos no breu,
Ou quem sabe em caixas
A mofar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Nos meus silêncios
Adoro o falar
Das tuas mãos
Em minha pele.
Tudo fica bem!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O "eu te amo"
Era pra ser pra sempre.
Mas na primeira "chuva"
Descobriu-se
Que tinha sido uma promessa
Escrita a giz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Os dias
Andavam
Pesados.
Vagarosas
Cinzas no olhar.
Mas eis
Que o menino
Que em mim
Habita
Começou
A pintar palavras
Com as sobras
De lápis de cor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Outono.
As folhas que caem
São lágrimas das árvores
Se despedindo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Quando disse
Que te queria,
Não estava a procurar
Apenas rima.
Rimar é fácil
Remar a dois, não.
E como é bom
Quando os corações
Batem no compasso
Do mesmo verso.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Que pena!
Os seus "eus"
Eram tantos
Que o nós
Ficou num canto
E só de vez
Em quando
Em cima
Da cama.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Ser escritor
é...
descrever
a própria dor,
dísfarçando-se
em um personagem.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sozinha?
Ah, se tu
Soubesses
Que era eu
Uma daquelas
Pétalas
Que desprezastes
Julgando ser um
Malmequer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Tem passado
Que não passa.
Um deles
É o meu amor
Por você.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Teus beijos
São poesias escritas
Na minha pele.
E a minh'alma
Sabe todas de cor.

Fonte:
Daniel Maurício. Leve-me. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 12: A sombra da macieira

Alguns dias depois, dona Ana recebeu alta e retornou ao lar.

A operação foi bem executada, mas as sequelas do infarto foram grandes, e ela continuou muito debilitada.  

Isadora, inconformada em ter que entregar seu destino a um desconhecido, saiu a cavalgar. Precisava sentir o vento soprar forte no rosto, e de tempo para refletir sobre a nova realidade. Dona de um espírito livre, marcante, mal podia imaginar como seria a sua vida dali em diante. De toda forma, precisava manter-se equilibrada, pois à noite, Fábio e sua família viriam oficializar o noivado num jantar simbólico. Precisava estar preparada para o momento do sacrifício, afinal, foi com o dinheiro da sua futura nova família, que a operação de sua mãe foi paga. E, com o dinheiro da mesma família, as terras de seus pais seriam salvas.

Desejava se sentir grata por isso. Mas sua alma revolta feito vento em dias de tempestade, aterrorizava-se ao imaginar ir para a cama com aquele homem, cuja beleza poderia parecer agradável à maioria das gurias de sua idade, mas que nela não causara impacto algum. Ao contrário, havia detestado a maneira indecente com que o rapaz observou seu corpo na noite do tal jantar de “negócios”, onde, ela foi negociada.

Apesar de tudo, Isadora não estava arrependida. Sua mãe estava viva. E isso era o que importava.

Repentinamente uma imagem cortou - lhe os pensamentos:

Genuíno, também a cavalo, vinha em sua direção.

- Viestes mesmo - disse ela um tanto, surpresa.

- Sou homem de palavra, guria - respondeu o rapaz, sorrindo.

- Em qual fazenda tu trabalhas?

- Na fazenda dos Gonçalves.

- Ah, sim. São conhecidos da minha família.

- Algum problema em conversarmos?

Isadora apeou do Relâmpago. Prenderam os cavalos no tronco de uma árvore e saíram a passear. Logo em seguida alguns peões começaram os cochichos:

- Será peão novo? - disse Juca a Juliano.

- Pode ser, mas o que ele está fazendo com a patroazinha? Quem trata desses assuntos é o chefe.

- Sei lá... o patrão deve estar ocupado com a esposa convalescente.

- Estranho, Juca, a gente sabe que o patrão não é muito chegado a negros na fazenda.

- Tá aí uma verdade... Mas vamos cuidar do nosso serviço, ainda hoje tenho que encaminhar uma carga de arroz lá para a cidade - disse o capataz.

Isadora sabia das consequências em ser pega pelo pai, acompanhada de um rapaz, ainda mais no mesmo dia em que iria ficar noiva, mas sabia que o velho estava longe. E que quando saía da fazenda, demorava a voltar. E mandar Genuíno embora seria como se perder da esperança da possibilidade de um dia ser feliz e livre em suas escolhas. No centro do jardim, debaixo de um pé de macieira, onde costumava refletir e escrever poesias, acomodou -se o jovem. Dando início a uma conversa muito agradável... Livre de receios!

Isadora sentiu seu coração pulsar como nunca antes havia sentido. Estava feliz. E torcendo para que aquele momento durasse para sempre. Mas sabia que logo terminaria, e que a luz daquele dia, se tornaria treva: uma treva cheia de labirintos sem saída.

Enquanto conversavam, Isadora surpreendeu-se ao descobrir que Genuíno era órfão de pai e mãe, e que desde de piá precisava trabalhar duro para sobreviver.  Surpreendeu-se mais ainda ao perceber que tantas dificuldades não fizeram dele um homem amargo e tristonho. Ao contrário, o rapaz tinha uma mente inteligente e olhos cheios de brilho. Naquele momento ele era, sem sombra de dúvida, seu símbolo de esperança. De uma esperança bonita, dessas que normalmente só se descobre uma vez na vida. Por isso, aquela tarde não podia partir levando embora sua doce esperança. Mas iria...

As horas passavam depressa. Genuíno desabafou sua história de vida, e ela não teve coragem de dizer que a história de amor entre eles se resumiria numa única tarde moldada pelos anjos, feita de poesia. 

- Está entardecendo. Preciso voltar para casa, Genuíno.

- Quando podemos conversar novamente?

Isadora pensou numa resposta rápida. - Sei onde trabalhas. Logo te farei uma visita.

- Gostei da iniciativa - disse ele.

- Mas não te assanhes. Somos apenas amigos.

- Aceito tua amizade de bom grado - disse o rapaz entregando a ela um papel enrolado em laços de fitas vermelhas.

- É um poema? 

- Sim.

Ela agradeceu. Lentamente os dois se afastaram. E Isadora, mesmo inconformada, voltou para casa encorajada a enfrentar a batalha que se aproximava.
======================
continua...

Fonte:
Texto enviado pela autora

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Adega de Versos 111: Medeiros e Albuquerque (1867 – 1934)

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 91

Assobiaram e sibilaram nas altas horas os ventinhos de agosto. Vieram mansinhos, mansamente, e logo as primeiras vozes nos beirais.

O bochincho cresceu, raios rondando, vozerio nas frinchas de portas e janelas. Vozes do Além. A porteira rangendo, as vacas berrando na estrebaria. Madrugada sonora. Alarido dos ventos.
 
Amanhecer silencioso, anuviado, só os canarinhos. Harmonia opaca que foi carregando no espaço, horizontes velados, prenúncios - pré-anúncios - de chuva a caminho. A tarde chegou e com ela os primeiros pingos serenos neste agostinho bem molhado, invadindo as veredas da noite.

Ventos e chuvas são forasteiros sem fronteiras levando mensagens de toda espécie, das fagueiras às mais insolentes, em avatares dulçurosos ou tormentosos, graciosos ou em alaúza. E sempre foi assim, essa constância inconstante atravessa os anos de nossas vidas e nos põe lado a lado junto à natureza na sina de transitórios.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Aparecido Raimundo de Souza (João e Maria)

AOS QUINZE anos, o João chegava para a sua vizinha, a Maria, e mandava a pergunta. Fazia a proposta na lata, na bucha, sem titubear:

— Maria, quer se casar comigo?

A Maria (dois anos mais nova que ele), se mostrava rápida e taxativa:

— Não.

João, insistente se declarava como um menino bobo diante do primeiro amor da sua vida:    

— Eu te amo.

Maria, fria e seca, sempre que o guri voltava à carga, atirava no infeliz um balde de água fria:    

— Eu não te amo. Nunca me casaria com você. Um pobretão!...

João, entristecido sem, contudo, perder o brilho da paixão, insistia:

— Pense. Nos conhecemos desde criança. Passamos a ser vizinhos desde o momento em que as nossas famílias vieram morar aqui em Carapicuíba, mesmo bairro, nesse conjunto da Cohab e, coincidentemente, as nossas portarias bateram com seus narizes de frente e passaram a respirar o mesmo ar benfazejo...

Maria, enfezada e doida para encerrar a conversa não abria a guarda:

— E o que todo esse papo furado tem em comum?

João, sem perder o fulgor da ternura trazida no rosto, toda vez que conseguia se aproximar da graciosa, não desperdiçava as poucas migalhas da esperança. Se declarava um admirador inveterado:

— Casa comigo, minha linda. Fomos feitos um para o outro. Nossos destinos se cruzaram desde que você e eu nos vimos pela primeira vez na estação de Osasco. Você estava com seu pai, eu com minha mãe. Sinto aqui dentro do peito que você se fez prometida, desde então, para ser a mulher da minha vida.

Maria, intransigente e desdenhosa, parecia prestes a soltar fogo pelas ventas. Berrava:

— Culpa da minha mãe, que teve a maior cara de pau. Logo na semana em que mudamos para a Cohab, faltou açúcar lá em casa. A pobrezinha saiu feito uma desmiolada pedindo para os vizinhos. Com tantas espeluncas espalhadas, a coitada resolveu bater justo no miserento do seu bloco. Coincidentemente... desde aquele fatídico dia, você grudou na minha aba.

João, afoito e cheio de garbo, não desgarrava da altivez. Reiterava seus desejos não correspondidos pela desmiolada aproveitando os mínimos detalhes embutidos nos desprezos ventilados por ela:

— Prova do destino de que fomos feitos um para o outro. Nossas almas se cruzaram (além da estação), uma segunda vez, ou seja, exatamente em face daquela simples falta de açúcar. Por mais que você queria lutar contra, não terá escapatória. Você será minha, minha, entendeu? Farei de você a esposa mais linda aqui da comunidade. Como tal, você me dará um penca de filhos. E deixará de trabalhar como faxineira na fábrica de lâmpadas da Osram.

Maria fazia pouco caso e sorria em escárnio, desprestigiando as palavras que entravam por um ouvido e saiam pelos cotovelos:

— Uma ova, cara. Vai te lascar. Nem que a vaca tussa ou espirre.

João, paciente, fingia não ouvir os atrevimentos desaforados que a megera soltava, sem papas na língua e continuava a se abrir pior que mala velha num conformismo inigualável:

— Adoro esse seu lado humorístico. Nunca ouvi dizer que vaca tossisse ou espirrasse... de onde você tira essas frases saborosas e criativas para acariciar meu âmago?

O tempo passou voando. João se mudou de Carapicuíba. Maria, continuou por lá. Hoje a criatura conta vinte e cinco e João (mais velho que ela dois anos) se esbarraram, por mero acaso, na saída da missa dominical na Paróquia de São Paulo Apóstolo. A mesma localidade da Cohab, onde sempre viveram desde os primórdios da infância. João, ao reconhecer o seu amor impossível, seguiu a jovem e a alcançou montado em seu carrão, um Speedtail azul metálico da McLaren. Uma máquina de fazer inveja ao Audi R8 vermelho do Roberto Carlos. Ao vê-la, buzinou e meteu o pé no freio:  

— Maria, ei, Maria! Lembra de mim? Sou eu, o João...

Maria, ao reconhecê-lo naquele possante, perdeu momentaneamente o fôlego e, igualmente, estancou a caminhada:

— Jo... Jo... João?  - É você mesmo?

João, em resposta, saltou correndo e cheio de saudade se amoldou ao corpo escultural da moça. Falou, quase sem voz:

— Sou eu, Maria. Em carne e osso. Me formei em medicina. Comprei uma mansão em Aldeia da Serra para meus pais e, ao lado, adquiri uma outra para mim. Para nós. Ainda no correr desse mês, quero retirá-los daqui da Cohab e levá-los para uma vida mais digna e sem atropelos. Eu...

Naquele momento, Maria, em choro convulsivo, interrompeu João e mudou o rumo da prosa. Inopinadamente se enroscou como uma cadelinha no cio no pescoço do rapaz e mandou a pergunta:

—... João, meu amor... ainda quer se casar comigo?!  

Embevecida de uma paixão claramente momentânea, completou, eufórica:

— Quero ser sua esposa de verdade e lhe dar uma penca de filhos...

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Lilia Maria Machado Souza (Cristais Poéticos)


ATRIZ


Na vitrine dos dias
invento sorrisos
escondo as dores
que brotam nos olhos.

Nos risos tantos
de boa atriz
quase acredito
que sou feliz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

BAMBU

Inda que sangre o dia
do sol ao breu
inda que dura seja
a pouquidade de palavras
vergo mas sigo de pé
a repartir o pão
recolher as roupas no varal
aguar as plantas na varanda.

Inda que sangre a carne
seque o céu da boca
riachem os olhos
calejem as mãos
vergo mas sigo de pé
cravo os dentes na dor
vou descabelando ventos
ao encontro do amanhã.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

INSCRIÇÕES

Nas paredes do ventre
na pele das veias
desenho soltas palavras
com pena e nanquim.

No labirinto
de desejos e medos
registro inacabados versos
com ponta de sabre.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

LÂMINA

O silêncio
- lâmina de aço —
corta o dia
transpassa a carne
o ventre fatia
perfura o peito
sangra a tarde.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

LEMBRANÇAS DE UM AMOR

Num lindo dia de verão
de tanta alegria sentir
meu olhar encontrou paixão
nas paisagens, sem refletir.

A voz embargada dobrou-me.
Os olhos, com lágrimas cerraram-se.
A lembrança um canto relembrou
e o coração insano, disparou.

Sentimentos afloram-se no peito.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

MARRAKECH

Em imaginação
viajo aos longes
chego a Marrakech
ruas labirintos
ogivas mesquitas
camelos tapetes
sedas lanternas
rubros pores do sol.

No coração
tantos mistérios
milagre da festa
celebração da alegria.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

POTENGI

Mais veloz do que o vento
voa o pensamento a lonjuras.

Revejo o sol poente
desaguando ouros e rubis
à margem da correnteza.

Solitário barco tange
as águas tingidas.
Violinos tocam
o fim do dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

PROPAGAÇÃO

No alto do penhasco
finco no chão os pés
enquanto os ventos
reviram as dobras
de minhas vestes
as rendas das anáguas
as flores nos cabelos.

Do alto do penhasco
grito teu nome
a todos os quadrantes
em estranhas línguas
enquanto os ventos
agitam-me as asas
e teu nome ecoam...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

REFLEXÃO

No sonho te procurei...
Na dor que em ti encontrei
neste mundo exultarei.
Só sei que nada sei.

Viajo buscando um rumo.
Navego sem direção,
voando sem muito prumo,
andando na contramão.

Ajudo pedindo auxílio.
Caminho com lentidão
retendo no meu esforço
o plano da evolução.

Oportunidades surgem
a cada passo nesta jornada.
Tomar decisões que urgem,
depende da caminhada.

Aprendi com as lições
de um mundo a que pertenci
e, superando emoções,
eu vim, eu vi e venci
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TESSITURA

Dos desequilíbrios
do coração
da imaginação
como flores na primavera
em pétalas de ternura
brotavam palavras
teciam sóis nascentes
correntezas de rios
frescor dos bosques
rendas do mar nas praias
estrelas sobre os vales
voos de borboletas
cantos do passaredo...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Lilia Maria Machado Souza nasceu em Volta Redonda/RJ, em 1954. Residente em Curitiba/PR. Graduou-se em Letras e especializou-se em literatura Brasileira e Construção de Texto. Tem contos, crônicas, poemas, artigos de análise literária registrados em publicações conjuntas, em jornais e revistas literárias ou afins; trabalhos apresentados em congressos, publicados em seus anais. Publicou os livros de poemas Agua e Luz (1998); Avesso em versos (2001); Olhares canhestros (2015); Estórias de Trevol do Nada (contos, 2018); Onze poemas (2018, edição bilíngue), Chá das cinco (2018) e Trilhas sazonais: versos liturgos (2020, em coautoria).

Membro correspondente da ATRN — Academia de Trovas do Rio Grande do Norte (Parnamirim) e do ICOP - Instituto Cultural do Oeste Potiguar (Mossoró - RN); Membro efetivo do Centro de Letras do Paraná e da UBT — União Brasileira de Trovadores/Seção Curitiba. Integrante da Academia Paranaense da Poesia, da Academia Feminina de Letras do Paraná (cadeira 33), da ASBL — Academia Sul-Brasileira de Letras, da ACCUR — Academia de Cultura de Curitiba. Participa da Confraria Literária Café & Poesia (Mossoró) e do Observatório da Cultura Paranaense.


Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Enviado por Lucília Trindade Decarli.

Machado de Assis (Fulano)

Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta anos. Morreu ontem, dois de janeiro de 1884, às onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a força de ânimo que mostrou em toda a moléstia. Caiu na véspera de finados, e a princípio supúnhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de dois meses e poucos dias a morte o levou.

Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Há de conter por força algumas determinações de interesse geral e honrosas para ele. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem muito metido consigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botânico, para onde ia de ônibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze anos. Foi nesse ano que ele começou a ocupar-se com outras coisas, além da família, revelando um espírito universal e generoso. Nada posso afirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo por ocasião dele fazer quarenta anos. Fulano Beltrão leu no Jornal do Comércio, no dia cinco de março de 1864, um artigo anônimo em que se lhe diziam coisas belas e exatas: — bom pai, bom esposo, amigo e pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça, era muito; mas anonimamente, era raro.

— Você verá, disse Fulano Beltrão à mulher, você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.

Castro e Xavier eram dois habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer coisas amáveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade da família, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que ele se benzia com elogios. Pode ser que me engane; mas estou que o espetáculo da justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas ações não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a aparecer, a divulgar-se, a dar à coletividade humana um pouco das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, à mesma hora em que o lia também; imaginou que o comentavam, que interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um fenômeno de alucinação que a ciência há de explicar, e que não é raro, ouviu distintamente algumas vozes do público. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distinto, amigo dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que ele vira empregados em outros, e que na vida de bicho do mato em que ia, nunca presumiu que lhe fossem — tipograficamente — aplicados.

— A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher.

Foi ela, D. Maria Antônia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em atenção à dona da casa confessava a autoria; e acrescentou que a manifestação não saíra completa, porque a ideia dele era que o artigo fosse dado em todos os jornais, não o tendo feito por havê-lo acabado às sete horas da noite. Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no Diário do Rio e no Correio Mercantil.

Quando mesmo, porém, este fato não desse causa à mudança de vida do nosso amigo, fica uma coisa de pé, a saber, que daquele ano em diante, e propriamente do mês de março, é que ele começou a aparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia às assembleias das companhias, não votava nas eleições políticas, não frequentava teatros, nada, absolutamente nada. Já naquele mês de março, a vinte e dois ou vinte e três, presenteou a Santa Casa de Misericórdia com um bilhete da grande loteria de Espanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guardá-la, parecendo-lhe que não a publicar era uma desatenção. Com efeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma delas comentários desenvolvidos acerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta notícia, muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas ocorrências: "Fulano Beltrão é aquele mesmo que, etc.", primeiro alicerce da reputação de um homem.

É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe sumariamente que as injustiças da rua começaram a ter nele um vingador ativo e discursivo; que as misérias, principalmente as misérias dramáticas, filhas de um incêndio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos socorros que, em tais casos, devem ser prontos e públicos. Ninguém como ele para um desses movimentos. Assim também com as alforrias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito comum aparecerem na Praça do Comércio crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava três quartas partes das subscrições, com tal êxito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.

A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ela, é possível que nunca lhe tivessem acudido. Não falo do baile que ele deu para celebrar a vitória de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a notícia da batalha, e ele não fez mais do que atribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação da família, meter o retrato do almirante Barroso no meio de um troféu de armas navais e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, à ceia, alguns brindes patrióticos, como tudo consta dos jornais de 1865.

Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem característico da influência que a justiça dos outros pode ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do Tesouro, aonde tinha ido tratar de umas décimas. Ao passar pela igreja da Lampadosa, lembrou-se que fora ali batizado; e nenhum homem tem uma recordação destas, sem remontar o curso dos anos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no colo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este efeito; atravessou o adro, entrou na igreja, tão singela, tão modesta, e para ele tão rica e linda. Ao sair, tinha uma resolução feita, que pôs por obra dentro de poucos dias: mandou de presente à Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador — a data da doação e a do batizado. Todos os jornais deram esta notícia, e até a receberam em duplicata, porque a administração da igreja entendeu (com muita razão) que também lhe cumpria divulgá-la aos quatro ventos.

No fim de três anos, ou menos, entrara o meu amigo nas cogitações públicas; o nome dele era lembrado, mesmo quando nenhum sucesso recente vinha sugeri-lo, e não só lembrado como adjetivado. Já se lhe notava a ausência em alguns lugares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antônia via assim entrar-lhe no Éden a serpente bíblica, não para tentá-la, mas para tentar a Adão. Com efeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas coisas, mostrava-se tanto na Rua do Ouvidor, à porta do Bernardo, que afrouxou a convivência antiga da casa. D. Maria Antonia disse-lho. Ele concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudara de costumes, não mudara de sentimentos. Tinha obrigações morais com a sociedade; ninguém se pertence exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a idade do matrimônio, e casa fechada cria morrinha de convento; por exemplo, um carro, por que é que não teriam um carro? D. Maria Antônia sentiu um arrepio de prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.

— Não! Carro para quê? Não! Deixemo-nos de carro.

— Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juízo da provedoria. Não veio ainda ninguém; esperemos à porta. Tem pressa? São vinte minutos no máximo. Pois é verdade, comprou uma linda vitória; e, para quem, só por modéstia, andou tantos anos às costas de mula ou apertado num ônibus, não era fácil acostumar-se logo ao novo veículo. A isso atribuo eu as atitudes salientes e inclinadas com que ele andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, à maneira de pessoa que procura alguém ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das atitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indiferença ou despreocupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Elas, aliás, não gostavam de sair de carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecer-lhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo: — aí vem a família de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que ele talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.

No ano de 1868 deu entrada na política. Sei do ano porque coincidiu com a queda dos liberais e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que ele declarou aderir à situação, não à socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha ideias políticas; quando muito, dispunha de um desses temperamentos que substituem as ideias, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma alucinação de momento. Viu-se na Câmara vibrando um aparte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do Conselho, que sorria para ele, numa intimidade grave de governo. E aí é que a galeria, na exata acepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que pôde para entrar na Câmara; a meio caminho caiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao Itaboraí o contrário do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas perdeu a eleição, e deu de mão à política. Muito mais acertado andou, metendo-se na questão da maçonaria com os prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio; por um lado, era maçom; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflito tomou tais proporções que ele não podia ficar calado; entrou nele com o ardor, a expansão, a publicidade que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou muito da liberdade de consciência e do direito que assistia ao maçom de enfiar uma opa; assinou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.

Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que a enterrasse sem aparato, e ele assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua última vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dor com o público; e, se enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na Rua do Ouvidor, durante perto de um mês. A filha ainda veio assistir à inauguração. Deixei de os ver uns quatro anos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dois meses o levou desta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força d'alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar às que chegavam, as que acabavam de sair; coisa inútil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu ler os jornais, e num deles uma pequena comunicação relativamente à sua moléstia, o que de algum modo pareceu reanimá-lo. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; à noite expirou.

Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são eles. São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das práticas tabeliosas; mas isto mesmo de contar a família desde o quarto avô prova o espírito exato e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O cerimonial do saimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos pios; alguns industriais. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...

Trinta contos para quê? Para servir de começo a uma subscrição pública destinada a erigir uma estátua de Pedro Álvares Cabral. "Cabral, diz ali o testamento, não pode ser olvidado dos brasileiros, foi o precursor do nosso império." Recomenda que a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração mineira, e o de dois cidadãos da presente geração "notáveis por seu patriotismo e liberalidade", à escolha da comissão, que ele mesmo nomeou para levar a empresa a cabo.

Que ela se realize, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a comissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estátua de Cabral, é da nossa honra que ele contemple num dos medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.

Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado originalmente em 1884.
Disponível em Domínio Público

domingo, 10 de setembro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 33

 

Contos do Paraná ("Bento Cego", de Valência Xavier)


Bento Cordeiro nasceu no Registro, em Antonina, lá por 1821. Nasceu cego e pobre, filho de 
caboclos do nosso litoral. Logo perde o pai, e a sua mãe, Ana Maria, tem de manter o barraco da família e cuidar do filho cego.

Mocinho, Bento foi numa festança, onde os caboclos dançavam fandango batendo pé com os tamancos chumbados de chocalhos. Lá estava Chico Folião, o Rouxinol da Faisqueira, cantador de muita fama. Chico Folião já tinha derrotado todos outros repentistas da noite. Cada quatro porfias ganhas davam direito ao prêmio: um galho de arruda na viola e a admiração das moças.

As moças assanham Bento para desafiar o campeão, afinal ele era dono da mais bela voz do coral da igreja. Arranjam uma viola para Bento e começa seu primeiro combate. Chico Folião parte para o ataque. "Nem namorar você pode/ porque vista não tem/ vive só sem ser amado/ sem olhar não se quer bem”. Bento cego contra-ataca: "Sem olhar também se ama/ a mulher que estima a gente/ os olhos são traidores quando o coração não sente".

A porfia segue braba e, por fim, Chico Folião se confessa derrotado. Cabelão comprido, moço bonito logo enfrenta outro cantador famoso. A peleja termina com os dois chorando com os versos de Bento: "Não posso dizer se tal coisa/ é feio ou bonita/ porque me vejo no abismo/ da escuridão infinita."

Antonina fica pequena para ele. Bento Cego se despede da mãe e sai pelo mundo afora vencendo desafios. Sente fraqueza nos pulmões e vai para Lapa se curar. Lá enfrenta o invicto Manoel Viola e diz o que pensa da mulher: "Tem amor tem distinção/ ralha e fala/ mas não deixa de escutar teu coração". Manuel Viola alerta: "Pois então se é assim/ estás de todo perdido/ Hás de verter coração/ cair bem logo vencido". Bento reflete: "Bem vindo que seja ele/ pela graça da mulher/ antes ela nos vença/ do que a mão de Lúcifer". Vence mais esta porfia. Sente-se curado e segue seu caminho.

Fica em Santa Catarina, numa casinha dum fazendeiro seu fã. Encontra o amor: é Catarina, uma bela jovem órfã que trabalha na roça. Ela cuida dele e tudo vai bem, mas Bento Cego quer mais: "Só quisera ter a dita/ de filha te enxergar/ que a vida eu não gozaria/ diante de teu olhar". Ela sorri para Bento, os dois se amam: "Não há dúvida que tens/ muita candura no amor/ mas eu quisera senhora/ ver-te sorrir com fulgor". Vivem felizes.

Um dia, ele acorda e não sente mais o doce cheiro do corpo de Catarina. Sem aviso, ela foi embora. Seu mundo fica mais escuro. Sem poder suportar a solidão, Bento parte. Talvez um dia, reencontre Catarina, o amor.

Um dia aparece em Sorocaba, amargo, cansado e com os pulmões doentes. Mesmo fraco, aceita enfrentar ao mesmo tempo 3 cantadores. A porfia segue por 3 dias e 3 noites. Caindo de cansaço. Bento Cego ainda canta: "Hei de morrer cantando/ Cantando me hei de enterrar/ Cantando irei para o céu/ Cantando conta hei de dar". Diz-se que, nesse momento, levantou os olhos ao fundo da sala, onde havia uma imagem da Virgem. Nesse momento, viu a imagem da Virgem. Ninguém sabe. Nesse momento, ele caiu morto, deitando sangue pela boca. Ninguém sabe, mas acho que, nesse momento, ele não viu a imagem da Virgem, viu novamente o amor, viu Catarina.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 8 -


Cristóvam Pavia
(Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho)
(Lisboa/Portugal, 1933 – 1968)

AO MEU CÃO

Deixei-te só , à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação 
De tudo… e apesar disso, sem o pedir,
tentando Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia,
a debater-te
Com a morte.

E deixei-te só , à beira da agonia, 
tão aflito, 
tão só e
sossegado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Daniel (Damásio Ascensão) Filipe
(Cabo Verde/Portugal, 1925 – 1964, Lisboa/Portugal)

MORNA

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta.)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– sutil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fernando Echevarría (Ferreira)
(Cabezón de la Sala/Espanha, 1929 – 2021, Porto/Portugal)

QUALQUER COISA DE PAZ

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruina
a luz da fronte onde a atenção domina.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fernando (António Nogueira) Pessoa
(Lisboa/Portugal, 1888 – 1935)

TUDO QUANTO SONHEI

Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.

Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.

A ti talvez, que não te têm dado,
Darão enfim…
A mim… Sei eu que duro e inato fado
Me espera de mim?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Manuel António Pina
(Sabugal/Portugal, 1943 – 2012, Porto/Portugal)

AMOR COMO EM CASA

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. 
Faço de conta que não é nada comigo. 
Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. 
Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, 
e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar à tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Natália (de Oliveira) Correia
(São Miguel/Portugal, 1923 – 1993, Lisboa/Portugal)

MÃE ILHA

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que pra mim sonhaste,
Ó mãe completa da manhã ao ocaso,
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti pras Índias do meu estranho caso
—ó danos que dos versos sois o engate!—
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou no canto dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e à onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul de mãe esperando.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Virginia Woolf (Casa mal assombrada)

A QUALQUER HORA QUE VOCÊ acordasse havia alguma porta batendo. De quarto em quarto eles iam, de mãos dadas, erguendo aqui, abrindo ali, certificando-se - um casal de fantasmas.

"Deixamos aqui", ela disse. E ele acrescentou: "Oh, mas aqui também". "No andar de cima", murmurou ela. "E no jardim", sussurrou ele. "Silêncio", disseram ambos, "senão vamos acordados."

Mas não era que nos acordassem. Oh, não. "Eles estão procurando; estão abrindo a cortina", bem que eu poderia dizer, e assim ler ainda uma ou duas páginas. "Agora acharam", saberia então com certeza, parando o lápis na margem. E aí, cansada de ler, poderia me levantar para ir ver com meus olhos a casa toda vazia, as portas todas abertas, só as pombas da mata borbulhando de contentamento e a zoada da máquina de debulhar que vem da fazenda. “Por que foi que entrei aqui? O que era que eu queria encontrar?" Minhas mãos estão vazias. "Talvez lá em cima?"

As maçãs estavam no sótão. E assim de novo para baixo, o jardim tranquilo como sempre, só o livro que escorregou para a grama. Na sala de visitas o encontraram, porém. Sem que alguém pudesse vê-los jamais. As vidraças refletiam maçãs, refletiam rosas; todas as folhas eram verdes no vidro. A maçã se limitava a virar seu lado amarelo, se as folhas se mexessem na sala. Entretanto, no momento seguinte, se a porta fosse aberta, estendia-se no chão, descia pelas paredes, pendia do teto — o quê? Minhas mãos estavam vazias. A sombra de um tordo atravessou o tapete; dos poços de silêncio mais fundos a pomba da mata extraiu sua bolha de som. "Em segurança, em segurança", suavemente bate o pulso da casa, "O tesouro enterrado; o quarto...", para o pulso de repente. Oh, então era o tesouro enterrado?

Um momento depois a luz se apaga. Talvez lá fora no jardim? Mas as árvores protelam a escuridão por causa de um peregrino raio de sol. Tão fino, tão raro, cravado tão friamente sob a superfície, o raio que eu sempre procurei queimava além da vidraça. A morte era o vidro; a morte estava entre nós dois; primeiro indo à mulher, há centenas de anos, deixando a casa, lacrando todas as janelas; os quartos se escureciam. Ele as deixava, mulher e casa, ia para o Norte, ou para o Leste, viu o giro das estrelas no céu do Sul; procurou pela casa, achou-a afundada na região dos Downs. "Em segurança, em segurança", batia alegremente o pulso da casa. "O tesouro é seu."

O vento ruge na alameda. As árvores curvam, dobram-se de várias maneiras. O luar se esparrama e respinga forte na chuva. Mas direto da janela vem o facho de luz. A vela queima tesa e quieta. Pervagando pela casa, abrindo as janelas, cochichando para não nos despertar, o casal de fantasmas procura sua alegria.

"Aqui nós dormimos", diz ela. E ele acrescenta: "Beijos sem conta". "Acordando de manhã..." "Com o prateado entre as árvores... Lá em cima..." "Lá no jardim..." "Quando o verão chegou..." "Na época de neve do inverno..." E bem ao longe as portas vão se fechando, batendo lentamente como um coração a pulsar.

Eles chegam mais perto; param na entrada. O vento sopra, a chuva escorre prateada no vidro. Nossos olhos se toldam; não ouvimos passos ao lado; não vemos mulher alguma abrindo sua vestimenta fantasmal. Já ele protege o lampião com as mãos. "Olhe só", sussurra. "Dormem a fundo. Com amor nos lábios." 

Dobrando-se, mantendo acima de nós seu lampião de prata, longa e profundamente eles olham. Longa é a pausa que fazem. O vento impele certeiro; a flama verga fragilmente. Fachos fortes de luar cruzam o chão e a parede e, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces que ponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.

"Em segurança, em segurança", bate orgulhoso o coração da casa. "Muitos anos...", suspira ele. "De novo você me achou." "Aqui", murmura ela, "dormindo; no jardim, lendo; rindo, rolando maçãs no sótão. Foi aqui que nós deixamos nosso tesouro..."

Dobrando-se, sua luz ergue em meus olhos as pálpebras. "Em segurança! Em segurança! Em segurança!", bate descontrolado o pulso da casa. E eu, despertando, grito: "Oh, é isto o seu tesouro enterrado? A luz no coração".

Fonte:
Virginia Woolf. Casa mal assombrada e outras histórias. Publicado em 1948.
Disponível em Domínio Público.