segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Renato Frata (Oportunidades)

Meu pai, de grata memória, embora às vezes, tivesse problemas com a bebida, era um homem que prezava como ninguém os preceitos de honestidade e decência. Seus oito filhos, se todos estivessem vivos, confirmariam esse caráter. Para não dizer que ela era duro até consigo que, tendo trabalhado por anos como vendedor-cobrador por esses rincões do Paraná desprovido de bancos e financeiras, carregava por um mês inteiro, até a prestação de contas no Estado de São Paulo, malas de dinheiro que recolhia das cobranças feitas para o patrão. E nunca teve que se explicar do porquê da falta de uma nota. Não, sua decência jamais permitiria ultrajar a conduta por um deslize, por pequeno fosse.

Uma vez, num jogo caseiro de canastras com apostas “leite de pato”, alguém da mesa surrupiou um coringa e ele, tendo visto, apenas olhou para a pessoa que, constrangida, a devolveu ao monte. Pois, não satisfeito, pediu licença, embaralhou novamente as cartas, colocou-as de volta à mesa e disse a que todos ouvissem: – “Vamos cuidar do que temos e de que poderemos ter, pois a ocasião, faz o ladrão.”

Muitos não entenderam o que quis dizer, mas aquele que havia agido matreiramente avermelhou as orelhas, encolheu-se e tossiu, sinal de que a lição servira. Eu, que sapeava, ri de orgulho.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 24 de setembro de 2023

Versejando 123

 

Graciliano Ramos (Um missionário)

Depois da morte do louro, referiu Alexandre, Cesária começou a aperrear-me pedindo outro.

Eu me encafifei: — “Onde é que vou arranjar isso, filha de Deus? Que arrelia!” Mas Cesária não me largava de mão: — “Xandu, veja se me descobre um parente dele. Raça boa não falha, Xandu.” — “Está bem, está bem.” Procurei informação: a viagem seguinte sondei a velha que me tinha lambido seiscentos e vinte e dois mil e quinhentos, meses atrás. Perdi o tempo: o bicho era filho único, solteiro, não conheciam dele primos nem tios. Abri-me com Cesária: — “É melhor esquecer-se disso, minha velha. Vamos deixar de bobagem.

Ora, um dia na cidade, fiquei apreciando, numa sessão de júri, a cadência do dr. Silva, que botou para fora da cadeia, com muitas lambanças, oito ou dez protegidos do chefe político. Saí da Intendência, parei diante da casa vizinha: estavam fazendo lá dentro um discurso igual aos que tinha ouvido: — “Senhores do conselho de sentença, o meu constituinte não é criminoso.” E mais isto, e mais aquilo, e tal, enfim, etc. Cheguei a uma janela, onde várias pessoas se apertavam e batiam palmas: — “Isso mesmo. Apoiado.” Como a sala da Intendência era pequena, estavam debulhando ali o resto dos processos, calculei. Engano: a criatura que se esgoelava, sapecando em cima da gente uma penca de leis, era um papagaio miúdo e feio, de penas tristes e sujas. Se estivesse calado, não valia cinco tostões. Mas eu, pensando no desejo de Cesária, ofereci logo cem mil réis por ele, depois duzentos, trezentos, quinhentos, afinal o dono, homem de posses curtas, recebeu dinheirama grossa e me passou a gaiola. — “Você está doido, gritou o papagaio quando soube que ia viver na fazenda. Morar nas brenhas? Não nasci para isso.” Mas o jeito que teve foi acomodar-se lá:

— “Está aqui, Cesária, recomendei. Trate bem este vivente, como se ele fosse cristão. Você nem avalia o que esta coisinha tem no interior.” Cesária experimentou: — “Papagaio real. Vem de Portugal. Currupaco, papaco. Dê cá um beijo. Como vai meu louro?” — “Mal, muito obrigado, respondeu o animal furioso. Isso não é terra de gente.

Cesária se ofendeu, voltou às boas, viu que o bicho não queria aprender, já sabia tudo. Sabia, meus amigos, sabia tanto como um tabelião, mas ali passava muitas horas de língua emperrada. No fim de algumas semanas nem ligávamos importância a ele. — “Currupaco, papaco. A mulher do macaco”, dizia Cesária querendo animá-lo. E o bicho respondia sério: — “Deixe essas tolices, dona. Não sou nenhum trouxa.

Meu pai e meu sogro apareciam às vezes: — “Bom-dia, boa-tarde, sim senhor, como vai a família?” O papagaio, cochilando na gaiola, disse uma vez chateado: — “Que gente besta!” Embatuquei ouvindo aquela falta de respeito às visitas. Depois achei graça. Rezávamos o terço à noite. Os machos se ajoelhavam na esteira, Cesária e as vizinhas cantavam bem-ditos. O papagaio, lá de cima, na parede, arregalava o olho e emendava as asneiras que as devotas metiam na ladainha: — “Está errado.

Passaram-se meses, e Cesária entrou a remoer uns despropósitos: na opinião dela, era injustiça amarrar-se um ente capaz de fazer defesa no júri, citando os poréns de lei. Injustiça e desconsideração. Eu respondia: — “Isso não tem pé nem cabeça, mulher. Crie juízo.” Mas a amofinação continuava: — “O inocente nunca fez mal a ninguém, Xandu. Bem falante, com miolo para tirar da cadeia pessoas de maus bofes, vive na corrente.

Perdi a paciência: — “Eu não lhe disse que o papagaio tinha tirado presos da cadeia.” — “Não tirou porque não houve confiança nele, gritou Cesária. É miúdo, coberto de penas que não recebeu água do batismo. Mas fala como o dr. Silva. Foi o que você explicou. Tenho até vergonha de ver esse infeliz na gaiola, Xandu.

Veio-me uma ideia esquisita, que vou espichar aqui diante dos senhores. Diga-me uma coisa, mestre Gaudêncio. Vossemecê, homem sabido que lê nos livros e andou nos estudos, é quem me vai acabar esta dúvida. Será que as aves de pena e criações dessa marca têm alma?

Não acredito não, seu Alexandre, resmungou o curandeiro aprumando-se. Uns incréus chegam a dizer que os filhos de Deus, encruados nos mandamentos e nos sacramentos, não possuem almas. É embromação do tinhoso, já se sabe. Mas alma em bicho do mato, com franqueza, foi coisa que nunca me bateu a passarinha. Seu Alexandre pensa de outro modo?

Não pensava não, mestre Gaudêncio. A ponta de língua de Cesária é que deu esse palpite. Fiquei assim meio lá, meio cá, especialmente por causa daquele negócio do ensino da ladainha às devotas
 
— “Faça o que lhe mandar o coração, mulher de uma figa, destampei. Talvez você esteja certa.” Cesária tirou o animal da corrente, ele pulou da gaiola e agradeceu muito sério: — “Nossa Senhora lhe pague, dona. Não me esqueço dos benefícios que recebo.

Sim senhores, falou assim. E afastou-se emproado, arrastando os pés, foi examinar o pátio, o chiqueiro das cabras, o bebedouro, os currais, as veredas e as moitas dos arredores. Gastou uma semana ou mais nessa vadiagem: só entrava em casa na hora da comida. Levou sumiço de repente, nunca mais ninguém pôs a vista em cima dele. — “Está aí o que você fez, Cesária, desatinei. Quinhentos mil réis esbagaçados. A culpa é sua.” Ela baixou a cabeça, triste, e gaguejou com voz de choro: — “A culpa é minha, que lastimei a sorte daquele judeu. Hoje em dia a gente não deve ter pena de ninguém não. O mundo está cheio de ingratos, Xandu.” — “Acabou-se, atalhei amolado com o arrependimento da patroa. Não se trata mais disso. O que passou, passou. E de agora em diante não me entra em casa nem um periquito. Sou caipora com essa geração excomungada; já me deu dois prejuízos.

Não tornamos a mexer na história: quem não tem remédio remediado está, como dizem os mais velhos. Correu tempo, andei para cima e para baixo, do sertão à mata, engordando os nossos possuídos nos arranjos que os amigos já conhecem. Ora, numa vaquejada, parei no meio da catinga, espantado com um barulho de arrepiar, e larguei a rês que se escafedia, ali ao alcance da mão, pega não pega. Falatório comprido, uma latomia dos pecados. Sim senhores. A princípio não distingui as palavras, e julguei que aquilo fosse arte do capeta ou assombração de alma penada, porque em redor não havia casas e os caminhos estavam longe. — “Que trapalhada é esta, meu Deus?” disse comigo. E logo veio a resposta. Levei a mão à orelha e ouvi perfeitamente: — “Padre nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino...” E a enfiada santa escorreu muito clara até o arremate, sem nenhum erro. Depois dela vários fregueses, já perto de mim, se espremeram, um bando deles, uns cem, calculei: — “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres...” Fiquei de boca aberta. Quem estaria fazendo orações ali nos descampados, àquela hora, o sol nas alturas, o calor medonho queimando as folhas dos paus? Com certeza um lote de pecadores andava na penitência, procurando salvação, imaginei. Desci do cavalo, tirei o chapéu, ajoelhei-me, fiz o pelo-sinal e puxei o rosário, disposto a ajudar os penitentes.

Nisso uma nuvem de papagaios voou a poucas braças, por cima das catingueiras e das imburanas. O que vinha na frente arrumava o padre-nosso com todos os pontos e vírgulas, e os da rabada gritavam direito a ave-maria, como na igreja e no catecismo. Levantei-me numa zanga verdadeira. Cinco ou seis minutos de joelhos, batendo nos peitos, os dedos nas contas, o juízo a fervilhar. Assuntei no caso. Por isso fiz aquela pergunta, mestre Gaudêncio. Mas aí me chega uma dificuldade. Ignoro se o papagaio chefe, esfarinhado em reza, era o mesmo que fazia discurso, trepado nos autos. Acho que era, mas não posso garantir. Pensei no agradecimento a Cesária: — “Não esqueço os benefícios que recebo, dona.” E lembrei-me de uma santa missão feita dois anos antes, na cidade. Seu bispo falava no céu, no inferno, no purgatório. E quando se atrapalhava, pegava o rosário, dizia aquilo mesmo: — “Padre nosso, que estais no céu...” Um cento de beatas, ajoelhadas na grama, respondia com vontade: — “Santa Maria, mãe de Deus...” O papagaio tinha escutado o sermão, foi o que eu pensei, e queria mostrar o reino do céu à parentela.

Um missionário, com todos os ff e rr.

Fonte:
Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.
Disponível em Domínio Público.

Artur de Azevedo (Por um fio!)


(Conto-Monólogo*)


És casado também?... tua esposa é ciumenta
E tem — para empregar uma expressão usada —
Cabelinho na venta?
Pois vou dar-te um conselho e não te peço nada:
Evita entrar no bonde. Acaso necessitas
De ir á Copacabana? Á Fabrica das Chitas?
À Vila Guarany?
À Muda da Tijuca? Ao Rocha? A Catumby?
Toma um carro de praça! E, se não tens dinheiro
Que afronte a proverbial ganância do cocheiro,
Enche-te de valor e vai a pé de calcantes (sapatos).
Assim se andava dantes
Por toda esta cidade,
E havia mais saúde e mais atividade.
Mas, se evitar não podes
O bonde, e um negro fado exige que tu rodes.

Dentro desse veículo
Que um pobre diabo expõe a parecer ridículo,
Nunca o banco da frente escolhas! Eu te digo
O caso excepcional que se passou comigo...
Ah! Ia-me esquecendo: eu abro uma exceção
Para o elétrico... Oh, sim! Porque essa condução
Dispensa o burro... O burro!... Ainda o sangue me ferve!
Ainda não estou em mim!... — Mas vamos ao que serve:

Eu sou casado e nunca atraiçoei Biloca
(Minha mulher assim se chama): não provoca
Os meus desejos nem mesmo a Vênus de Milo!
Se eu a visse passar, ficaria tranquilo,
Não lhe ofereceria o braço! Que mulheres
Me fariam fugir aos conjugais deveres?
Um dia, ali, na Lapa,
Eu fiz como José: deixei ficar a capa!
Por sinal, que a perdi... Que boa capa aquela!...
Vi, três dias depois, o Potifar com ela,
E assentava-lhe bem! — Mas imaginem que ontem
(Esta desgraça a toda a humanidade contém!),
Como houvesse luar e a noite convidasse,
Quis um bonde tomar que longe me levasse
Das vendas, dos cafés, dos chopes e dos quiosques,
Para aspirar a brisa balsâmica dos bosques.
Fui à Gavea. Um passeio esplêndido, bem sabem;
Mas, se passeios há que nunca mais acabem,
Esse é um deles. À volta, adormeci no bonde.

Acordei de repente e, para saber onde
Me achava, olhei ao longe e vi o mar, e logo
Pensei comigo: — Bom! Já estou em Botafogo. —
Adormeci de novo, e quatro sacalões
Fizeram-me acordar... no largo dos Leões!
Sim, senhor, foi bem boa:
O que me parecera o mar, era a lagoa
De Rodrigo de Freitas!
O marido que eu sou — um marido às direitas —
Na alcova conjugal entrou às onze e meia!
Agora vejam lá qual foi a minha ceia:
Minha mulher, de pé, as faces incendidas,
Nos olhos o sinal das lágrimas vertidas,
Quer saber de onde e como aquelas horas venho,
E me acusa, a gritar, de culpas que não tenho!
— Onde esteve o senhor metido até esta hora? —
— Biloca, ouve, meu bem: a causa da demora... —
— Não diga, que não creio! — Ó Biloquinha,
Não grites, para não despertar os pequenos! —
Enfim, passo por alto os longos pormenores
Do conflito, — eu vestido, ela em trajes menores;
Eu calmo, ela furiosa, e num ciúme absurdo
Um barulho a fazer de ensurdecer um surdo!
Às cinco da manhã dormíamos serenos,
Biloca, eu e os pequenos.

Mulher que por ciumenta o marido não poupa,
Tem o hábito mal de examinar-lhe a roupa,
Esperando encontrar um corpo de delito
Que o confunda, que o ponha atônito, contrito.
— Biloca despertou-me aos berros! Tinha achado
Um cabelo agarrado
À gola do meu fraque! Era um cabelo louro,
Um cabelo gentil, misto de seda e ouro.
Parecia, por Deus, cabelo de senhora
Que viesse de fora,
Inglesa ou alemã! — era um fio comprido:
Tinha seguramente um metro bem medido!
Um minuto depois de refletir profunda
E sossegadamente (O céu que me confunda
Se a verdade não digo!) achei que o tal cabelo
— Não cabelo, mas pelo —
Da cabeça não foi de uma mulher bonita,
Mas da cauda de um burro!
E Biloca inda grita!
Dá-lhe o mundo razão... e vão lá convence-lo
Que é pelo e não cabelo!

Toda a minha ventura eu trago por um fio!
Biloca diz que vai para casa do tio
(Já não tem pai, nem mãe) e quer judicialmente
Separar-se de mim!... Ai, o banco da frente!...

Mais uma vez repito o meu conselho: evita
Andar de bonde, e quando acaso, por desdita,
Não puderes fazer outra coisa, não vás
Para o banco da frente e sim para o de trás.
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Nota do autor
 * Se o leitor algum merecimento encontrar neste conto, não será, certamente, pelo assunto, que nada vale. Entretanto, acusaram-me de o haver furtado. Escrevi esses versos a pedido do distinto ator Mattos, aproveitando o fato contado por ele como sucedido a um amigo. É possivel que exista outro conto, monologo ou coisa que o valha, com o mesmo assunto, mas nunca o vi, nem o ouvi. — A. A.


Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

Hans Christian Andersen (0 moinho de vento)

Sobre a colina erguia-se um moinho de vento, de aspecto soberbo. E era mesmo soberbo!

- Não sou, absolutamente não sou orgulhoso, - dizia ele - mas sou iluminado, tanto por dentro como por fora. Tenho o sol e a lua para o uso externo e também para o interno; além disso, disponho de velas de estearina, de lâmpadas de óleo e de velas de sebo. Posso dizer, pois, que sou esclarecido! Sou uma criatura dotada de raciocínio e tão bem feita que dá gosto ver! Tenho no peito um bom esôfago; possuo lá em cima quatro dedos fixos junto da cabeça, logo abaixo do chapéu - ao passo que as aves tem apenas duas asas, que carregam às costas. Sou holandês de nascimento, como bem mostra o meu tipo: holandês, como o do Navio Fantasma, daqueles classificados entre os fenômenos sobrenaturais, ainda que eu seja perfeitamente natural. Tenho ao redor do estômago uma galeria, e , nas entranhas. peças de moradia: lá se alojam meus pensamentos. O meu pensamento mais forte, aquele que domina e manda ali, é chamado pelos outros " o homem do moinho" . Ele sabe o que quer e eleva-se muito alto, muito acima do farelo e da farinha. Tem porém, uma companheira, que se chama a "mãe", e faz as vezes de coração. E ela não anda sem tino, nem destino, não: sabe também o que quer, sabe o pode fazer; é  suave como a aragem e forte como a tempestade; é capaz de fazer uma coisa com brandura, e ainda assim, realizar o que deseja. Ela é o meu senso brando, enquanto o pai é rígido. São dois, e todavia um único ser; por isso se chamam " minha cara metade." E eles tem gurizinhos, pensamentos novos, que podem também crescer. Os pequenos é que mantém tudo em ordem. Quando, há pouco tempo, em um momento de meditação, mandei que o pai e os rapazes me inspecionassem o esôfago e o vão do peito, para verificar o que acontecera por lá - alguma coisa cá dentro de mim não funcionava bem e a gente deve examinar-se a si própria - os guris fizeram um barulho tremendo, que até nem fica próprio a quem, como eu, mora em cima de um morro. A gente não deve esquecer de que está iluminada: a opinião é uma espécie de iluminação! Mas, como ia dizendo, os guris fizeram um barulho infernal. O caçula entrou-me  até no chapéu, e, de tão contente de se ver lá, chegou a me fazer cócegas. Os pensamentos pequenos podem crescer, como me informaram; e lá por fora, pelo mundo, há também pensamentos, e nem todos proveem da minha estirpe, pois por mais que alongue a vista, não enxergo nenhum do meu tipo - ninguém, a não ser eu. Aquelas habitações sem asas, contudo, nas quais não se ouve o esôfago, também tem pensamentos que vêm aqui ter com os meus, e contratam casamento, como eles lá dizem... É esquisito, sim. Mas ora! há muita coisa esquisita: umas vêm cair aqui, outras sucedem mesmo em mim. Alguma coisa está mudada, na engrenagem do moinho. Parece que o pai, a cara metade, é que mudou: diria que ele tem agora um novo sentido, mais suave; uma companheira mais carinhosa, mais jovem, mais piedosa. É, todavia, a mesma, mas pelo efeito do tempo, talvez se houvesse tornado mais branda e mais devota. Evaporou-se o que nela havia de amargura e tudo está agora muito mais alegre na casa.

Vão-se os dias e outros vêm, sempre novos, trazendo claridade e alegria. E um dia virá, assim está dito e escrito, em que tudo se acabará para mim - embora não totalmente. Serei então demolido, mas me levantarei outra vez, novo e melhor; hei de cessar de viver, e, contudo, continuarei a existir. Ficando o mesmo, tornar-me-ei diferente. É difícil para mim compreender isso, por mais iluminado que seja - pelo sol, a lua, estearina, óleo e sebo! Minha velha construção de madeira e alvenaria há de ressurgir dos destroços.

Espero ficar com os velhos pensamentos, com o pai, a mãe, com grandes e pequenos - com a família, enfim. Pois a esse todo, que é uma  só coisa, ainda que sejam muitas, chamo eu - associação total dos pensamentos. Assim é preciso; não posso fazer  de outra  maneira.

E também eu terei de ficar eu mesmo, com o esôfago no peito, as asas na cabeça e a galeria em torno do corpo. Senão. talvez nem me reconhecesse a mim mesmo. nem os outros tampouco me reconheceriam, nem diriam:

- Lá está o moinho do morro: tem um aspecto soberbo e entretanto não é orgulhoso.

Todas essas coisas foi o moinho quem disse. E disse muito mais, mas isso é o que havia de mais interessante.

Os dias vinham e se iam, e o último chegou, afinal. Foi quando o moinho se consumiu, todo em chamas. As labaredas subiam muito alto, saíam pelo teto, tornavam a entrar, e iam lambendo e engolindo traves e tábuas, acabando por devorar por tudo. O moinho caiu, e dele nada mais restou senão um montão de cinzas. A fumaça afastou-se do lugar do incêndio, arrastada pelo vento.

O que havia de vivo no moinho subsistiu.

A família do moleiro, uma alma, muitos pensamentos, e todavia um só construiu um moinho novo, um moinho grandioso, tão parecido com o outro que o velho até havia de gostar dele. E as pessoas continuavam a dizer:

Lá em cima do morro se ergue o moinho, de soberbo aspecto.

Mas o novo estava mais bem instalado, era mais moderno, o que já se pode chamar de progresso. A madeira velha, carcomida e podre desfizera-se em cinza e pó. O corpo do moinho, contudo, não ressuscitou das cinzas, como ele esperava.

É que o velho moinho tomava todas as coisas muito ao pé da letra, o que é um erro.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 3

O TEMPO É DE OURO


Agora que você sabe do que está falando, é hora de fazer uma pergunta muito importante, mais cruel: por que você acha que sua história é interessante para outras pessoas? Que tem de especial? Não há nada pior para um contador de histórias que, tendo terminado a sua narração, o destinatário olha para ele imperturbável e pergunta "E?" Concordo que existe gente insensível, mas o que não pode existir é contador de histórias insensível ou desonesto.

Por exemplo, se você for contar um dia na vida de uma mulher de classe média na sociedade vitoriana você terá que, pelo menos, tentar fazer melhor do que a Virgínia Woolf neste poderia ser o resumo de uma linha do romance Sra. Dalloway (Virginia Woolf, 1930)

Com isso não quero dizer que você não escreva mais e se dedique a contemplação dos Grandes Clássicos Universais, como alguns apontam fundamentalistas, mas a sua história tem que ter originalidade suficiente para que alguém queira ouvir.

Continuando com Virginia Woolf e sua Sra. Dalloway de 1930 (adaptado para filme por Eileen Atkins, roteiro, e Marleen Gorris, direção, em 1997), você conhece “As Horas”?  É originalmente um romance (Michael Cunningham, 1998) que foi adaptado para o cinema com roteiro de David Hare e direção de Stephen Daldry em 2002. Você se lembra do que dizia? Caso você não tenha visto ou não se lembre claramente, conta como "Uma manhã de 1923, num subúrbio de Londres, Virginia Woolf acorda com a ideia de que se tornará The Lady Dalloway. Nos anos noventa, em Nova Iorque, Clarissa Vaughan compra flores para uma festa em homenagem a Richard, um ex-amigo que sofre de AIDS e que recebeu um importante prêmio literário. Em 1949, Laura Brown, uma dona de casa de Los Angeles prepara um bolo de aniversário para o marido com a ajuda do filho pequeno. Estas são as três mulheres, e os momentos de partida, de As Horas, um romance emocionante que mergulha no mundo de Virginia Woolf com extrema sensibilidade e inteligência. Assim como o protagonista de sua obra, os personagens debatem entre a solidão, a desesperança e o amor pela beleza e pela vida até unir-se em um final transcendente."

Parece original para você? Por que alguém, setenta anos depois, ousa escrever a mesma história e, não satisfeito com isso, consegue incluir o modelo original? Há os que não gostem da “nova história” parece-nos uma homenagem e deslumbra-nos pela expertise do autor ao nos transmitir sua mensagem. Experiência que é colocada manifestar-se na hora de escolher a estrutura, criar os personagens, dar-lhes vida diante de dos nossos olhos e nos diz isso como se não fosse nada.

Releia os resumos que você fez e reflita sobre a originalidade da história que você está contando.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

sábado, 23 de setembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 16

 

Sílvio Romero (Uma das de Pedro Malasartes)

(Folclore do Sergipe)


UM DIA, PEDRO MALASARTES foi ter com o rei e lhe pediu três botijas de azeite, prometendo-lhe levar em troca três mulatas moças e bonitas. O rei aceitou o negócio. Pedro saiu e foi ter à casa de uma velha ali pela noitinha; pediu-lhe um rancho, e que lhe botasse as botijas no poleiro das galinhas.

A velha concordou com tudo. Alta noite, Pedro Malasartes levantou-se, foi de pontinha de pé ao poleiro, quebrou as botijas, derramou o azeite, lambuzando as galinhas. De manhã muito cedo Malasartes acordou a velha, e pediu-lhe as botijas de azeite. A velha foi buscá-las, e, achando-as quebradas, disse:

– “Pedro, as galinhas quebraram as botijas e derramaram o azeite.”

– “Não quero saber disso, disse Pedro; quero para aqui meu azeite, senão quero três galinhas.”

A velha ficou com medo, deu-lhe as três galinhas. Malasartes partiu e foi à noite à casa de outra velha; pediu rancho e que agasalhasse aquelas três galinhas entre os perus.

A velha, como tola, consentiu. Alta noite, Pedro se levantou, foi ao quintal, matou as três galinhas, besuntando de sangue os perus. No dia seguinte, bem cedo, acordou a velha, pedindo as suas galinhas, porque queria seguir viagem. A velha foi buscá-las e encontrou o destroço; voltou aflita, contando a Malasartes.

Ele fez um grande barulho até levar seis perus em troca das galinhas.

Na noite seguinte, foi ter à casa de um homem que tinha um chiqueiro de ovelhas, e pediu-lhe para passar a noite em sua casa e que lhe agasalhasse aqueles perus lá no chiqueiro das ovelhas, porque bicho com bicho se acomodavam bem. O homem assim fez. Tarde da noite, Pedro foi ao lugar onde estavam os perus, e matou-os a todos labreando de sangue as ovelhas. Pela manhã levantou-se bem cedo e pediu ao dono da casa os seus perus. O homem indo-os buscar achou-os mortos, e voltou muito aflito, dizendo:

– “Pedro, não sabe? As ovelhas mataram os seus perus.”

Ouvindo isto, Malasartes fez um grande espalhafato, gritando que o homem tinha morto os perus do rei e recebeu seis ovelhas pelos perus.

Largou-se, indo dormir na casa de um homem que tinha um curral de bois. Aí ele fez as mesmas artimanhas, até pegar seis bois pelas seis ovelhas. Mais adiante, ele encontrou uns vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais adiante encontrou uns homens que iam carregando uma rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, disseram-lhe que era uma moça. Ele pediu para ir enterrá-la e eles deram. Logo que os homens se ausentaram, ele tirou a moça da rede, encheu-a de bastante ouro e enfeites, e foi ter com ela nas costas à casa de um homem rico que havia ali perto. Pediu rancho, e disse às filhas do tal homem que aquela era a filha do rei que estava doente, e ele andava passeando com ela, e pediu que a fossem deitar.

Foram levar a moça para uma camarinha indo Malasartes com ela, dizendo que só com ele ela se acomodava. Deitou a moça defunta na cama e retirou-se, dizendo às donas da casa: “Ela custa muito a dormir, ainda chora como se fosse uma criança, quando chorar metam-lhe a correia.” Alta noite, Pedro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a morta e pôs-se a chorar como menino. As moças da casa, supondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ela se calar, que foi quando Pedro se calou. Depois ele escapuliu e foi para seu quarto.

De manhã ele pediu a moça, que queria ir-se embora. Foram ver a filha do rei, e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que estava morta, e vieram dar parte a Malasartes. Ele pôs as mãos na cabeça, dizendo:

– “Estou perdido; vou para a forca; me mataram a filha do rei!. . . ”

Os donos da casa ficaram muito aflitos, e começaram a oferecer coisas pela moça, e Pedro sem querer aceitar nada, até que ele mesmo exigiu três mulatas das mais moças e bonitas. O homem rico as deu, e Pedro disse que dava uma desculpa ao rei sobre a morte de sua filha, e lhe dava de presente as três mulatas, para o rei não se agastar muito.

Malasartes largou-se e foi logo para palácio, onde entregou ao rei as três mulatas com este dito:

– “Eu não disse a Vossa Majestade que lhe dava três mulatas pelas três botijas de azeite? Aí estão elas.”

O rei ficou muito admirado.

Entrou por uma porta,
Saiu por outra;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte outra.


Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público. 

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 3 -


Ai de quem na escura trilha
não divisa alguma chama!
Esperança é um sol que brilha
no caminho de quem ama...
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Algum dia, a humanidade
vai mudar a sua sorte:
haverá fraternidade
sem bandeira e passaporte!
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Amigo é o que nunca parte
mesmo quando é despedida;
é quem nosso mal comparte
e nos mostra uma saída.
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Amizade não se faz
de elogio passageiro;
quem censura e traz a paz
é um amigo verdadeiro.
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Antes andar com a esperança
do que sozinhos na estrada...
Conosco, ela para, avança,
mas não nos deixa sem nada!
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Deus, Amor, Paz e Pureza
- essas palavras singelas,
neste mundo de pobreza,
são as mais ricas e belas!
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Esperança que se apaga
num soluço, numa prece,
é navio que naufraga,
é paisagem que anoitece.
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Esperança, verde ou gris,
a nos levar em seus braços,
é o sonho de ser feliz
que às vezes fica em pedaços!
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Há sempre o dedo de Deus
na flor, no inseto que voa...
No bem que chega, no adeus;
no gesto de quem perdoa.
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Não haveria fronteira
neste mundo se a amizade
fosse a união verdadeira
entre toda a humanidade!
= = = = = = = = =

O poeta - eterno menino -
brinca também de pião:
solta o fio do destino
à procura da ilusão...
= = = = = = = = =

Para ter sorte na vida,
não faças mal a ninguém!
Deus premia quem na lida
só planta os frutos do Bem.
= = = = = = = = =

Poder praticar o Bem
e fugir à ocasião,
perante Deus, é também
um delito de omissão!
= = = = = = = = =

Por certo a ternura existe
no amigo que está por perto
e transforma um pranto triste
em lindo sorriso aberto!
= = = = = = = = =

Por mais que intimide o mundo
e a vida acarrete o medo,
sempre se guarda no fundo
uma esperança em segredo...
= = = = = = = = =

Por mais que se faça o mal,
com desassombro ou com medo,
a conta vem no final:
para Deus não há segredo.
= = = = = = = = =

Quando alguém está em perigo,
sem esperança de nada,
a presença de um amigo
é o nascer de uma alvorada!
= = = = = = = = =

Quando é cruel o momento,
muitos só contam consigo.
Nas horas de sofrimento,
feliz de quem tem amigo!
= = = = = = = = =

Quando é verdadeiro o amigo,
partilha de tua glória;
e aquele que está contigo
a cada luta e vitória.
= = = = = = = = =

Quanta ternura contida
na promessa que ficou
num canto qualquer da vida,
no pranto que já secou,..
= = = = = = = = =

Se não existe confiança,
tímido o amor permanece,
a amizade não avança,
o sentimento não cresce.
= = = = = = = = =

Se o pranto te aflige o peito,
procura te consolar:
o rio corre no leito
e depois encontra o mar!
= = = = = = = = =

Se o silêncio o poeta invade,
a mente é o laboratório,
onde a infinita saudade
se transforma em verso inglório.
= = = = = = = = =

Ser amigo é estar presente
naquele instante adequado,
ainda que simplesmente
para ficar a teu lado.
= = = = = = = = =

Todos nós somos crianças,
mesmo fingindo que não;
brincamos com esperanças
- nossas bolhas de sabão...
= = = = = = = = =

Zomba a esperança com a gente
a nos levar nem sei onde,
pois se compraz tão somente
em brincar de esconde-esconde..
= = = = = = = = =
Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. Enviado pela Trovadora.

Nilto Maciel (A brincadeira)

A última brincadeira de Alberto terminou mal. Funeral nem houve. Os parentes mais próximos choraram, mas sequer viram seu cadáver. Como estaria? Mutilado, disforme, horrível?

Alberto, um meninão. Ninguém o levava a sério. Para quê, se ele brincava até de chorar e rir?

O mundo é uma peteca, dizia. E largava a palma da mão no tempo.

– Esse é doido.

A sentença não lhe saía da boca e ninguém lhe pedia explicações. E Alberto chutava latas de lixo, cuspia em carpetes, pisava vestidos de noivas, beijava namoradas de colegas.

– Moleque!

Nada o insultava.

– Cretino!

Ele ria e, para não repetir a velha frase, levantava a mão e acompanhava com os olhos o voo da peteca.

A brincadeira mortal podia ter sido um salto do último andar. Ninguém acreditaria em sua queda. Enfrentar leões do zoológico. Mesmo assim pensariam em hipnose, mágica, qualquer coisa.

Não, Alberto foi longe demais. Primeiro ludibriou a segurança do Hotel Internacional e depositou debaixo da mesa do auditório um pacote.

Realizava-se um congresso para o progresso do mundo, e delegados de quase todos os países falavam de guerras, empresas, capitais, mil coisas.

Enquanto os eminentes congressistas blablablavam, Alberto cumprimentou os guardas, voltou à rua e, de um telefone público, comunicou à polícia o próximo fim da reunião.

– Dentro de uma hora, ouviu?

– Quem está falando? Alô!

– Não importa. Vai tudo explodir: hotel, congresso, delegados, planos.

Num minuto, a cidade se encheu de sirenes, carros de bombeiros, soldados, ordens. Evacuaram a alta casa de pasto e na rua uma babel dos diabos se fez. Americano corria, francês suava, inglês tremia, alemão se borrava, italiano sumia.

Escolhido o herói, os comandantes da operação pediram coca-cola e se olharam pelos binóculos.

Faltava um segundinho para a bomba explodir.

– Desata o nó, patife.

O herói desatou o nó e os excrementos salpicaram na sua cara de patife.

E desmaiou.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 2

O QUE NÃO PODE ACONTECER


Você já tem uma história. Você está convencido de que vale a pena. Aquela mulher atravessar a rua despertou em você memórias que você pensava que estavam perdidas e você tem levado para o papel. Hoje você os leu novamente e ficou tão surpreso que duvido que este texto seja realmente seu. Fazendo uma metáfora: você apenas compra o terreno onde poderá construir a sua casa. Agora começa o que eles chamam de "o comércio do escritor" e cujo objetivo final é garantir que cada palavra usada seja aquela que tem que ser e não há outra forma de combiná-los para conseguir o que deseja. Mas antes de continuar, você deve se certificar de que seu texto não contém: erros ortográficos, gramaticais ou de edição, cacofonias, palavras rebuscadas e/ou tópicos.

Muitos escritores iniciantes decidem deixar todos esses detalhes para uma "correção final", mas o olho humano acaba se acostumando com esses erros e acabam não os vendo, além disso, ao corrigi-los repetidas vezes, acabam desaparecer. Um texto com erratas é como um filme em que vemos o microfone ou, imagine, uma câmera! Perde todo o seu valor imediatamente. Como sempre, há exceções. Pode acontecer que o nosso caráter, ou a linguagem que estamos usando nos faz usar a palavra "óbito" em vez de "morte", mas o texto tem que pedir isso, não o nosso desejo de demonstrar a nossa erudição ou vocabulário.

Quanto aos temas, muitas vezes, na descrição de personagens, espaços ou situações, e quase sempre quando toda a história é produto de nossa imaginação, o fácil é refugiar-se nesses lugares comuns. Fuja do mendigo que percebeu como a vida era linda depois que estava arruinada.

O QUE QUERO DIZER?


Revisamos o texto e nossa história não contém mais erros ortográficos, nem erros gramaticais. Aniquilamos qualquer vestígio de cacofonias e sua leitura em voz alta, é fluída. A próxima pergunta é: está entendido?

Não vamos entrar em profundidades psicológicas, nem pensemos em paralelismos transcendentais. Vamos analisar, simplesmente, se alguém que não seja o autor entenderia de em uma primeira leitura o que acontece na história que quero contar.

Temos que fazer um esforço e ser honestos conosco mesmos. Não se trata se tal palavra estiver com “b” ou com “v”; o que acontece na minha história? Em todas as histórias algo acontece, não importa quão pequeno seja, algo tem que acontecer. Pode ser tão simples como acordar e não encontrar um dinossauro (O Dinossauro de Augusto Monterroso) ou fantástico como acordar transformado em um besouro gigante (A metamorfose de Kafka). Mas nem sempre conseguimos nos explicar.

Quantas vezes tentamos contar a um amigo sobre um filme e e você percebe que não nos entendia. Tínhamos entendido o filme, mas não conseguimos contar. A mesma coisa pode acontecer conosco com nossa história:

Podem faltar situações, personagens, tramas, verbos, adjetivos. Ou pior: sobra. Ou pior ainda: sobraram alguns e faltaram outros. Como resolver isso?

A primeira ação para resolver um problema é encontrá-lo. Analisemos os principais aspectos da sua história. Analisemos os erros mais comuns e suas consequências. E observe uma série de dicas para que você possa corrigi-las.

Para começar, se sua história for realmente compreendida, será fácil resumi-la.

O que acontece com o protagonista em uma linha, no máximo uma e meia. Quando você conseguir, você saberá do que está falando. Escreva em um pedaço de papel separado. Feito isso, você deve ir um pouco mais longe e explicar, em cinco linhas, todo a história, isso significa incluir o que acontece com os personagens secundários.

Escreva após o resumo de uma linha e revise-o antes de continuar com o próximo capítulo.

Não desanime se não conseguir na primeira vez, não é nada fácil. Você pode fazer um experimento pedindo a um amigo que lhe conte sobre um filme que assistiram juntos.
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do Espanhol por J.Feldman

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 002

 

A. A. de Assis (“Dexis”, o que é?)

Virou atração turística em Maringá o novo edifício-sede da Sicredi, o mais moderno da cidade. Mas o que mais tem chamado a atenção é o novo nome da poderosa cooperativa de crédito – Sicredi Dexis. Muita gente tem perguntado o que é afinal “dexis”?

É uma palavrinha fisicamente modesta, porém muito rica em seu conteúdo. O presidente da instituição, Wellington Ferreira, segundo li no Google, já esclareceu que o nome “Dexis” (de origem grega), foi escolhido pelo seu bonito significado – “aperto de mãos”. Escolha perfeita, visto que aperto de mãos lembra amizade, comunhão, colaboração, enfim “cooperativismo”.

Pronto. A crônica poderia terminar aí. Porém um dos meus brinquedos favoritos é escarafunchar a história das palavras. Então fui lá no velho indo-europeu em busca de algum tataraparente de “dexis”. Achei “deks”, com o significado de “lado direito”, mais especificamente “mão direita”. Em seguida, acompanhando a evolução da palavra, cheguei a “dexios” no grego, “dexter” no latim e finalmente “destro” em português”. É por isso que quando alguém tem igual habilidade nas duas mãos é chamado de “ambidestro”. E como as pessoas se cumprimentam estendendo a “destra”, ou seja, “a mão direita”, entende-se a expressão “aperto de mãos” como o ato de apertar a mão direita de alguém.

Trata-se, conforme se lê nos alfarrábios, de um costume bastante antigo, frequente em numerosas culturas desde bem antes de Cristo. Assim, falar em “mãos dadas” ou “aperto de mãos” é o mesmo que falar de paz, solidariedade, fraternidade, companheirismo, cooperação.

No âmbito da economia, em seus três segmentos básicos (produção, industrialização, comercialização), o cooperativismo tem sido um extraordinário sucesso. Basta citar dois exemplos íntimos nossos – a Cocamar e a Coamo*. A propósito, lembro-me de quando José Cassiano iniciou aqui a conscientização dos produtores rurais sobre a importância da união de forças. No princípio foi meio difícil, todavia Cassiano e outros líderes insistiram e rapidamente a ideia prosperou. Hoje o trabalho cooperativo é a principal alavanca do desenvolvimento regional.

Ora, se “dar as mãos” tem sido uma experiência tão animadora na economia, certamente trará iguais benefícios em todas as demais ações humanas. Vamos então dar as mãos e seguir em frente, organizando uma sociedade mais unida, mais solidária, mais irmanizada; uma sociedade mais inteligente, capaz de entender que a cooperação (ato de co-operar = trabalhar juntos) torna o labor mais fértil e bem mais leve para todos.

O ser humano começou a complicar as coisas lá no início da história, quando permitiu que o egoísmo passasse a presidir os seus projetos. Deu tudo errado, e o resultado foi esse brigueiro louco em que até hoje se envolve a humanidade. Parece, porém, haver chegado a hora de repensar seriamente o nosso modo de existir – o momento enfim de aprender a dar as mãos.   

Quem sabe assim a gente algum dia possa viver em permanente estado de “dexis”?
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(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo, de 21 setembro 2023)
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* ambas são Cooperativas Agrícolas, sendo Coamo, de Campo Mourão/PR e Cocamar, de Maringá/PR.

Caldeirão Poético LXVII


Lola de Oliveira
Porto Alegre/RS 1889 — 1965, Rio de Janeiro/RJ


O SURDO-MUDO

Tu não ouves a voz da mãe querida,
a tua mãe humilde, pura e santa;
o uivar do vento, a música dorida,
nem o trinar do pássaro que canta.

Trazes a boca morta em plena vida
e o túmulo dos sons tens na garganta;
não tiveste a palavra proferida...
És mudo como a pedra, como a planta.

Será castigo o teu destino triste?
Quanta bondade no teu peito existe,
que vai morrer nessa garganta rouca!

És bem feliz, embora incompreendido!
Não ecoa a mentira em teu ouvido,
nem te sai a calúnia pela boca.
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Lúcia Fadigas
Rio de Janeiro/RJ


IPÊ-ROSA

Belo ipê-rosa na colina impera...
É árvore fidalga e donairosa,
que se embeleze na estação radiosa,
cobrindo-se de flor na primavera...

Mas, quando vem o outono, ela, saudosa
de seus enfeites, geme e se exaspera,
pois todo o colorido que tivera
é, agora, uma lembrança cor-de-rosa...

Também nossa alma se embeleze em criança,
de uma viçosa copa de esperança,
sem prever, nessa vida, o desencanto.

Mas vem chegando o outono, indiferente...
E em nossos lábios resta, tão-somente,
o gosto amargo que nos vem do pranto.
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Lúcio de Mendonça
Rio de Janeiro/RJ, 1854-1909

O REBELDE

Ei-lo — é um lobo do mar: numa espelunca
mora, à beira do Oceano, em rocha alpestre;
ira-se a onda e, qual tigre silvestre,
de mortos vegetais a praia junca.

E ele, encarando como um velho mestre
o revoltoso que não dorme nunca,
recurva o dedo — garra forte e adunca —
sobre o cachimbo, único amor terrestre.

E então assoma-lhe um sorriso amargo...
É um rebelde também, cérebro largo,
que odeia os reis e os padres excomunga.

À noite dorme sem rezar: que importa?
Enorme cão fiel, guarda-lhe a porta:
— o velho mar soturno que resmunga.
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Luiz Almeida Teixeira
Niterói/RJ, 1907 – 1986


PROCISSÃO DE VAGALUMES

Quando o sol adormece na distância
e no silêncio a tarde se esvazia,
cintila o vagalume em rutilância,
resplendendo de luz a ramaria.

Colhe da flor a cálida fragrância
e se incandesce em singular magia...
Lanterna acesa em doce vigilância,
até que acorde a aurora de outro dia.

Depois se esconde pela mata agreste
e, apagando a candeia azul celeste,
vai sonhar entre flores e perfumes.

Chegando a noite, a tarde empalidece,
e nascem luzes acendendo a prece
na procissão azul dos vagalumes...
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Luiz Otávio
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

SUPREMA GLÓRIA

Bem sei que com razão nós reclamamos
por tudo o que roubou de nós a Vida
— a Primavera sem florir os ramos...
e o Amor —, Ventura apenas pressentida...

Bem sei que muito tarde nos amamos,
mas com tal força e ardor, minha querida,
que as dores e as angústias que enfrentamos
tornam minha alma à sua mais unida!

Bem sei que, como poucos, nós sofremos
e que a Sorte tem sido tão mesquinha,
mas a Esperança é Luz que não morreu...

Nesta glória, em silêncio, guardaremos:
ninguém, no mundo, foi assim tão minha,
ninguém, na vida, foi assim tão seu...
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Manita
(Maria da Conceição Pires de Mello)
 Niterói/RJ, 1922 - 2011
 
 CANÇÃO DE QUERER-TE MEU

Eu quero as tuas mãos queimando incenso,
para a aleluia dos meus braços nus;
quero-te todo e toda eu te pertenço,
quero os teus olhos para crer na luz.

Quero os teus passos no caminho imenso,
para aonde o sonho os passos meus conduz;
quero o que pensas, cada vez que penso,
quero os teus ombros para minha cruz!

Quero-te, sim, com tal intensidade,
e tem tanto este amor de eternidade,
quanto de ti eu sei que existe em mim;

quero o silêncio do que tu não dizes,
e quero a dor das tuas cicatrizes,
quero-te meu, até depois do fim!

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 1

INTRODUÇÃO

Quantas vezes você já teve uma ideia para uma história, um romance, um filme? Você conseguiu escrevê-lo? E o que você achou do resultado? Quantas vezes, sendo espectador ou leitor, já pensou “sim, sim, está tudo muito bom, mas a
história falha”?

O que significam a literatura e o cinema, o teatro e as séries televisivas, o quadrinhos e novelas de rádio? Contar
histórias.

Esta é uma abordagem do processo de contar uma
história. Cada lição poderia ser outro curso completo, mas, principalmente no início, reforçar esse panorama é muito mais. É importante entrar em detalhes sobre as técnicas narrativas ensinadas na maioria das oficinas de escrita criativa ou livros. Dominar esses aspectos é importante, mas se falhar o principal, que afinal é contar uma história, todo nosso trabalho será inútil. Seria como construir uma casa com materiais de qualidade máxima e todos os avanços tecnológicos, mas cujos alicerces eram de areia.

Quando se trata de contar uma
história, não existe uma fórmula mágica que, uma vez aprendido, nos garante sucesso. A maioria dos roteiristas-diretores dizem que seu último roteiro de romance foi um desafio e eles estão certos. Por muito que sigamos à risca as instruções para a montagem de um móvel ou de um receita culinária ou conselho de um amigo para endireitar a vida; ao final será o nosso talento, a nossa experiência e a nossa perseverança que determinarão o resultado.

Destes três ingredientes, o único que é inato e, portanto, não pode ser aprender ou aumentar, é talento. Entretanto, habilidade ou técnica podem se desenvolver. E a perseverança, na pior das hipóteses, dependerá de nós mesmos e nosso tempo livre.

Há escritores que se destacam pela sua genialidade ou talento, chegam a afirmar ser autodidatas, mas há uma grande maioria que não tem vergonha de reconhecer seus mestres ou para mostrar suas limitações técnicas.

Se você acha que a
história que você escreveu pode ser melhorada ou você nunca a escreveu porque você achou que não valia a pena, talvez essas dicas te ajudem. Eles são breves e práticas. Eles apenas requerem algum tempo e reflexão.

DA IDEIA AO PAPEL

A principal virtude do escritor é saber olhar. Onde outros não veem nada além de uma senhora atravessando a rua, um escritor pode encontrar a inspiração que seja necessária para salvar a
história em questão. Mas não basta olhar, você tem que estar atento e preparado.

Você é daqueles que sempre carrega um caderno e algo para escrever? Se não é assim, você deveria começar a fazer isso. Vladimir Nabokov insistiu que é importante aproveitar esse momento de arrebatamento, na maioria das vezes aquele momento de inspiração não volta.

Repita, não basta pensar “Vou escrever quando chegar em casa”. Quando você chega em casa, não resta um vestígio daquela ideia brilhante, quando muito uma nota, algo que poderia ter sido foi e não foi, como um beijo que não foi dado.

Então, da próxima vez que você pensar “aqui está uma
história”, pegue seu caderno e anote. Escreva o que aconteceu ou o que você viu, deixe-se levar, escreva, escreva tudo, isso ocorre com você sem pensar duas vezes. Não importa quão louco sejam as ideias; escreva-as e pergunte-se "e se...?" e continue escrevendo, não pare, até que você está exausto e nada mais lhe ocorre. Então pare e olhe novamente ao seu redor, se não sabe como continuar, feche o caderno e aproveite o momento. Haverá tempo para trabalhar nesse texto.

Aqui está um erro muito comum: levados pela euforia, perguntamos a alguém próximo para lermos o que (pensamos que) acabamos de terminar. Você tem tanta certeza que você alcançou o que se propôs a fazer? Inicialmente? A defesa mais comum é “foi assim que saiu, deve haver um motivo”, “se eu trabalhar nisso, perde o frescor”.

Não há quem se dedique ao ofício de contar
histórias que não as reelabore antes de mostrá-los pela primeira vez, nem li nenhuma biografia em que tal coisa seja afirmada. Além do mais, muitas vezes os alunos de uma oficina de redação que coordeno, ao lerem seus textos em voz alta, eles percebem seus próprios erros e tudo mais, por não ter trabalhado.

Não tenha pressa: nunca conte uma
história na qual você não trabalhou porque você pode perder a oportunidade de ser ouvido novamente. O melhor é que você a deixe "dormir" alguns dias ou alguns meses (dependendo da sua paciência). Quando você lê novamente, a opinião, para melhor ou para pior, terá mudado. Depois desse tempo, se ela te seguir parecendo tão interessante quanto quando você o escreveu, você deve continuar com o próximo capítulo: O que não pode passar. Se não, deixe novamente onde estava. O resto pode esperar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

Machado de Assis (Letra Vencida)

CAPÍTULO PRIMEIRO

Eduardo B. embarca amanhã para a Europa. Amanhã quer dizer 24 de abril de 1861, pois estamos a 23, à noite, uma triste noite para ele, e para Beatriz.

— Beatriz! repetia ele, no jardim, ao pé da janela donde a moça se debruçava estendendo-lhe a mão.

De cima, — porque a janela ficava a cinco palmos da cabeça de Eduardo, — de cima respondia a moça com lágrimas, verdadeiras lágrimas de dor. Era a primeira grande dor moral que padecia, e, contando apenas dezoito anos, começava cedo. Não falavam alto; poderiam chamar a atenção da gente da casa. Note-se que Eduardo despedira-se da família de Beatriz naquela mesma noite, e que a mãe dela e o pai, ao vê-lo sair, estavam longe de pensar que entre onze horas e meia-noite, voltaria o moço ao jardim para fazer uma despedida mais formal. Além disso, os dois cães da casa impediriam a entrada de algum intruso. Se tal supuseram é que não advertiram na tendência corruptora do amor. O amor peitou o jardineiro, e os cães foram recolhidos modestamente para não interromper o último diálogo de dois corações aflitos.

Último? Não é último; não pode ser último. Eduardo vai completar os estudos, e tirar carta de doutor em Heidelberg; a família vai com ele, disposta a ficar algum tempo, um ano, em França; ele voltará depois. Tem vinte e um anos, ela dezoito: podem esperar. Não, não é o último diálogo. Basta ouvir os protestos que eles murmuram, baixinho, entre si e Deus, para crer que esses dois corações podem ficar separados pelo mar, mas que o amor os uniu moralmente e eternamente. Eduardo jura que a levará consigo, que não pensará em outra coisa, que a amará sempre, sempre, sempre, de longe ou de perto, mais do que aos próprios pais.

— Adeus, Beatriz!

— Não, não vá já!

Tinha batido uma hora em alguns relógios da vizinhança, e esse golpe seco, soturno, pingando de pêndulo em pêndulo, advertiu ao moço de que era tempo de sair; podiam ser descobertos. Mas ficou; ela pediu-lhe que não fosse logo, e ele deixou-se estar, cosido à parede, com os pés num canteiro de murta e os olhos no peitoril da janela. Foi então que ela lhe desceu uma carta; era a resposta de outra, em que ele lhe dava certas indicações necessárias à correspondência secreta, que iam continuar através do oceano. Ele insistiu verbalmente em algumas das recomendações; ela pediu certos esclarecimentos. O diálogo interrompia-se; os intervalos de silêncio eram suspirados e longos. Enfim bateram duas horas: era o rouxinol? Era a cotovia? Romeu preparou-se para ir embora; Julieta pediu alguns minutos.

— Agora, adeus, Beatriz; é preciso! murmurou ele dali a meia hora.

— Adeus! Jura que não se esquecerá de mim?

— Juro. E você?

— Juro também, por minha mãe, por Deus!

— Olhe, Beatriz! Aconteça o que acontecer, não me casarei com outra; ou com você, ou com a morte. Você é capaz de jurar a mesma coisa?

— A mesma coisa; juro pela salvação de minh’alma! Meu marido é você; e Deus que me ouve há de ajudar-nos. Crê em Deus, Eduardo; reza a Deus, pede a Deus por nós.

Apertaram as mãos. Mas um aperto de mão era bastante para selar tão grave escritura? Eduardo teve a ideia de trepar à parede; mas faltava-lhe o ponto de apoio. Lembrou-se de um dos bancos do jardim, que tinha dois, do lado da frente; foi a ele, trouxe-o, encostou-o à parede, e subiu; depois levantou as mãos ao peitoril; e suspendeu o corpo; Beatriz inclinou-se, e o eterno beijo de Verona conjugou os dois infelizes. Era o primeiro. Deram três horas; desta vez era a cotovia.

— Adeus!

— Adeus!

Eduardo saltou ao chão; pegou do banco, e foi repô-lo no lugar próprio. Depois tornou à janela, levantou a mão, Beatriz desceu a sua, e um enérgico e derradeiro aperto terminou essa despedida, que era também uma catástrofe. Eduardo afastou-se da parede, caminhou para a portinha lateral do jardim, que estava apenas cerrada, e saiu. Na rua, a vinte ou trinta passos, ficara de vigia o obsequioso jardineiro, que unira ao favor a discrição, colocando-se a distância tal, que nenhuma palavra pudesse chegar-lhe aos ouvidos. Eduardo, embora já lhe houvesse pago a cumplicidade, quis deixar-lhe ainda uma lembrança de última hora, e meteu-lhe na mão uma nota de cinco mil-réis.

No dia seguinte verificou-se o embarque. A família de Eduardo compunha-se dos pais e uma irmã de doze anos. O pai era comerciante e rico; ia passear alguns meses e fazer completar os estudos do filho em Heidelberg. Esta ideia de Heidelberg parecerá um pouco estranha nos projetos de um homem, como João B., pouco ou nada lido em coisas de geografia científica e universitária; mas sabendo-se que um sobrinho dele, em viagem na Europa, desde 1857, entusiasmado com a Alemanha, escrevera de Heidelberg algumas cartas exaltando o ensino daquela Universidade, ter-se-á compreendido essa resolução.

Para Eduardo, ou Heidelberg ou Hong-Kong, era a mesma coisa, uma vez que o arrancavam do único ponto do globo em que ele podia aprender a primeira das ciências, que era contemplar os olhos de Beatriz. Quando o paquete deu as primeiras rodadas na água e começou a mover-se para a barra, Eduardo não pôde reter as lágrimas, e foi escondê-las no camarote. Voltou logo acima, para ver ainda a cidade, perdê-la pouco a pouco, por uma ilusão da dor, que se contentava de um retalho, tirado à púrpura da felicidade moribunda. E a cidade, se tivesse olhos para vê-lo, podia também despedir-se dele com pesar e orgulho, pois era um esbelto rapaz, inteligente e bom. Convém dizer que a tristeza de deixar o Rio de Janeiro também lhe doía no coração. Era fluminense, não saíra nunca deste ninho paterno, e a saudade local vinha casar-se à saudade pessoal. Em que proporções, não sei. Há aí uma análise difícil, mormente agora, que não podemos mais distinguir a figura do rapaz. Ele está ainda na amurada; mas o paquete transpôs a barra, e vai perder-se no horizonte.

CAPÍTULO SEGUNDO

Para que hei de dizer que Beatriz deixou de dormir o resto da noite? Subentende-se que as últimas horas dessa triste noite de 23 de abril foram para ela de vigília e desespero. Direi somente que também foram de devoção. Beatriz, logo que Eduardo transpôs a porta do jardim, atirou-se à cama soluçando e sufocando os soluços, para não ser ouvida. Quando a dor amorteceu um pouco, levantou-se e foi ao oratório de suas rezas noturnas e matinais; ajoelhou-se e encomendou a Deus, não a felicidade, mas a consolação de ambos.

A manhã viu-a tão triste como a noite. O sol, na forma usual, mandou um dos seus raios mais jucundos e vivos ao rosto de Beatriz, que desta vez o recebeu sem ternura nem gratidão. De costume, ela dava a esse raio amado todas as expansões de uma alma nova. O sol, pasmado da indiferença, não interrompeu todavia o seu curso; tinha outras Beatrizes que saudar, umas risonhas, outras lacrimosas, outras apáticas, mas todas Beatrizes... E lá se foi o D. João do azul, espalhando no ar um milhão daquelas missivas radiosas.

Não menos pasmada ficou a mãe ao almoço. Beatriz mal podia disfarçar os olhos cansados de chorar; e sorria, é verdade, mas um sorriso tão forçado, tão de obséquio e dissimulação, que realmente faria descobrir tudo, se desde alguns dias antes, as maneiras de Beatriz não tivessem revelado tal ou qual alteração. A mãe supunha alguma moléstia; agora, sobretudo, que os olhos da moça tinham um ar febril, pareceu-lhe que era caso de doença incubada.

— Beatriz, você não está boa, disse ela à mesa.

— Sinto-me assim não sei como...

— Pois tome só chá. Vou mandar vir o doutor...

— Não é preciso; se continuar amanhã, sim.

Beatriz tomou chá, nada mais do que chá. Como não tinha vontade de outra coisa, tudo se combinou assim, e a hipótese da doença foi aparentemente confirmada. Ela aproveitou-a para meter-se no quarto o dia inteiro, falar pouco, não fazer toilette, etc. Não chamaram o médico, mas ele veio por si mesmo, o Tempo, que com uma de suas velhas poções abrandou a vivacidade da dor, e tornou o organismo ao estado anterior, tendo de mais uma saudade profunda, e a imortal esperança.

Realmente, só sendo imortal a esperança, pois tudo conspirava contra ela. Os pais de ambos os namorados tinham a seu respeito projetos diferentes. O de Eduardo meditava para este a filha de um fazendeiro, seu amigo, moça prendada, capaz de o fazer feliz, e digna de o ser também; e não meditava só consigo, porque o fazendeiro nutria iguais ideias. João B. chegara mesmo a insinuá-lo ao filho, dizendo-lhe que na Europa iria vê-lo alguém que provavelmente o ajudaria a concluir os estudos. Este foi, com efeito, o plano dos dois pais; seis meses depois, iria o fazendeiro com a família à Alemanha, onde casariam os filhos.

Quanto ao pai de Beatriz, os seus projetos eram ainda mais definitivos, se é possível. Tratava de aliar a filha a um jovem político, moço de futuro, e tão digno de ser marido de Beatriz, como a filha do fazendeiro era digna de ser mulher de Eduardo. Esse candidato, Amaral, frequentava a casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.

 Não obstante, a esperança subsistia no coração de ambos. Nem a distância, nem os cuidados diversos, nem o tempo, nem os pais, nada diminuía o viço dessa flor misteriosa e constante. Não disseram outra coisa as primeiras cartas, recebidas por um modo tão engenhoso e tão simples, que vale a pena contá-lo aqui, para uso de outros desgraçados. Eduardo mandava as cartas a um amigo; este passava-as a uma irmã, que as entregava a Beatriz, de quem era amiga e companheira de colégio. Geralmente as companheiras de colégio não se recusam a estes pequenos obséquios, que podem ser recíprocos; em todo o caso, — são humanos. As duas primeiras cartas, assim recebidas, foram a transcrição dos protestos feitos naquela noite de 23 de abril de 1861; transcrição feita com tinta, mas não menos valiosa e sincera do que se o fora com sangue. O mar, que deixou passar essas vozes concordes de duas almas violentamente separadas, continuou o perpétuo movimento da sua instabilidade.

CAPÍTULO TERCEIRO

Beatriz voltou aos hábitos anteriores, aos passeios, saraus e teatros do costume. A tristeza, de aguda que era e manifesta, tornou-se escondida e crônica. No rosto era a mesma Beatriz, e tanto bastava à sociedade. Naturalmente não tinha a mesma paixão da dança, nem a mesma vivacidade de maneiras; mas a idade explicava a atenuação. Os dezoito anos estavam feitos; a mulher completara-se.

Quatro meses depois da partida de Eduardo, entendeu a família da moça apressar o casamento desta; e eis aqui as circunstâncias da resolução.

Amaral cortejava a moça ostensivamente, dizia-lhe as finezas usuais, frequentava a casa, ia onde ela fosse; punha o coração em todas as ações e palavras. Beatriz entendia tudo e não respondia a nada. Usou duas políticas diferentes. A primeira foi mostrar-se de uma tal ignorância que o pretendente achasse mais razoável esquecê-la. Pouco durou esta; era improfícua, tratando-se de um homem verdadeiramente apaixonado. Amaral teimou; vendo-se desentendido, passou a linguagem mais direta e clara. Então começou a segunda política; Beatriz mostrou que entendia, mas deixou ver que nada era possível entre ambos. Não importa; ele teimou ainda mais. Nem por isso venceu. Foi então que o pai de Beatriz interveio.

— Beatriz, disse-lhe o pai, tenho um marido para ti, e estou certo que vais aceitá-lo...

— Papai...

— Mas ainda que, a princípio recuses, não por ser indigno de nós; não é indigno, ao contrário; é pessoa muito respeitável... Mas, como ia dizendo, ainda que a tua primeira palavra seja contra o noivo, previno-te que é desejo meu e há de cumprir-se.

Beatriz fez um movimento de cabeça, rápido, espantado. Não estava acostumada àquele modo, não esperava a intimação.

— Digo-te que é um moço sério e digno, repetiu. Que respondes?

— Nada.

— Aceitas então?

— Não, senhor.

Desta vez foi o pai que teve um sobressalto; não por causa da recusa; ele esperava-a, e estava resolvido a vencê-la, segundo a avisou desde logo. Mas o que o espantou foi a prontidão da resposta.

— Não? disse ele daí a um instante.

— Não, senhor.

— Sabes o que estás dizendo?

— Sei, sim, senhor.

— Veremos se não, bradou o pai levantando-se, e batendo com a cadeira no chão; veremos se não! Tem graça! Não, a mim! Quem sou eu? Não! E por que não? Naturalmente, anda aí algum petimetre (pelintra) sem presente nem futuro, algum bailarino, ou estafermo. Pois veremos...

E ia de um lado para outro, metendo as mãos nas algibeiras da calça, tirando-as, passando-as pelos cabelos, abotoando e desabotoando o paletó, fora de si, irritado.

Beatriz deixara-se estar sentada com os olhos no chão, tranquila, resoluta. Em certo momento, como o pai lhe parecesse exasperado demais, levantou-se e foi a ele para aquietá-lo um pouco; mas ele repeliu-a.

— Vá-se embora, disse-lhe; vá refletir no seu procedimento, e volte quando estiver disposta a pedir-me perdão.

— Isso já; peço-lhe perdão já, papai... Não quis ofendê-lo; nunca o ofendi... Perdoe-me; vamos, perdoe-me.

— Mas recusas?

— Não posso aceitar.

— Sabes quem é?

— Sei: o Dr. Amaral.

— Que tens contra ele?

— Nada; é um moço distinto.

O pai passou a mão pelas barbas.

— Gostas de outro.

Beatriz calou-se.

— Vejo que sim; está bem. Quem quer que seja, não terá nunca a minha aprovação. Ou o Dr. Amaral, ou nenhum mais.

— Nesse caso, nenhum mais, respondeu ela.

— Veremos.

CAPÍTULO QUARTO

Não percamos tempo. Beatriz não casou com o noivo que lhe davam; não aceitou outro que apareceu no ano seguinte; mostrou uma tal firmeza e decisão, que encheu o pai de assombro.

Assim se passaram os dois primeiros anos. A família de Eduardo voltou da Europa; este ficou, para tornar quando acabasse os estudos. “Se me parecesse, ia já (dizia ele em uma carta à moça), mas quero conceder isto, ao menos, a meu pai: concluir os estudos.”

Que ele estudava, é certo, e não menos certo é que estudava muito. Tinha vontade de saber, além do desejo de cumprir, naquela parte, as ordens do pai. A Europa oferecia-lhe também alguns recreios de diversa espécie. Ele ia nas férias à França e à Itália, ver as belas-artes e os grandes monumentos. Não é impossível que, algumas vezes, incluísse no capítulo das artes e na classe dos monumentos algum namoro de ordem passageira; creio mesmo que é negócio liquidado. Mas, em que é que essas pequenas excursões em terra estranha lhe faziam perder o amor da pátria, ou, menos figuradamente, em que é que essas expansões miúdas do sentimento diminuíam o número e a paixão das cartas que mandava a Beatriz?

Com efeito, as cartas eram as mesmas de ambos os lados, escritas com igual ardor às das primeiras semanas, e nenhum outro método. O método era o de um diário. As cartas eram compostas dia por dia, como uma nota dos sentimentos e dos pensamentos de cada um deles, confissão de alma para alma. Parecerá admirável que este uso fosse constante no espaço de um, dois, três anos; que diremos cinco anos, sete anos! Sete, sim, senhora; sete, e mais. Mas fiquemos nos sete, que é a data do rompimento entre as duas famílias.

Não importa saber por que brigaram as duas famílias. Brigaram; é o essencial. Antes do rompimento desconfiaram os dois pais que os filhos tinham-se jurado alguma coisa antes da separação, e não estavam longe de concordar em que se casassem. Os projetos de cada um deles tinham naufragado; eles estimavam-se; nada havia mais natural do que aliarem-se mais intimamente. Mas brigaram; veio não sei que incidente estranho, e a amizade converteu-se em ódio.

Naturalmente um e outro pensaram logo na possibilidade do consórcio dos filhos, e trataram de afastá-los. O pai de Eduardo escreveu a este, já diplomado, dizendo que o esperasse na Europa; o de Beatriz inventou um pretendente, um rapaz sem ambição que jamais pensaria em pedi-la, mas que o fez, animado pelo pai.

— Não, foi a resposta de Beatriz.

O pai ameaçou-a; a mãe pediu-lhe por tudo o que havia de mais sagrado, que aceitasse o noivo; mostrou-lhe que eles estavam velhos, e que ela precisava ficar amparada. Foi tudo inútil. Nem esse pretendente nem outros que vieram, uns por mão do pai, outros por mão alheia. Beatriz não iludia ninguém, ia dizendo a todos que não.

Um desses pretendentes chegou a crer-se vencedor. Tinha qualidades pessoais distintas, e ela não desgostava dele, tratava-o com muito carinho, e pode ser que sentisse algum princípio de inclinação. Mas a imagem de Eduardo vencia tudo. As cartas dele eram o prolongamento de uma alma querida e amante; e aquele candidato, como os outros, teve de recuar vencido.

— Beatriz, vou morrer dentro de poucos dias, disse-lhe um dia o pai; por que me não dás o gosto de deixar-te casada?

— Qual, morrer!

E não respondia à outra parte das palavras do pai. Eram já passados nove anos da separação. Beatriz tinha então vinte e sete. Via chegar os trinta com tranquilidade e a pena na mão. Não seriam já diárias as cartas, mas eram ainda e sempre pontuais; se algum paquete não as trazia ou levava, a culpa era do correio, não deles. Realmente, a constância era digna de nota e admiração. O mar separava-os, e agora o ódio das famílias; e além desse obstáculo, deviam contar com o tempo, que tudo afrouxa, e as tentações que eram muitas de um e outro lado. Mas apesar de tudo, resistiam.

O pai de Beatriz morreu dali a algumas semanas. Beatriz ficou com a mãe, senhora achacada de moléstias, e cuja vida naturalmente não iria também muito longe. Esta consideração deu-lhe ânimo para tentar os últimos esforços, e ver se morria deixando a filha casada. Empregou os que pôde; mas o resultado não foi melhor.

Eduardo na Europa sabia tudo. A família dele trasladou-se para lá, definitivamente, para o fim de o reter, e tornar impossível o encontro dos dois. Mas, como as cartas continuavam, ele sabia tudo o que se passava no Brasil. Teve notícia da morte do pai de Beatriz, e dos esforços empregados por ele e depois pela mulher, viúva, para estabelecer a filha; e soube (pode imaginar-se com que satisfação) da resistência da moça. O juramento da noite de 23 de abril de 1861 estava de pé, cumprido, observado à risca, como um preceito religioso, e, o que é mais, sem que lhes custasse mais do que a pena da separação.

Na Europa, morreu a mãe de Eduardo; e o pai teve um instante ideias de voltar ao Brasil; mas era odiento, e a ideia de que o filho podia então casar com Beatriz, fixou-o em Paris.

“Verdade é que ela não deve estar muito tenra...” dizia ele consigo.

Eram então passados quinze anos. Passaram-se mais alguns meses, e a mãe de Beatriz morreu. Beatriz ficou só, com trinta e quatro anos. Teve ideia de ir para Europa, com alguma dama de companhia; mas Eduardo contava então vir ao Rio de Janeiro arranjar alguns negócios do pai, que estava doente. Beatriz esperou; mas Eduardo não veio. Uma amiga dela, confidente dos amores, dizia-lhe:

— Realmente, Beatriz, você tem uma paciência!

— Não me custa nada.

— Mas esperar tanto tempo! Quinze anos!

— Nada mais natural, respondia a moça; eu suponho que estamos casados, e que ele anda em viagem de negócios. É a mesma coisa.

Essa amiga estava casada; tinha já dois filhos. Outras amigas e companheiras de colégio tinham casado também. Beatriz era a única solteira, e solteira abastada e pretendida. Agora mesmo, não lhe faltavam candidatos; mas a fiel Beatriz conservava-se como dantes.

Eduardo não veio ao Brasil, segundo contava, nem naquele nem no ano seguinte. As doenças do pai agravaram-se, tornaram-se longas; e nisto correram mais dois anos. Só então o pai de Eduardo morreu, em Nice, no fim de 1878. O filho arranjou os primeiros negócios e embarcou para o Rio de Janeiro.

— Enfim!

Tinham passado dezoito anos. Posto que eles tivessem trocado os retratos, mais de uma vez durante esse lapso de tempo, acharam-se diferentes do que eram na noite da separação. Tinham passado a idade dos primeiros ardores; o sentimento que os animava era brando, embora tenaz.

Vencida a letra, era razoável pagar; era mesmo obrigatório. Trataram dos papéis; e dentro de poucas semanas, nos fins de 1878, cumpriu-se o juramento de 1861. Casaram-se, e foram para Minas, donde voltaram três meses depois.

— São felizes? perguntei a um amigo íntimo deles, em 1879.

— Eu lhe digo, respondeu esse amigo observador. Não são felizes nem infelizes; um e outro receberam do tempo a fisionomia definitiva, apuraram as suas qualidades boas e não boas, deram-se a outros interesses e hábitos, colheram o fastio e a marca da experiência, além da surdina que os anos trazem aos movimentos do coração. E não viram essa transformação operar-se dia por dia. Despediram-se uma noite, em plena florescência da alma, para encontrarem-se carregados de fruto, tomados de ervas parasitas, e com certo ar fatigado. Junte a isto o despeito de não achar o sonho de outrora, e o de o não trazer consigo; pois cada um deles sente que não pode dar a espécie de cônjuge que aliás deseja achar no outro; pense mais no arrependimento possível e secreto de não terem aceitado outras alianças, em melhor quadra; e diga-me se podemos dizê-los totalmente felizes.

— Então infelizes?

— Também não. Vivem, respeitam-se; não são infelizes, nem podemos dizer que são felizes. Vivem, respeitam-se, vão ao teatro...

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Estação, de 31/10/1882 a 30/11/1882. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 23

 

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 14 : Poema em laços de fita

 
Ao amanhecer, Isadora teve um despertar sereno. Logo avistou, sobre a penteadeira, o rolo preso em fitas. Era o poema de Genuíno. Descobriu o corpo, colocou os pés no chão e, lentamente, apanhou o papel. Desfez o nó do laço e, escorada à cabeceira da cama, começou a ler o que a ela fora escrito:

De peito aberto

“ De peito aberto, coração pulsante,
olhar atento, sorriso infante...
Aqui estou, a mirar o céu, pedindo ao vento que desenhe o rosto teu.
Mas o vento sente ciúmes de ti, e levou as nuvens embora nas asas de um colibri.

Reclamei ao tempo e tive tonturas, calafrios.
É a natureza rivalizando comigo,
mas por ti, meu amor, não temo o perigo.
E te visito na ilusão do meu pensar ...

Ah, pode o mundo não querer, o tempo reclamar,
mil demônios tentarem impedir, mas é contigo,
linda rosa, flor do jardim da minha alma
que hei de me casar.

Tu és a natureza, e eu sou teu cuidador.
Nada te faltará. Sou teu anjo protetor,
em todas as noites, em todos os dias,
em todas as estações te farei cantar...

Sei que pareço um tolo a dizer-te estas palavras
cheias de açúcar, mas fico bobo ao perceber,
que nasci para te fazer feliz.
Feliz como nunca foste antes de encontrar.

E ao Patrão velho, senhor da existência,
tiro o meu chapéu e me ponho a agradecer,
missão mais bela do que essa,
juro que nunca vi acontecer.
     
Nossas almas foram entrelaçadas enquanto
dançávamos a sorrir naquele baile bonito.
Se de um lado a vida quis assim,
esta mesma vida em seu reverso, há de se calar.
E não te deixarás longe de mim...
    
Vamos juntos construir nossa casa, plantar flores,
formar família. Conservar bons amigos,
ser exemplo de fé.

Vem comigo, prenda minha, mostrar para o mundo,
o que é felicidade!

Com carinho, teu Genuíno.

 Ao ler os últimos versos, Isadora dobrou o papel com cuidado, pois o poema já estava a desmanchar-se, molhado em sua chuva de lágrimas…
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continua...

Fonte:
Texto enviado pela autora